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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Pequeno guia das grandes falácias - 33º tomo: a divisão

Olá!


A lei seca é algo controverso para muita gente, mas que não me causa nenhuma espécie de restrição. Tanta gente morreu ou ficou mutilada por conta dos excessos do álcool que não há como não defender uma fiscalização rigorosa em nossas ruas e estradas. Acho até mesmo que o poder público deu uma afrouxada nas cordas nos últimos tempos, principalmente se levarmos em conta que são sabedores dos locais e momentos onde a galera costuma dar uma esquiada fora da barra. Passons. Melhor ter a lei do que não a ter.

Em meu reduto, não somos abstêmios, mas não gostamos de encrencas. Isso não nos impede também de ter plena consciência de que o álcool prejudica os reflexos e torna-nos mais predispostos a fazer merda. Portanto, unindo o medo das cominações legais com a busca de tornar a obediência à lei um autêntico ato ético, adotamos em minha casa o famoso e desejável conceito de “motorista da vez”.

Tudo isso para dizer que, não sendo eu o motorista de uma determinada vez, estava sentado no banco de trás do carro, enquanto meu filho plenamente sóbrio conduzia la macchina. No rádio, músicas de décadas passadas, de uma dessas estações de rádio especialistas em determinados nichos, que eram pouco percebidas dada a animada tertúlia que se estabelecera. No entanto, a audição é uma coisa fina (efeito coquetel), e lá pelas tantas captei os acordes diáfanos da introdução de uma música conhecida: “Primeiros Erros”, do Kiko Zambianchi, sucesso nos anos 80. Relembro de quantas vezes ouvi e toquei essa música na juventude. É muito simples e bonita, com um dedilhado batidinho sem perder a delicadeza, uma construção de contrabaixo interessante e uma letra triste e desesperançada. Segue abaixo (mesmo que seja muito conhecida):

Meu caminho é cada manhã
Não procure saber onde estou
Meu destino não é de ninguém
E eu não deixo os meus passos no chão

Se você não entende não vê
Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende

Se o meu corpo virasse sol
Se a minha mente virasse sol
Mas só chove, chove
Chove, chove

Se um dia eu pudesse ver meu passado inteiro
E fizesse parar de chover nos primeiros erros
Meu corpo viraria sol, minha mente viraria ar
Mas só chove, chove, chove, chove

Depois de amadurecer e começar a ler Filosofia com mais frequência, pude enxergar nesta música uma certa síntese entre os dois principais filósofos voluntaristas, Schopenhauer e Nietzsche. Essa história de “meu caminho é cada manhã, não procure saber onde vou...” é uma visível transposição do amor fati nietszcheano (vide), enquanto a conclusão pessimista do “mas só chove” parece ser gritada por um bardo schopenhaueriano (vide mais este).

Fiquei nostálgico, e me pus a tentar relembrar das demais músicas do repertório do dito cantor. O esforço recordativo em uma mente razoavelmente inebriada não costuma gerar resultados muito prolíficos, mas eu não estava bêbado. Não consegui me lembrar de mais nenhuma, o que conduziu a alguma pesquisa, nestes tempos de mais Google e menos Barsa.

O resultado foi um pouco decepcionante. Grandes vácuos na carreira, algumas variações de estilo, mas, no corpus, repertório composto de popzinhos dançantes, letras menos consistentes, sonzinhos comerciais. Nada contra, mas também nada tão marcante. Músicas como “Rolam as Pedras” e “Choque” tocaram prá caramba, lembrei depois, mas o meu esquecimento é prova de que, ao menos para mim, eram mais do mesmo que se praticava na década de 80. No conjunto total da obra, a música aqui transcrita vira uma espécie de pequena pérola em meio às contas de plástico.

Resumindo a ópera: de um conjunto total não muito profundo, temos algo que reluz em seu meio. Visto no todo, não há como deduzir que há uma pequena parte muito relevante. E, se dissermos que, na obra de Kiko Zambianchi temos algo comum e corriqueiro, estaremos desprezando o fato de que, isoladamente, temos uma obra-prima.

Essa é a base da falácia da Divisão: acontece quando justificamos características para uma determinada parte tendo como base as características de um todo. Ou seja, quando se infere que aquilo que é verdade para o todo o é também para as partes, sem que haja uma justificativa válida para isso.

O exemplo de um quebra-cabeça é muito didático para entender a divisão. Estando todo montado, teremos uma figura bem constituída à nossa frente: um horizonte, uma paisagem, um carrão, uma pessoa bonita. Vistas isoladamente, cada uma das peças não guardam a beleza da figura montada. Podem até ser feias. Por isso, a qualidade do todo não reflete obrigatoriamente a qualidade da parte. É o exato oposto da premissa da composição, que diz que a excelência das partes assegura a excelência do conjunto.


O pensamento que engendra a falácia da divisão é perigoso, tão perigoso quanto o que ocorre com a composição. Enquanto na composição imaginamos que o hábito ruim de um componente do grupo é motivo suficiente para achar que há uma “contaminação” de todo o grupo, aqui temos o inverso, o que é igualmente pernicioso. Quando, por exemplo, Hitler ascendeu ao poder, foi com o apoio da população alemã. Em vista de seu governo inicialmente bem sucedido, este apoio aumentou cada vez mais, de forma que ações mais e mais absurdas foram sendo absorvidas e aceitas como legítimas, ao ponto de se chegar ao holocausto, a irracionalidade em seu estado de arte.

O povo alemão legitimou um governo tirânico e violento (mas democraticamente eleito), e, pela falácia da divisão, poderíamos dizer que cada alemão é igualmente violento. Mas a parte não é miniatura do todo. Mesmo dentro do governo, não havia consenso generalizado de que as ações de Hitler eram justificáveis, como podemos ver no excelente filme biográfico “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg. É a história de um industrial alemão, membro do partido nazista, que usa e abusa de influência e suborno para obter vantagens para seus negócios, mas que, por outro lado, é responsável pelo salvamento de mais de mil judeus do campo de concentração.

Isso é mais do que o suficiente para demonstrar que o povo alemão não é expressão suficiente para traduzir as ações de seus indivíduos. Mesmo que reduzamos o alcance inicial, e digamos que todos os membros do Partido Nazista são cruéis porque o Partido Nazista é cruel, ainda assim praticaremos a falácia da divisão, como bem resta demonstrado no exemplo acima. Mesmo que a tirania seja produtora de cegueira, sempre haverá quem pense fora da caixa a duras penas, como o Oskar Schindler do filme.

Tecnicamente, assim como a composição, a divisão também é um erro categorial, ou seja, a parte tomada pelo todo somente pode ser aceita como figura de linguagem, mais especificamente a sinédoque*. Caso isso não ocorra, a correlação não se aplica. Por exemplo, na frase “precisamos de braços para trabalhar”, se levada ao pé da letra, será absurda. Que faremos nós com um monte de braços à nossa disposição? Inaugurar um cemitério? O que precisamos, de fato, é de trabalhadores, e não somente a sua parte mais ativa no processo laboral. Falando em braços, pensamos em trabalho físico. Se fosse intelectual, falaríamos em cérebros, entendeu?

Mas é evidente que nem sempre a divisão é falaciosa. Se afirmarmos que uma determinada igreja tem estilo barroco, sendo que suas partes e componentes, como campanário, altar, pilastras são igualmente barrocas, poderemos tomar confortavelmente as partes pelo todo. Do contrário, teríamos uma igreja em estilo eclético. Bem evidente, neste caso, que há uma justificativa para dizer que tanto o todo quanto as partes compõem um mesmo estilo.

Através deste exemplo acima, podemos perceber que a falácia da divisão se aplica a dois tipos diferentes de escopos: um, voltado a algo que, uma vez dividido, perde suas características, mas que o argumento procura manter; outro, para um grupo de integrantes que, em união, possuem uma determinada característica, mas que, uma vez dissolvidos, não a mantém. Para o primeiro caso, digamos que uma ferramenta de aço tem a propriedade de furar concreto. O mesmo não é verdade se a tivermos toda rompida - as partes de uma ferramenta não conseguem atingir um objetivo se dissociadas. Para o segundo, podemos imaginar que um corpo de cientistas dá conta de explorar todas as áreas disponibilizadas em uma universidade. Se isso é verdade para o conjunto, não vale para cada um dos cientistas isoladamente, haja vista que um é da área de Física, outro de Química, e assim sucessivamente.

Recomendação de filme:

Como seria óbvio supor, recomendo o filme "A Lista De Schindler". É preciso um pouco de fôlego para assisti-lo, não só pelo seu tamanho (mais de três horas de duração), mas pela recordação de episódios históricos que, de tão cruentos, parecem irreais.

SPIELBERG, Steven. A Lista de Schindler. Filme. 1993. P&B e Colorido. 195 min.


*A sinédoque é um tipo especial de metonímia, que é uma figura de retórica onde a parte é tomada pelo todo em uma relação de contiguidade, como ocorre no exemplo dos braços (parte) substituindo os trabalhadores (todo).

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 7ª mirada (3ª parte): São Luiz do Paraitinga - A Religião e a religiosidade - o distrito de Catuçaba

Olá!


Conforme eu disse quando comecei a falar sobre São Luiz do Paraitinga, não iria cair na tentação de acabar logo com as miradas desta cesta da gávea, e que trabalharia com mais partes. O distrito de Catuçaba merece sua atenção especial, mesmo pertencendo à municipalidade logo atrás mencionada, o que farei a partir de agora.


Catuçaba tem a estrutura típica de uma pequena cidade do interior: um pequeno núcleo urbano rodeado por imensidões de verde, principalmente plantações e pastagens. Temos aqui uma série de estradinhas de terra que conduzem para algumas fazendas históricas, e para inúmeras cachoeirinhas. Acho que a mais conhecida de todas é da do seu Renô (não sei como se escreve, vou manter um espelho da dicção), que lhe empresta o nome.


Trata-se de uma queda relativamente pequena, de uns 30 metros, e que tem um leito bastante acidentado, o que exige algum tipo de cuidado com crianças...


...porque dá muita tentação em pegar um dos seus veios laterais e fazer de tobogã...


... e desaguar de bunda no remanso final, todo fundeado de areia.


O principal rio da região é o Ribeirão do Chapéu, do qual as águas do seu Renô fazem parte. A água aqui não é tão gelada, o que colabora com as atividades contemplativas, um lugar muito calmo. Tendo o formato de um vale, a impressão que se tem é de um certo isolamento, mesmo ficando a poucos metros da entrada do sítio.


Rápido registro para quem gosta de futebol. A região é inundada por quero-queros (queros-queros? Queros-quero? Os quero-quero? Os quero-queros?), o pássaro tão típico dos nossos campos, que sempre arriscam suas penas durante as partidas do esporte bretão.


Mas quem é o tal do seu Renô? É o dono dessas paragens, um senhor de 90 e poucos anos que, por si só, já é uma atração. Ele não cobra nada pela visitação, apenas pede que os frequentadores colaborem com o comércio local, o que parece justo. Ele mesmo tem um bar anexo à sua casa, no alto da colina que ladeia a cachoeira.


Tirei uma foto dessa homenagem que está pendurada em uma das paredes do boteco, que serve uma cachaça forte, que a patroa defendeu com maestria e desenvoltura. Ele mesmo serviu pessoalmente a gente, com azeitonas e amendoins, e sentou para nos contar umas histórias.


Seu Renô é um dos principais agitadores culturais da região, mantenedor de tradições (como a folia de Reis e a Cavalhada) que não fecha os olhos para a modernidade. Pode parecer incrível, mas, no dia da nossa visita, estava sendo preparado um palco para um pequeno festival, que tinha como principal atração o músico conhecido como Ventania, além de uma banda do distrito e da cantora luizense Patrícia Guimarães...


Para quem não conhece, Ventania é uma espécie de miscigenação da estética bicho-grilo de Raul Seixas com o conteúdo lisérgico de Marcelo D2. Pessoas da cidade, como a Neca Junqueira ou a Thais do Binidito, juram de pé junto que o seu Renô não sabe exatamente quem é Ventania. No entanto...

Com relação à comunidade citadina, que se formou ao redor da antiga estrada que levava a Cunha e Paraty, é um aglomerado em que habitam cerca de 800 pessoas, em área cercada por montanhas. Como tal, há escadas com todo tipo de degraus.


Apesar do conteúdo histórico das edificações, não há nada com tanto destaque quanto ao centro da sede. São casas simples, muitas relativamente novas, com calçamento recente, e com umas jardineiras em construção. Possui um comércio bastante incipiente, na base do um de cada tipo: uma padaria, um restaurante, um açougue, um mercadinho, um boteco (mais de um, é bem verdade).


O destaque vai para o complexo composto pela igreja de São Pedro, de onde se conta que vários combatentes da Revolução de 32 ficaram escondidos por ocasião das batalhas. Aqui, muitos dos pracinhas deixaram seus registros rabiscados nas paredes.


No adro, fica também o prédio do velório da localidade...


... porque, logo atrás da igreja, fica o cemitério do distrito. Em suma, quase todo o dispositivo religioso fica concentrado num só lugar.


Na ladeira de pedras à frente do adro da igreja, duas curiosidades: uma capelinha de pedras em homenagem a Nossa Senhora Aparecida...


... e o posto da primeira linha telefônica instalada em Catuçaba, que aconteceu em dezembro de 1981. Vão-se 35 anos de sua instalação, mas isso mostra uma defasagem de mais de 100 anos em relação à primeira linha do estado de São Paulo (132 anos) e do Brasil (139 anos). Nestes tempos de celulares múltiplos, imaginem o que era não existir nem um telefone público...


Finalmente, no alto do outeiro e ao lado da igreja, fica a casa e fábrica Senza Rivale, que produz artigos religiosos em tecido de todo tipo. Trata-se de uma casinha com uma oficina anexa, construída no pavimento superior. A entrada da fábrica é a sala de estar da família. E o recepcionista/campainha é um cachorrinho felpudo.


Sob o comando do seu Valdemar e família, são feitas roupas de alta qualidade para atender as demandas dos cultos católicos, que, como se bem sabe, é bastante complexo em suas necessidades litúrgicas.


São aplicações de filigranas a mão, bordados, pinturas de pincel finíssimo, feitos em estolas, toalhas, casulas, conjuntos de altar e tudo o mais. Conheci muitas oficinas de costura, mas essa aqui prima pelo detalhe.


Foi inevitável o afloramento de reminiscências da infância, de quando minha mãe costureira se debruçava sobre sua máquina de costura madrugadas adentro, ocupando a sala e a cozinha à guisa de oficina. Mesas de comer eram tábuas de corte, cadeiras eram cabideiros, mesmo a tevê era estante para armazenar fazendas. Ela utilizava uma máquina praticamente idêntica a essa primeira.


Outras coisas era preciso fazer fora, como o trabalho de tinturaria. Minha mãe não tinha o pesado e escaldante ferro a vapor, para delinear todos os vincos com perfeição.


Pela oficina há ainda muitos acessórios que tantas vezes corri atrás, alguns difíceis de achar, como essa carretilha de marcar molde, além de giz, lápis, agulhas, carretéis de todas as linhas, vieses, forro, entretela, zíper, etiqueta, botão, aplicação de ilhós, cadarço, passador de elástico, lantejoulas, colchetes, rebites, fitilhos, etc e etc.


A oficina no seu Valdemar e a cachoeira do seu Renó são dois locais para o exercício de uma mesma característica humana: a religiosidade. Mas apenas um é lugar de religião. Vamos entender isso, desde já combinando que religiosidade e espiritualidade serão tratadas aqui como sinônimos.

A melhor exemplificação que já ouvi de religiosidade até hoje veio de um padre, o frei Anacleto Gapski. Em um de seus sermões, ele dizia algo mais ou menos assim:

“Os antigos gregos olhavam para o céu e viam nas estrelas as aventuras e desventuras de seus deuses e heróis. Viam as coisas que lhes alegravam e lhes afligiam. Viam arte, história, origens e destinos. Viam cães, ursas, dragões, cisnes, pavões... Viam a natureza e a obra humana. Hoje nós olhamos para o céu e – pobres de nós – não vemos nada a não ser pontos brilhantes espalhados por todos os lados. Isso quando a luz artificial das cidades nos permite vê-las. Os gregos tinham uma espiritualidade que nós perdemos”.

Percebam como esse discurso é crivado de uma religiosidade desligada da religião – que, no caso do frei Anacleto, frade franciscano, é a cristã. Percebam como pode ser aplicado em uma igreja, em uma sinagoga, em uma mesquita, em um terreiro, em um centro, em qualquer templo, e até mesmo fora deles. O mesmo se dá, em mais um exemplo, a alguns escritos próprios de determinadas religiões. Sabemos que São Paulo era mais rigoroso que o próprio Jesus na prescrição de regras à sua comunidade, e que, de certa forma e por isso mesmo, acabou moldando muito do Cristianismo subsequente. No entanto, quando observamos o capítulo 13 da primeira carta aos Coríntios, mais conhecido como Hino ao Amor (celebrizado na música Monte Castelo, do Legião Urbana- “Ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria”), notamos que seu alcance é universal, aplicável praticamente a toda e qualquer religião, e mesmo fora delas. É tanto um texto da religião, quanto da espiritualidade, porque não é preciso ser cristão e nem mesmo religioso para sentir um certo enlevo ao ouvir essas palavras, como quem ouve uma música, embriaga-se com um perfume, admira o céu estrelado ou contempla uma cachoeira e se banha em suas águas.

A religiosidade é uma espécie de intuição sobre algo que transcende os sentidos humanos. Talvez o nascimento desse sentimento seja algo semelhante ao seguinte: o homem tem a dimensão de si próprio e do ambiente que o circunda. Neste ambiente, ele enxerga coisas cada vez maiores e cada vez mais distantes. Observa raios e relâmpagos nos céus, ouve trovões, vê as fases da lua, as marés que sobem. Tudo isso implica em uma normalidade de suas relações com o mundo. Mas eis que, numa noite especialmente clara, ele vê uma esfera pouco a pouco tapar a lua. Muito tempo depois, vê o sol ser obscurecido em pleno dia, de forma a haver uma inversão com a noite por alguns minutos. Em outro momento, há um gigante que singra o céu noturno, com sua impressionante e tenebrosa cauda. Vê as águas dos mares ficarem avermelhadas, quase sanguíneas. Hoje nós sabemos que isso são eclipses da lua e do sol, um cometa e proliferação de algas, mas o homem primevo não tinha instrumentos ou saberes para detectá-los. Ainda assim, sentimo-nos tocados ao presenciar esses fenômenos. O homem se sente parte de um todo, mas não conhece esse todo, que lhe suplanta a capacidade de observar. Essa totalidade, ele crê, é aquilo que está imanentemente na natureza somado àquilo que a transcende, um campo inatingível pelos sentidos, mas que pode dar algum sentido e explicação aos fenômenos que lhe escapam, o sobrenatural. Crer no sobrenatural faz com que o homem se previna: fugir de raios, esconder-se do sol a pino, não dar bobeira com certos animais, todos esses fatores ligados a deidades subjacentes. Biologicamente, faz todo o sentido que estas atitudes auxiliem na sobrevivência.

Dá para notar que a religiosidade atua no nível do indivíduo. Cada pessoa que se sentir um componente universal ao se refrescar nas águas de uma cachoeira o fará de modo pessoal. As intuições estarão aguçadas: uns sentirão seu corpo se esvair nas águas, outros vão perceber a alma sendo lentamente lavada de suas idiossincrasias, e muita gente simplesmente se sentirá molhada apenas. Esse tipo de coisa é muito válido para quem tem algum tipo de sentimento de integração, mas é muito mais complexo unificar essa percepção comunitariamente. Esse é um dos pontos que faz nascer a religião.

A religião é a institucionalização de uma forma determinada de exercer a religiosidade. Já não é aqui o indivíduo que rege a intuição, mas a figura do sacerdote que aparece para representar a comunidade através do rito. Esse rito não é espontâneo: toda religião possui uma liturgia própria, um conjunto de regras estabelecido pela tradição ou pela hierarquia (ou, mais raramente, pelo consenso). Ou seja, uma religião regida pela liberdade de suas regras tem dificuldade em se estabelecer como tal. Quanto mais sistematizada, melhor a distribuição das normas. O rito católico, por exemplo, é mais uniforme que os das religiões de matriz africana, pelo fato de todas as suas prescrições serem baixadas em estatutos escritos, por autoridades reconhecidas como tal. O mesmo ocorre com o Judaísmo e o Islamismo, outras religiões de livros. Atenção: não estamos falando nem de capacidade de portar verdade, nem de que uma está mais certa do que a outra, nem de que as prescrições de normas no rito são boas ou ruins, ok? É apenas um dado e um exemplo.

O espectro da religiosidade é imensamente mais amplo que o da religião, começando pelo fato de ser inerente à espécie humana. Em praticamente 100% dos povos e etnias existe uma narrativa de criação. Ao que eu sei, apenas um determinado povo amazônico, os pirahãs, não a desenvolveu, por algum motivo difícil de detectar. Mas tanto religiosidade quanto religião podem produzir um efeito que chamamos de catarse. É um termo oriundo da tragédia grega (da qual falei neste texto), que dá epílogo ao seguinte processo: entre a essência do nosso ser e a nossa efetiva existência existe um nível de descompasso. Isso é produzido por paixões, vícios, traumas ou doenças que desnaturam o ser. A catarse representa a supressão da causa do descompasso e da reaproximação entre a natureza do ser e sua existência no mundo. Isso pode ser uma cura, a purgação de um pecado, o perdão de uma culpa, etc. O efeito catártico da religiosidade pode ser o sentimento de se “lavar a alma” na cachoeira do seu Renô ou de se observar o longo processo da produção de uma peça sacra na casa do seu Valdemar.

Notem que tudo isso escapa a uma sistematização das religiões e até mesmo de um deus. Como diria Jung, a religiosidade é uma construção arquetípica (vide este texto), que já nasce com o ser humano, ou seja, há uma estrutura mental preparada para a percepção de uma ideia de sobrenaturalidade, independentemente de ela existir de fato ou não. Ela pode funcionar como um elemento real ou como uma ilusão de ótica, por exemplo.

Se a religiosidade existe arquetipicamente no homem, por que existem ateus? É uma pergunta aparentemente difícil, mas de resposta simples. Da mesma forma que a religiosidade, há o instinto de sobrevivência, que é muito mais vívido e forte. Para provar isso, basta pensar que ele trabalha a nível de reações instintivas – mesmo que não adiante nada, tentamos nos defender do piano que cai (vide este texto). O que faz o suicida? Suplanta esse instinto. O ateu faz a mesma coisa: suplanta sua religiosidade e deixa o arquétipo vazio. Ele continuará com a estrutura psíquica, só que preenchida de nada, porque a cada vez que a sensação de supernaturalidade lhe avançar, ele ligará seus dispositivos racionais para anestesiá-la.

Mas, como diz o filósofo francês André Comte-Sponville em seu interessante livro “O Espírito do Ateísmo”, mesmo os ateus acabam, por conta das disciplinas sociais e de uma moral construída sobre uma tradição religiosa, vivendo sob o manto de alguma religiosidade. Isso acontece porque, por exemplo, a religião – através da crença em uma entidade superior de vontade manifesta – organiza uma unidade social, que seria muito mais difícil de obter pelo convencimento da pura racionalidade. Exemplo: qualquer ateu concorda que é bom não matar, seja pela suposta manifestação de uma entidade divina, seja pelo acordo mútuo entre os homens.

Chegamos, portanto, à conclusão de que não há uma espiritualidade coletiva sem o delineamento de um mínimo de regras, sob pena de não se obter homogeneidade no culto – e assim não haver a tal coletividade!!! Esse é o start de uma religião. Se a religiosidade é uma predisposição natural, a religião é puramente cultural, o que não denota, como vimos até agora, nenhum tipo de incompatibilidade. O ponto de choque ocorre quando a religião se imiscui no plano da vida pessoal. Neste ponto, é muito difícil que não haja uma dissociação entre religião e religiosidade. Vamos ver isso.

A psicanalista alemã Karen Horney, que atuou principalmente nos Estados Unidos, foi uma adepta de Freud, mas que contestou vários de seus princípios. O mais expressivo deles é a constatação de que a psicanálise freudiana tinha um viés sexista, no sentido de que a atribuição de crises de histeria e outras moléstias eram dadas às mulheres em razão de seu gênero, biologicamente falando. Ela destacava que as diferenças na análise para ambos os sexos deveriam se dar por conta do ambiente social e cultural, porque as normatividades se davam diferentemente para cada um dos sexos. Hoje, isso parece evidente, mas percebam que, na ocasião, parecia natural.

Horney investigou profundamente a figura do “eu”. Percebeu que a personalidade é uma verdadeira coletânea que inclui desejo, escolhas, responsabilidade, sentido de identidade, lugar no mundo e confiança na própria potência. Esses componentes formam aquilo que é chamado de self. Por outro lado, as pressões sociais, em especial a aprovação ou desaprovação dos outros com relação às disposições do self, constitui a formação de outro eu, o eu-ideal. Este eu-ideal passa então a ser um objeto persecutório do self, que busca se adaptar a essa projeção a qualquer custo. Isso acontece porque, segundo Horney, alguns ambientes são “tóxicos”, ou seja, geram dependência. É exatamente o que acontece com o meio social em que vivemos. Estamos tão habituados a nos deparar com uma relação de interdependência com os demais membros de nosso meio que tendemos a considerar sua opinião como boa e preciosa, na exata medida em que esta opinião esteja mais firmemente arraigada no senso comum, e não na racionalidade. Temos então a dependência de captar essa opinião para nos adaptarmos a ela, e daí a “toxicidade” do ambiente fica explicada. Basta que pensemos na famosa ditadura da magreza para que percebamos a dissonância entre os gordinhos que somos e os magrinhos que querem que sejamos. A angústia do desalinhamento do eu-real com o eu-ideal é, inclusive, a principal fonte de nossas neuroses.

Já discutimos que a espiritualidade é espontânea e a religião é normativa. Neste caso, a espiritualidade está no campo do eu-real, enquanto a religião prescreve a regra, dizendo o que é o eu-ideal. Se esta regra foge do espaço celebrativo e vai para as escolhas pessoais, foge também da catarse e vai ajudar na formação do eu-ideal, com a pressão subsequente no indivíduo.

Haverá quem diga: as coisas têm que ser assim mesmo. Outros dirão: é uma toxicidade. Eu não sei. Da minha parte, compreendo ambas, mas tendo a concordar com a segunda.
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Normalmente, concluo meus relatos de viagem com um epílogo. Desta vez, deixarei em aberto, pois já programei (ao contrário do que costumo fazer) uma semana em que me dedicarei exclusivamente ao Núcleo Santa Virgínia, tanto em SLP quanto em Natividade da Serra. Quando encerrar esse tour, tratarei, aí sim, de coligir todas as impressões em um único texto. Até lá e bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Como eu já disse, Karen Horney traz uma inédita visão feminina sobre a psicanálise. Muito embora a psicologia moderna tenha superado boa parte de suas teses, seu entendimento social é muito interessante de se ler.

HORNEY, Karen. A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Difel, 1983.

Comte-Sponville é um filósofo parisiense ainda ativo, herdeiro da tradição existencialista, uma referência importante na nova Filosofia. Seu livro não é um libelo raivoso contra a religião, mas uma análise das contradições de um mundo onde a mesma já espalhou suas raízes de tal forma a poucas relações serem desassociáveis de seu substrato.

SPONVILLE, André Comte. O Espírito do Ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Finalmente, o livro abaixo traz pouco texto e muita foto das festas do Divino Espírito Santo em SLP, o que o torna um material indispensável para conhecer sua dimensão à distância.


VIEIRA, Nana. O Divino em Festa: São Luiz do Paraitinga. São Paulo: Terra Virgem, 2008.

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 7ª mirada (2ª parte): São Luiz do Paraitinga - A Cultura e a dúvida: Como viver sentindo a passagem do tempo?

Olá!


O que faz uma cidade ser única? Em São Paulo, por exemplo, a oferta gastronômica e as alternativas acadêmicas, terra de trabalho e correria. Em Santos, as praias. No Circuito das Águas, ora, as águas. Em Ibitinga, os bordados; e assim sucessivamente. São Luiz do Paraitinga tem sua identidade marcada pela inesgotável festividade de seus habitantes.




São Luiz do Paraitinga tem na sua matriz cultural a sua principal característica. Não há praticamente nenhum mês no seu calendário cultural que não abranja algum tipo de festividade, e as marcas dessa febre estão espalhadas por todo o espaço público. A cidade inteira parece um grande trabalho de tear, com urdidura e trama coloridas, começando pelas casinhas que cortam toda a zona urbana.



Outro exemplo é esta escadaria, que é mais um desafio ao término de uma íngreme ladeira, que lhe dá aspecto de uma colcha de retalhos, tão típica da região toda.



Ao chegar mais próximo, um grafite dá mais uma dimensão ao colorido: a teatralidade.



Das incontáveis ladeiras, há muitas referências a um passado que nem é tão remoto assim. Exemplos são os painéis de azulejos do Largo do Teatro (do qual falarei já, já) e da Ladeira das Mercês, que desemboca na capela de mesmo nome. A ladeira retratada, que é o acesso à igreja do Rosário, é praticamente igual ainda hoje.



Festa, música e comida tem uma porosidade entre si. Como tal, é muito difícil de se pensar em uma sem as outras (vide este texto). Por isso mesmo, Paraitinga tem uma curiosidade: não há um, mas DOIS coretos na cidade de 12000 habitantes, sendo um na praça da matriz e outra no calçadão contíguo.



As atividades econômicas da região, além da típica agropecuária, tem muito a ver com o dia-a-dia das próprias pessoas. Nada de grandes indústrias. Há destilarias, como a Mato Dentro, que produz uma cachaça forte, forte, forte de marré, marré, marré, e que ostenta uma série de premiações, situada no interior de uma fazendinha.



Já na praça da matriz, o reforço da vocação etílica, representada por uma adega simbolizada pelo retrato do Pimba, que, curiosamente, é a cara do meu sogrão quando jovem. Atendidos pelo Amauri, ficamos sabendo que o Pimba em questão não é o dono do alambique, mas seu pai (se bem me lembro). A fábrica fica perto, no município de Taubaté. Há cachaça para todos os gostos – branquinha, amarelinha, no carvalho, na umburana, no amendoim, na canela, com frutas e etc.



Há também uma pequena fábrica de farinha de milho, daquelas grossas, que fica no mesmo conjunto do hotel onde ficamos hospedados. A visita à produção é franqueada, de modo que se possa desvendar o mistério dos flocos. Uma moenda tritura o milho, que é filtrado por um túnel poroso. Este fubá é levado a uma chapa circular quentíssima, onde é floculada e ensacada. Bom para saber.



Agora, a comida... Tudo o que é servido aqui é abundante. É preciso certa parcimônia nos pedidos, porque há necessidade de valentia para encarar os “fogados” e costelinhas com quirera, dentro outros. Este abaixo é um dos pratinhos servidos no Barão:



Desculpem-me, mas aqui vou fazer propaganda franca e aberta, e juro que sem remuneração. Um dos melhores lugares que passei em SLP foi um barzinho chamado “Mai será o Binidito?”, colado ao rio Paraitinga e ao Mercado Municipal. Este é o seu distintivo:



É um lugar que junta uma pegada cinematográfica (as paredes são forradas com referências aos filmes rodados na cidade) com produção literária local – e que se pode confortavelmente ler em uma poltrona centenária – e com comida de comer rezando. Aqui, tivemos a felicidade de pegar, de graça, uma jam-session do músico Moreno Overá com um rapaz recém-formado na Europa, de nome Guilherme.



Aqui, a criatividade e a tradição são reunidas no bolinho de arroz com “fogado” (com cachacinha amarelada)...



... e nas diferentes opções de pastel de angu, preparados com requeijão de prato, carne seca, carne moída. A Dani, a Thais e o Pipoca escavam, não sei de onde, cervejas artesanais surpreendentes, como a já recomendada Biéres de la Madona, as cervejas do Gordo e a Lilith. Estão nas vésperas de produzir sua própria cerveja, o que aguardamos com certa apreensão.



Vamos partir para os principais eventos da cidade, aqueles que a deixaram famosa. Há, evidentemente, a festa junina e algumas festividades que homenageiam os cidadãos famosos, além da festa do Saci, uma espécie de alternativa ao Halloween, mas as que “pegam” mesmo são o Divino e o Carnaval. Vamos dissecá-los um pouco.

A festa do Divino Espírito Santo é oriunda da rememoração do dia de Pentecostes, solenidade católica em que se evoca a vinda do Espírito Santo, da mesma maneira em que é relatado pelo livro dos Atos dos Apóstolos: em uma noite cinquenta dias após a Páscoa, um forte ruído assombra os discípulos de Jesus. Era o Espírito Santo, que lhes vinha em algo semelhante a uma pomba. Por esse motivo, o pássaro cosmopolita é a sua representação mais comum.



A comemoração litúrgica é uma missa quase igual a todas as outras, o que fez com que a festa do Divino praticamente se extinguisse dos grandes centros urbanos. Mas a cultura popular a transforma em uma festividade gigante, especialmente no banquete coletivo. Em SLP, o prato principal é o mesmíssimo “fogado” mencionado anteriormente – carne de segunda que passa a madrugada inteira sendo cozida com temperos e legumes, para estar desfiando no momento do consumo. Além disso, há várias procissões que começam longe, e que vão se aproximando e agregando gente por onde passa. Como em todas as outras cidades da região, aqui também a bandeira do Divino é ponto central da festa, sendo instalada em altos mastros, como esse que se encontrava deitado por ocasião de nossa visita.



Testemunha de toda essa movimentação é Neca Junqueira, artesã da lojinha Tatu Him, que nos contou histórias e mais histórias de inundações e celebrações. Sua loja/casa é a do meio, verdinha. Fica quase que nas escadarias da igreja do Rosário.



Quando visitamos sua loja, havia um pequeno aglomerado de crianças nas tais escadarias. Aos poucos, foram chegando alguns jovens, trazendo uns instrumentos musicais. Todos eles saíam de uma casa situada no chamado Largo do Teatro, que citei agora pouco.



Desta mesma casa, emergem dois bonecões. Um senhor de barba e cartola e uma mulher com cabelos amarelados, ambos vestidos de retalhos de chita. Trata-se da representação de Juca Teles e Nhá Fabiana, representação máxima do Carnaval de marchinhas, o segundo evento ao qual gostaria de me referir.



A Neca nos contou o que estava havendo. Eram as crianças e seus instrutores que, ainda em setembro, já se preparavam para a chegada do reinado de Momo, ensaiando o seu desfile. Diferentemente de outras localidades, aqui não é o samba o fundo musical do Carnaval, mas as assim chamadas marchinhas. E os bonecões são uma espécie de abre-alas dos blocos que tomam as ruas da cidade.



Por esse motivo, os bonecões estão espalhados pela cidade inteira, seja nas ruas...



... seja nos prédios públicos, como o Instituto Elpídio dos Santos...



... seja até mesmo no interior dos comércios.



Mas, como já citei no primeiro texto sobre essa cidade, o Carnaval já foi mal visto por aqui. Rapidamente revisando: o italiano Monsenhor Ignacio Gioia foi nomeado pároco local no início do século XX. Impressionado com a importância dada à festa carnavalesca, onde, segundo se dizia, as moças vinham tomar as cinzas no início da quaresma ainda com os corpos repletos de confetes, baixou proibição a todo cristão da cidade de tomar parte desta perdição, no seu dizer. Dizia coisas como o surgimento de rabos e chifres naqueles que desobedecessem, bem como profetizou a inundação da cidade até os tetos da igreja, caso a sem-vergonhice prosseguisse. Há quem diga que sim, há quem diga que não, mas o fato é que enchentes nunca foram propriamente novidades por aqui.

O padre se foi, mas a imprecação permaneceu ecoando. O caso meio que ficou no plano do folclore, até que uma reportagem da rede globo, no começo da década de 80, foi “cavucar” as memórias das pessoas. O resultado da matéria, exibido em rede nacional, foi tomado como ofensivo pelos luizenses, dado o seu tom jocoso, tipo como se os habitantes ainda tivessem medo de se nascerem chifres em suas cabeças e rabos em seus traseiros. Esse foi o estopim para que o Carnaval de marchinhas voltasse a eclodir, com toda a sua força. Ano após ano, mais e mais blocos iriam se constituindo: Barbosa, Casarão, Lençol, Lobisomem, Bebebum, e muitos outros. O mais famoso deles: Juca Teles.



É uma referência ao agitador cultural Benedito de Souza Pinto, que era famoso até a década de 60 por conta de suas manifestações populares, como a Malhação de Judas. Ele adotou o pseudônimo exatamente por conta da transgressão à “moral e bons costumes”, ainda mais pelo fato de ser funcionário do judiciário. Mas ele carregava consigo a alma festeira adormecida naquelas pessoas, e a recriação do Carnaval luizense foi resgatar esta figura que levou praticamente sozinho o que restava dos velhos tempos.



Em todos os estandartes dos blocos, além dos dísticos habituais, como as máscaras teatrais e o megafone de lata, há uma intrigante pergunta: “Como viver sentindo a passagem do tempo?”. Muito interessante ver um questionamento tão profundo em algo voltado à frivolidade, o que é prova de preconceito meu.

Há dificuldade até mesmo em interpretar certeiramente o verdadeiro sentido da pergunta. Será que tem o âmbito de manifestar uma vontade (algo como: “Quero sentir a passagem do tempo. Como fazê-lo?”) ou uma angústia (“Como conseguir viver mesmo sentindo a passagem do tempo”)? Isso porque o tempo é um tema complexo demais, e vou tentar responder ao desafio jucateliano ao meu modo.

Bem, a primeira coisa necessária é tentar entender o que é o tempo, e já aqui a barca naufraga. Muita gente boa tentou fazê-lo, inclusive da maneira que expus neste espaço, aqui e aqui. Em resumo: Santo Agostinho dá uma resposta universal. Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei o que é; se alguém perguntar, eu já não sei. Ou seja, o tempo é inefável; foge da razão e está no campo subjetivo da intuição. Cada um tem sua própria percepção de tempo, como bem disse Bergson. Leiam os dois posts que indiquei. São breves e deixam as coisas bem claras.

Mas não precisamos nos reter apenas a estes dois pensamentos. Se pensarmos o tempo nos termos da Física, veremos que os estudos da relatividade de Einstein levaram à fusão dos conceitos de espaço e tempo, algo muito-muito-muito complexo, e que, aqui, abordaremos apenas o essencial necessário para desenvolvê-lo. O contínuo espaço-tempo é algo como um sistema de coordenadas quadridimensional. Neste sistema estão incluídas as facilmente perceptíveis dimensões espaciais (altura, largura e profundidade) e é adicionada a variável do tempo, um eixo através do qual as demais dimensões trafegam. Cada ponto neste sistema é um evento, ou seja, algo que ocorre em momento e local específico. Ocorre que todo esse sistema depende de um referencial para ser aplicado. Afinal, algo tem distância em relação a algo; algo tem duração em relação a algo, ok? Digamos que uma pessoa parada observa um avião. Para ela, o avião está em movimento. Para quem está dentro do avião, o referencial muda: estão parados, e quem se apresenta em movimento é a pessoa da terra firme, que se afasta rapidamente. Se observarmos tudo isso de fora do planeta, perceberemos outro fenômeno – nem um, nem outro estão parados. Ambos se movem com o giro da Terra, e esta gira em torno do Sol, que gira com o braço da galáxia, e assim por diante. A cada novo referencial, temos um novo eixo do tempo no sistema, e este contínuo é percebido de maneira diferente, por menor que seja tal diferença.

Pudemos notar que, mesmo na Física, a percepção de tempo não tem uniformidade, porque depende de referenciais. Em nossa imprecisa consciência, a questão se agrava. Perceber a passagem do tempo significa sentir seu fluxo, e isso significa perceber a movimentação entre o futuro que se espera, o passado que se rememora e o presente que acontece. Ou seja, o tempo se realiza no presente. A aporia maior está em limitar o que é este estranho personagem.

Vamos vasculhar alguns dados do pensamento histórico. Zenon de Cítio, o principal dos estoicos (vide aqui), parecia um cara brincalhão, dado a fazer joguinhos de paradoxos, como aquele em que dizia que um arqueiro, ao disparar sua flecha, jamais a veria chegar ao seu alvo. Isso porque, antes de chegar ao seu destino, a flecha precisaria percorrer metade de seu trajeto, e, antes disso, a metade da metade, e a metade da metade da metade, e così via. Como cada percurso poderia ser dividido em dois, teríamos uma divisibilidade infinita. Ou seja, o movimento nada mais seria do que uma ilusão. Coube a Marcos Cínico* resolver essa parada de um jeito muito fácil e prático, apesar de dolorido. Correndo, dá de cara com a parede, em um extremo do empirismo. Deve ter doído, mas lhe autorizou a ridicularizar a posição de Zenon, que, na real, deveria estar troçando da galera**.

Mas a divisibilidade infinita era um grande problema para que fosse possível estabelecer o que é o presente. Qual seria o seu “tamanho”? Encarando esse enigma, David Hume afirmou que a divisibilidade infinita não pode ser aplicada ao tempo. Há uma espécie de “átomo” do tempo que é o mínimo necessário para configurar um momento, um intervalo mínimo que permite a percepção da temporalidade. Enfim, a quantidade mínima necessária para que percebamos que algo ocorreu. Ora, mas não podemos ter a metade de um momento, ou até menos que isso? Sim, podemos; o diabo é que a percepção não está nas próprias coisas, mas no sujeito. O tempo não é nada sem o sujeito que o percebe. Notem então que há uma dissonância entre o tempo que acontece no cosmos e o tempo que conseguimos sentir. Notem mais ainda:  que um evento físico que ocorre no universo jamais é o mesmo que é produzido psicologicamente. Em Hume temos o belíssimo exemplo do instrumento de sopro e o instrumento de corda. Ele fala que aquilo que sentimos (e aqui insiro a sensação de temporalidade) não é como uma flauta, que cessa sua sonoridade assim que se para de soprar. Antes disso, assemelha-se a uma lira, cuja corda permanece em vibração após ser tangida, produzindo uma sensação sonora que se alonga até seu completo sumiço. O tempo cósmico, portanto, tem a exata medida de seus eventos, enquanto o tempo subjetivo, o tempo que verdadeiramente importa, este dura muito mais que o próprio evento, porque o sujeito tem algo chamado afeto***, algo próprio ao ser humano. Há uma assimetria entre o fenômeno ocorrido e as suas consequências, e o tempo dos afetos é mais duradouro do que o tempo de articulação com o mundo.

Pensemos no seguinte, para ficar mais claro. Um rapaz faz uma proposta indecorosa a uma moça qualquer. Como resposta, voa um belo tapa na sua cara, daqueles dados com as costas das mãos. O tempo físico do ato dura centésimos de segundo – o exato momento do encontro da mão da indignada moça ao rosto do indigitado canalha. Mas o tempo da dor, da decepção pelo fracasso do sacripanta, da revolta pelo acinte da menina, tudo isso dura muito mais, e causa muito mais efeitos do que o mero ato físico.

Diante disso, chego à conclusão de que o tempo, para ser sentido, nada mais é necessário do que perceber seu fluxo através daquilo que nos afeta. Cada pequeno ato que ocorre ao nosso redor é mais um ponto que se fixa no sistema de coordenadas de nossa vida, e que se transforma em referenciais. Por cada um deles mediremos memórias do passado e expectativas do futuro.

Eterno fluxo... Heráclito, o mestre do devir! Nunca tomamos banho no mesmo rio (mesmo – ou principalmente – que seja o Paraitinga). Nós não seremos mais os mesmos, nem o rio será o mesmo, ainda que daqui a um minuto, ou um momento indivisível. O tempo nada mais é do que a sucessão de nossas mudanças, o nosso próprio fluxo ininterrupto.

O tempo é indissociável da filosofia de Heráclito. Enquanto os demais pré-socráticos discutiam qual seria o elemento primordial que comporia os seres (vide), Heráclito institui a doutrina do panta rhei. Tudo flui, o próprio fluxo é o Ser, porque nada persiste em si mesmo imutável, no polo oposto do que Parmênides pensava. Ele usa a imagem do banho no rio para dar o exemplo mais clássico do fluxo eterno, mas é no fogo que ele vê em sua frente o grande elemento de transformação, e o adota como arché, talvez mais simbolicamente do que como elemento concreto.

E por mais que Parmênides possa estar correto em afirmar que há uma essência nos seres que os fazem ser imutáveis, o fato é que isso nos foge aos sentidos. O mundo sensível, aquele que nos afeta, é um continuum em que se entrelaçam o tempo instantâneo dos acontecimentos com o fluxo ininterrupto com o qual somos afetados pelos mesmos. Essa é, para mim, a mais bela maneira de sentir a passagem do tempo.

Recomendações de leitura:

Hume não é propriamente um filósofo fácil, nem de ler, nem de engolir. Isso porque seu ceticismo é praticamente absoluto, o que beira a uma completa ausência de confiança em qualquer coisa que seja. Mas ele, na verdade, é muito sagaz. Vale a leitura.

HUME, David. Investigação sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Unesp, 1999.

O livro abaixo é um guia completo sobre o desenvolvimento do Carnaval luizense. Imperdível, apesar de, lamentavelmente, não ter sido editado por nenhuma editora de renome.

SILVA, Degiovani Lopes; VIEIRA, Maria Alice F. do Amaral. São Luiz do Paraitinga sem Rabo e sem Chifre. A Evolução do Carnaval das Marchinhas na Terra de Juca Teles do Sertão das Cotias. São Paulo: Edição do Autor, 2012.

* A escola cínica não tem nada a ver com o cinismo da maneira que utilizamos hoje. Os cínicos filosofavam por uma vida simples, como a de um cão (kynos – cão em grego), onde apenas as necessidades mais essenciais deveriam ser satisfeitas. Certamente terei boas oportunidades de falar melhor sobre eles.

** E estava mesmo: Zenon apenas demonstrava como a matemática não consegue dar conta de toda a realidade.

*** Lembrando que afeto, em Filosofia, significa não só amor que temos por outras pessoas, mas algo capaz de nos produzir qualquer mudança.