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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Pequeno guia das grandes falácias – 51º tomo: o apelo ao ridículo, e mais algumas coisas sobre o humor como ferramenta da agressividade

Olá!

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#UseMascara

Tudo bem com vocês? Comigo vai indo, ainda que meus níveis de vitamina D estejam lá no rodapé. Isso é fruto da atual pandemia que ainda persiste em Terra de Santa Cruz. E que monte de briga tem dado isso... Não sei se por conta do cansaço de se ficar em casa, ou por conta de conflitos nas posições políticas, chega a dar desespero de ver a montanha de gente que está descumprindo as relativamente fáceis atitudes de bom senso para evitar contaminações. E tudo naquela base: usar máscara é impositivo, é inútil, é ridículo...

Bom... eu mesmo não gosto de usar máscara. Como meu bigode cresce muito rápido, em questão de três dias após a raspagem já se torna um grande incômodo aquele tecido grosso raspando meu buço. Mas a verdade é que não posso pensar só em mim, já que eu convivo com outras pessoas, que, por sua vez, convivem com outras, e assim sucessivamente, em progressão geométrica. Por isso, concluo que ridículo é não usar a máscara.

Falando assim, abordo mais uma falácia, uma das mais simples de todas, o apelo ao ridículo. E também das mais usadas. Ela é aplicada tentando diminuir o valor de um argumento colocando-o no campo do jocoso, do hilário, tirando toda a sua força. Essa falácia é conhecida na Europa como “falácia da risada do cavalo”, simplesmente pelo fato de que o equino produz um som que se assemelha a uma gargalhada debochada, que é exatamente o propósito deste tipo de “argumento”. Ela dispersa do ponto central discutido, como é tão comum nas quintas-séries deste Brasilzão indômito, e procura fazer a audiência acompanhar seu usuário na chacota geral. E, evidentemente, introduz material irrelevante – não nos importa se a máscara nos deixa com cara de foca, o que interessa é se ela é eficiente ou não na proteção contra o tal coronga, certo? Só que tem gente que se incomoda bastante com isso.

Mas, embora a falácia em si seja simples, há algumas coisas muito mais complexas neste processo de ridicularização. Vou pedir paciência e um pouco de indulgência com o texto que vou expor a partir de agora, porque ele é necessário para chegar onde quero. Vamos lá.

Vamos fazer um daqueles experimentos mentais que são tão caros aos filósofos da mente, baseados em suposições de fatos não reais, mas que nos ajudam a tentar entender uma realidade ulterior, ou a comprovar veracidades não verificáveis, como é o caso do “cérebro na cuba” ou do “quarto chinês”, que mencionei neste texto.

Em um país hipotético, com um sistema democrático em construção, a população vem, ao longo de mais de trinta anos, debatendo-se com as frustrações na eleição de seus representantes. Após mais de vinte anos vivendo em tempos ditatoriais, cuja conclusão foi um país entregue às dívidas astronômicas, à inflação galopante e a sistemas falidos de educação e saúde, a esperança sempre residiu nos bonitos discursos dos pretendentes ao poder, e que a liberdade de escolha traria consigo tempos melhores. Embora fosse visível alguma evolução, o fato é que a desigualdade social permanecia e muitos, mas muitos escândalos de corrupção grassavam a história daquela imaginária república. Tentou-se de tudo: o presidente burguês, o presidente professor, o presidente operário e até uma presidenta. A persistência da questão levou a uma polarização intensa, com baixa aceitação dos resultados das urnas, levando a uma instabilidade política típica dos colapsos democráticos. No transcorrer do desacerto, uma terceira via surgiu no ar: um candidato que, muito embora estivesse há 28 anos na política, apresentou-se como a antítese do político profissional. De fato, seu jeito de lidar com as questões fugia do padrão normalmente visto na atividade, com muitos arroubos autoritários e falas problemáticas, constituindo-se aquilo que hoje em dia pavoneamos chamar-se de outsider, aquele que escapa da norma.

A princípio, sua candidatura não era levada a sério, amparada por um partido nanico que lhe dava poucos segundos de propaganda obrigatória, um mecanismo existente no suposto país para permitir que candidatos à eleição expusessem seus programas em horário nobre na mídia tradicional. Mas o uso competente das redes sociais e com um discurso muito caro a setores conservadores, que enxerga comunismo em qualquer molho catchup e carrega deus, pátria e família para todo lado, começou a causar coceira nos institutos de pesquisa. O discurso deste candidato imaginário não levava a grandes soluções, mas frases de efeito que se provaram cada vez mais eficazes, versando sobre malefícios dos opositores, como kits gays, legalização de pedofilia, desarmamento da população em detrimento dos bandidos e outras balelas evidentes, mas que se tornaram uma nova verdade quando amparada pelas redes de notícias falsas, risíveis para quem é sério, mas eficientes para quem tem essa linha nublada entre realidade e vontade. Senão vejamos: com uma defesa de armas, violência e tortura, nosso suposto aspirante posiciona-se ao lado dos valores cristãos, e ganha a maioria da população evangélica; embora nunca tenha ouvido falar de Adam Smith, promete liberalismo econômico, e com isso arrebanha um bocado de empresários; embora se diga um grande patriota, presta reverência quase sagrada ao presidente da nação mais poderosa do planetinha neste momento histórico, e com um papo de anticonvenção política, embora tenha aqueles citados 28 anos de mandatos acumulados, convence o eleitor inconformado. Projetos mesmo, nenhum; a não ser dois nomes centrais em seu plantel – um ministro da Economia do estilo privatiza-tudo e um ministro da Justiça famoso pelo combate a corruptos feito com meios igualmente pouco republicanos, mas de muito estrépito e rebuliço. A pedra de toque vem na forma de um atentado – com motivações meio confusas, sofre uma facada em plena campanha, e ganha um estatuto até então inexistente, o de mártir. Tudo isso aliado à incapacidade de seus adversários de se reinventarem, vai a um segundo turno de sonho, onde enfrenta o melhor êmulo possível: o espantalho de tudo aquilo que tornou possível sua chegada à reta final. Dizia-se que seus arroubos eram apenas uma forma de se manifestar. Que, uma vez empossado, baixaria seu tom e levaria seu governo bastante próximo à normalidade, e que era possível votar nele sem preocupações. Ainda bem que estamos apenas no campo da simulação.

Uma vez eleito, este presumido presidente vai se envolvendo em percalços sucessivos. Primeiramente, um dos seus filhos é envolvido em um escândalo de formação de caixa 2 a partir da retenção de parte do pagamento dos funcionários de seu gabinete. Além disso, os vínculos com o pessoal que toca toda essa operação aproximam a família presidencial do assassinato de uma vereadora que atuava contra as famosas milícias da cidade do próprio presidente. Depois, o presidente se desvincula de seu partido, especialmente pela acusação de candidaturas-fantasma e pela divisão do bolo de um tal de fundo partidário, uma montanha de dinheiro destinada aos partidos políticos dessa distópica nação a quem mais obtinha votos. Chegou a crise na cultura, ao ter um secretário que copia os discursos dos propagandistas nazistas para anunciar o plano de cultura do país. Para arrematar, uma crise sem precedentes se instala no mundo inteiro, com a chegada de uma pandemia por um vírus que, embora de baixa letalidade, se espalha mais fácil que fofoca em boca de porteiro. O presidente, copiando seu colega do país poderoso, despreza o fato e dá mais importância à atuação econômica do país, menosprezando os números crescentes de mortos, comparecendo desguarnecido de manifestações de seus correligionários e fazendo loas a um remédio misterioso, sem comprovações de eficácia. Desliga dois ministros da Saúde que discordam de seus métodos improváveis de combate à pandemia e de retorno imediato às atividades normais. No meio disso tudo, aquele superministro mencionado há pouco rói a corda e sai do governo atirando contra o mandatário, ao acusá-lo de interferência direta em órgãos de segurança onde não deveria meter o nariz, para reconforto e proteção de la famiglia, aqueles mesmos com problemas com milícias. Enquanto essa poeira ainda não havia baixado, aquele tal operador dos esquemas de caixa 2 é preso na casa de um advogado, coincidentemente patrono jurídico do presidente e de seus filhos. As explicações deste são cada vez mais estapafúrdias, e, coincidência ou não, uma série cada vez mais inexplicável de cheques começa a surgir na conta da primeira dama, em um volume muito maior do que o alegado “empréstimo” ao amigo destrambelhado nas contas. Estando com uma base cada vez mais reduzida no congresso, e vendo as petições de impeachment cada vez mais avolumadas à sua porta, resolve se aproximar daqueles a quem se dizia tão contrário: um setor denominado Centrão, composto por parlamentares aderentes ao dono do poder, seja ele quem for. São aqueles políticos tradicionais a quem nosso hipotético presidente dizia combater, que mudam de opinião conforme a disponibilidade de cargos e verbas vagar para lá ou para cá.

Toda esta rede de intrigas e trapalhadas levou o tal governante a ter uma relação tempestuosa com muita gente, imprensa à frente. O azedume com que trata os órgãos dos noticiários que adotam posição crítica chega às raias da ameaça física, incitando muitos de seus apoiadores a fazer o mesmo. Também se indispõe com outros países, seja por conta de ideologias amalucadas de um núcleo conspiracionista, seja pelas suas medidas pouco favoráveis aos direitos humanos e ao meio ambiente. Mas não é só. Também vive às turras com os demais poderes, que, no final das contas, exercem o poder de fato, seja aprovando legislações que o majorengo não tem tato para conseguir, seja impedindo-o de desmandar como quiser. Adota uma posição vitimista, dizendo que não governa porque não deixam, que todo mundo é comunista e que os velhos poderosos não querem abrir mão da chave do cofre.

Nosso quimérico chefe de estado é uma usina permanente de memes, quase sempre por futilidades. Autointitula-se atleta, mas não sabe fazer meia dúzia de flexões. Sua inabilidade no uso de EPI’s faz com que sua máscara vire uma venda. Diz que não pode ser carinhoso com os filhos homens, mas manda um “eu te amo” para o chefe daquele país rico. Leva uma bicada de ema e tenta espantá-la com seu remedinho milagroso, faz arminha em passeatas religiosas (o que é mais cristão do que andar armado?), retém o resultado de seus exames sabe lá o diabo por que, tem até um tal de Talarico que andou esquiando pela sua barra... Tudo isso regado a muita saliva e vociferações. Conclusão: neste país inexistente, foi eleito como presidente o valentão do boteco, que esbraveja de forma simplista contra qualquer tipo de situação, e que, naturalmente, não resolve nada. E, apesar disso, mesmo com todos esses tropeços, onde seria esperada uma popularidade próxima ao traço, a queda se deu somente até certo ponto, para não se esvair mais, mantendo uma boa porção de seus eleitores ainda fieis, quase dois anos após sua eleição.

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Bom… Fundamentalmente, encaramos o mundo com o qual convivemos mais na base do sentimento do que da racionalidade. Não há nada de excepcional nisso: as coisas sempre foram assim e continuarão sendo. É desse jeito que a espécie se mantém há milênios. Entretanto, não é de modo unívoco que essa interação se dá. O mundo externo a nós pode nos provocar uma gama muito intensa de sentimentos, e a reação a cada um dos diferentes fenômenos atiça um tipo específico deles, diferindo ao infinito pelas combinações possíveis, e dependendo de quem o produz.

Diante de um problema qualquer, nossa reação pode ser de ternura – uma situação nos toca, ainda que de maneira improvável, como o centroavante do time rival quando perde o pênalti. O mais provável seria pura euforia, mas é possível achar condolência mesmo nela (isso também nos humaniza). Nossa reação pode ser de medo, como quando não sabemos se queremos que o dia da grande final chegue logo ou chegue nunca, gerando uma indefinição que só nos faz aumentar a angústia. Pode ser de asco, um sentimento orgânico como aquele que nos causa o cheiro de urina dos banheiros mal cuidados dos estádios. Mas o fato é que com todos estes modos de sentir coabita um afeto que é muito mais natural do que gostaríamos de idealizar: a agressividade.

Não podemos confundir agressividade com violência física, e não podemos menosprezar a capacidade de sermos agressivos de maneira dissimulada. Mas a agressão é absolutamente necessária para a vida de indivíduos e sociedades. Este é um fato que a Filosofia e a Psicologia já detectaram há tempos. No âmbito da psicanálise, por exemplo, as pulsões são inerentes ao equipamento psíquico humano, alguns as pensando como derivação da pulsão sexual, como Freud, e outros as imaginando como pulsão própria e específica, como Adler. Para quem não sabe, uma pulsão é uma tendência, uma espécie de "objetivo" que é perseguido inconscientemente por cada um de nós. E isso é comum a todos, em diferentes níveis e com maneiras absolutamente pessoais. Sendo parte do substrato de todas as pessoas, é de se esperar que haja uma agressividade coletiva, que se espraia por toda a sociedade. Então, é natural que a mesma se manifeste. E como isso se dá?

De diferentes formas, é evidente. Não é só quando vemos duas torcidas trocando porradas, ou, pelo menos, xingando-se à vera. Em um sistema de coisas extremamente competitivo, a cada vez que vemos a investida de uma empresa em determinado nicho de mercado, vemos boa dose de agressividade embutida. Afinal de contas, pensem bem. Boa parte da propaganda inclui se impor como a melhor opção entre as outras, se possível as anulando, exatamente como faz o leão na floresta, ainda que não haja sangue na parada. A agressividade está até mesmo no olhar desconfiado das pessoas na fila do emprego, e, embora contida e invisível, plenamente presente. A agressividade não pode ser manifesta sempre, porque, ora bolas, precisamos sobreviver, e é melhor que o façamos com todos os dentes.

Por isso mesmo, Freud enxergou o chiste como um dos canais possíveis para a agressividade. E o que é esse tal de chiste? É uma espécie de piada rápida, que pode ser resumida até mesmo em uma palavra. Para ele, a comicidade do chiste tem o mesmo propósito dos sonhos, dos lapsos, dos atos falhos e das neuroses: ser um escoadouro de manifestações do inconsciente. Como sabemos, Freud acreditava que tudo o que está nas instâncias inconscientes da psique não era acessível à consciência, mas procuravam canais com os quais pudessem se tornar manifestos, de modo a se fazer conhecer, desviando da repressão feita pelo superego contra as manifestações instintivas do id, que melhor representa nossa porção animal (saiba mais aqui e aqui). Isso significa que o chiste é um caminho para liberar certos pensamentos que se encontram refreados, principalmente porque carregam consigo o álibi de ser "só uma piada". O chiste é uma licença psicológica para ser agressivo, e somente é possível obter recompensa em uma situação de percalço quando reagimos contra ela de maneira agressiva. Isso também vale para o humor político. Reagimos contra uma situação real deturpando-a, reduzindo-a, ridicularizando-a.

Isso tudo posto, pensemos no seguinte: por que diabos achamos que é ridicularizando aqueles que ainda insistem em acreditar no seu mito que vamos conseguir convencê-los de seu erro? O que nós podemos esperar como reação a uma manifestação que é precipuamente agressiva? Percebam que as pessoas não somente fizeram uma opção política como quem palpita em uma partida de pebolim, mas como escolhem um rumo para a sua própria vida. Quem teve paciência de ler toda a primeira parte do meu texto, sabe que a situação não tem nada de fictício. Estou simplesmente reproduzindo vários dos fatos e notícias do governo atual, que muita gente apostou de verdade, com toda sua força e seu coração. Provavelmente um eleitor desses que resistiu ler minhas bazófias até o fim estará puto comigo, e preparando uma resposta a altura, igualmente agressiva: xingar nos comentários, contra-recomendar o texto, elaborar uma resposta, juntar o grupinho do zapzap para floodar esta pobre terra arrasada. É muito pouco provável que alguém saia daqui convencido dos deméritos do governo atual simplesmente por se sentir ridículo.

As pessoas que apoiam incondicionalmente o presidente meio que doaram sua confiança e tem grandes dificuldades em renegar a sua crença. É quase uma dissonância cognitiva, quando um fato se coloca à nossa frente sem que ele corresponda ao que nosso equipamento cognitivo é capaz de traduzir. É como se chovesse e a roupa secasse, ao invés de molhar  – eu não espero esse desfecho de tal forma que me recuso a acreditar nele. Por isso que assumir o erro não é uma alternativa, preferindo esses moços a brigar com os outros e com a própria realidade, negando-a. E das duas uma: ou relevam conscientemente os absurdos do mandatário, ou se alinham com eles. Aí, a coisa fica mais feia. O que nos resta é ser racionais e dar o tempo necessário para que a voga passe. Vai passar. Tudo passa.

Recomendação de leitura:

Fica com Freud e seu texto fundamental sobre o tema:

FREUD, Sigmund. Os chistes e a sua relação com o inconsciente. In: FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição Standard Brasileira, vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.