Clique aqui para ler as outras folhas do diário de bordo
Pois muito bem. Na manhã seguinte à minha estadia em Queluz
(relato aqui), decidimos, meio de repelão, tomar rumo pela rodovia dos
Tropeiros (SP-68). Esta estrada, carregada de história e que já serviu um dia
para ligar os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, contém em seu trajeto uma
série de pequenas cidades que fazem parte do assim chamado “Vale Histórico”, e
foi construída no caminho natural que os tropeiros encontraram pela sua frente
para conduzir suas cargas. Estas cidades experimentaram seu apogeu entre os
fins do século XIX e começo do século XX. Uma série de fatores históricos e
geográficos levaram todas à decadência, e não foi diferente com nosso segundo destino.
Quando comparada a Queluz, a primeira impressão que se tem é
a de que Silveiras conseguiu permanecer mais bem conservada. Algumas coisas
motivam isso: Silveiras é mais isolada, já que seu centro urbano não margeia a
via Dutra; este também foi levantado em uma pequena planície em meio ao vale, o
que facilita a construção e a consequente manutenção das construções. Por fim,
o tráfego maluco de caminhões levando toras de madeira é infinitamente menor.
Desta forma, a cidade é bastante agradável em sua arquitetura simples, com um
casario bastante significativo de tempos passados.
Dentre todas as cidades que visitei na turnê, Silveiras é a
que mais se dedica a preservar a identidade de rota de tropeiros. Em inúmeros
pontos, é possível encontrar referências a esta característica, como, por
exemplo, podemos ver na parede abaixo...
... na praça histórica da cidade...
... ou no seu principal centro de cultura, o Espaço Nenê
Emboava...
... um belíssimo casarão em excelente estado de preservação.
No seu piso superior está situada a Fundação Nacional de Tropeirismo, e é onde
acontecem as reuniões de interesse geral da municipalidade (no dia em que eu
estava lá, acontecia uma reunião contendo pauta de reivindicação dos moradores
da área rural)...
... e no piso térreo, de onde é possível observar toda a
estrutura de sustentação do prédio, são mantidos os objetos históricos da
cidade...
... inclusive algumas fotos e pertences dos revoltosos da
constituinte. Pouco é divulgado, mas como Silveiras ficava no meio do caminho
entre São Paulo e Rio de Janeiro, além de ficar muito próxima ao sul de Minas
Gerais, foi palco dos combates de duas importantes revoltas: a Revolução
Liberal de 1842 (que chegou a destruir quase completamente as construções da
cidade) e a Revolta da Constituinte de 1932, onde foram formadas algumas das
mais encarniçadas trincheiras, como podemos ver na foto do cartaz abaixo:
Como não poderia deixar de ser, Silveiras tem a sua igrejona
na praça principal da cidade, com o seu coreto e suas flores:
Mas há uma peculiaridade que eu não conhecia. Quase no
início da rodovia dos Tropeiros, há um santuário bem mais visitado do que
todo o restante da cidade, dedicado à Santa Cabeça de Nossa Senhora. A tal
parte foi localizada por um pescador no rio Tietê, e foi parar em Silveiras nas
mãos de um gaúcho que se encontrava a caminho do Rio de Janeiro. Foi dada a uma
senhora que a depositou em um lugar decente de sua casa. Aos poucos, a cabeça
foi pegando a fama de milagrosa, e foi transferida para essa igreja, construída
especialmente para ela. Está inserida em um altar, acima de dois anjos que a
sustentam. Acho que vale a pena conhecer.
Bom, mas o forte mesmo é o artesanato, como ocorre com
outras cidades da região. Porém, aqui, temos como especialidade principal: as
peças de madeira. Um exemplo bastante significativo são estes pilões e suas
respectivas mãos, escavadas diretamente dos troncos:
Também são produzidos vários animais da região, como araras,
corujinhas, galinhas e outros. As lojas de artesanato existem em profusão.
Não só a venda, mas a própria produção de artesanato é
ensinada no lugar. Um dos mais interessantes é a artesã que dá suas aulas no
coreto da praça da igreja, ao ar livre e a preços módicos.
Silveiras respira destas duas atmosferas: os tropeiros do
passado e o artesanato do presente. Adquiri estas duas simpáticas pecinhas, que
bem representam essa fusão: um burrinho de tropeiro com sua carga e um carro de
boi, ambos feitos de madeira escavada a faca, com a utilização de palha para os
adornos.
A loja onde comprei estes dois simpáticos artigos pertence
ao Josadir. Trata-se de um carioca simpaticíssimo, descendente de alemães, que
trabalhou na CSN, em Volta Redonda. Convidou-nos para um café, e pudemos
conhecer seu depósito e sua oficina, cômodos de sua casa. Perguntei o porquê da
opção pela mudança de ramo. A resposta foi interessante. Além da óbvia paz de
espírito proporcionada por uma cidade menor e um trabalho menos extenuante (o
trabalho nas siderúrgicas é um dos mais insalubres quem existem – altas temperaturas
e excesso de partículas são uma constante), Josadir nos contou que o
envolvimento com o artesanato aumentou sua sensibilidade.
Ora, isso parece uma prerrogativa estética. Mas o artesanato
pressupõe repetição e produção seriada. Artesanato pode ser considerado arte? Vamos
ver.Em primeiro lugar, vamos utilizar uma perspectiva dialética.
Vamos defender a tese de que o artesanato NÃO pode ser considerado obra de
arte. Para tanto, vamos imaginar a seguinte dicotomia: prazer-utilidade. Não há
dúvida de que uma peça de artesanato tem a possibilidade de nos causar uma
sensação estética, positiva ou negativa. Mas olhamos para as oficinas e vemos
centenas de peças semelhantes, fabricadas a partir de moldes e até mesmo com
algum grau de especialização. Não temos aqui a liberdade do artista colocada em
prática. É uma fábrica, como são as montadoras, as olarias, as cordoarias, as
siderúrgicas, cada uma com sua escala. A peça já não interessa pelo que ela tem
de belo, mas pelo que ela tem de útil, já que produz riqueza e faz circular
dinheiro. Essa visão, tão cara ao capitalismo, é o que chamamos na Filosofia de
pragmatismo.
Os principais expoentes desta doutrina epistemológica são
William James e John Dewey, mas vamos deixá-los para instante mais propício.
Neste momento, é melhor se ocupar de Charles Sanders Peirce, estadunidense que é
considerado o criador do termo. O pragmatismo é contrário aos devaneios
metafísicos que ficam circundando o debate filosófico praticado até seu
surgimento, em meados do século XIX. Para esta escola, importa o que o mundo
tem de prático, as coisas em sua utilidade. Um belo exemplo é dado pelo próprio
Peirce aos seus alunos: uma tese sobre a dureza dos diamantes. A afirmação “todo
diamante é macio até ser tocado” tem conformidade com a lógica. Mas é possível prová-la?
A resposta é não. E que diferença ela faria? Um diamante é utilizado
basicamente como adorno ou como ferramenta de corte. No pescoço de uma mulher,
sua finalidade é estética, não tem a necessidade de ser tocado, mas de ser
visto; portanto, não faz diferença se ele é duro ou macio. Em seu uso como
ferramenta, o toque no objeto a ser cortado é premissa necessária. Se a tese do
diamante macio estiver correta, o que interessa é que, no momento do uso, o
diamante estará duro. Portanto, se em algum momento de sua existência um
diamante é macio, pouco nos importa. Todas as suas teses sobre a sua maciez não
tem significado, já que nunca são apresentadas concretamente a nós.Falando pragmaticamente, portanto, temos o artesanato visto
em sua utilidade como um meio de vida. Isso é comprovado ao observar a
repetitividade na reprodução das peças e na escolha dos produtos que mais
atraem a clientela. O artesanato não é livre como deve ser a obra de arte.
Ok. Mas será que tudo isso exclui a criatividade? Será
impossível reconhecer valor artístico na obra de artesanato? É bem verdade que
a vida de um artesão se baseia na repetição de sua produção, mas não se resume
a isso. De uma junção da escolha dos materiais que dão suporte ao seu trabalho,
da opção e até mesmo da criação de uma ferramenta para a confecção das peças,
da observação da realidade e da história que o circunda e principalmente da
originalidade da ideia e da abstração expressa na obra criada, podemos enxergar
um disparar de sensações que atingem seu objetivo estético: produzir
conhecimento sensível. Pensem em quanta informação há em uma peça de
artesanato: No burrinho e no carro de boi temos um dado histórico, a prática
do tropeirismo. Temos uma informação geográfica, já que a utilização de burros
é uma prática típica de regiões com relevo acidentado. Temos uma informação
botânica, já que são usados como suporte madeira e palha disponíveis na região.
Temos informações da região e do próprio artesão – o seu mundo, visto como ele
mesmo vê. E disso tudo brota uma sensação estética, a expressão de uma ideia,
que é a base da conceituação da obra de arte. O artesão primeiramente cria,
para depois reproduzir. E o que importa no caso é se a peça de artesanato é
capaz de causar a sensação estética.Harold Osborne, crítico de arte e filósofo da estética
britânico, afirma que a verdadeira apreensão estética se dá com o
maravilhamento, que progressivamente afasta o observador de todo o mundo que o
rodeia. A experiência estética é, dessa forma, um movimento em que o isolamento
é total. O observador já não se ocupa de nada além de sua própria sensação, nem
mesmo o próprio objeto de arte é percebido, mas apenas a sensação que perpassa
dele para quem o capta, que é a ideia que ele transmite, de forma pura. A
seguinte frase resume otimamente essa sua tese:
“A atitude estética caracteriza-se pela concentração da
atenção (que separa o objeto percebido de seu entorno), pela suspensão das
atividades analíticas e discursivas (ignora o contexto social e histórico),
pelo desinteresse e desprendimento (afasta preocupações passadas e futuras) e,
enfim, pela indiferença à existência do objeto.”Disso tudo, chego a uma síntese que me permite concluir que
o artesão, ao expressar suas ideias, na criação do protótipo de seu artesanato
(que, no final das contas, é seu ganha-pão), é um autêntico artista, a despeito
do objetivo pragmático de sua produção. Afinal de contas, assim como a
neutralidade científica é um mito, também o desinteresse artístico o é. Mas
isso, isoladamente, não tira a criatividade e a capacidade de produzir o
espanto e a admiração que as mãos humanas têm ao moldar o objeto estético.
Recomendações de leitura:
Osborne apregoava que a grande experiência estética era uma
total absorção do sujeito pelo objeto de arte. Interessante. É possível ler
muito mais no livro abaixo:
OSBORNE, Harold. Estética
e teoria da arte. São Paulo: Cultrix, 1978.As doutrinas de Peirce até hoje são adotadas no modo de
aplicar o capitalismo e o pensamento geral nos Estados Unidos. Para
compreendê-lo melhor, indico a obra abaixo:
PEIRCE, Charles S. Semiótica
e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975.
Nenhum comentário:
Postar um comentário