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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 1º porto: Queluz, as ladeiras da memória

Olá!

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Pode parecer mentira, mas o fato é que tirei alguns dias de folga do serviço, o que é algo incrível, para quem conhece um pouco do meu quotidiano. E aproveitei para pegar a patroa e rodar mundo afora. Falando assim, dá a impressão que velejamos por verdes mares, planamos por céus de brigadeiro (a patente, não o doce) ou refizemos as trilhas dos primeiros missionários neste indômito país tupiniquim. Bem, não é verdade. Orçamento malvadamente estreito, limitamo-nos a trafegar por algumas pequenas cidades do próprio estado de São Paulo, indo de uma a outra a esmo, decidindo na hora onde passaríamos as noites e onde nossos vorazes apetites seriam saciados. Em suma, uma versão pós-moderna e motorizada dos mochileiros de ontem e hoje.
O objetivo do rolê era realmente dar uma descansada nos mal articulados ossos, mas a Filosofia é danadinha. Em cada objeto, em cada costume, em cada tradição, em cada história e em cada pessoa há um pequeno vento que quer fazer com que as asas da coruja de Minerva se abram, e seus olhos se agucem para a caça. Por conta disso, essa turnê não foi meramente turística, mas caiu também no escopo histórico-filosófico, e tive a ideia de narrar as minhas passagens juntamente às impressões e pensamentos que cada uma delas disparou em mim. Vamos nessa, é justo e necessário.
Havia já algum tempo que a cara-metade queria conhecer a cidade de Queluz, um tanto próxima da capital (220 Km, mais ou menos) e com pouco mais de 10.000 habitantes. Pequena, ora pois. Decidimos começar por lá nosso périplo, e depois veríamos o que fazer.
Queluz é a última cidade do estado de São Paulo antes de entrar no Rio de Janeiro pela via Dutra (BR-116), e fica encravada entre a serra da Mantiqueira e a serra da Bocaina, sendo a primeira cidade do chamado Vale Histórico, que, na verdade, é composto por uma pequena série de cidades que ficaram perdidas e com o progresso detido após a estrada que as enfileiram (Rodovia dos Tropeiros, antigo caminho de São Paulo para o Rio de Janeiro) deixar de ser um rumo entre as duas principais metrópoles do país. A sensação de que o tempo parou é real.
Queluz tem muito daquilo que é o padrão do que sabemos que vamos encontrar em uma cidade do interior, a começar pela igrejona de estilo barroco na praça central, muito embora, no caso, a igreja de São João Batista não esteja propriamente na região mais movimentada da cidade, mas em um dos seus incontáveis morros.

A cidade faz parte da riquíssima (mas não aqui) região do Vale do Paraíba, que tem esse nome por conta do rio que a atravessa de fora a fora, o Paraíba do Sul. Em Queluz, ele é presença constante e representa uma linha divisória. Toda a área urbana está construída em suas margens. Não chega a cheirar mal, mas infelizmente está já bem poluído neste pedaço.

Duas são as atividades básicas, pelo que pude perceber. O artesanato, baseado na confecção de peças em palha, taboa e couro, e a extração de madeira. A primeira é feita nas casas e galpões, de modo totalmente manual.

É bastante interessante verificar como o ser humano é dotado de paciência para ficar horas e mais horas manipulando as fibras para tecer uma intrincada trama que, no fim, vai lhe render meia dúzia de trocados.

 

A outra atividade, a extração de eucaliptos, tem uma história mais triste, que ficamos conhecendo com o depoimento que a coleguinha professora Heloísa Helena (nada a ver com a ex-candidata à Presidência) deu a nós. A área rural do município era, no passado, fartamente aproveitada por fazendas de café. Com o aumento da produtividade e a migração da produção para outros lugares, como o Oeste Paulista ou o sul de Minas Gerais, as terras passaram a ser ocupadas por plantações de eucalipto, utilizados pela indústria madeireira. Isso, por si só, não seria o grande problema. Mas o centro histórico da cidade passou a ser cada vez mais trafegado por enormes caminhões e treminhões. Evidentemente, as casinhas de taipa de pilão e pau-a-pique começaram a ser grandemente danificadas, e a sua manutenção tornou-se praticamente impossível. A cidade vive hoje em uma guerra judicial para que os caminhões acessem a via Dutra através da Rodovia dos Tropeiros, mas as empresas não querem aumentar o trajeto, o que tal medida obrigaria. Enquanto isso, um importante legado dos áureos tempos em que a cidade era parte da Estrada Real que levava das Minas Gerais à sede do império vai se tornando cada vez mais depreciado.

Uma boa parte do casario continua em bom estado, e tenho notícias de que este setor da cidade é eventualmente utilizado para gravações de filmes e novelas em que se quer retratar a época áurea das cidades cafeeiras do princípio do século passado...

 

... mas o fato é que os sinais de decadência são mais claros. Um deles é a sede da ainda existente banda Lira Queluzense, que vem lutando arduamente para manter sua sobrevivência. As marcas de degradação estão muito acentuadas no belo, porém simples prédio que abriga a corporação. É localizada em uma rua estreita e bastante tranquila, mas digna de meter medo em nós, assustadiços paulistanos. Imagine-se andando em uma travessinha dessas à meia-noite:


Mais grave é a situação do já desativado prédio da fábrica de laticínios Vigor, da qual restam poucas identificações. Aliás, para saber do que se tratava o prédio, precisei me socorrer da memória de seus moradores mais antigos, que contaram o quanto o encerramento das atividades desta fábrica levou de empregos embora.




Exemplo de um final um pouco mais feliz se deu com a antiga estação ferroviária, com o aproveitamento do espaço para a instalação de um centro de referência para idosos e de uma escola técnica. Obviamente, por se tratar de um equipamento público, a migração de funções se deu com mais facilidade, mas eu pude constatar o quanto a intensidade do tráfego de caminhões é nociva para estas construções antigas: o reboco é repleto de rachaduras e há fuligem para todos os cantos onde a mão alcança. Apesar da foto um tanto infeliz, é possível perceber a quantidade de remendos feitos nas paredes.

 
Mas o que minha mente mais vinculou à cidade é a quantidade de ladeiras. As casas estão distribuídas em região montanhosa, e, como é fácil supor, dão-nos conta da engenhosidade humana no quesito adaptação ao ambiente disponível. A ladeira da foto abaixo é a que leva da margem do rio ao largo da Matriz. Percebam que minha pouca coordenação motora fez com que o enquadramento esteja levemente inclinado. A ladeira é ainda mais íngreme!

Já as fotos abaixo mostram o aclive que leva a uma vila de artesãos. A primeira tem uma escada auxiliar para os transeuntes mais claudicantes evitarem quedas e rolagens diversas...

 
... enquanto a segunda exibe a pirambeira que leva à região central. Perceba-se que o calçamento mais ao alto (da ladeira, não da foto) utiliza pedras irregulares, mais antigas que os macadames visíveis apenas em um pequeno trecho do leito carroçável.

 

E entre essas ladeiras encontramos a grande riqueza da cidade: sua memória. De todas as que visitei nessa viagem, é a que mais está impregnada de história, e talvez é a que mais tenha sentido o impacto da desconstrução de seu passado.
A memória é uma coisa danada. Ela é o grande componente da identidade, e sua perda faz com que nunca mais saibamos explicar o que somos hoje. Cada fator que vivenciamos é um tijolinho na imensa construção de nossa história. Veja o que acontece com as pessoas que sofrem do mal de Alzheimer: são seres que, apesar da presença física e da manutenção das funções fisiológicas, não existem mais. Deixaram de ser a si mesmas, porque o passado e seus vínculos lhe fugiram. Os parentes, os lugares, as experiências... tudo se vai. Por isso mesmo, é uma das doenças mais tristes que existem.

O mesmo se aplica a uma cidade. Cada pequena lembrança ajuda a compreender o que ela é. Nossas cidades, sejam grandes ou pequenas, parecem viver em amnésia. Isso se aplica a Queluz, a São Paulo, ao Rio, até mesmo a cidades mais novas, como Brasília. Quando se decidiu construir a capital no Planalto, será que houve a devida preocupação em manter um registro digno de tudo o que se desenvolveu naquela região antes da guinada radical que foi dada em seu destino? Se a história de cada um é dinâmica, como poderemos revisitar o que nos tornou o que somos, se nem ao menos temos o quê olhar para trás?
E nisso entramos em Gadamer.

Hans-Georg Gadamer foi um filósofo alemão que se dedicou à interpretação e reinterpretação da história. Para tanto, lançou-se profundamente na hermenêutica, atividade que pretende compreender a realidade contida nos textos, expressos eles de modo escrito, verbal ou visual.
A hermenêutica já não era novidade no começo do século XX, época em que Gadamer deu seus sábios pitacos. Ela era (e ainda é) largamente usada pelos teólogos para buscar entender e traduzir os textos sagrados de suas religiões, bem como pelos doutores de Direito e causídicos em geral, para procurar absorver o sentido que os legisladores desejavam que fosse dado às suas sistematizações. A grande novidade de Gadamer é entendê-la como uma técnica de constante renovação, e a conclusão de que nenhuma interpretação é definitiva. A hermenêutica é cíclica. Cada interpretação comporta uma reinterpretação, e esta comporta outra, e mais outra, e outra ainda.
Esse processo se dá porque ninguém interpreta o mundo de forma totalmente isenta. Estamos imbuídos de todas as recordações e memórias que constroem nossos julgamentos, conceitos, juízos. Esses componentes moldam nossa forma de interpretar.
Dessa forma, a interpretação se dá em forma de “choques”. Na primeira vez que deparamos com um texto, por exemplo, este nos demanda a busca de um sentido que vamos montar com base no nosso conhecimento presente. Quando retomamos o texto, sentimos que a interpretação já não é a mesma, somos impelidos a rever a interpretação porque nosso equipamento cultural já está modificado. A cada novo conceito, novo juízo, novo entendimento, vem-nos a necessidade de mudar nosso relacionamento com ele. Passamos a dialogar com o texto e com a interpretação que demos a ele.
Isso acontece porque a cada nova apreensão que recebemos do mundo, modificamos conceitos e a nós mesmos, o que comporta uma auto-reinterpretação. O homem cresce sobre si mesmo cada vez que se reinterpreta. E reinterpretar-se significa reinterpretar o mundo.
Vou dar um exemplinho pessoal. Nos tempos em que eu trabalhava na indústria farmacêutica, conheci um homem que era muito malquisto por praticamente todos os colegas, eu inclusive. Não vou citar seu nome, não é relevante. Era um cara arredio, resmungão, chato de lidar. Uma pessoa de quem todos desconfiavam muito, porque tinha atitudes estranhas para quem convivia com um grupo. Um cara pernóstico, arrogante, cheio de bazófia e má vontade. Se nesse momento eu me lançasse a escrever uma crônica sobre nosso pobre-diabo, fatalmente eu o desancaria. Provavelmente diria que era uma má companhia, que era ensimesmado porque queria deter para si informações importantes e outras balelas.
Acontece que o tempo passou e eu, quase que por acaso, acabei tendo informações mais significativas sobre sua vida pessoal. Fiquei sabendo que ele adotou uma criança com seriíssimos problemas cerebrais, que a faziam viver como um legume, e que essa criança cresceu e se tornou um homem na faixa dos 30 anos. Fiquei sabendo que ele adotou essa criança livremente, e que já sabia de todos os percalços pelos quais passaria. Fiquei sabendo que ele cuidava pessoalmente de toda a higiene pessoal do filho adotivo, porque era o único da casa que tinha força suficiente para carregá-lo de um lado para o outro. Fiquei sabendo que não havia nenhum tipo de esperança de que o menino se tornaria uma pessoa normal (de acordo com as convenções), que para sempre seria incomunicável, não andaria, não reconheceria os pais e os familiares. E fiquei sabendo, principalmente, que ele ensinou seus filhos legítimos, mais novos que este adotivo, a amá-lo como um legítimo irmão. Conheci ambos os filhos de sangue, e, de fato, falavam do irmão mais velho com carinho.
Meu choque: a vergonha que senti no meu pré-julgamento. A consequência: uma completa reinterpretação do que eu pensava sobre o meu colega. Agora ele já não era um cara fechado, mas sim um homem amargurado. Ele não era mais um reclamão: era um homem que se sentia fisicamente cansado pelo peso literal que tinha a carregar. Nunca mais pude vê-lo com a repugnância inicial.
Era mais ou menos isso o que Gadamer queria dizer com a reinterpretação contínua que a hermenêutica deve cuidar. Um entendimento está sempre eivado de nossas convicções, e, na medida em que estas mudam, também são modificadas as balizas que dão base às nossas interpretações. E aí nós temos a pedra de toque gadameriana: a hermenêutica deve ser histórica, deve mudar com a nossa história.
É assim que vi Queluz, e espero rever. Ela contém em si sua interpretação e sua reinterpretação, porque tem a história escrita em seu espaço físico. Quem olha para seu casario baixo e antigo, entende-a de uma forma. Quem percebe os amplos espaços vazios e economia pobre, modifica seu entendimento e já a vê diferentemente. Olha para o alto de suas colinas, sente uma indefinição em seu futuro e traz um novo elemento para compreendê-la. Faz-nos sentir como uma parte da aventura humana inserido em outra parte da aventura universal. A história não nos pertence; nós pertencemos a ela. Assim ensina o mestre.

Recomendações de leitura:

Gadamer dá à hermenêutica um aspecto inédito, ao estabelecer a coerência entre os juízos e os momentos históricos do sujeito interpretador e do objeto interpretado. Sua obra mais interessante é a seguinte:

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997.

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