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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Sobre a Virada Cultural como evento menos importante que um fato pouco significativo para muitos (ou: fechamento do assunto Amy Winehouse, finalmente)

Olá!

Em um post no passado, teci alguns comentários com relação à Virada Cultural paulistana. O evento voltou a ocorrer no primeiro final de semana do mês corrente, e aproveitei para refletir um pouco melhor sobre ela. Cheguei à conclusão de que se trata de um evento ruim em sua base, apesar de ter assistido alguns stand ups. É óbvio que é muito legal ter uma porrada de shows para assistir e eventos para participar, alguns dos quais verdadeiramente raros, como a feira gastronômica do Minhocão. Mas, no todo, é um evento caríssimo, de logística muito difícil, muita coisa improvisada na última hora e que no final das contas possui um defeito insanável: são tantos acontecimentos praticamente simultâneos (mais de mil) que não há alcance possível mesmo dos mais preparados atletas culturais de nossa cidade do que 10 ou 12 deles, forçando muito a barra. Por que isso é uma idiotice? Porque o gasto não compensa a oferta final. Se um evento desses fosse dividido em uns 40 finais de semana no ano, teríamos a possibilidade de comparecer a muitos mais, além do evidente ganho na facilidade de organização e seu conseqüente barateamento. Em um paroxismo da utopia, um evento circunscrito a um único final de semana poderia ser a reunião de toda a produção cultural da cidade no ano, fornecendo espaço para as escolas, clubes, associações e correlatos exibirem para toda a metrópole o seu trabalho. Sonho demais para nossos ilustres governantes.

Mas algo tratado superficialmente pela mídia e pelas autoridades acabou por me chamar muito mais atenção do que qualquer outra coisa. Foi a morte de uma garota de 17 anos, vítima de overdose. A menina tinha a idade da minha filha, de duas das minhas afilhadas e dois afilhados. Uma balada que deveria ser um acontecimento voltado para o entretenimento acabou por se tornar uma tragédia, que tem significados profundíssimos, e que serve para nos alertar sobre um problema de resolução extremamente complicada, se possível.

Já tive oportunidade de tratar do assunto da morte inesperada por ocasião do falecimento da cantora Amy Winehouse, em dois textos. No primeiro, abordei a questão da pressão exercida pela fama e suas conseqüências. No segundo, mais aplicável ao caso, tratei da tragédia da morte na juventude, um acontecimento que rompe o transcurso natural e empobrece a humanidade como um todo. Queria ainda produzir um terceiro texto, abordando diretamente o tema da drogadição, mas não me considerei apto a fazê-lo naquele momento. A abrangência do tema é tão extensa que dá para escrever uma estante inteira, mas agora tentarei fazer algumas considerações mínimas.

Pois bem. Eu não me iludo. A escalada no consumo de drogas tem mais a ver com o progresso técnico do que com um suposto declínio moral das sociedades, que não mudou tanto assim, afinal de contas. É fácil compreender isso. Para tanto, voltemos no tempo.

Fazer manteiga era um trabalho individual e demorado, em que eram necessários litros e litros de leite, horas e horas de labuta repetitiva e pouca garantia de sucesso para a produção de uma só e pequenina barra, de qualidade nem sempre assegurada e sujeita a adulteração em pouquíssimo tempo. Idem para fabricar cerveja, por exemplo. Era necessário plantar, aguar, adubar, ceifar, colher, separar, limpar, torrar, maturar, moer, cozinhar, decantar, filtrar, corar, engarrafar, escaldar, tapar, esperar, esperar, esperar... para ao final abrir a garrafa e concluir que nada valeu a pena. Manteiga e cerveja hoje são produzidas aos milhões, em um processo produtivo que envolve máquinas modernas, com todas as variáveis controladas, matéria prima rastreada e certificada, com datas de entrega precisas, distribuídas eficientemente por todo o território nacional e disponíveis na mercearia que fica a 50 metros de sua casa. Todo esse processo se aplica à produção em massa de substâncias entorpecentes, e recorri ao exemplo da cerveja (gosto da Serramalte e da Original – excelentes) para provar que isso não depende exclusivamente da licitude do produto.

Quantidades industriais + droga barata=consumo incrementado. Dá para sentir a lógica capitalista em ação?

Mas a culpa não é só disso, óbvio. A humanidade sempre se utilizou de substâncias que alteram o nível de consciência. Álcool, maconha, opiáceos são antiqüíssimos. A roda do capital, girada pela técnica apurada apenas potencializa o usufruto e os efeitos. O xis da questão é bem outro: por que a humanidade se droga?


Tem a ver com fuga, hedonismo e curiosidade. Toda a lógica da insatisfação humana já foi devidamente “dichavada” (epa!) por inúmeros pensadores, inclusive com algumas minhas observações (esteeste e este), e só vou passar um pincelzinho nestas mal traçadas linhas para ajudar na compreensão.

O ser humano tem uma necessidade irrefreável de buscar o prazer. Essa necessidade é tão premente que não importa muito se os paraísos gerados são reais ou artificiais. O que importa é a realização do desejo. Isso porque há muita coisa em jogo quando essa busca tem o significado de dar uma motivação à vida. Trabalhamos demais no plano do simbólico, e esquecemos muitas vezes de racionalizar nossa ação. A busca pelo prazer requer satisfação imediata, deixamos de calcular toda a frustração que será gerada ao se encontrar com os pés no chão e diante do espelho. E encontramo-nos a frente do segundo problema, conseqüência direta do primeiro por oposição também direta a ele: não conseguimos lidar eficientemente com nosso sofrimento. Não quero aqui fazer confrontos com Nietszche e seu carpe diem, nem preconizar princípios cristãos de reconforto na vida futura, mas o fato é que não há mais valor em sofrer, mesmo que seja como aprendizado. Concordo plenamente que é melhor não padecer, mas o problema principal é que isso é absolutamente inevitável. Só que vivemos em uma sociedade hedonista, e muito distinta do sentido imaginado por Epicuro, para quem o prazer era, por assim dizer, passivo. Ou seja, o prazer se dá na ausência da dor. Isso importa em dizer que o epicurismo e o estoicismo são quase que gêmeos – a melhor maneira de não sofrer é não “ligar” para a dor.

Saber reagir à dor tornou-se cada vez mais difícil, porque ela assumiu em estatuto de inaceitável, incompatível com a vida. As pílulas são, nesse sentido, um eficaz lenitivo para quem não consegue administrar sua própria realidade, quando ela não é tão próxima do ideal. Só que o ideal de realidade não passa disso: um ideal. É preciso saber se encontrar depois de se perder, mas o artifício da alteração da percepção induzida pelas substâncias entorpecentes não soluciona o problema. Antes disso, causa novos, muito piores.

Mas como encontrar na drogadição um eixo de alívio para as dores típicas da sociedade moderna? Como se iniciar nesta tão pouco nobre arte? Simples: misto de curiosidade e auto-afirmação. É tão fácil encontrar uma pedra que qualquer um pode experimentá-la, e concluir que seu efeito vem ao encontro de nossa vontade de fuga e/ou satisfação de desejos. Além disso, o consumo é um distintivo da independência. Há um momento em nossas vidas (especialmente na juventude) em que queremos testar todos os valores que nos foram repassados por nossos ancestrais, sendo que os mais diretos, obviamente, são nossos pais. Passamos a contrapor todos esses valores e verificar o quanto de liberdade e autossuficiência nos são propiciados com essa ação. Essa verificação se dá pela reação dos genitores. Quanto mais contundente, mais a experimentação tem reflexos efetivos. A possibilidade de quebrar a cara é imensa, mas faz parte de nossa formação. O grande busílis é que, ao penetrar neste arriscado terreno, podemos falsear o passo e nos afundar na areia movediça, porque são substâncias químicas viciantes, extremamente prejudiciais. Uma pessoa que se drogou uma ou duas vezes na vida terá apenas as histórias para contar, mas quem dá a garantia de que eu, em minha experiência individual, não mergulharei em um vórtice?

Por fim, há ainda algo mais a comentar. Temos uma legislação extremamente dúbia com relação ao consumo de drogas. Ela condena o tráfico e descriminaliza o consumo, o que é um grande paradoxo. A lei proíbe tanto o roubo quanto a receptação do objeto roubado, mas esta lógica não é seguida neste caso, nem que seja para se obrigar o tratamento. Há pressão cada vez maior para uma liberação mais acentuada com relação ao vício, mas é preciso levar em conta que essa posição traz um problema sério: haverá uma eterna continuidade no financiamento de uma atividade ilícita, por mais que o usuário seja vitimizado. E, neste caso, parece a mim que temos uma grande hipocrisia, que não é colocada abertamente por conta de uma postura pseudo-ética. O fato é que o consumo de drogas é, antes de mais nada, um NEGÓCIO. Sabemos que os limites da livre iniciativa são difíceis de serem estabelecidos, e que os ciclos econômicos costumam ser marcados pela busca desenfreada de novos campos de negócio, de saturação e de retração. Não é demais supor que haja grandes corporações interessadas em explorar um nicho que, até o momento, está no campo da ilegalidade. Assim, teríamos um ou dois fabricantes autorizados a produzir substâncias a serem vendidas com fortes restrições, que seriam laceadas na medida em que a sociedade passaria a aceitar com menor ojeriza essa presença já não tão incômoda. É uma questão para ser pensada com enorme delicadeza, porque envolve um mecanismo social produzido por nós mesmos, ainda que inconscientemente.


Recomendações de leitura:

Thomas de Quincey é um escritor inglês que conheceu de perto o problema do consumo de drogas. Caiu nesse mundo ao tratar de nevralgias com ópio. Tentou de todas as formas se livrar do vício, sem sucesso. Escreveu esse livro para descrever o efeito da substância em seu raciocínio e em seus sonhos, tornando-o um exemplo bem acabado das distorções psíquicas causadas por esse consumo, o que o torna muito recomendado.

QUINCEY, Thomas de. Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: L&PM, 1982.


Após ler o livro anterior, pode ser interessante observar a obra de Baudelaire na qual é feita uma análise da obra de Quincey, onde é feita uma análise sobre a instalação da dependência e sua interferência no caráter do usuário, de maneira bem pouco afeita ao moralismo então reinante.

BAUDELAIRE, Charles. Um comedor de ópio. Rio de Janeiro: Newton, 1996.


Uma última observação: temos uma efeméride neste blog. Ele está fazendo um ano. Gostaria de ter chegado, nesta altura do campeonato, a uns 100 textos. Não consegui chegar nem na metade, mas a experiência é gratificante, já que tenho observado uma curva ascendente em suas visualizações. Gostaria de agradecer a todos os que colaboraram, curtiram, compartilharam e comentaram. Beijo para todos.