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quinta-feira, 22 de março de 2012

Sobre o dogmatismo na ciência e a falsificação como seu remédio

Olá!

Há pouco tempo atrás, publiquei um texto que versava sobre a loucura (vide). Seu mote principal foi a questão da impossibilidade de defini-la, já que não temos como fechar um paradigma absoluto sobre o que é a razão. Se não defino o modelo, não tenho como identificar os pontos contraditórios para estabelecer um oposto seu. O problema é que acabei por bater um bom tanto na Ciência, por conta de sua postura arrogante de detentora exclusiva do conhecimento. Não é bem assim, mas tenho lá minhas razões.

Para esclarecer um pouco melhor a minha posição e lançar novas pimentas neste caldo, vou dar uma de Professor Pasquale e convocar o músico Chico Teixeira para nos ajudar a pensar melhor no busílis. A música chama-se “Mochileira”, e é de autoria de Geraldo Roca. Vamos prestar atenção no pequeno trecho grifado:


Moça, deixe que eu ligue meu olhar em você
Você é mesmo uma cigana bonita

Refrão:
Mochileira, deite comigo essa noite
E conte alguma boa e velha história
De umas noites de mágica em Machu Pitchu
E os dias dourados na Califórnia

O encanto se foi, mas você diz acreditar
No bem, na revolução, no amor,
No pé na estrada, no zen
Sua vida é um trem indo embora
Trens, estradas, cidades
Que a mim já não empolgam, meu bem
A minha alma adoece
No Rio ou no Nepal
O meu mal, nenhuma certeza
O seu mal é certeza total

Dança, mochileira, que eu toco a guitarra
Dança, mochileira, e aquece a minha alma

Refrão

Você tem o dom de viver em qualquer lugar
Mesmo quando o medo vem
Uma noite nos Andes é fria
Mas o frio, ele é fácil de espantar
Os Deuses sabem que a estrada ainda é uma farra
E depois o trovão não assusta
Alguém com essa marra de ser
Do tipo de cigarra que canta na chuva

Refrão


Aqui aproveito para abrir parênteses. Trata-se de uma música rural (não dá prá chamar de sertanejo – infelizmente hoje isso é sinônimo de... deixa prá lá) muito bem construída, como pode ser ouvido neste link (gravação bem mais ou menos). É sobre isso que afirmei neste post, onde digo que a obra de arte pode ser reconhecida como tal se ela basta a si mesma, ou seja, se ela por si só tem o condão de fazer pensar, de causar admiração, etc. A má arte (termo contraditório...) suscita debates outros que são externos a ela. Leiam lá para entender.


Bem, vamos ao assunto. O trecho grifado diz “... o meu mal, nenhuma certeza; o seu mal é a certeza total”. O eu-lírico se depara com as dúvidas existenciais de seu interior, enquanto nossa mochileira é a personificação da impulsividade. Há um conflito entre a impossibilidade de aceitação passiva e a confiança ilimitada. É o velhíssimo debate entre ceticismo e dogmatismo, uma das bases da disciplina filosófica conhecida como “Teoria do conhecimento”.

Ambos têm visões opostas com relação à possibilidade da cognição. Para um, a verdade existe e é absoluta. Pode ser conhecida, geralmente sob guia de uma autoridade. Já o ceticismo coloca o indivíduo em dúvida permanente, ocasionando uma incerteza com relação à verdade.

A ciência inicialmente se apega ao ceticismo, que tem necessidades empíricas para satisfazer suas hipóteses. De forma sistemática, isso nasce com Francis Bacon, que estabeleceu uma metodologia completa para as observações científicas, o Novum Organum, com as devidas limitações da época. Fica estabelecido que apenas um conjunto amplo de investigações pode dar fundamento a uma conclusão. Divagações dedutivas são um bom exercício lógico, mas não passam disso. Afinal, uma dedução nada mais é do que o reconhecimento de uma implicação já existente nos sujeitos envolvidos. É aquela velha historinha do silogismo: Todos os homens são mortais – Sócrates é homem – Sócrates é mortal. Ou seja, nenhuma novidade, apenas constatações.

Para fins de ciência, utilizar-se-ia a formulação de hipóteses e a sua comprovação através de raciocínio indutivo. Este nasce da observação da repetição dos fenômenos, em uma relação de causa e efeito. Quanto mais se observa o deslindar de um fato, maior é a quantidade de informações que provam a conclusão que a investigação acaba por levar a cabo.

Acontece que a indução tem um grave problema, já detectado por David Hume. Ao contrário do que acontece na dedução, não há necessidade lógica de que as premissas em uma indução sejam sempre verdadeiras para que a conclusão também seja verdadeira. Seus argumentos podem ser fortes ou fracos, nunca válidos ou inválidos. O exemplo de Hume é baseado no nascimento de cada dia. Por experiência, somos induzidos a concluir que toda manhã um belo sol estará a nos iluminar, sendo o propulsor de toda a alegria humana, abismada a contemplar as flores colorindo os voluptuosos campos, os gráceis pássaros a construir seus ninhos e a água que se esparrama em suas margens como se fosse um informe lençol a cobrir de benesses nossos horizontes. Só que nada há de ilógico em que nada disso ocorra e que o sol se apague para sempre. Uma só vez que a regra se quebre, e a indução, juntamente com suas leis, teses, axiomas, corolários e princípios, vão todos juntos, de braços dados, para o vinagre balsâmico com um ramo de alecrim.

O que fazer então, se a dedução não acrescenta nada de novo a um fato e a indução nunca fornece conhecimento seguro? Impossibilita-se a ciência e pronto?

Uma proposta bastante interessante é colocada pelo filósofo austríaco Karl Popper. É o que ele chamou de falsificacionismo ou falseabilidade. Através desta teoria, ele procura fazer com que o rio da ciência corra em um leito seguro, principalmente porque relativamente indefinido. Popper preconiza que não existem comprovações científicas, mas teorias não refutadas.

Em primeiro lugar, Popper estabelece que o critério de falseabilidade é o divisor de águas entre aquilo que pode e que não pode ser classificado como ciência. Para ele, tese científica é aquela que PODE ser falseada, ou seja, refutada. Todas as outras constatações, que não podem ser contraditas empiricamente, estão fora do alcance científico, são de outras áreas do conhecimento. Exemplos: a afirmação de que os anjos rodeiam todos os ambientes pertencem à religião, e não à ciência, já que não são passíveis de serem mensurados empiricamente; o mesmo vale para a observação metafísica de que o ser é externo ao indivíduo, à constatação estética de que a arte é expressão do belo. Como não podem receber oposição por meio de experimentação, pertencem a campos de conhecimento distintos da ciência. Também as tautologias não podem ser encaradas como científicas. Uma afirmação do tipo “O dia ficará claro enquanto não escurecer” é obviamente não científica, porque é uma assertiva que não tem possibilidade de ser falsa. De cara, portanto, Popper já coloca a ciência em seu devido eixo, justamente colocando-a em constante desafio: o de que as teses deverão resistir a oposições.

Podemos afirmar que Popper é um cético? De certa forma sim, mas sua proposta, no entanto, não deve ser tomada em um sentido radical como faz Hume e os céticos pós-clássicos, como Sexto Empírico, que defende a epoché, suspensão do julgamento pela impossibilidade de se conhecer a verdade. Popper pensa que a ciência se torna dogmática ao crer indistintamente em seus princípios, fugindo de uma de suas principais características, que é a investigação permanente. Ele imagina o seguinte: as teorias nada mais são que conjecturas, que podem ser desfeitas a qualquer tempo. Isso não mata a teoria, mas faz com que ela seja revista e ajustada. Na verdade, ele pretende que as teorias científicas se renovem continuamente.

Mas por que as teorias científicas devem ser passíveis de revisão permanente? Porque elas buscam atingir uma universalidade impossível. O homem não possui técnica e alcance suficiente para chegar aos “limites” do universo, para verificar se suas experiências produzirão resultados consistentes em qualquer tempo e em qualquer lugar. Mas a cada vez que se avança, a cada vez em que for possível verificar a aplicabilidade das leis científicas em novas condições, a teoria pode ser derrubada. Na maioria das vezes, isso não a invalida, mas a modifica, e, no limite, a aperfeiçoa.

Neste sentido, Popper assina um libelo contra a “preguiça” na ciência, que não pode ser refém de uma atitude que, levada a extremos, transforma as teorias científicas em dogmas, tão ao contrário do que o próprio espírito da ciência requer. A ciência ganha status semelhante ao religioso ao dogmatizar-se, lembrando que esta última tem a escusa de se caracterizar pelo reconhecimento da autoridade que dita a verdade.

Por fim, não tenho rigorosamente nada contra a ciência. Só penso que é necessário ao próprio espírito científico reconhecer os limites de sua atuação, sem arrogar a si mesmo o estatuto de proprietário exclusivo da verdade, o que ele não é nem deveria pretender ser.


Recomendações:

Falei muito rapidamente sobre o pensamento de Karl Popper. Ele é beeeeeeeeeeem mais detalhado e interessante. Recomendo a seguinte obra para melhor conhecer seus pensamentos sobre o problema da indução e a falseabilidade.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1993.


Mencionei a metodologia científica de Francis Bacon. É meio chatinho de ler, principalmente a segunda parte, que descreve os métodos de pesquisas, mas historicamente é um documento importantíssimo, porque marcou a transição entre os períodos medieval e moderno, com uma guinada muito significativa na linhagem dos pensamentos então praticados. A primeira parte, aliás, contém uma interessantíssima teoria acerca dos ídolos. Vale o esforço.

BACON, Francis. Novum organum: Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


Por fim, o CD do Chico Teixeira. Ótimo violonista, filho do consagrada Renato Teixeira. Este é o padrão de música sertaneja que eu aprecio. Recomendo a audição para que se saiba que as coisas podem ser muito boas, independente do rótulo que possuam.

TEIXEIRA, Chico. Mais que um viajante. São Paulo: Microservice, 2011. 01 mídia (CD).

Um comentário:

  1. Humm ... Ciência detentora da verdade ? Não conheço, mas vou conhecer o tal Popper. Minha dúvida é se isso não seria um reforço no seguinte dilema : Se a ciência não é detentora da verdade, então quem seria o detentor ? Afinal de contas o conforto da existência da verdade é a base que da existência. A verdade não se discute, ela se aprimora...então qual é a verdade senão a ciência essa mutante eterna sempre em busca de si mesmo.

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