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Pode parecer mentira, mas o fato é que tirei alguns dias de
folga do serviço, o que é algo incrível, para quem conhece um pouco do meu
quotidiano. E aproveitei para pegar a patroa e rodar mundo afora. Falando
assim, dá a impressão que velejamos por verdes mares, planamos por céus de
brigadeiro (a patente, não o doce) ou refizemos as trilhas dos primeiros
missionários neste indômito país tupiniquim. Bem, não é verdade. Orçamento
malvadamente estreito, limitamo-nos a trafegar por algumas pequenas cidades do
próprio estado de São Paulo, indo de uma a outra a esmo, decidindo na hora onde
passaríamos as noites e onde nossos vorazes apetites seriam saciados. Em suma,
uma versão pós-moderna e motorizada dos mochileiros de ontem e hoje.
O objetivo do rolê era realmente dar uma descansada nos mal
articulados ossos, mas a Filosofia é danadinha. Em cada objeto, em cada
costume, em cada tradição, em cada história e em cada pessoa há um pequeno
vento que quer fazer com que as asas da coruja de Minerva se abram, e seus
olhos se agucem para a caça. Por conta disso, essa turnê não foi meramente
turística, mas caiu também no escopo histórico-filosófico, e tive a ideia de
narrar as minhas passagens juntamente às impressões e pensamentos que cada uma
delas disparou em mim. Vamos nessa, é justo e necessário.
Havia já algum tempo que a cara-metade queria conhecer a
cidade de Queluz, um tanto próxima da capital (220 Km, mais ou menos) e com pouco
mais de 10.000 habitantes. Pequena, ora pois. Decidimos começar por lá nosso
périplo, e depois veríamos o que fazer.
Queluz é a última cidade do estado de São Paulo antes de
entrar no Rio de Janeiro pela via Dutra (BR-116), e fica encravada entre a
serra da Mantiqueira e a serra da Bocaina, sendo a primeira cidade do chamado
Vale Histórico, que, na verdade, é composto por uma pequena série de cidades
que ficaram perdidas e com o progresso detido após a estrada que as enfileiram
(Rodovia dos Tropeiros, antigo caminho de São Paulo para o Rio de Janeiro) deixar
de ser um rumo entre as duas principais metrópoles do país. A sensação de que o
tempo parou é real.
Queluz tem muito daquilo que é o padrão do que sabemos que
vamos encontrar em uma cidade do interior, a começar pela igrejona de estilo
barroco na praça central, muito embora, no caso, a igreja de São João Batista
não esteja propriamente na região mais movimentada da cidade, mas em um dos
seus incontáveis morros.
A outra atividade, a extração de eucaliptos, tem uma
história mais triste, que ficamos conhecendo com o depoimento que a coleguinha
professora Heloísa Helena (nada a ver com a ex-candidata à Presidência) deu a
nós. A área rural do município era, no passado, fartamente aproveitada por
fazendas de café. Com o aumento da produtividade e a migração da produção para
outros lugares, como o Oeste Paulista ou o sul de Minas Gerais, as terras
passaram a ser ocupadas por plantações de eucalipto, utilizados pela indústria
madeireira. Isso, por si só, não seria o grande problema. Mas o centro
histórico da cidade passou a ser cada vez mais trafegado por enormes caminhões
e treminhões. Evidentemente, as casinhas de taipa de pilão e pau-a-pique
começaram a ser grandemente danificadas, e a sua manutenção tornou-se praticamente
impossível. A cidade vive hoje em uma guerra judicial para que os caminhões
acessem a via Dutra através da Rodovia dos Tropeiros, mas as empresas não
querem aumentar o trajeto, o que tal medida obrigaria. Enquanto isso, um
importante legado dos áureos tempos em que a cidade era parte da Estrada Real
que levava das Minas Gerais à sede do império vai se tornando cada vez mais
depreciado.
... mas o fato é que os sinais de decadência são mais claros.
Um deles é a sede da ainda existente banda Lira Queluzense, que vem lutando
arduamente para manter sua sobrevivência. As marcas de degradação estão muito
acentuadas no belo, porém simples prédio que abriga a corporação. É localizada
em uma rua estreita e bastante tranquila, mas digna de meter medo em nós,
assustadiços paulistanos. Imagine-se andando em uma travessinha dessas à
meia-noite:
Exemplo de um final um pouco mais feliz se deu com a antiga estação ferroviária, com o aproveitamento do espaço para a instalação de um centro de referência para idosos e de uma escola técnica. Obviamente, por se tratar de um equipamento público, a migração de funções se deu com mais facilidade, mas eu pude constatar o quanto a intensidade do tráfego de caminhões é nociva para estas construções antigas: o reboco é repleto de rachaduras e há fuligem para todos os cantos onde a mão alcança. Apesar da foto um tanto infeliz, é possível perceber a quantidade de remendos feitos nas paredes.
Mas o que minha mente mais vinculou à cidade é a quantidade de ladeiras. As casas estão distribuídas em região montanhosa, e, como é fácil supor, dão-nos conta da engenhosidade humana no quesito adaptação ao ambiente disponível. A ladeira da foto abaixo é a que leva da margem do rio ao largo da Matriz. Percebam que minha pouca coordenação motora fez com que o enquadramento esteja levemente inclinado. A ladeira é ainda mais íngreme!
Já as fotos abaixo mostram o aclive que leva a uma vila de
artesãos. A primeira tem uma escada auxiliar para os transeuntes mais
claudicantes evitarem quedas e rolagens diversas...
... enquanto a segunda exibe a pirambeira que leva à região central. Perceba-se que o calçamento mais ao alto (da ladeira, não da foto) utiliza pedras irregulares, mais antigas que os macadames visíveis apenas em um pequeno trecho do leito carroçável.
E entre essas ladeiras encontramos a grande riqueza da
cidade: sua memória. De todas as que visitei nessa viagem, é a que mais está
impregnada de história, e talvez é a que mais tenha sentido o impacto da
desconstrução de seu passado.
A memória é uma coisa danada. Ela é o grande componente da
identidade, e sua perda faz com que nunca mais saibamos explicar o que somos
hoje. Cada fator que vivenciamos é um tijolinho na imensa construção de nossa
história. Veja o que acontece com as pessoas que sofrem do mal de Alzheimer:
são seres que, apesar da presença física e da manutenção das funções fisiológicas,
não existem mais. Deixaram de ser a si mesmas, porque o passado e seus vínculos
lhe fugiram. Os parentes, os lugares, as experiências... tudo se vai. Por isso
mesmo, é uma das doenças mais tristes que existem.
O mesmo se aplica a uma cidade. Cada pequena lembrança ajuda
a compreender o que ela é. Nossas cidades, sejam grandes ou pequenas, parecem
viver em amnésia. Isso se aplica a Queluz, a São Paulo, ao Rio, até mesmo a
cidades mais novas, como Brasília. Quando se decidiu construir a capital no Planalto,
será que houve a devida preocupação em manter um registro digno de tudo o que
se desenvolveu naquela região antes da guinada radical que foi dada em seu
destino? Se a história de cada um é dinâmica, como poderemos revisitar o que
nos tornou o que somos, se nem ao menos temos o quê olhar para trás?
E nisso entramos em Gadamer.
Hans-Georg Gadamer foi um filósofo alemão que se dedicou à
interpretação e reinterpretação da história. Para tanto, lançou-se
profundamente na hermenêutica,
atividade que pretende compreender a realidade contida nos textos, expressos
eles de modo escrito, verbal ou visual.
A hermenêutica já não era
novidade no começo do século XX, época em que Gadamer deu seus sábios pitacos.
Ela era (e ainda é) largamente usada pelos teólogos para buscar entender e
traduzir os textos sagrados de suas religiões, bem como pelos doutores de
Direito e causídicos em geral, para procurar absorver o sentido que os
legisladores desejavam que fosse dado às suas sistematizações. A grande
novidade de Gadamer é entendê-la como uma técnica de constante renovação, e a
conclusão de que nenhuma interpretação é definitiva. A hermenêutica é cíclica.
Cada interpretação comporta uma reinterpretação, e esta comporta outra, e mais
outra, e outra ainda.
Esse processo se dá porque
ninguém interpreta o mundo de forma totalmente isenta. Estamos imbuídos de
todas as recordações e memórias que constroem nossos julgamentos, conceitos,
juízos. Esses componentes moldam nossa forma de interpretar.
Dessa forma, a interpretação se
dá em forma de “choques”. Na primeira vez que deparamos com um texto, por
exemplo, este nos demanda a busca de um sentido que vamos montar com base no
nosso conhecimento presente. Quando retomamos o texto, sentimos que a
interpretação já não é a mesma, somos impelidos a rever a interpretação porque
nosso equipamento cultural já está modificado. A cada novo conceito, novo
juízo, novo entendimento, vem-nos a necessidade de mudar nosso relacionamento
com ele. Passamos a dialogar com o texto e com a interpretação que demos a ele.
Isso acontece porque a cada nova
apreensão que recebemos do mundo, modificamos conceitos e a nós mesmos, o que
comporta uma auto-reinterpretação. O homem cresce sobre si mesmo cada vez que
se reinterpreta. E reinterpretar-se significa reinterpretar o mundo.
Vou dar um exemplinho pessoal.
Nos tempos em que eu trabalhava na indústria farmacêutica, conheci um homem que
era muito malquisto por praticamente todos os colegas, eu inclusive. Não vou
citar seu nome, não é relevante. Era um cara arredio, resmungão, chato de
lidar. Uma pessoa de quem todos desconfiavam muito, porque tinha atitudes
estranhas para quem convivia com um grupo. Um cara pernóstico, arrogante, cheio
de bazófia e má vontade. Se nesse momento eu me lançasse a escrever uma crônica
sobre nosso pobre-diabo, fatalmente eu o desancaria. Provavelmente diria que
era uma má companhia, que era ensimesmado porque queria deter para si
informações importantes e outras balelas.
Acontece que o tempo passou e
eu, quase que por acaso, acabei tendo informações mais significativas sobre sua
vida pessoal. Fiquei sabendo que ele adotou uma criança com seriíssimos
problemas cerebrais, que a faziam viver como um legume, e que essa criança
cresceu e se tornou um homem na faixa dos 30 anos. Fiquei sabendo que ele
adotou essa criança livremente, e que já sabia de todos os percalços pelos
quais passaria. Fiquei sabendo que ele cuidava pessoalmente de toda a higiene
pessoal do filho adotivo, porque era o único da casa que tinha força suficiente
para carregá-lo de um lado para o outro. Fiquei sabendo que não havia nenhum
tipo de esperança de que o menino se tornaria uma pessoa normal (de acordo com as convenções), que para
sempre seria incomunicável, não andaria, não reconheceria os pais e os
familiares. E fiquei sabendo, principalmente, que ele ensinou seus filhos
legítimos, mais novos que este adotivo, a amá-lo como um legítimo irmão.
Conheci ambos os filhos de sangue, e, de fato, falavam do irmão mais velho com
carinho.
Meu choque: a vergonha que senti
no meu pré-julgamento. A consequência: uma completa reinterpretação do que eu
pensava sobre o meu colega. Agora ele já não era um cara fechado, mas sim um
homem amargurado. Ele não era mais um reclamão: era um homem que se sentia
fisicamente cansado pelo peso literal que tinha a carregar. Nunca mais pude
vê-lo com a repugnância inicial.
Era mais ou menos isso o que
Gadamer queria dizer com a reinterpretação contínua que a hermenêutica deve
cuidar. Um entendimento está sempre eivado de nossas convicções, e, na medida
em que estas mudam, também são modificadas as balizas que dão base às nossas
interpretações. E aí nós temos a pedra de toque gadameriana: a hermenêutica
deve ser histórica, deve mudar com a nossa história.
É assim que vi Queluz, e espero
rever. Ela contém em si sua interpretação e sua reinterpretação, porque tem a
história escrita em seu espaço físico. Quem olha para seu casario baixo e
antigo, entende-a de uma forma. Quem percebe os amplos espaços vazios e
economia pobre, modifica seu entendimento e já a vê diferentemente. Olha para o
alto de suas colinas, sente uma indefinição em seu futuro e traz um novo
elemento para compreendê-la. Faz-nos sentir como uma parte da aventura humana
inserido em outra parte da aventura universal. A história não nos pertence; nós
pertencemos a ela. Assim ensina o mestre.
Recomendações de leitura:
Gadamer dá à hermenêutica um
aspecto inédito, ao estabelecer a coerência entre os juízos e os momentos
históricos do sujeito interpretador e do objeto interpretado. Sua obra mais
interessante é a seguinte:
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
Método. Petrópolis: Vozes, 1997.
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