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segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Conservadorismo: o que ele é e o que ele não é

(Hora de desfazer polêmicas, ou de criar mais ainda. Vamos tentar falar um pouco sobre Conservadorismo).

Olá!

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Vamos dar uma cutucadinha de leve na onça? Todas as vezes em que vamos falar de política, especialmente em um dos polos específicos que povoa o imaginário das pessoas, dá um bocado de conversa. Quando eu falava neste texto de dez anos atrás que a juventude estava despolitizada, não imaginava que a política viesse para a crista da onda pouco tempo depois. Só que ela veio toda torta, com uma montanha de clichês e senso comum no lugar da ponderação que deveria permear atitudes racionais. E dá-lhe dizer que isso é comunismo, aquilo é comunismo, o outro é comunismo. Qualquer coisa que eu não goste é comunismo. Por essa razão, pus-me a escrever com mais detalhes sobre o que é comunismo, tentando não ser parcial em momento algum, conforme está aqui.

Claro que o final das contas de uma politização sem fundamento na história e na realidade não poderia ser bom. E deu no que deu. Os fatos decorridos em Terra Brasilis lembram um pouco de certos aspectos sociais que provém de minha infância. Quando eu era menino pequeno, meu pai era daqueles operários que descarregavam as mágoas e boa parte dos proventos no balcão de um boteco. Um, não; os vários que existiam no trecho da Estrada da Vila Ema compreendido entre a Venda do Chico e a padaria do Seo Arlindo, mais conhecidos hoje como Rua Domingos Afonso e a Rua Gomes. E lá ia eu junto, vendo o patriarca molhar o bico junto dos amigos, jogar um truco e comer porcarias várias. Minha mãe detestava que meu pai nunca tenha abandonado esse costume, mas ela queria morrer de escarlatina quando ele me levava junto, o que era frequente. Entretanto, sua opinião pouco contava, porque era “lugar de homem” e outras alegações, mas, para ser franco, o velho tinha a responsabilidade de não me dar nada alcoólico. Com a liberalidade de tomar minhas caçulinhas e comer meus doces de armário, eu ficava bem satisfeito, para dizer a verdade. Isso me pôs em contato com microcosmos que, uns mais, outros menos, tinham cenários sempre muito semelhantes - salões alugados com piso vermelhão e balcão de fórmica, duas ou três mesas e um banheiro pútrido. A fauna que povoava esse habitat era variável, mas congregava certos tipos que se repetiam a cada um deles. Havia os brincalhões, a maioria deles, desavexados pela ingestão pouco controlada de bebida. Havia os que ficavam sentimentais, os que estranhamente ficavam mais ensimesmados, os que se tornavam inconvenientes, e até mesmo mais filosóficos. E havia os que ficavam valentes. Esses eram os piores, porque, muito embora fosse uma valentia pouco corajosa, valentia de bêbado, era daí que nasciam as encrencas, as brigas inúteis, e, com pouco juízo, até uma faca mal segura na mão. Faziam-se de mandões, diziam que suas mulheres não mandavam na vida deles, que os governantes eram safados aproveitadores, e que se estivessem no governo fariam isso e aquilo. É uma dessas pessoas que está (ainda) no poder. Com a diferença de não estar bêbado.

Acontece que o mundo está dividido em dois. Embora eu vá dizer pela enésima vez que discordo frontalmente da neurose espacial que tomou conta de nossas cabeças políticas, o fato é que há pouco conhecimento dos dois lados. De um lado, há os que se dizem progressistas, que são chamados de comunistas a cada vez que se fala em qualquer causa igualitária. Do outro, os ditos conservadores, avessos a mudanças, que assim são catalogados tão logo se oponham a qualquer musiquinha mais ousada. Então é essencial que se esclareçam certos pontos para que se saiba com exatidão o que se combate. Sabe aquelas situações em que você elogia quando acha que está ofendendo? Pois é. Isso é típico do debate ruim. Vamos então tentar entender melhor o que é o conservadorismo.


O que é conservadorismo?

Conservadorismo pode ter muitas conotações, mas aqui vamos nos ocupar do âmbito político e social. Ele é uma corrente que defende a manutenção das estruturas econômicas e sociais, e em que as modificações, quando admitidas, devem ser vistas com bastante prudência e levadas a cabo com muita lentidão, de modo a não desestruturar os panoramas preexistentes. Essa pouca vontade em mudanças geralmente vem acompanhada de um aspecto metafisico, que é a preservação de valores morais, o mais das vezes derivados de princípios religiosos próprios da cultura de onde parte.

Qual seria a raiz filosófica do conservadorismo?

Se formos buscar a mais profunda origem do conservadorismo, encontraremos o próprio instinto de preservação, onde procuramos manter as condições mínimas de sobrevivência e por lá estabelecemos uma estabilidade. Em tese, se chegamos até onde estamos, se não nos extinguimos como espécie e como sociedade, foi porque as próprias contingências existenciais foram moldando a realidade da maneira como se nos apresentam. Mudar essas condições sempre representa um risco, e, por isso, conservadores tendem a acolher apenas mudanças que não impliquem em transformações rápidas e radicais.

Não é um contrassenso que a maioria dos protestantes sejam conservadores?

Realmente, a um primeiro olhar, nada mais revolucionário parece o movimento protestante em seus primórdios, que desafiou uma hierarquia consolidada como era o Catolicismo de então. Mas, de um modo geral, os protestantes são conservadores porque a revolução proposta por Lutero e companhia era mais um retorno ao Cristianismo original, fortemente ligado a uma interpretação literal da Bíblia, do que uma tentativa de implantação de novos hábitos. Quase a totalidade das vertentes protestantes guiam seu pensamento pelo princípio da sola scriptura, ou seja, a Bíblia como única fonte legítima de interpretação religiosa. Isso deriva para um conteúdo moral muito mais rígido e imutável do que acontece com os católicos, que aplicam outras fontes doutrinárias, como o magistério da igreja e a tradição. Sendo assim, não há ambiguidade no fato de serem as igrejas protestantes geralmente mais conservadoras.

Isso significa que o catolicismo não é conservador?

O catolicismo, assim como a grande maioria das religiões, tem um pano de fundo conservador, especialmente quando pensamos que a sede da igreja é tida como autoridade máxima em questão de fé, e que existem dogmas baixados a escrito e que a estrutura de poder seja extremamente rígida, tendendo ao imutável. Em certos aspectos, o catolicismo é ainda mais conservador do que algumas formas de protestantismos. O que acontece é que o catolicismo é, em geral, menos literalista que o protestante, o que ajuda a acomodar um pouco melhor suas doutrinas com a ciência, por exemplo. Cito o caso da evolução, que já expus neste texto, que não representa um problema para os católicos, que simplesmente colocam Deus como o motor da evolução, e ponto.

Por que é tão comum a dobradinha “liberal na economia, conservador nos costumes”?

Se você observar bem, quem defende esse tipo de visão são as camadas de elite e, no final das contas, a intenção é ser conservador em tudo. E por que? Porque uma economia com máximos níveis de liberdade tende a deixar o dinheiro na mão de quem já o tem. Ser liberal na economia É ser conservador, especialmente quando a visão dita liberal não vem acompanhada por uma vontade de aplicar liberdade em outros aspectos da sociedade e da cultura.

A base do conservadorismo de fato é a família?

Há uma distorção aqui. Como são raros os casos em que alguém não esteja inserido em alguma forma de organização familiar, há um forte apelo emocional em se nomear a família como base social. Não que de fato a família não seja o próximo estágio que se segue ao indivíduo na formação das comunidades, mas o conservadorismo normalmente está preocupado com um único modelo familiar, chancelado pela igreja estabelecida, como se formas tentaculares ou multicomponenciais não pudessem exercer a contento a mesma função. Desta forma, a base familiar da sociedade é verdadeira, porque é lá que se obtém as primeiras noções de convívio, de princípios e de sobrevivência, mas a forma como ela se organiza não precisa ser unívoca, porque diferentes formas de família são capazes de fazer essa mesma transmissão de valores.

Quais são pensadores do conservadorismo que podem dar uma base segura sobre o que é o movimento?

Eu já mencionei Michael Oakeshott neste texto, e a base do seu pensamento é que racionalizações para novas sociedades fatalmente tropeçarão no inesperado quando saírem do papel. Isso indica que falta à atitude progressista uma observação empírica da realidade, e qualquer inconformidade que não esteja prevista em seus manuais fará com que haja o risco do colapso, tanto da tese, quanto do próprio mecanismo social. Já Edmund Burke, considerado o pai do conservadorismo moderno, entendia que os processos políticos deveriam se basear em segurança, com a articulação de conservação, transmissão e melhoria. Isso significa dizer que, no seu entender, havia uma lógica subjacente entre manutenção de um status quo não-imobilista, onde cada melhoria seria testada aos poucos, o que não existia em uma ação revolucionária, sempre banhada de arbitrariedade. Uma atitude revolucionária era um risco tão grande quanto o resultado da Revolução Francesa, a quem Burke considerava um grande erro. Para ele, qualquer atitude revolucionária é uma ação que não se propõe a se debruçar sobre a real condição política de uma sociedade. Ele entendia, à moda de Aristóteles, que a realidade plasmava a racionalidade, e que o resultado de o mundo ser como ele é advém do fato de que esta é a melhor maneira de as coisas ser como são.

É possível um conservador de esquerda?

É preciso aqui fazer uma distinção bastante clara entre o que é o conservadorismo e a prática conservadora. Levado unicamente na acepção do termo, qualquer pessoa que quer manter um status quo poderia ser chamada de conservadora, inclusive o mais barbudo dos comunistas. Acontece que, quando abordado pelo ângulo das correntes políticas, um conservador não é designado apenas como aquele que quer manutenção do poder, mas que se chegue a um determinado modelo, notadamente de substrato “tradicional cristão”, bem entre aspas.

Qual a diferença entre um conservador e um reacionário?

Aqui, temos uma aplicação daquilo que, em Desenvolvimento de Sistemas, nós chamamos de Lei da Herança. Uma instância qualquer é herdeira de outra se ela possui todas as características do original, acrescida de características próprias. Como funciona isso? Imagine que você vai à feira querendo comprar legumes; se você comprou abobrinha, também comprou um legume. Se comprou alface, já não. Isso porque a abobrinha possui todas as características intrínsecas do legume: ser passível de cozimento, ter alta quantidade de fibras, apresentar-se com uma morfologia fechada e assim por diante. Além disso, ela possui características próprias, como ser verde, ter sabor próprio e mais. Então a conclusão é a seguinte: toda abobrinha é um legume, mas nem todo legume é abobrinha. Idem: Todo reacionário é um conservador, mas nem todo conservador é um reacionário. O reacionário é um tipo de conservador que tem um nível de aceitação a mudanças ainda menor, e que calca suas ideias em um componente menos racional. Um reacionário sempre se apoia em um passado glorioso, ou uma tradição inelutável, que sai dos campos das ideias e parte para a reação (daí a origem do termo), apoiando-se em um heroísmo do passado que deu origem a valores inelutáveis. Em síntese, para um reacionário há sempre um passado idealizado, e por isso eles tendem a resgatar monarquias ou regimes de exceção. É exatamente aí que se encaixam aqueles que gostam de exaltar o período militar brasileiro.

Qual a diferença entre um conservador e um fascista?

Vale a regra aplicada anteriormente. Não se pode afirmar, prima facie, que um conservador seja fascista, mas muito do que pensam os fascistas tem raiz no conservadorismo. Há diferenças flagrantes: divergências com a importância do Estado, liberalismo econômico e outras, mas, como um todo, certas proximidades incômodas podem fazer com que ambas as ideologias sejam confundidas.

Como é sua posição em relação ao conservadorismo?

Vamos lá. Eu tenho um espírito progressista, mas muitas de minhas atitudes são conservadoras. Como exemplo, posso mencionar que não tenho nenhum problema, nenhum mesmo, com a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas eu mesmo tenho um casamento heteronormativo, com uma mulher da mesma etnia que eu. Eu passei por anos a fio atuante na igreja católica, e provavelmente meu único ponto de minoria hoje é ser ateu, mas isso demorou muito tempo. Isso acontece porque eu sou humano, e entendo que há uma mescla de conformismo e comodidade que nos favorece a não ousar. Há posições pessoais que derivam de muitas coisas: momento histórico, variações econômicas, mudanças sociais e até adesões políticas de conveniência. Isso faz com que não só sejamos liberais em algumas coisas e conservadores em outras, mas que sejamos liberais em determinado momento para nos tornarmos conservadores em outros. Não são só questões de convicções, mas de pragmatismo também. Por isso mesmo, desconfie daqueles que aderem de forma automática a qualquer pacote fechado de ideologia. Qualquer. Quem faz isso, vive de muletas. Em tese, ser contrário ao porte de armas não deveria ser uma pauta rematadamente progressista, mas ela está no pacote; o mesmo se aplica a conservadores que são contrários a privatizações - é uma posição que não é proibida, apesar de rara.

O que eu fiz aqui? Defendi ou ataquei o conservadorismo? Quem ler com cuidado, verá que não fiz nem uma coisa, nem outra. É uma posição legítima que, na média, eu não defendo e não aprecio, mas que está aí dentro do espectro político possível dentro de um contexto democrático, partindo da premissa que ele, em si, tem suas razões e argumentos, embora sejam tão pouco utilizados pelos seus mais fanáticos defensores. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Quer conhecer conservadorismo sob uma ótica racional? Leia Burke, será interessante.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. Brasília: UnB, 1982.