Em um post no
passado, teci alguns comentários com relação à
Virada Cultural paulistana. O evento voltou a ocorrer no primeiro
final de semana do mês corrente, e aproveitei para refletir um
pouco melhor sobre ela. Cheguei à conclusão de que se
trata de um evento ruim em sua base, apesar de ter assistido alguns
stand ups. É óbvio que é muito legal ter
uma porrada de shows para assistir e eventos para participar, alguns
dos quais verdadeiramente raros, como a feira gastronômica do
Minhocão. Mas, no todo, é um evento caríssimo,
de logística muito difícil, muita coisa improvisada na
última hora e que no final das contas possui um defeito
insanável: são tantos acontecimentos praticamente
simultâneos (mais de mil) que não há alcance possível mesmo dos mais preparados
atletas culturais de nossa cidade do que 10 ou 12
deles, forçando muito a barra. Por que isso é uma
idiotice? Porque o gasto não compensa a oferta final. Se um
evento desses fosse dividido em uns 40 finais de semana no ano,
teríamos a possibilidade de comparecer a muitos mais, além
do evidente ganho na facilidade de organização e seu
conseqüente barateamento. Em um paroxismo da utopia, um evento
circunscrito a um único final de semana poderia ser a reunião
de toda a produção cultural da cidade no ano,
fornecendo espaço para as escolas, clubes, associações
e correlatos exibirem para toda a metrópole o seu trabalho.
Sonho demais para nossos ilustres governantes.
Mas algo tratado
superficialmente pela mídia e pelas autoridades acabou por me
chamar muito mais atenção do que qualquer outra coisa.
Foi a morte de uma garota de 17 anos, vítima de
overdose. A menina tinha a idade da minha filha, de duas das minhas
afilhadas e dois afilhados. Uma balada que deveria ser um
acontecimento voltado para o entretenimento acabou por se tornar uma
tragédia, que tem significados profundíssimos, e que
serve para nos alertar sobre um problema de resolução
extremamente complicada, se possível.
Já tive oportunidade de tratar do assunto da morte inesperada por ocasião do falecimento da cantora Amy Winehouse, em dois textos. No primeiro, abordei a questão da pressão exercida pela fama e suas conseqüências. No segundo, mais aplicável ao caso, tratei da tragédia da morte na juventude, um acontecimento que rompe o transcurso natural e empobrece a humanidade como um todo. Queria ainda produzir um terceiro texto, abordando diretamente o tema da drogadição, mas não me considerei apto a fazê-lo naquele momento. A abrangência do tema é tão extensa que dá para escrever uma estante inteira, mas agora tentarei fazer algumas considerações mínimas.
Pois bem. Eu não
me iludo. A escalada no consumo de drogas tem mais a ver com o
progresso técnico do que com um suposto declínio moral
das sociedades, que não mudou tanto assim, afinal de contas. É
fácil compreender isso. Para tanto, voltemos no tempo.
Fazer
manteiga era um trabalho individual e demorado, em que eram
necessários litros e litros de leite, horas e horas de labuta
repetitiva e pouca garantia de sucesso para a produção
de uma só e pequenina barra, de qualidade nem sempre
assegurada e sujeita a adulteração em pouquíssimo
tempo. Idem para fabricar cerveja, por exemplo. Era necessário
plantar, aguar, adubar, ceifar, colher, separar, limpar, torrar,
maturar, moer, cozinhar, decantar, filtrar, corar, engarrafar,
escaldar, tapar, esperar, esperar, esperar... para ao final abrir a
garrafa e concluir que nada valeu a pena. Manteiga e cerveja hoje são
produzidas aos milhões, em um processo produtivo que envolve
máquinas modernas, com todas as variáveis controladas,
matéria prima rastreada e certificada, com datas de entrega precisas,
distribuídas eficientemente por todo o território
nacional e disponíveis na mercearia que fica a 50 metros de
sua casa. Todo esse processo se aplica à produção
em massa de substâncias entorpecentes, e recorri ao exemplo da
cerveja (gosto da Serramalte e da Original – excelentes) para
provar que isso não depende exclusivamente da licitude do
produto.
Quantidades industriais
+ droga barata=consumo incrementado. Dá para sentir a lógica
capitalista em ação?
Mas a culpa não
é só disso, óbvio. A humanidade sempre se
utilizou de substâncias que alteram o nível de
consciência. Álcool, maconha, opiáceos são
antiqüíssimos. A roda do capital, girada pela técnica
apurada apenas potencializa o usufruto e os efeitos. O xis da questão
é bem outro: por que a humanidade se droga?
Tem a ver com fuga,
hedonismo e curiosidade. Toda a lógica da insatisfação
humana já foi devidamente “dichavada” (epa!) por inúmeros
pensadores, inclusive com algumas minhas observações
(este, este e este), e só vou passar um pincelzinho nestas mal traçadas
linhas para ajudar na compreensão.
O ser humano tem uma
necessidade irrefreável de buscar o prazer. Essa necessidade é
tão premente que não importa muito se os paraísos
gerados são reais ou artificiais. O que importa é a
realização do desejo. Isso porque há muita coisa
em jogo quando essa busca tem o significado de dar uma motivação
à vida. Trabalhamos demais no plano do simbólico, e
esquecemos muitas vezes de racionalizar nossa ação. A
busca pelo prazer requer satisfação imediata, deixamos
de calcular toda a frustração que será gerada ao
se encontrar com os pés no chão e diante do espelho. E
encontramo-nos a frente do segundo problema, conseqüência
direta do primeiro por oposição também direta a
ele: não conseguimos lidar eficientemente com nosso
sofrimento. Não quero aqui fazer confrontos com Nietszche e
seu carpe diem, nem preconizar princípios cristãos
de reconforto na vida futura, mas o fato é que não há
mais valor em sofrer, mesmo que seja como aprendizado. Concordo
plenamente que é melhor não padecer, mas o problema
principal é que isso é absolutamente inevitável.
Só que vivemos em uma sociedade hedonista, e muito distinta do
sentido imaginado por Epicuro, para quem o prazer era, por assim
dizer, passivo. Ou seja, o prazer se dá na ausência da
dor. Isso importa em dizer que o epicurismo e o estoicismo são
quase que gêmeos – a melhor maneira de não sofrer é
não “ligar” para a dor.
Saber reagir à
dor tornou-se cada vez mais difícil, porque ela assumiu em
estatuto de inaceitável, incompatível com a vida. As
pílulas são, nesse sentido, um eficaz lenitivo para
quem não consegue administrar sua própria realidade,
quando ela não é tão próxima do ideal. Só
que o ideal de realidade não passa disso: um ideal. É
preciso saber se encontrar depois de se perder, mas o artifício
da alteração da percepção induzida pelas
substâncias entorpecentes não soluciona o problema.
Antes disso, causa novos, muito piores.
Mas como encontrar na
drogadição um eixo de alívio para as dores
típicas da sociedade moderna? Como se iniciar nesta tão
pouco nobre arte? Simples: misto de curiosidade e auto-afirmação.
É tão fácil encontrar uma pedra que qualquer um
pode experimentá-la, e concluir que seu efeito vem ao encontro
de nossa vontade de fuga e/ou satisfação de desejos.
Além disso, o consumo é um distintivo da independência.
Há um momento em nossas vidas (especialmente na juventude) em
que queremos testar todos os valores que nos foram repassados por
nossos ancestrais, sendo que os mais diretos, obviamente, são
nossos pais. Passamos a contrapor todos esses valores e verificar o
quanto de liberdade e autossuficiência nos são
propiciados com essa ação. Essa verificação
se dá pela reação dos genitores. Quanto mais
contundente, mais a experimentação tem reflexos
efetivos. A possibilidade de quebrar a cara é imensa, mas faz
parte de nossa formação. O grande busílis é
que, ao penetrar neste arriscado terreno, podemos falsear o passo e
nos afundar na areia movediça, porque são substâncias
químicas viciantes, extremamente prejudiciais. Uma pessoa que
se drogou uma ou duas vezes na vida terá apenas as histórias
para contar, mas quem dá a garantia de que eu, em minha
experiência individual, não mergulharei em um vórtice?
Por fim, há
ainda algo mais a comentar. Temos uma legislação
extremamente dúbia com relação ao consumo de
drogas. Ela condena o tráfico e descriminaliza o consumo, o
que é um grande paradoxo. A lei proíbe tanto o roubo
quanto a receptação do objeto roubado, mas esta lógica
não é seguida neste caso, nem que seja para se obrigar
o tratamento. Há pressão cada vez maior para uma
liberação mais acentuada com relação ao
vício, mas é preciso levar em conta que essa posição
traz um problema sério: haverá uma eterna continuidade
no financiamento de uma atividade ilícita, por mais que o
usuário seja vitimizado. E, neste caso, parece a mim que temos
uma grande hipocrisia, que não é colocada abertamente
por conta de uma postura pseudo-ética. O fato é que o
consumo de drogas é, antes de mais nada, um NEGÓCIO.
Sabemos que os limites da livre iniciativa são difíceis
de serem estabelecidos, e que os ciclos econômicos costumam ser
marcados pela busca desenfreada de novos campos de negócio, de
saturação e de retração. Não é
demais supor que haja grandes corporações interessadas
em explorar um nicho que, até o momento, está no campo
da ilegalidade. Assim, teríamos um ou dois fabricantes
autorizados a produzir substâncias a serem vendidas com fortes
restrições, que seriam laceadas na medida em que a
sociedade passaria a aceitar com menor ojeriza essa presença
já não tão incômoda. É uma questão
para ser pensada com enorme delicadeza, porque envolve um mecanismo
social produzido por nós mesmos, ainda que inconscientemente.
Recomendações
de leitura:
Thomas de Quincey é um escritor inglês que conheceu de perto o problema do consumo de drogas. Caiu nesse mundo ao tratar de nevralgias com ópio. Tentou de todas as formas se livrar do vício, sem sucesso. Escreveu esse livro para descrever o efeito da substância em seu raciocínio e em seus sonhos, tornando-o um exemplo bem acabado das distorções psíquicas causadas por esse consumo, o que o torna muito recomendado.
QUINCEY, Thomas de.
Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: L&PM,
1982.
Após ler o livro
anterior, pode ser interessante observar a obra de Baudelaire na qual
é feita uma análise da obra de Quincey, onde é
feita uma análise sobre a instalação da
dependência e sua interferência no caráter do
usuário, de maneira bem pouco afeita ao moralismo então
reinante.
BAUDELAIRE, Charles. Um
comedor de ópio. Rio de Janeiro: Newton, 1996.
Uma última
observação: temos uma efeméride neste blog. Ele
está fazendo um ano. Gostaria de ter chegado, nesta altura do
campeonato, a uns 100 textos. Não consegui chegar nem na
metade, mas a experiência é gratificante, já que
tenho observado uma curva ascendente em suas visualizações.
Gostaria de agradecer a todos os que colaboraram, curtiram,
compartilharam e comentaram. Beijo para todos.