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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 62º tomo: a resposta do cortesão

(Será que nós só podemos tratar de assuntos nos quais somos especialistas? Somos obrigados a conhecer as minúcias de cada coisa das quais queremos falar?)

Olá!

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Poucas vezes eu falei sobre meu trabalho neste espaço, em mais de 300 textos. O motivo é óbvio: eu não ligo para ele. Não chega a ser um desgosto completo, daqueles de pavimentar depressão, mas tem aquele monte de coisa – não é criativo, carrega muita pressão, envolve muita paciência. Não é aquela coisa aprazível, que gostamos de ficar contando aos netos que não tenho ou na mesa do jantar, que tenho. Enfim, eu trabalho com informática, mais especificamente na área de levantamento de requisitos.

Esse é o meu ganha-pão, e por isso eu o aturo. Minha porção professor, eu a exerço de maneira bissexta hoje em dia, mas já trabalhei em escolas públicas e privadas, além de preparar e ministrar cursos e até mesmo treinamentos. É o que eu gosto de fazer de verdade, e projeto retomar a atividade com afinco quando eu me aposentar. E se.

Ora (direis), se te comprazes com a atividade docente, e é-lhe pesado carregar o fardo do exercício incômodo, por que não mudas de emprego? – questionar-me-á meu habitual interlocutor imaginário. Porque já é preciso ganhar o pão, e este é mais caro aos professores do que aos informatas. Fui para a faculdade de Filosofia já velho, e nunca a tive como atividade principal, como já discorri neste texto. Não é tempo de chorar, e lido bem com a coisa, não fiquem aflitos.

Acontece que há fatores ingratos neste ofício que me sustenta. O propósito primário é levantar as necessidades de um cliente, analisá-las à luz dos recursos e dos dados disponíveis e melhorar a vida da freguesia. O grifo se dá porque nosso natural conservadorismo faz com que as especificações de requisitos sejam documentos do ódio, que visam modificar a vida dos cidadãos ao ponto de dizerem que se tratam de burros que nunca souberam trabalhar. Não é nada disso, naturalmente.

Acompanhem meu raciocínio. Digamos que uma rotina qualquer inclui uma conferência dos documentos produzidos por certa equipe. Esta conferência existe porque há possibilidade de falha humana, por óbvio. Quando desenhamos um sistema, uma das etapas é averiguar a fiabilidade das informações, através de processos de cruzamento de dados, de batimento, de fórmulas matemáticas e via discorrendo. Estando todos conformes, a análise propõe a eliminação de tal conferência, o que é uma garantia de rebuliço. “Não é você que vai assinar”, dirá um usuário mais exaltado. “É para isso que serve uma etapa criteriosa de homologação”, costumamos responder. Ou seja, não deixa de ser uma maneira marota de você se esquivar de futuros problemas, mas também não dá para ter coração de mãe e costas de pai. Cada um que assuma sua responsabilidade.

Mas há um ponto invariável em que sempre chega um levantamento. Como o documento final será sempre uma peça contra a qual serão lançados olhares tortos de reprovação, alguém sempre arremessa o argumento peremptório: “Esses caras acham tudo fácil porque não conhecem nada do serviço e não comem do pão que nosso diabo amassou”.

Dupla mentira. Uma das fases de qualquer levantamento é sentar do lado dos diferentes membros de uma equipe justamente para aprender seu processo de trabalho e enchê-los de perguntas intermináveis, para saber passinho por passinho o que é feito para obter o resultado final. Há documentos para espelhar isso e que são validados com os futuros usuários. Desta forma, aprendemos bastante sobre o trabalho realizado. E a segunda é que essa afirmação carrega um ar de desautorização, como se fôssemos obrigados a ser formados na área em que se busca desenvolver um sistema.

Ledo engano, triste ilusão. Eu não preciso saber engenharia para desenvolver sistemas de engenharia. Não preciso saber de recursos humanos para desenvolver sistemas de recursos humanos. Não preciso saber contabilidade (eu sei) para desenvolver sistemas de contabilidade. Eu preciso conhecer os processos de trabalho e especificar requisitos que façam com que a sua informatização devolva algum benefício para os usuários. Por “algum benefício”, nem sempre quero dizer menos trabalho. Esta é uma das vantagens possíveis, mas do resultado das análises podem ocorrer tarefas que aumentem o controle, a precisão das informações, a disponibilidade de serviços, etc e que acabem por demandar mais trabalho. Por isso, o argumento de que precisamos manjar indistintamente de uma área para desenvolver sobre ela é falacioso. É a falácia da resposta do cortesão. Nome curioso, que vamos esmiuçar a partir de agora.

A resposta do cortesão é uma espécie de magister dixit às avessas. A alegação é que o interlocutor não possui conhecimento suficiente para sustentar determinado argumento e, portanto, não está autorizado a falar sobre o assunto. O insólito nome foi criado em razão de uma historinha meio comprida, que vou tentar resumir abaixo.

Acho que todos aqui ao menos ouviram falar sobre o conto do dinamarquês Hans Christian Andersen chamado A Roupa Nova do Imperador. Esse fabulista, assim como Esopo e irmãos Grimm, ficou conhecido por recolher histórias populares e dar a elas um colorido literário, transformando-as em opúsculos universais. Neste caso específico, trata-se da lenda de um império cujo líder era extremamente vaidoso, e suas demonstrações de opulência eram mais expressivas que seu governo em si. Dois vigaristas resolveram tirar proveito da situação e ofereceram ao monarca uma roupa sem igual, que seria admirada por todos, especialmente porque somente os mais sábios teriam conhecimento suficiente para conseguir enxergar seu tecido e suas sofisticadas tramas, que misturariam seda, prata e ouro. Essa característica daria ao rei não só a oportunidade de vestir uma roupa magnífica, mas de saber com precisão quais seriam os funcionários do palácio verdadeiramente capacitados para suas funções. Mas o custo era caríssimo.

O rei não titubeou. Mandou entregar aos pseudocostureiros todo o dinheiro necessário para a confecção da peça, que foi devidamente embolsado pelos ladravazes. Ambos se puseram em seus teares para iniciar o "trabalho", que demoraria um bom tempo para ficar pronto. De tempos em tempos, o rei mandava um emissário do palácio para verificar o andamento da costura, mas invariavelmente ninguém conseguia enxergar nada. Temendo ser julgados néscios, todos diziam que a obra ia às mil maravilhas, embora nada fosse visível. Até mesmo o próprio rei, tomado de curiosidade, foi averiguar o trabalho dos patifes, com o mesmo resultado: nada ver e alegar maravilhamento. Afinal, essa era a aposta dos dois - como um rei tão vaidoso iria admitir sua incapacidade?

Terminada a peça, algum palaciano teve a ideia de que a roupa nova do imperador deveria ser mostrada a todo povo em um desfile, o que foi feito. À vista de todo o povo, o rei desfilava em praça pública e, embora todo povo visse que estava peladão, ninguém tinha coragem de afrontá-lo ou admitir a própria estultícia. Até que uma criança, uma das meninas mais simples, gritou a plenos pulmões: "o rei está nu! O rei está nu!!!" Apesar do crescente murmúrio do povo, o rei prosseguiu o seu desfile impassível, porque achava que o mesmo tinha que prosseguir.

É daquelas histórias feitas para crianças, mas dirigidas a adultos, como aquelas que mencionei neste post. Aqui, temos a medida da vaidade humana, que turva até mesmo as impressões mais reais, e também uma boa dica sobre subserviência, quando preferimos absorver a impressão do maioral a ter as nossas próprias. Mas vamos entender o que tudo isso tem a ver com o tema em tela, que é a origem da falácia.

Na primeira década do século XXI, um grupo de pensadores ateus começou a se destacar no ambiente intelectual com uma crítica muito contundente ao papel das religiões na vida das diferentes sociedades. Os principais eram chamados de "quatro cavaleiros do não apocalipse" ou "quatro cavaleiros do ateísmo": Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens. O primeiro (de quem já falei aqui, aqui e aqui) era o mais popular e virulento de todos, o que fez com que ele tomasse muita pedrada de toda a comunidade religiosa. A principal alegação era de que ele não tinha como desenvolver argumentos consistentes, tendo em vista a ausência de conhecimentos sofisticados em Teologia. Por isso, não possui autoridade alguma para versar as críticas que faz.

Tomando a defesa de Dawkins, o biólogo e divulgador científico Paul Zachary Myers traçou uma analogia. Em linhas gerais, ele ironicamente afirmou que a contraposição com base no argumento da falta de autoridade assemelha-se a um cortesão que afirma que a criança que bradou a nudez do rei não tem conhecimentos suficientes em alta costura para argumentar sobre a ausência de roupas do dignitário.

Onde está o cerne da crítica? Dawkins afirma a inexistência de deus, assim como a menina afirma a inexistência da roupa. Não há necessidade de conhecimento daquilo que não existe, ora essa. Para os ateus, todo e qualquer estudo teológico, por mais aprofundado e requintado que seja, é um estudo sobre nada. Por isso, definir que não há autoridade sobre o assunto é uma afirmação falaciosa. É uma forma velada de argumentum ad hominem, inclusive, porque trata o lado oposto como incapaz de produzir uma crítica.

Colocando agora em um contexto menos histórico e mais quotidiano, podemos notar que a resposta do cortesão funciona como qualquer outro tipo de apelo: dispersa do foco principal e introduz material irrelevante na conversa. Isso acontece porque discutir as especialidades de quem profere uma proposição tira da mira o argumento em si, que seria quem, de fato, deveria ser atacado. A ausência de especialização formal não é motivo suficiente, de per si, para que uma pessoa não possa ser ouvida.

Menciono como exemplo o canal Space Today, conduzido por Sérgio Sacani. De formação, ele é geofísico, e trabalha diretamente com a indústria petrolífera. Entretanto, sendo um apaixonado por astronomia, dedica todo seu tempo livre ao estudo da cosmologia, da astronáutica, da astrofísica e traz novidades constantes sobre esse universo de conhecimento. Sua pesquisa é irrepreensível, combinando fontes confiáveis e conhecimento acumulado em anos, o que lhe dá um gabarito em nível dos melhores mestres. Levando em conta ainda sua capacidade de comunicação e traquejo na divulgação científica, podemos considerar que temos um canal ideal para quem curte a área. Ora (direis de novo), mas ele não é astrônomo. Neste caso, o primeiro a ser feito é comprovar que ele fala abobrinhas, e depois podemos desautorizá-lo. Não faz sentido algum desmerecer um argumento unicamente pelo fato de não ter sido proferido pelo doutor Fulano.

Mas há modos de afirmar legitimamente que uma posição não especializada está errada por carecer de autoridade. Posso citar como exemplo o remexer de teses antigas, que já se encontram superadas nos dias de hoje pela falta de atualização do argumentador. Qualquer pessoa que, como eu, tenha estudado os primeiros anos no século passado ainda deve ter razoavelmente fresco na cabeça que Plutão era o nono planeta do sistema solar. Ora, não é mais. A academia sopesou todas as características que levam um corpo celeste a ser considerado um planeta e ponderou que há uma não abrangida pelo astro em questão. Segundo a União Astronômica Internacional, é um planeta o corpo celeste que:

  1. Gira em torno de uma estrela;
  2. Possui equilíbrio hidrostático, o que lhe dá formato arredondado;
  3. Tem sua órbita livre, não sendo influenciado diretamente pela gravidade dos demais planetas.

É nesse último critério que Plutão fura com o conceito. Junto dele, há uma miríade de objetos celestes que chegam a ter quase seu tamanho. Além disso, sua órbita é tão excêntrica que, de tempos em tempos, chega a invadir o perímetro da órbita de Netuno, seu gigantesco vizinho mais próximo, o que leva alguns cientistas a especular que o ora rebaixado tenha sido uma lua escapadiça deste último. Por isso, foi rebaixado para a categoria de planeta-anão a partir de 2006. Em casos como estes, recomendar que uma pessoa se atualize não é uma resposta do cortesão.

Com isso, podemos concluir que é melhor pensar um pouco antes de dizer que uma pessoa não afirma coisas corretas sobre uma área na qual ele não tem vivência. Ou que analistas de requisitos só querem incomodar a vida dos outros porque não sabem o que estes sofrem. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Vamos lá porque serão um bocado. Comecemos por uma coletânea de contos de Hans Christian Andersen, onde podemos encontrar a famosa fábula mencionada neste humilde cantinho.

ANDERSEN, Hans C. A Roupa Nova do Imperador. In: Os 77 Melhores Contos de Hans Christian Andersen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

Depois, indico o canal do YouTube Space Today, do mencionado Sergio Sacani:

https://www.youtube.com/c/SpaceTodayTV/about

Por último, segue o endereço atual do blog Pharyngula, de P. Z. Myers, ainda ativo nesta brava internet:

https://freethoughtblogs.com/pharyngula/

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 61º tomo: o ergo decedo, e a microfísica do poder em movimento até nas melhores famílias (e menores prédios)

(Já pararam para pensar que tudo na nossa vida está carregado por relações de poder? Ele está presente até quando você fala bom dia para o porteiro, além de ser uma usina de falácias, como se verá).

Olá!

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“Os incomodados que se mudem”, virou o mote mais utilizado no prédio em que habito. Não é uma frase das mais comuns nos modernos condomínios cheios de unidades, mas é que aqui as coisas não estão muito alinhadas com o padrão. Já mencionei algumas desventuras deste honorário edifício em outros textos (aqui e aqui), mas vou dar uma rápida repassada para vocês entenderem o contexto.

Normalmente, os condomínios têm vários donos dos diferentes apartamentos, cujos relacionamentos são regidos por um documento chamado Convenção do Condomínio. Ali, estão todas as regras que foram acordadas pela assembleia dos condôminos, uma espécie de feira livre onde os moradores destilam seus ódios e tentam acertar suas diferenças, além de, pasmem, estabelecerem as diferentes regras sociais daquele pequeno universo, como os horários de quietude, o uso das áreas comuns, os gastos com benfeitorias e até os limites dos trajes das piscinas (quando houver). Além disso, discutem contas e elegem síndicos, aqueles pequenos prefeitos que juram administrar honestamente os fundos em troca de isenção no pagamento da taxa condominial, aquela partilha estabelecida para enfrentar os gastos do pequeno universo.

Neste prédio donde digito estas mal traçadas linhas, não há nada disso. É um local onde o proprietário é único, mais especificamente uma ordem religiosa, e boa parte dos moradores pertencem a ela; metade, mais ou menos. Com isso, não há assembleia condominial, não há síndico, não há convenção, não há escolhas e votações, sendo todo o regramento baixado por decreto do magnificente sodalício. Mas a taxa há, e como há, principalmente levando-se em conta que tudo o que é de verba partilhada é usada para pagar um porteiro/pedreiro/zelador que é mais utilizado no convento da ordem do que no pobre edifício, além da manutenção do elevador e da água/luz comum. Só. E é cara como em conjuntos de gente grande.

A pergunta que fica é como nós lidamos com as questões que invariavelmente surgem do convívio, e esse é um enorme problema que não existe em lugares mais, digamos, comuns. Mais ainda: tratando-se de um prédio inteirinho de aluguel, é de se supor que haja tratativas diretas com o senhorio, o que faz com que consigamos deduzir a personalidade desta figura e nos previnamos de certas susceptibilidades. Só que a ordem é dirigida por uma mesa de xis componentes, com um prior à frente, que é eleita para mandatos de dois ou três anos. Isso causa um transtorno adicional: não se cria uniformidade na administração dos bens da ordem, para o bem e para o mal. Isso significa que, se por um lado há sempre a esperança de melhoras nos dias ruins, por outro se dá o exato vice-versa. Vivemos momentos de versa.

Por que digo isso? Porque na atual gestão anda muito difícil de se conseguir recorrer a quem quer que seja. Em outros tempos, bastava conversar com o porteiro para ele se encarregar de levar as demandas, isso quando ele mesmo não resolvia a querela. Ou então conseguíamos resolver as coisas por telefone, ainda que fosse para sermos enrolados. Era até possível se encaminhar ao gabinete do prior e conversar com ele em carne e osso, e, com isso, chorar as pitangas com quem de direito. Mas agora a coisa está um bocado diferente. O tal porteiro, em vista dos tempos difíceis, tira gentilmente (nem sempre) o corpo fora, restando conseguir uma audiência com vossa eminência, porque os assessores de seu gabinete pouco ou nada fazem, a não ser destilar sua arrogância. E olha que eram pessoas que trabalharam em outras gestões e, se não eram flores de candura, ao menos eram mais afáveis. Por mais justas que sejam as demandas, e excluídos casos especialíssimos, a conduta tem sido sempre parecida: uma escuta medianamente impaciente e a afirmação de que as regras estão firmemente estabelecidas e que mudanças não serão aceitas. Em caso de insatisfação, poderemos negociar as cláusulas do distrato. Isso apenas para um caso de pedido de conserto de uma infernal manilha de esgoto, que faz recender a merda o poço do elevador todo fim de tarde, quando, suponho, as atividades gástricas vão chegando ao final de sua novela diária. E, como esse, há muitos outros casos de respostas similares, que ocorreram em outras unidades, preferencialmente de não-membros da tal confraria, já que os membros se borram naturalmente, em qualquer ocasião. Não é a expressão da frase inicial desta postagem?

Não é só, entretanto, em um âmbito tão reduzido que tal fenômeno acontece, haja vista ao já cansativo ambiente de confronto que temos vivido em nosso meio social, algo que é notado por absolutamente todo mundo em Pindorama. Qualquer posição que você adote que redunde em apontar para causas sociais, já faz surgir o grito: "vai pra Cuba*"!!!

Eu, em particular, não tenho nada contra nem a favor de Cuba. Aliás, tenho sim. O rum nativo é ótimo, a banda do Buena Vista Social Club é uma das melhores em ritmos caribenhos e seus charutos são famosos. Um amigo me trouxe um há pouco tempo atrás, e estou esperando alguma oportunidade especial para fumá-lo em paz.

Na verdade, não sou tão alheio à realidade cubana quanto quero fazer crer. Sei de toda a transformação social movida pela educação e saúde do regime de Fidel, que os esquerdistas empedernidos gostam de papagaiar, e também sei das liberdades restritas que os direitistas bovinos arrotam com gozo. Em sinopse, entendo que ditaduras não são boas e que pressões exteriores também não são. Desta forma, penso que o grande erro do regime cubano está em não apostar na democracia a partir de algum momento, o que poderia fazer com que o sistema maturasse para uma experiência única (ou que fosse abandonado). Por outro lado, não consigo entender porque até hoje os embargos econômicos não foram levantados, já que quem sofre é o povo e não os governantes. Mas a cada vez que se fala em pobreza: vá pra Cuba. A cada vez que se fala de desigualdade social: vá pra Cuba. A cada vez que se fala de direitos de minorias: vá pra Cuba. A cada vez que se fala em educação e saúde deficiente: vá pra Cuba… não, aí não se fala.

Sabe o que é isso? Uma falácia. De belo nome, diga-se de passagem. É o ergo decedo, que, numa tradução livre, significa “então saia”, também conhecida como falácia do crítico traiçoeiro. Trata-se de uma falácia de dispersão e relevância que consiste em deslocar o foco de uma crítica realizada no interior de um grupo para uma exclusão desse membro. Falando menos complicadamente, o ergo decedo acontece quando alguém faz uma crítica no interior de um grupo voltada contra esse mesmo grupo. No exemplo do meu prédio, são os moradores; no de Cuba, são os brasileiros. Ao invés de se atacar o argumento da crítica, o que se faz é "expulsar" o membro que faz a crítica, daí seu curioso nome. É como se alguém não tivesse o direito de criticar o grupo pelo simples fato de pertencer a ele. Eu torço pelo Corinthians, então não posso falar mal do Corinthians. Eu sou filiado ao partido X, então não posso denunciar linhas de pensamento incorretas. Eu gosto do Pink Floyd, então jamais poderei dizer que tal música não me agrada. O crítico é tido como um traidor do movimento, e, portanto, torna-se um indesejável. O problema é que neste tipo de argumento falho deixa-se de contrapor proposições que podem ser plenamente validas. Não há ergo decedo quando o ataque é à crítica, e não ao crítico. Se o corpo diretivo disser que não consertará o cheiro fétido porque o projeto precisa de aprovação da prefeitura, pronto, está respondido. Notem como essa falácia é extremamente comum, e que tem uma boa quota de ad hominem junto dela.

Mas por que há quem queira dominar opiniões e estabelecer o que é um valor para um determinado grupo ao qual se pertença? Quem estabelece o que é justo e valioso para o pequeno edifício onde este escriba reside?

Quando falamos dessas coisas, pensamos no poder, e quando falamos em poder pensamos imediatamente em monarcas e presidentes, ou seja, os mandatários maiores. Mas temos essa impressão porque se trata da esfera mais externa de uma longa cadeia de camadas de poder. Sob um país gerido por um rei, há duques que comandam exércitos, marqueses que gerenciam fronteiras, condes que comandam regiões e barões que espalham influência pelo seu nicho social. Substitua por presidentes, generais, cônsules, governadores e prefeitos para termos uma equivalência aproximada nas repúblicas. Ainda assim, estamos falando de poderio formal, que não representa exatamente os átomos de poder. Estes ocorrem aí mesmo, dentro de sua casa.

Quando somos crianças, justamente por sermos ainda incapazes de administrar por si mesmos as nossas vidas, somos expostos a um sem número de ambientes e situações onde cabe a nós baixar as orelhas e obedecer. Por uma disposição não escrita, há uma hierarquia de poder onde você é o último a falar e o primeiro a apanhar. Seu irmão mais velho é investido de um pouco mais de privilégios, podendo ser nomeado seu tutor nas ausências dos pais. Em uma sociedade tipicamente ocidental e cristã, há ainda um acordo tácito que estabelece ser a última palavra pertencente ao pai. Toda a malha de poder de uma família gira em torno da autoridade paterna, in genere.

Acontece que este exercício não é inequívoco. Em determinadas circunstâncias, o menor dos meninos da casa também consegue manifestar alguma forma de poder, seja na forma de birra, ou de inconfidências, ou mesmo em uma sutil troca de favores. Desta forma, o poder não tem um dono, mas sempre está inserido em uma relação. Por isso, o pai que é dono do tacão de repente se vê nas mãos de um fedelho que testemunhou uma escapadela do genitor danadinho, fazendo com que se inverta a lógica da obediência. 

Idem se você, ainda criança, pensar-se na escola. Também aqui temos uma hierarquia bem definida: o diretor é a autoridade maior, seguido dos chefes de períodos e dos professores. Nesta escala, os últimos estão na base, mas na sala, um cosmos menor, estão no topo - eles ditam as regras aos alunos, dizendo a eles o que vão aprender, como devem se comportar, qual horário cumprir e assim sucessivamente. Do ponto de vista do professor, todos eles deveriam estar em uma mesma escala. Entretanto, pelos mais diferentes motivos, o professor tem mais deferência com alguns, e mais rigor com outros. É que, de uma forma ou de outra, os alunos também entram na luta pelo poder exercendo, como podem, sua influência sobre o mestre. É o caso dos bons alunos que servem de monitores na sua ausência, que dão o seu bom desempenho como moeda de troca para obter suas vantagens. E mesmo dentro da esfera mais básica, na relação entre alunos, também as relações de poder se desenvolvem sem uma hierarquia clara, citando como exemplo o que escrevi neste texto. Ou seja, bons alunos conseguem proteção dos maus alunos, que, por sua vez, ganham tarefas prontas dos bons. O movimento é full duplex, como dizemos em informática.

Até mesmo na mesa de um barzinho se pode constatar uma relação de poder no varejo. A decisão sobre o que será bebido, o local do encontro, a própria ideia do happy hour sempre partirá de alguém que quer ter apoio em sua decisão. Também será de alguém a proposta de que se rache o todo, no que pode haver a contraproposta de que cada um terá sua própria comanda. Ou seja, o poder não só se exerce nos microcosmos, mas também se estabelece a resistência a ele, mesmo que na forma de uma opinião contrária que busca angariar apoio.

Quem me dera tudo isso tivesse saído de minha cabeça, mas aqueles que estão mais antenados já sabem que se trata de itens da teoria de Michel Foucault, um dos mais brilhantes filósofos contemporâneos, fresco em nossa memória. É o que ele chamou de microfísica do poder. Em síntese apertadíssima, ele dizia que o poder acontece nas menores relações humanas, e não apenas nos níveis mais altos das hierarquias. Pelo contrário até. O poder é algo que se exerce em rede, não sendo um objeto que se pode possuir ou localizar.

Da forma que demonstrei acima, podemos perceber o quanto as relações de poder estão diluídas. Para Foucault, é a microfísica do poder, esse exercício miúdo das relações mais quotidianas, que explica o poder maior, aquele em quem logo pensamos quando usamos o termo. O poder está desde a casa, a escola, a quadra, o clube, com sua variação constante de polo, porque nada mais é do que uma estratégia. Ele não é um lugar, uma pessoa ou um papel social. Antes disso, é uma emanação que vem de todas as partes. Em alguns momentos, o poder é exercido como coerção, seja pela força, seja pelo convencimento, ou como atitude racional, onde as partes concordam que a relação deve ser da maneira que está delineada porque é vantajosa para ambas, mas de qualquer forma ele sempre está envolvido onde as pessoas precisam negociar suas posições, anseios, preferências. Percebam, em adição, que sempre haverá uma intenção no exercício do poder. Ninguém o pratica sem querer, como se fosse um mero instinto, assim como a obediência que, seja resignada ou conformada, também é consciente.

No final das contas, Foucault quer dizer que o poder é inerente às relações humanas, e, sendo a sociedade formada por camadas sobrepostas, como se fosse uma cebola, é preciso pensar que o cerne está lá no meião, e não na fina casquinha que fica por cima de tudo. Isso porque o poder não tem um dono, mas uma pessoa que o exerce, e outras sobre quem o poder é exercido. A esses, se não há o exercício, resta a resistência, que, ao fim e a cabo, é também um modo de colocar o poder em prática.

E a situação do meu prédio nada mais é do que uma aplicação das teorias de Foucault. Tomar um ergo decedo na cabeça nada mais é do que um dos métodos pelos quais uma parte quer obter a obediência da outra. Poderia ser uma maneira mais civilizada, cuja resistência não fosse o abandono de um pagante em dia do lugar, que procuro fazer cada vez mais. Contra o poder, usamos o poder. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Foucault é um dos énfants térribles da Filosofia do século XX. Costuma ter uma linguagem meio difícil, mas não chega a ser incompreensível. Recomendo o livro abaixo acerca do tema.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

* Existe a variante Venezuela, mais recente.

Pessoas, por último, um recado: não baixem a guarda. No último mês, são três membros da família que morreram por conta da covid, sempre com o mesmo script: toma a primeira dose e esquece que ela não é poção mágica.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

O café filosófico do quotidiano – a importância do vazio no pensamento de Demócrito

(Estamos sempre muito atentos às coisas que existem e que podemos tocar. Mas e a inexistência? Como o vazio possui importância no pensamento filosófico)

Olá!

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Corridos, os dias de mudança. É bem verdade que já faz dois meses que a filha mais nova se mandou para Taubaté, mas ela conseguiu um bom valor no aluguel porque a casa é meio antiga. Isso não é um problema em si, porque eu já morei em casas velhas, e, a bem dizer da verdade, tenho saudades delas, principalmente dos quintais. Acontece que o presente quintal estava mais esburacado do que o aceitável, e embora o custo para reformá-lo não seja exorbitante, dá um trabalho dos infernos. Se fosse só isso, estava bom. Mas há também um fundo com terra que a indigitada queria transformar em horta e galinheiro, e aí sim eu comecei a trabalhar que nem maluco. Mas ok.

Essa trabalheira toda não deixa de ter seu viés prazenteiro, já que o tédio da pandemia não tem dado folga, e ter coisas inauditas para fazer é altamente positivo para a saúde física e mental. Entretanto, estar fora de casa me trás uma subtração: meus métodos de preparo de café. Enquanto as coisas não vão definitivamente para seus lugares na casa nova, não temos muito como sofisticar o preparo. Observando a falta que faz o líquido, a patroa comprou umas garrafinhas de café pronto que, se por um lado não podem ser chamadas de café em um sentido estrito, por outro dão vazão aos meus sentidos progressistas, e me proponho a tomá-lo de alma aberta.

O resultado não é ruim. Tomado geladinho, o sabor não passa vergonha, embora esteja a milhas de um café percolado ou prensado. Vamos ponderar: eles não têm os mesmos propósitos. De fato, quem quer um café clássico, não vai procurar uma garrafinha dessas, mas quem precisa de um pouco de cafeína e refrescância, tende a ficar bem satisfeito. Vou passar as especificações só para não perder o padrão.

Nome do “utensílio”: cold brew

Tipo de técnica: comprado pronto

Dificuldade: nula

Espessura do pó: Não se aplica

Dinâmica: café engarrafado para ser tomado gelado.

Resíduos: nenhum, por se tratar de um produto industrializado.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: nulo

Junto ao terreno, há uma escadinha que toma o muro de fora a fora, como se fosse uma arquibancada. Em determinado momento, fiquei lá sentado, tomando mais uma garrafinha dessas enquanto bolava minhas obras de arte. Via o grande vazio aberto para montagem das peças ao mesmo tempo em que o líquido chegava ao fim. Como naqueles desenhos animados, meti o olho dentro da garrafa e a chacoalhava para ver se não saía mais nada, mas de lá só vinha o ar, o nada, o vazio...

Usamos a palavra vazio mais em seu sentido metafórico do que propriamente físico. Como é uma alegoria para um lugar onde não há nada, representa muito bem a vida que vai perdendo suas perspectivas. Eu tenho vivido momentos assim, como já tinha prefigurado neste texto, cujas previsões todas se confirmaram, incluindo a saída dos dois filhos de casa. Estou lidando com a situação, e vêm mesmo momentos de vazio. Como exemplo, eu estava dando um tapa na louça, e sobrou a caneca que a menina mais moça usava para pegar água na talha. Ia pô-la na cantoneira, mas ficaria lá, inútil, como um troféu para a solidão. Então a coloquei dentro do armário, fácil de pegar, para quando ela quiser me visitar.

Mas, apesar do clima choroso que eu já botei na escrita, não é sobre esse tipo de vazio que eu queria falar, porque não foi disso que me lembrei quando olhei o interior vazio da garrafinha de café. Pensei que aquele tipo de vazio é ilusório, porque há bilhões e bilhões de moléculas lá dentro, devidamente invisíveis, como os resíduos das essências do café, algum microorganismo que pulou da minha boca e, principalmente, ar.

Uma das dificuldades que eu tinha quando era criança era pensar em um vazio absoluto. Realmente é muito estranho quando pensamos em um grande espaço sem nada como representação do vazio, mas logo nos tocamos de que lá há coisas. Por exemplo: quando estamos deitados quietos em um quarto, podemos olhar para o escuro e imaginá-lo equivalente a um espaço vuoto. Entretanto, basta uma pequena nesga de luz para observarmos milhares e milhares de partículas em suspensão no ar. Poeira, fuligem, pólen e outros pequenos resíduos quebram o encanto da sensação de ausência. Guardem essa informação.

Se eu tenho essa sensação, é normal que muitas pessoas também a tenham tido na nossa história de bípedes pernaltas e implumes. Os filósofos da primeira turma, conhecidos como pré-socráticos, tinham como intento comum descobrir a arché, e, para discriminá-los, redigi um texto que reputo bem completo. Mas, em acréscimo, posso dizer que havia uma busca não só no que estava no substrato da existência, mas também no que não estava – ser e não-ser, respectivamente. 

Todos os filósofos da physis, ou seja aqueles que buscavam a natureza do universo, de uma forma ou de outra coligam seu elemento primordial a alguma instância metafísica. Alguns deles, como o ápeiron de Anaximandro, o número de Pitágoras ou as homeomerias de Anaxágoras são puramente fundamentados em essências, que ganham formas de acordo com o "papel" que devem exercer no cosmos, enquanto os elementos físicos como a água de Tales ou o ar de Anaxímenes adotam suas formas pela ação de algo que está além da matéria. Outro exemplo são os quatro elementos de Empédocles que, apesar de materiais, têm suas mesclas governadas por amor e ódio, como se fossem seres que possuem sentimentos. Alguns diziam que as coisas todas estavam plenas de deuses, e isso era a anima que fazia com que elas assumissem formas e funções. Mas havia o lado de lá, ou seja, os intervalos que existiam entre os seres. Uma boa parte dos pensadores imaginava que tudo o que não é ser é não-ser. Outros diziam que isso é impossível. É com Demócrito que nasce essa noção de que os espaços onde não há nada de aparente seja correspondente à impressão: lá não há nada mesmo, nem deuses, nem plasma, nem éter, nem qualquer coisa que não seja o puro espaço. Vamos nos debruçar sobre essa questão.

Em primeiro lugar, vamos estabelecer uma padronização pedagógica. Sempre que eu falar em Demócrito, assuma-se que também estou falando em Lêucipo, seu mestre, tendo em vista que é muito difícil discernir o que vem de um e o que vem de outro, sendo certo unicamente que este último precedeu a relação de ambos. Como o filósofo risonho é mais conhecido, sendo bastante citado inclusive por seus contemporâneos, vamos didaticamente utilizar o seu nome, sem qualquer desprezo ao seu mentor, combinado?

Há uma série de enganos com relação a Demócrito. Era um pré-socrático sem realmente o ser, porque foi contemporâneo do célebre ateniense*. Tratou de inúmeros aspectos que foram além da sua tese cosmológica, com muitas predisposições éticas, que, no final, deram-lhe a fama de filósofo que ri, muito embora esse seu riso esteja longe de ser o reflexo de um temperamento, mas algo mais sardônico, zombeteiro, quase de maldizer, que vinha de sua maneira peculiar de encarar a miséria humana. Como, no entanto, meu objetivo aqui é falar do seu materialismo, não vou chegar a suas questões éticas.

Lembram da ideação do quarto vazio? Pois é, foi exatamente assim que ocorreu a Demócrito a noção dos átomos, partículas ínfimas que compõem tudo o que existe. Daquele turbilhão de partículas soltas no ar, Demócrito compreendeu que a matéria fica solta nos espaços vazios e que é a sua condensação que constrói tudo o que existe. O resto, que poderia ser preenchido por divindades, por uma substância indetectável, por uma quintessência, na verdade é composto de nada. Ou algo é a descontinuidade corpórea, ou a continuidade incorpórea. O cosmos é feito de átomos e vazio, nada mais. Nem mesmo instâncias metafísicas.

Toda a matéria que nos rodeia é composta de átomos. Elas surgiram pela agregação destas ínfimas partículas, e, quando desaparecem, é porque os átomos se pulverizaram e voltaram a ficar livres pelo vazio, quando voltarão a se colidir com outros átomos. Se eles não possuem afinidade entre si, simplesmente vai cada um para um lado; se possuem, vão se aglomeram e se chocar com outros semelhantes, até recompor novamente a matéria. Tudo no cosmos é cíclico.

Mas como é essa coisa de concluir que a arché era o átomo? É meio simples até. Pegue-se qualquer coisa, um fiapo de grama do campinho ao lado de sua casa, por exemplo. É possível facilmente parti-lo em dois, sem que a tal grama deixe de ser o que ela é materialmente. Prosseguimos partindo a pobre planta, até o limite do que nossas mãos são capazes de fazer. Daí por diante, cumprirá a um instrumento cortante de precisão prosseguir a secção, e daí partir para um corte a lazer, quando já teremos pedacinhos imperceptíveis de matéria, mas ainda assim grama, mesmo que precisemos de um microscópio para observá-los. Daí por diante, a divisão ainda pode prosseguir, no mundo do intelecto.

Essa divisão, apesar de matematicamente poder ser continuada, tem fim. É que há um determinado ponto em que um desmanchamento mais completo inviabiliza a reagregação das substâncias, tornando-as indistinguíveis do vazio, de tão diluídas que se tornariam pelo espaço. Esse ponto em que a matéria se torna indivisível é o que Demócrito chamou de átomo.

Uma curiosidade no pensamento atomista é que, apesar de não acreditar em instâncias metafísicas, eles criam em almas, que seriam tão compostas de matéria quanto qualquer outra substância. A alma aqui não se trata do sinônimo de espírito tão frequente nas religiões, mas na forma mais etérea da matéria, que teria o propósito de conter as atividades mentais e o caráter dos indivíduos, que, assim como todo o resto do corpo, desvaneceria com a morte.

O mais interessante é que a ideia de Demócrito concilia as duas escolas metafísicas da antiguidade anterior aos clássicos. Em rápidas linhas, tínhamos o confronto entre o devir de Heráclito e a permanência dos eleatas, Parmênides à frente. O primeiro dizia que a realidade é um eterno transformar, em constante movimento e consequente mudança, o panta rhei dos banhos que nunca são tomados no mesmo rio. Por outro lado, os parmenidianos diziam que todo movimento é meramente ilusório, e que o Ser se caracterizava justamente por sua imobilidade, por ser eternamente igual a si mesmo. Sendo assim, o turbilhão atômico que se desenrola no vazio, e que faz com que as partículas se encontrem e se condensem aleatoriamente representa o devir heraclitiano. Da outra parte, apesar de sua quase imperceptível pequenez, cada átomo é, em si mesmo, o Ser-uno, porque é eternamente igual.

Dessa forma, Demócrito concordava com a afirmativa eleática de que as transformações eram ilusórias, e que a aparência que o mundo transparece aos nossos olhos deriva unicamente desse eterno juntar e espalhar dos átomos. É em cada uma dessas partículas que está a eternidade e a imutabilidade, ou seja, o ser, a essência, a arché. O não-ser transparece no vazio, o espaço por onde o movimento e o devir se realiza. Desta forma, Demócrito concorda com Parmênides porque cada um dos átomos é eterno e imutável, e que tudo o que existe nasce de uma preexistência e encerra com uma desagregação de átomos que, individualmente, mantém a mesmíssima essência que tinham antes e sempre. Isso tudo, porém, sem inviabilizar Heráclito, que tem no vazio o campo para o devir.

Claro que a teoria atômica de Demócrito, criada puramente através de poucas observações empíricas e fortemente baseada em atividade intelectual, não era perfeitamente conciliável com as modernas hipóteses químicas, que dividem os átomos em partículas ainda menores, acomodadas em diversas camadas formadas pelos níveis de energia. Embora tenha introduzido o acaso na discussão da natureza da realidade, ele achava, por exemplo, que os átomos não se agrupavam de maneira absolutamente randômica, sendo que sua forma favorecia imensamente essa ligação. Eu poderia fazer algum tipo de contorcionismo para dizer que as quantidades de elétrons das camadas mais exteriores poderiam representar os “ganchos” que fariam as partículas encontrar suas afinidades, mas isso é coisa de quem quer acomodar mitologias com realidade, e não farei isso. Sua capacidade de predição já é admirável o suficiente, sem a necessidade desse tipo de coisa.

E isso porque há muitos acertos. De fato, tudo é feito de átomos, que se agregam e separam, sendo que o átomo que hoje forma um ser humano estará amanhã em um pedaço de carvão, e depois em uma calça de tergal. Eles são poucos, e suas combinações é que resultam em substâncias. Não são exatamente indivisíveis, como já descobriu a química moderna, mas a separação de seus elementos representa a sua destruição, guardando um sentido de indivisibilidade. E entre eles há só o vazio. A matéria não existe sem o vazio e ele é fundamental e inegável, indisputável e sempre presente, como diante de nós quando vemos toda a nossa vida ficando para trás, enquanto o mundo prossegue seu giro.

Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Nada restou dos escritos de Demócrito a não ser alguns poucos fragmentos. De Lêucipo, nem o cheirinho. Neste caso, o melhor a fazer é se socorrer de coletâneas dos pensamentos, como na ótima obra mencionada abaixo:

SOUZA, José Cavalcante (org.). Os Pré-socráticos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

* Há uma justificativa para enquadrar Demócrito como pré-socrático: o tema que o tornou célebre nos livros didáticos tem mais a ver com a fase dos antecessores de Sócrates do que propriamente como característica final de sua filosofia. Ele costuma ser enquadrado assim justamente por uma acomodação didática, e não temporal.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Em defesa de Pascal (mas não de sua aposta)

 (Todos nós falamos bobagens algumas vezes, isso é inevitável. O problema está quando uma delas marca tudo o mais que tenhamos dito de maneira a nada mais ter valor. Isso acontece com Pascal).

Olá!

“O homem nada mais é do que um caniço, o mais fraco da natureza – mas é um caniço pensante. Não é necessário que o universo todo se arme para esmagá-lo: um vapor ou uma gota d’água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem ainda seria mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e sabe da superioridade do universo sobre ele; já o universo, ao contrário, não sabe de nada. Toda a nossa dignidade, portanto, consiste no pensamento. É com o pensamento que devemos nos nobilizar e não com o espaço e o tempo que podemos preencher” - Pascal

Têm vezes que a gente lembra de cada coisa… estava remexendo no armário em busca de qualquer coisa, quando achei uma tubinho cheio de dados, daqueles de jogar. Imediatamente, veio à cabeça uma história velha como um relógio-cuco. Eu tinha alguns parentes que eram testemunhas de Jeová. Eles eram muito sérios, mas se casavam e faziam festas, o que parece meio incompatível. O fato é que estas nunca eram de arromba, mas um tanto comedidas, mais na base da roda de conversa do que na dança, música alta e outras coisas pecaminosas. Numa delas, estávamos eu e meus primos Maurício e Plínio, discutindo algo sobre futebol ou política do alto de nossa adolescência. De repente, um dos convivas, desconhecido para nós, chega nesse último e lhe brada, em um tom de voz que da Lapa seria ouvido na Penha:

– Irmão Jeremias, que bons ventos o trazem?

O Plínio não era Jeremias, e também não tinha sido trazido por bons ventos. Respondeu com a secura que lhe era peculiar:

– Não me chamo Jeremias, e também não sou seu irmão.

Diante de um rinoceronte desse porte, o irmão desconhecido fez o que de melhor havia a fazer: pulou de banda, buscando vizinhança menos agitada. Eu, um moleque despeitado à época, ria de perder o fôlego, enquanto meu primo se emputecia ainda mais. Ele falou:

– Vai, palhaço, fica rindo… vai ficar bonitinho de artista de circo na filmagem.

De fato, havia uma câmera filmando toda a festa. Era algo extremamente raro à época, coisa de grã-fino mesmo, mas nada semelhante às enormes e caríssimas equipes de reportagem de hoje em dia. Mais tarde soubemos que era um serviço prestado pela própria igreja, oque livrava do fiel os cobres com a cobertura. Eu tinha um espírito meio endemoninhado na ocasião, e me ocorreu de fazer uma aposta:

– O que vai valer se eu fizer uma bagunça na filmagem?

A resposta veio novamente seca:

– Uma caixa de cerveja.

Era uma época em que se fazia com as proibições a menores de comprar bebida alcoólica o mesmo que um cachorro fazia com o poste. Foi a senha para eu me aproximar do artefato e prefigurar um Beetlejuice tupiniquim, tamanha a quantidade de caretas e momices que fiz para registro póstero. Paguei o mico, mas ganhei a caixa.

Ganhei, é verdade, mas não levei. A história valeu muito mais do que a cerveja, que acabou nunca sendo paga, menos ainda agora, que o tal primo desceu as dez na mesa. E sim, não era deste tempo ter edições, e os nubentes testemunhais relataram o susto diante da inconveniência, tempos mais tarde.

São meras recordações, mas apostas também carregam seu fundo filosófico. A mais célebre de todas é um argumento de fundo teológico, mas que acabou distorcendo a imagem que temos de um prodígio, de quem vou tomar a defesa. Afinal, ninguém fala de Pascal sem se referir à sua famosa aposta (inclusive eu)

A aposta de Pascal é um exercício mental que é bem menos simplório do que pode parecer. Ele parte do princípio de que é muito difícil obter uma prova racional da existência de um deus, tanto pela via da lógica, quanto da experiência, e que aqueles que o fazem já tem gravada uma pressuposição à existência, o que enviesa o reconhecimento da validade das proposições nesse sentido. Para notar esta dificuldade, vamos trazer alguns exemplos.

Um dos argumentos mais conhecidos que procuram demonstrar a existência de Deus por meios lógicos é conhecido como argumento ontológico, e foi elaborado pelo filósofo italiano Santo Anselmo, que atuava em Canterbury. Nesta experiência, de maneira bem simplificada, o bispo propõe que se imagine alguma coisa da qual não se possa imaginar nada maior. Se esse pensamento é possível, então somente podemos dizer que ele não exista apenas no intelecto, porque a perfeição necessariamente pressupõe a existência concreta: à existência meramente intelectual não se poderia atribuir todas as qualidades possíveis de um ser perfeito. A maior coisa que se pode pensar é Deus, e, portanto, o simples ato de pensar em sua excelência já é prova de sua existência.

O argumento é de fato engenhoso, mas é falho. Kant notou que não se pode desvincular o conhecimento de uma experiência concreta. É como se aumentar os zeros de um livro caixa fizesse com que o dinheiro disponível se multiplicasse na algibeira do mercador. Além disso, Santo Anselmo propõe que essa coisa da qual não se pode imaginar nada maior é Deus, especialmente o cristão, mas podemos colocar qualquer coisa no seu lugar. Gaunilo de Marmoutier, por exemplo, objeta o argumento substituindo Deus por uma ilha perdida, com mais riquezas do que qualquer outro lugar na terra. É óbvio que tal afirmação é vazia se não houver como demonstrar a existência de tal lugar. Podemos até fazer uma brincadeira mais jocosa, afirmando que essa coisa da qual nada é maior seria um sorvete. Já pensou um deus sendo um imenso picolé?

Outro exercício lógico é conhecido como argumento cosmológico, que tem origem em Aristóteles, é reforçado por São Tomás de Aquino e usado ainda hoje. Aqui, temos as seguintes premissas: tudo o que existe tem uma causa; o universo existe; o universo tem uma causa, e essa causa é Deus. A escorregada lógica está no final. Ainda que todas as premissas anteriores estejam corretas, o que não é pacífico, porque a conclusão de que o primeiro motor é Deus? Por que não é uma causa externa, desconhecida, como se o universo seja uma parte de um todo ainda maior, ou um universo entre muitos, ou, mais simplesmente ainda, por que o Deus cristão e não qualquer outro?

Ainda há uma via para se tentar provar a existência de um deus, que não redunda necessariamente da lógica: a perfeição da natureza plasmaria a perfeição de seu criador. De fato, é sedutora a hipótese de que mecanismos tão perfeitos tenham por trás de si uma inteligência que os conduza. Mas o problema é que a natureza não é perfeita. A uma observação mais acurada, percebe-se que o todo harmônico é feito de pequenas desgraças, como provam as cadeias alimentares, a extinção de espécies, os cataclismas, as doenças das pessoas religiosas, a prosperidade dos ímpios, as mortes de nascituros e tantos outros exemplos. Além disso, a humanidade vive em constante progresso, mesmo naquela época em que ciência e misticismo ainda se misturavam, e muitos dos mecanismos naturais iam sendo explicados sem a necessidade de um deus para motivá-los, o que ia colocando o poderoso senhor cada vez mais em um plano metafísico, pouco concrescível.

Pascal não era alheio a estes argumentos e aos seus problemas. Por isso, ele procurou outro caminho, que, no final das contas, era um ensaio do pragmatismo. E, principalmente, uma alternativa para os incertos. É preciso lembrar que Pascal tem uma mente probabilística, muito motivada pelos seus amplos estudos matemáticos. E vai buscar nesta sua habilidade uma saída para a aporia da crença em deus.

A ideia central é a seguinte. Se você não é um jogador contumaz, daqueles que perdem casa e orifícios na mesa de jogo, sempre haverá ponderação nos lados positivos e negativos de uma aposta. Correr risco demais acaba por se demonstrar uma atitude insensata, e é preferível que as fichas sejam colocadas onde se sofrerão menores danos, em caso de perda. A Bíblia diz que a fé é essencial à salvação, ou seja, o encaminhamento ao paraíso no post mortem. Por essa razão, àqueles que não creem em deus está reservado o inferno. Para quem tem fé, a palavra bíblica ganha estatuto de lei, e, consequentemente, que deve ser seguida. 

Suponhamos então que possuamos as metafísicas fichas da crença. Teremos quatro resultados possíveis:

Acreditamos em Deus, e ele existe;

Acreditamos em Deus, e ele não existe;

Não acreditamos em Deus, e ele existe;

Não acreditamos em Deus, e ele não existe.

Por fim, temos que pensar nas consequências, que seriam os prêmios das apostas. Temos céu ou inferno, para as hipóteses de existência, e vida aberta ou restrita, para os casos da inexistência. Pensando unicamente em termos estatísticos, o fato de que as hipóteses de existência conduzem a consequências eternas faz com que haja vantagem em se apostar na existência de Deus, senão vejamos: caso se aposte na existência de Deus e ele existe, teremos abertas para nós as portas do paraíso, já que a fé é componente indispensável a tal acesso; se apostarmos na inexistência de deus e ele existir, abriremos o caminho ao diabo, pelos mesmos motivos. As vias da inexistência são menos gravosas. Se apostamos na existência de Deus e ele não existe, levamos uma vida restritiva à toa, mas que é um mal finito - acabou a vida, acabou o castigo; e por fim, se apostamos na inexistência e ele de fato não existe, também ao fim da vida encerra-se a liberdade. Ou seja, meio que como na teoria dos jogos, há um mal maior e um ponto de equilíbrio. O resumo completo da ópera está logo aí abaixo:

Se eu não acreditar e Deus existe, eu perco tudo;

Se eu não acreditar e Deus não existe, eu ganho pouco;

Se eu acreditar e Deus não existe, eu perco pouco;

Se eu acreditar e Deus existe, eu ganho tudo.

Tanto religiosos quanto céticos não gostam do argumento da aposta. Os primeiros alegam que a fé é componente essencial para adquirir o passaporte ao paraíso, e que não cabe uma mera alegação de crença, até mesmo porque Deus não é um estúpido que acredita em uma declaração insincera. Já os ateus ridicularizam-no, principalmente pelo fato de que não se escolhe acreditar em deus. Dado um conjunto de circunstâncias na vida de um indivíduo, simplesmente tem-se a crença ou não; tudo o mais é falso.

Pascal não deixou de pensar nestas situações. Ele entendia que a fé, mesmo que não existisse, poderia ser construída através da prática dos atos que lhe cercam. Sendo assim, ações tipicamente cristãs, como assistir à missa, tomar água benta, receber os sacramentos, ter parte nas obras de caridade e outras, ainda que o praticante não possua fé prima facie, pode tê-la induzida. Cercar-se desses elementos pode fazer com que psicologicamente exista um estímulo e o final seja uma fé legítima, e não uma mera tentativa de empulhação a Deus.

Até aqui, mesmo demonstrando que a aposta não é um argumento tão infantil quanto se costuma reputar, Pascal não me ajuda a defendê-lo. Isso porque ele possui muitas falhas. A primeira é o conceito de mal finito: que se perde pouco ao abrir mão de uma vida mais livre na inexistência de deus. Se não existe pós-morte, então a vida presente é a única que se tem, e isso multiplica seu valor a um ponto difícil de medir. Não se trata de usar o velho argumento de que ateus tem poucos lastros morais e que procurariam prazer indefinidamente. Na verdade, há muito pouca diferença entre a vida de alguém com fé e de alguém sem, porque os dispositivos sociais são muito bem influenciados pela religião, e a liberdade proporcionada mesmo em democracias laicas são bastante relativas. Segue-se o ditame social independentemente da religião a que se segue, com exceção do formato dos berloques que estão perdurados nos braços. É bem pouco diferente o comportamento de um ateu ou de um religioso no dia-a-dia – ambos tem obrigações legais idênticas e não se privam de bons-dias-obrigados-com-licenças. Ou seja: mesmo que não queiramos, temos práticas cristãs, mesmo sem fé. Por isso, deixar de usar essa vida de uma maneira mais livre representa a perda de uma oportunidade única, irrepetível. A perda é maior do que pode parecer.

O pior buraco de Pascal, contudo, está em indicar o Deus cristão trinitário como a cestinha na qual devemos depositar as fichas. Por que nele, e não no velho Javé dos judeus? Em Allah? Em Brahma? Na dupla Mazda-Arimã? Em Oxalá? Em Manitou? Em Tupã? No Monstro do Espaguete Voador? Ou nos outros três mil deuses espalhados pelas culturas do mundo inteiro? Como é possível botar as moedas com tanta convicção nos pés de qualquer um desses? Cada um deles é uma possibilidade de erro na aposta, não é?

A debilidade da aposta de Pascal, no entanto, não pode diminuir a importância do seu pensamento, por um motivo muito simples: trata-se de um gênio.

Ele foi muito importante nos estudos matemáticos ao desenvolver o conceito dos coeficientes binomiais, que ficou conhecido como Triângulo de Pascal. Na estatística, lançou a ideia de esperança matemática, oriunda da repetição de valores médios de uma variável aleatória. Na dinâmica dos fluidos, descobriu que a pressão hidráulica não depende do peso do líquido, mas da elevação em que o sistema se encontra. Seu nome virou uma das medidas de pressão mais utilizadas na metrologia, ao lado do Bar e do Newton. Criou aquela que seria a primeira calculadora mecanizada do mundo, hoje chamada de pascalina, e que, como ensinam os compêndios de informática, deu a primeira base para a automatização de processos, de modo a receber o nome de uma das mais difundidas linguagens de programação.

Na Filosofia, Pascal foi um racionalista, mas que confrontava o modelo de Descartes, estabelecendo uma demarcação entre o conhecimento científico e a crença religiosa. Deu ênfase no respeito ao conhecimento tradicional como base para o progresso científico, e em como a humanidade progride como um todo, e não apenas no nível individual. Influencia na Filosofia da Ciência ao estipular um método ideal para definições, axiomas e demonstrações, preferencialmente a partir de modelos matemáticos e geométricos. Ele também fala do Esprit de géométrie e do Esprit de finesse, ou seja, os ideais para a aquisição de verdades e a maneira de expressá-las adequadamente, para que se possa manifestar uma capacidade de compreensão para todo o mundo. Contrapôs brilhantemente a grandeza e a miséria humana, sintetizados na famosíssima epígrafe que adicionei a este post, que fala sobre um ser extremamente frágil, cuja única grande virtude reside em sua capacidade de pensar. Prenuncia o Existencialismo ao apresentar a humanidade como instável e incerta, mas que contraditoriamente busca base sólida onde possa edificar sua vida. Por fim, fala do divertissement como meio de fugir de si próprio, como já discorri neste texto: o homem não tem condições psicológicas de encarar a própria miséria e lidar com ela, então precisa se manter constantemente sob distração, ocupando sua mente com coisas vazias.

Princípio de Pascal, barril de Pascal, triângulo de Pascal, Universidade Blaise Pascal, cadeira de Pascal, medalha de Pascal, distribuição de Pascal, Pascal linguagem de programação, Pascalina, tantos Pascais de pressão... nada disso seria atribuído a um imbecil que elaborou qualquer argumento tonto. Portanto, reitero que, embora a aposta de Pascal, em que pese suas virtudes, seja um argumento no mínimo frágil, não há motivos suficientes para que toda a nossa visão sobre ele se volte unicamente a este aspecto, como tanto tenho visto por aí. Estamos justamente desperdiçando a oportunidade de vislumbrar um pensamento muito rico somente porque montamos sobre ele uma espécie de preconceito, o que nunca é bom. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Já que eu tinha recomendado anteriormente o livro Pensamentos, que é onde está descrita a célebre aposta, recomendo um dos argumentos citados neste texto.

SANTO ANSELMO. Proslógio. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

* A imagem de Pascal foi retirada da Wikipedia

terça-feira, 6 de julho de 2021

Navegações de cabotagem – o Lago Municipal de Cascavel e as predisposições que moldam nosso ser social

(Em que medida o estranhamento frente aos hábitos de outras sociedades ajuda a explicar nossos próprios hábitos?)

Olá!

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Já faz alguns meses que meu menino mais velho* se mudou de Cascavel para Curitiba, tudo dentro dos limites do estado do Paraná. Mas mesmo assim, eu resolvi desenvolver este post. Uma navegação de cabotagem, no contexto deste emérito blog, é a descrição de um local bastante pontual, feita em viagens de bate-e-volta. Evidentemente, uma rota que engole quase mil quilômetros não dá para fazer em um só dia, ainda mais de carro. Mas não queria deixar passar em branco o fenômeno, e resolvi incluí-la aqui.

Cascavel não é exatamente o que podemos chamar de cidade turística. É grande e organizada, incrivelmente limpa, uma cidade jovem, de pouco menos de setenta anos, denunciada por sua malha viária cheia de ângulos de 90 graus, ruas largas e calçadas generosas. Mas no plano dos recursos naturais, é como as outras cidades do oeste do Paraná: muita plantação e poucas variações na elevação. Por outro lado, isso não significa que não haja nada para fazer na cidade, muito pelo contrário. Há muita área arborizada, igrejas, monumentos e equipamentos culturais, além de parques, vários parques. O principal deles é o Parque Paulo Gorski, mais conhecido como Lago Municipal, e é dele que vamos falar.

Trata-se de uma mancha original de mata nativa, onde estão as nascentes do Rio Cascavel, e de onde é retirada boa parte da água que abastece a cidade. É uma das maiores reservas urbanas do sul do país, e que abriga um bom tanto de espécies nativas.

Algumas coisas são bastante típicas, outras já são mais cosmopolitas, como os indefectíveis quero-quero, tão presentes nos estádios deste país.

A água é bastante limpa, o que permite a boa multiplicação de peixes e, de embalo, a visita de espécies para se alimentar. Vi muitos biguás por lá, uma espécie de cormorão.

A região alagadiça também favorece a presença de bichos de banhado, notadamente as capivaras, que vivem lá às dúzias, embora seja possível encontrar algumas isoladas, em atitude filosófica e contemplativa.

Brincadeiras à parte, o Lago Municipal está para o cascavelense assim como o Ibirapuera está para o paulistano. É lá que o pessoal se agrupa nos domingões de bom sol para se reunir e praticar algum esporte.

Aqui as famílias se reúnem em rodas para tomar seu chimarrão, como bons descendentes de gaúchos que são em sua maioria, enquanto soltam as crianças nos playgrounds para gastar sua energia.

Na única vez em que fomos a Cascavel, estávamos nas vésperas do mês de dezembro, e como cada vez mais cedo o Natal é puxado, a entrada do lago estava repleta de adornos e pupazzi.

Cascavel é um bocado longe de São Paulo. São quase mil quilômetros, a serem vencidos em cerca de doze horas, contando as paradas necessárias para abastecer, comer e dar asas à fisiologia. Além disso, mesmo sendo grande, é uma cidade interiorana, que possui costumes próprios. Aqui, como eu já disse, há uma marca da colonização gaúcha, que trouxe seus genes italianos e alemães em quantidade. Ver o pessoal na beira do lago, sentado em rodas com uma garrafa térmica, cuias e bombas para tomar chimarrão, mesmo em um dia razoavelmente quente, colide um pouco com as impressões de um paulistano, que, sabidamente, tem uma genética bem mais misturada. Só de olhar para mim mesmo, concluo que minha porção armênia é quase que uma presença exótica nesse meio. Mas não é por conta das predisposições hereditárias que o pessoal daqui curte este tipo de ação coletiva. Penso em alguma correspondência de costume em terras da Paulicéia e não vejo nada tão arraigado, apenas lembro das coca-colas da vida, o que não traz exatamente uma conotação tradicional. Sim, reunimo-nos com amigos à beira do lago e comemos coisas, mas muito mais inespecíficas. Por outro lado, o cascavelense não é dado a manifestações tão comuns na capital da vertigem. Padarias para o paulistano são centros de encontro. Pode até haver uma ou outra mais abrangente em Cascavel, mas são essencialmente lugares para se comprar pão e companhia. Em São Paulo, é ponto de encontro, de happy hour, de debate político, de discussão futebolística, tudo.

É uma pequeníssima amostra, mas que nos dá a perceber que as sociedades têm evidentes diferenças entre si, e a prova é essa estranheza em detalhe tão simples. Costumam dizer por aí que o gaúcho não recebe de bom grado um "não" para o seu chimarrão, e colocar açúcar no mate é uma espécie de abominação. Não sei se é verdade, mas sabemos das diversidades entre aquilo que é considerado bom e valioso entre as diferentes comunidades, e o que é um mero adorno em outra, o que até dá boas discussões, e a gente meio que já espera em termos de reação ou aceitação porque há uma espécie de desenho social que se reproduz por toda a comunidade. Será que eu estou certo ou vendo minhocas onde elas não existem?

Diz Pierre Bourdieu que as coisas são assim mesmo. Ele buscou uma sociologia onde a interação entre o coletivo e o indivíduo fosse explicada em níveis psicológicos, de modo a elucidar como cada um molda o outro, e como isso se espraia através do ambiente social onde se vive, muito mais do que apenas a classe econômica, que já tanto tinha sido analisada pela tríade Durkheim/Marx/Weber. Chamou isso de estruturalismo construtivista (ou vice-versa), porque entendia que existem estruturas na sociedade que coagem, ainda que imperceptivelmente, a ação dos indivíduos de acordo com a classe em que estejam inseridos.

Vamos pela história de vida. Quando eu 'inda morava na Vila Ema, não eram só as casas que eram parecidas, mas os costumes das pessoas. Havia um fato muito curioso: se você percorresse logo cedo a rua em que eu morava, iria escutar o programa do Zé Bettio** de fora a fora. Era costume das pessoas da ocasião ouvir esse programa de músicas sertanejas enquanto preparavam seus cafés-com-leite-pães-com-manteiga, em um volume que dava bem para ouvir da rua. Se você estivesse em bairros mais abastados (Jardins, Moema, Pinheiros) ou com colonização mais marcada (Vila Zelina, Ponte Pequena, Mooca), o fenômeno não se repetia. Nos primeiros, o café com frutas e cereais era acompanhado pela leitura de jornais, enquanto nos segundos havia algum componente exótico, como alguma sopa armênia tomada logo cedo. Ou seja, Zé Bettio era um valor para aquela população específica.

Não ouvíamos Zé Bettio em casa. Não porque pertencêssemos a outra classe social, mas porque tínhamos costumes particulares. Mesmo sendo igualmente pobres, eram preferíveis a nós aquelas tertúlias caras aos ítalo-hispânicos. Por este motivo, parecíamos excêntricos, porque a cadeia de radiodifusão do Zé Bettio era interrompida na nossa porta.

Duas coisas então. Uma é que, à semelhança do inconsciente coletivo de Jung, há alguma coisa que desenha o comportamento das classes sociais, e que ia se tornar mais evidente justamente quando algum membro dessa classe faz algo diferente do padrão. Bourdieu entende que essas disposições automáticas vêm do plano psicológico, em que os indivíduos interiorizam, desde crianças, um modo de vida que é próprio de sua classe. Essa inscrição mental começa dentro de sua própria casa, anda pela sua vizinhança e estende-se ao ambiente escolar, que, pelas mais variadas condições, replica o amálgama social daquela classe.

De fato, as coisas naquele bairro proletário eram todas semelhantes. O jeito de fazer festas, de ouvir músicas, de estender a roupa que, aliás, eram semelhantes para cada faixa etária. As paredes caiadas, os quintais de cimento, os cachorros que entravam e saíam para comer os restolhos semelhantes. E os mesmos programas de rádio: Zé Bettio, Gil Gomes, As Vinte Notícias de Antônio Guzman, O Pulo do Gato (“acorda São Paulo do seu sono justo”), o futebol das tardes de domingo. Todos meio que parecidos, o que fazia com que as coisas diferentes se sobressaíssem ainda mais, a ponto de parecerem fora do lugar.

Para Bourdieu, isso tudo é o habitus. Não se trata meramente do radical latino para a palavra hábito, que representa uma maneira comum de exercer uma prática, mas do modo como uma classe enxerga a si mesma, e que a leva a uma tendência de práxis. Por isso mesmo, quando algum membro de uma classe faz algum comentário sobre as atitudes de outro membro, apenas para citar um exemplo, ele diz mais sobre si mesmo do que sobre o objeto analisado. Há uma dialética nessas relações, em que de um lado temos as predisposições individuais, e do outro está a sociedade que reza o ditame, sendo a síntese uma espécie de aproximação que anula a individualidade, mas que fornece um meio próprio de atender o meio social. E isso nós vamos perceber ao se falar em outro conceito de Bourdieu: o campo.

Como o termo pode fazer supor, o campo é um espaço, mas não no sentido meramente físico, como um bairro ou uma rua. Um campo é o espaço simbólico onde o habitus de uma determinada classe é exercido. É que o habitus, como uma espécie de gabarito para o comportamento, é da esfera abstrata, e o campo é a arena social onde ele é colocado para fora. Afinal de contas, não se pratica a sociedade sem que haja um local onde as suas relações típicas se exerçam. Vejam só. O habitus é uma inclinação a agir dada pelas disposições sociais que cercam um indivíduo, mas não a ação em si. Defrontado com certo problema, um agente social tenderá a pôr em prática aquilo que lhe é interiorizado, mas há um momento em que isso sai da mera subjetividade para ser colocado em prática. Há condições que estabelecem essa prática, e o local onde estas condições são desenroladas é que é o tal do campo. Ele é um modificador das ações porque possui suas regras próprias e seus atores bem estabelecidos, incluindo aqueles que detêm um maior poder.

Como eu disse, o campo é uma arena, o que faz pressupor uma luta. E os componentes da batalha o fazem por uma questão de "lei da selva": vive melhor aquele que tem mais poder. Para que seja possível alcançar algum tipo de posição minimamente privilegiada nesse embate, os atores sociais necessitam de armas, que Bourdieu chama de capital. Evidentemente, esse termo engloba poderio econômico, como não poderia deixar de ser, mas não se limita a ele. Imagine, por exemplo, o conjunto dos alunos de uma sala de aula. Lá, em tese, o dinheiro não importa tanto, mas que está muito longe de ser uniforme. Por exemplo, a maior vantagem é obtida através da capacidade cognitiva. Os nerdões chegam mais facilmente a seus objetivos e, com isso, possuem um capital com o qual podem negociar. Eles são os favoritos na hora de montar grupos para fazer trabalhos, por exemplo, o que lhes confere prestígio. A turma do fundão também possui suas armas, que é a violência física e psicológica, e que busca "convencer" os cdf's precitados a colocar seus nomes nos mesmos trabalhos, à custa de algum favorecimento, como, por exemplo, proteção. Moças bonitas e rapazes atléticos também podem usar seus atributos para angariar admiração, enquanto os alunos mais populares, hábeis no diálogo, também têm recursos para conseguir empatia, todos eles independentemente do processo de aprendizado em si mesmo, dando uma boa mostra da variação do campo. De uma forma ou de outra, tudo é jogo de poder, com suas regras específicas: os bons alunos lutam pelas melhores notas, e os demais por obtê-las através de outros meios. Fiz-me claro? 

E o que Cascavel tem com tudo isso? É que, em um prazo tão curto, há uma espécie de descompasso entre o habitus de quem veio da classe pobre paulistana para a classe média paranaense, e esse sentido de local que a característica traz faz com que se sinta um pouco fora de lugar, embora isso vá se arrefecendo com o tempo, e um novo habitus vá moldando a psique do moleque audacioso. Não vai dar tempo, ele já está em Curitiba, mais semelhante à Paulicéia desvairada. E não se trata de uma comparação entre melhores e piores, maiores e menores, mas do reconhecimento de que há diferenças entre as classes e as arenas onde elas agem. Isso é normal nas sociedades e acontecerá sempre que saiamos de nosso habitat costumeiro. Bons ventos a todos!

 Recomendação de leitura:

Pierre Bourdieu abordou inúmeras vezes o meio social em sua obra, mas a brincadeira de habitus, campo e capital começou com o livro abaixo. Talvez eu volte a ele.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Crítica Social do Julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.

* Menino é só uma forma carinhosa, porque o gajo já tem 28 anos.

** Zé Bettio era um apresentador de rádio especialista em músicas sertanejas que se tornou uma referência nessa área.