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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 6ª mirada: Cunha e a arte vista além de seus materiais

Olá!


Como eu já disse no meu texto anterior, a partir de uma base em São Luiz do Paraitinga fui rodeando uma série de lugares, recomendados na base da interação com a galera local. Uma dessas recomendações acabou me conduzindo até a municipalidade de Cunha, a princípio para um ponto específico, que depois foi sendo enriquecido com outros papos e outras dicas.



Cunha é mais uma cidade que se originou no tráfego das tropas, mas já aqui temos um contato com a Estrada Real, uma espécie de trajeto que ligava os portos às cidades do interior de Minas Gerais, e por onde circulavam pessoas e mercadorias. O marco abaixo era utilizado para dar uma ideia das distâncias percorridas aos transeuntes, e fica situado no trecho em que eram comunicadas as cidades de Cunha e Paraty, já no Rio de Janeiro.



O local recomendado para visitação ficava numa derivação dessa estradinha. É a Pedra da Macela, um mirante natural a mais de mil e oitocentos metros que, em dias de bom tempo, permite visualizar toda a região de Cunha e a baía de Angra dos Reis, bem como a precitada Paraty. Só que, como é comum nessas encostas, o tal tempo bom só pode ser aferido in loco, o que não foi o caso. Basta uma nuvenzinha marota parar no morro ao sair de sua rota do mar ao continente.



Macela é o nome de uma planta que serve para fazer um chá calmante e para encher travesseiros e almofadas. De fato, é muito comum em toda a região, como a amostra que temos abaixo. De início, é uma flor, que, com o amadurecimento, vira essa espécie de paina.


O caminho para o pico da Pedra da Macela começa pela porteira de Furnas, que não permite a passagem de nada motorizado. Dali, é uma ladeira interminável de quatro quilômetros, numa base de concreto. Há várias sendas espalhadas pela estrada, que servem de pouso, porque ninguém é de ferro.


Há momentos de profunda desesperança. A subida é muito íngreme, e é necessário não esquecer de trazer alguma água, além de se utilizar calçados confortáveis. Eu não estava com nada disso, apenas com minha patroa e nossa coragem. No final das contas, o tempo não ajudou. Tudo o que vimos foi uma densa neblina e uma tapeçaria de nuvens. Nada de mata, nada de cidade, nada de mar. Faz parte.


Estando ainda cedo, fomos caçar mais terra para esbater. E há uma boa oferta de água para ensopar a bermuda. Vou mencionar aqui as cachoeiras que ficam na estrada do Monjolo. Primeiro há a Cachoeira do Desterro, uma queda dupla com uns 10 metros de altura, e, logo em seguida, há a Cachoeira dos Pimentas, uma longa cadeia de quedas d’água, com uns cem metros de comprimento.


A Cachoeira dos Pimentas não tem quedas verticais. Ao contrário, vai deslizando pelo seu leito como se fosse um tobogã, e forma uma série de remansos em sua extensão, permitindo fácil balneabilidade em suas águas gélidas.


O governo disponibilizou uma inesperada boa infraestrutura no local, que é gerida por um pessoal da própria comunidade. Há um deck para banhos de sol, uma demarcação para estacionamento e uma lanchonete, além de providenciais WC’s. Bela dica para levar crianças.


Há também uma trilhazinha que leva ao alto da barragem que forma a cachoeira e abastece a cidade, de nível fácil.


Tanto empenho na caminhada faz aflorar uma fome leonina. Lá vamos nós conhecer o centro da cidade, em busca de alimento. Almoçamos em um dos vários casarões espalhados pela cidade, que foi adaptado para servir de restaurante. Aliás, também aqui encontramos belas amostras de construções coloniais.



Um dos sobrados estava com sua estrutura exposta, de modo a ficar disponível para nosso aprendizado como funciona uma construção em pau-a-pique e taipa de pilão.



Tem a igrejona na praça? Tem, sim senhor. Uma igreja em estilo barroco, a matriz é dedicada a Nossa Senhora da Conceição.


Uma curiosidade desta igreja é sua parte traseira, onde está situada uma vila de sobradinhos antigos e uma fonte de água circulante. Não sei se se trata de uma referência à boa quantidade de quedas d‘água da região serrana. Pode ser que sim.


Também em Cunha, assim como em outras cidades da região, temos o velho Mercado Municipal. Pequeno, mas que abriga uma parte importante do artesanato popular local.


Como não viajei em alta temporada, peguei um contratempo: alguns dos lugares que gostaria de visitar estavam fechados, como o Lavandário e a Cervejaria Wolkenburg, o que já é motivo suficiente para ensejar uma nova visita. Na medida em que isso ocorrer, adendarei este texto.

Mas o principal destaque de Cunha, no campo humano, fica por conta de seus produtores de cerâmicas. Há muitos ateliês, principalmente concentrados em um bairro chamado Vila Rica (mas não só).


As próprias casas onde atuam os ceramistas, são, por si só, uma atração à parte. Todas possuem um ar bucólico, que mistura um jeito meio rural com a afetividade da casa da vovó.


Muitos dos ceramistas utilizam uma técnica oriental para o cozimento de suas peças, e há fornos coletivos – que incluem verdadeiros rituais para sua abertura. Mas há também fornos menores, situados nos próprios ateliês, como esse que eu flagrei no subsolo de um deles.


As peças produzidas se destacam por não serem exatamente utilitárias, mas criações artísticas que visam mais enfeitar do que servir para uso quotidiano. Isso faz com que seu preço se estenda para além de sua mera manufatura. Há todo um trabalho intelectivo e criativo por trás.


O resultado é meio que uma fusão entre uso e adorno, o que nos remete ao mesmo assunto tratado neste post: o que podemos considerar arte?


Naquele texto, tratamos do assunto utilizando como baliza a teoria da formatividade de Luigi Pareyson. Aqui, convocaremos o filósofo analítico inglês Richard Wollheim para nos ajudar a compreender os limites da arte. 
Wollheim foi um cara que se ocupou da arte sob o prisma da Filosofia da Linguagem, ou seja, a arte é um jogo de significantes e significados que busca dar expressão a alguma forma de comunicação. E, da mesma forma que a linguagem, a arte não se destaca do contexto social e ambiental que o artista vive. Por isso, é absolutamente indissociável o que a arte expressa daquilo que o artista é. Em suma, uma obra sempre diz algo do artista. Desta forma, a Filosofia da Linguagem dá à Estética um caráter epistemológico.

Mas o ser humano produz inúmeros artefatos, que nem sempre podem ser considerados artísticos. O homem produz artigos de técnica, que podem ou não ser meras repetições, mas que assim mesmo dão trabalho e refletem as habilidades de um determinado ofício. O que é capaz de estabelecer uma diferença entre ambos é a intencionalidade do artista. Quando uma peça é manufaturada para ser arte, o artista o faz com a intenção de que seja arte, quer carregá-la com algum sentido subjetivo que escapa do mero aspecto objetivo. Esse é o artista, e não o artífice.

Agora fica mais fácil de compreender porque a obra de arte carrega alguma coisa do artista. Isso ocorre porque, da mesma maneira que a linguagem, a arte leva em seu bojo uma intenção de se expressar que é própria do seu autor, única, e que, da mesma forma que a frase mapeia o mundo na tese pictórica de Wittgenstein (é obrigatório ler este texto se você não conhece tal teoria), o sentido da obra mapeia a intenção do artista. Para tanto, ele usa aquilo que Wollheim chama de tematização, que é a ação deliberada do artista sobre um suporte que traduza sua intenção, como os traços sobre a tela que caracterizam a pintura.

A obra de arte é, então, um código posto contendo uma ideia transmitida, que deve ser reconstruída mentalmente por quem a aprecia. Quanto melhor a técnica utilizada pelo artista, mais capacidade de leitura e reconstituição terá o espectador e o crítico. Neste sentido, quem informa que um objeto qualquer é uma obra de arte é o próprio artista. No outro polo, pode-se reconhecer seu sentido ou não, mas não é seu atributo identificá-la como tal.

Neste momento, poderemos pensar no movimento idealizado por Tristan Tzara e liderado por Marcel Duchamp, o Dadaísmo. Este movimento procurava romper com os ditames acadêmicos sobre arte, subvertendo sua lógica. Por exemplo, nomeando objetos do dia-a-dia como obras artísticas, o chamado ready made. A obra “A Fonte”, de Duchamp, é o magnum opus desta ideia: um mictório nominado como escultura.

Devo reconhecer isto como obra de arte? O autor diz que é. Cabe a mim concordar ou não, mas o fato é que há uma mensagem sendo transmitida, e meu papel é decodificá-la: um protesto, uma crítica, uma autocrítica, um sarcasmo, uma ofensa... Duchamp colocou algum significado em sua obra, ou mesmo vários, da mesma forma que uma frase retrata a realidade. Essa mensagem pode ou não ser compreensível, pode estar carregada de ambiguidade, mas é uma mensagem. Nesse sentido, é arte.

Mas Wollheim vai mais longe. Para fazer uma análise crítica séria da obra de arte, e levando em consideração que o artista fala de si, não basta observá-la como um amontoado de traços sobre uma tela (Wollheim fala sobre a pintura, mas essa regra pode ser espraiada para qualquer modalidade artística). É preciso compreender a vida e o contexto social do autor, a fim de ter em mãos algum nível de perfil psicológico do mesmo. Somente compreendendo razoavelmente a história pode-se ter um mínimo de entendimento da mensagem. Somente verei um mictório se não compreender o contexto em que Duchamp o nomeou como obra de arte. Terei em Mondrian (vide este post) um desenhador de linhas retas, em Toulouse-Lautrec um devasso (leia este) se não entender porque eles se exprimiram da forma com a qual o fizeram. Isso porque temos nós, como espectadores, uma diferença cultural em relação ao autor, que precisa ser mitigada para que a interpretação e reconstituição da mensagem seja a mais próxima possível da intenção almejada.

É preciso, para isso, ter uma disposição mental de transcender aquilo que meramente vemos. E aqui a intencionalidade muda de lado. Quando olhamos para um quadro pendurado na parede, vemos nele um objeto. Ainda não ligamos nossos “dispositivos” interpretativos e vejo na tela apenas um amontoado de cores e traços. É o que Wollheim chama de ver-como (seeing-as). A partir do momento em que retiro o suporte tela da minha consciência e coloco-me no papel de receptor de uma mensagem, preferentemente munido de todo o contexto do emissor, já não vejo o quadro como um objeto, mas como a concreção de uma ideia, de onde posso extrair sua abstração. Já não vejo-como; esse é o processo de ver-em (seeing-in). Em resumo, eu desloco o papel do quadro de significante para significado, elemento primordiais para constituir a linguagem, como bem ensinou Ferdinand de Sausurre.

E as cerâmicas de Cunha, podem ser consideradas obras de arte? Bem, sob o prisma de Wollheim, quem deve me dizer isso é o artista. É óbvio que a cerâmica é uma mídia mais limitada que uma tela de pintura ou uma partitura, mas é construída com intenção e essa intenção pode carregar algum tipo de ideia, através de suas formas, das figuras traçadas nela ou de sensações táteis, como aspereza, rugosidade, aderência, impermeabilidade... Isso tudo pode levar consigo uma certa transmissão de ideias, uma intenção consciente, mesmo que seja para que o artista diga simplesmente: “eu acho esse padrão bonito, e você?”. Esse é o momento em que vou dar meu “ver-em” ao invés do “ver-como”, e resolver comigo mesmo se acho belo ou não, se acho arte ou não.

Recomendação de leitura:

Wollheim, como eu já disse, cuida especificamente de pintura neste livro, e dá muitos exemplos dos processos de sua teoria, o que é muito interessante. Mas suas ideias são facilmente acomodáveis a qualquer tipo de expressão artística, sem nenhuma forçação de barra.

WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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