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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – Epílogo

Olá!


Em todas as séries de viagens que desenvolvi neste espaço, sempre procurei intitulá-las com metáforas marítimas. Para quem gostou destes trilhos perdidos, convido a lê-las, porque têm basicamente o mesmo formato:


Claro que isso tudo se dá porque o oceano traz uma figuração sobre viagem, mas também nos lembra do mistério do desconhecido, das incertezas da partida, de uma certa melancolia de quem ruma sem saber exatamente por que e para que. Desta vez, no entanto, sem fugir de uma retórica que remeta às jornadas, variei de nomenclatura. Fui buscar uma temática ferroviária, que também tem seu encanto, já que os trilhos e o trem que some no horizonte são ferramentas poéticas que nos lembram de como nossos destinos são inevitáveis. Eu já fui jovem, sonhei como qualquer um e escrevi letras de música, achando que poderia impressionar as pessoas. Como eu digo na música Largo da Misericórdia...

“Ao léu, o trem que nunca vem
Sem ele, nada me arrasta
E, se não me arrasta, não tenho porque crer no destino
Só que eu estou aqui, no largo e ao largo
Esperando o trem chegar
Prá sempre de partida”

... com algo que vai entre o desencanto e o rancor. É claro que eu jogo com contradições, um instrumento lírico para dizer que a vida é um negócio louco e transitório. Não creio no destino, mas estou entregue a ele, coisas assim. Então é legal pensar no trem, que custa a chegar, que nem se sabe se vai chegar, se a estação vai acabar antes que ele chegue, que vem como uma miúda fumaça no horizonte, que passa por cima de qualquer coisa que cair em seus trilhos, que ao descarrilar sempre representa desgraça e que desaparece entre as montanhas, deixando para trás apenas o silêncio.

Apenas o silêncio? Não, deixa também a memória. E isso vai ajudar a explicar a inspiração para o nome da série. Estamos em uma região das Gerais repletas de recordações do universo ferroviário, no mais das vezes constituídas por antigas estações, ou o que restou delas, sem nenhum sinal de seus antigos trilhos. De fato, algumas destas estão bem preservadas e ganharam outra destinação, enquanto outras viraram apenas lembranças, especialmente naqueles que, de uma forma ou de outra, tiveram suas vidas ligadas à atividade. Para estes, os trilhos se perderam. Eu quero achá-los.



Eu mesmo não tenho grandes memórias ligadas às linhas férreas. Na cidade grande, o fundo da paisagem é composto por prédios, e não por trilhos que cortam vales. Pior ainda no metrô, um imenso tatu que cruza o subsolo de um lado para o outro, sem nenhum tipo de romantismo. Tirando a burla dos muros da linha para chegar à casa do falecido tio Chico, todas as minhas ligações com o trem são utilitárias: ir e voltar do serviço. Houve uma época em que eu saía de São Caetano do Sul, onde eu trabalhava, para ir até a Vila Prudente, onde eu estudava. Era possível fazer o percurso de ônibus, mas demorava o triplo do tempo que o trem levava para cumprir as duas estações necessárias. Então eu encarava a máquina de ferro no fundo do vale de sua existência. A década de 80 foi um período em que o trem da Santos-Jundiaí vivia sujo, roto, quebrado, barulhento. O consumo de drogas ainda era muito reprimido, mas os vagões eram uma espécie de zona franca, um território livre para festinhas, e recendiam a bafo de pantera. Eu mesmo costumava acender meu inocente Marlboro, para deixar claro que meu cigarro era de baixos teores. Desse jeito, o máximo que poderia acontecer era ser tocado do vagão. Mas nunca aconteceu.

Ah, sim, lembrei de duas coisas bacanas relacionadas ao trem. Uma delas eu já contei aqui, que era quando meu avô me levava ao campo do Nacional, time cuja origem está intimamente ligada à ferrovia que lhe costeia. Hoje a linha é chamada de Rubi ou Diamante, nunca sei bem. Para nós, era simplesmente a linha da Lapa, e descíamos na estação Água Branca. Dali, eram cinco minutos até a Comendador Souza. A outra é muitíssimo remota e são só nuvenzinhas na minha cabeça. Trata-se da única vez que fui com meus pais para o norte do Paraná de trem. Se eu não me engano, a composição partia da Capital com destino a Ourinhos, na divisa. De lá, era preciso baldear para outro trem, da linha federal. Depois, em Londrina ou Maringá, o restante do trajeto era cumprido de ônibus.

Lembrei de mais uma. Quando eu era criança de uns sete ou oito anos, ganhei de Natal aquele que foi um dos presentes mais caros da minha vida: um Hit Train, antecessor do Ferrorama, caro para os padrões do operariado em geral, mas eu devo ter me comportado bem e meus pais acharam que deveriam gastar um pouco mais naquele ano. Era um brinquedo lindo, composto por um trenzinho que simulava uma máquina elétrica com seus respectivos vagões. O aparelhinho era a pilha, e deslizava por uma série de trilhos plásticos, com alavancas para desvio e reversão do movimento do trem. Eu costumava montá-lo por sobre minhas caixinhas de futebol de botão, para dar a sensação de via elevada. Também fazia as curvas passar pela beirada da mesa, de modo a dar sensação de perigo com o tombamento do trem. Numa dessas, a queda fez com que o compartimento das pilhas saltasse, e eu comecei a compreender que os remendos dos trens originais também eram reprodutíveis no mundo imaginário dos atrevidos petizes. Putz, era um brinquedo muito legal... Deveria tê-lo mantido até hoje.

Contei tudo isso para tentar responder à pergunta que tantos fazem: por que as ferrovias praticamente acabaram no Brasil? E por que elas trazem tantas boas lembranças para quem as vivenciou de perto?



É impressionante, mas é só o Brasil sendo o Brasil. Não tem certos absurdos que parecem acontecer só por aqui? Pois é, este é mais um. Em um país de dimensões continentais, é de se esperar que fossem construídos diversos ramais que, em certo momento, se interligassem. Acontece que as linhas foram construídas autonomamente, sem nenhum tipo de planejamento, e cada uma tinha seus parâmetros próprios de construção. Em alguns casos, as plataformas das estações precisavam ser mais altas, dependendo do modelo de vagões adotados. Isso explica porque há estações com altura tão variável. É óbvio que a região em que estamos tem um certo padrão, porque estamos falando somente da RMV – Rede Mineira de Viação. Mas este não é o grande busílis.



A dor de cabeça maior diz respeito à questão das bitolas. Eu já falei sobre o caso em meu texto sobre Bananal, mas vou retomar rapidamente. Bitola é a largura entre as rodas de um trem, o que determina a distância do paralelismo entre os trilhos de uma linha. Digamos que uma máquina tenha bitola de um metro. Isso significa que os trilhos deverão obrigatoriamente estar separados nesta medida. Não é simples? Ocorre que nossos ímpares administradores costumam se preocupar muito com o universo que orbita seus umbigos e esquecem de por a cabeça para fora da toca, e nunca se planejou uma bitola padrão para as nossas linhas férreas. Já ouviu falar de um cara “bitolado”? Isso indica uma pessoa que pensa sempre da mesma maneira, por mais que se mostre que as coisas são diferentes. Os trens também são bitolados, só andam em trilhos com aquela largurinha específica que cismaram, por um motivo muito prosaico – são engenhos sólidos, construídos para serem como são. Não dá para alargá-los ou encolhê-los ao bel prazer do ínclito governante.



Isso quer dizer que um trem não pode passar de uma linha para outra, ficando escravo dos trilhos adequados ao seu tamanho. Isso fazia a atuação de uma composição ficar restrita ao seu próprio ramal, e, para atingir novos destinos, só com transferências: baldeação para passageiros, transbordo para cargas. Isso aumentava um bocado o tempo das viagens e multiplicava seus custos. Pensem, por exemplo, no pessoal e no espaço necessário para tirar todas as toneladas de grãos de uma composição e colocá-las em outra.




Não foi esse o único fator que levou à substituição no modelo de transporte, no entanto. Uma desgraça nunca vem sozinha e uma coisa puxa a outra. O principal motivo para a construção de ferrovias foi o transporte de produtos agrícolas, notadamente o café, tão dominante na primeira metade do século XX. Só que as coisas vêm e vão, e os cafeicultores experimentaram um grave declínio, refletindo na falta de atualização tecnológica das linhas. Com a chegada de Juscelino Kubitschek ao poder, e com a implantação de uma política desenvolvimentista baseada especialmente na chegada da indústria automobilística ao país, mudou-se a matriz de transportes tupiniquim. Afinal de contas, o princípio geral que norteava o governo era que não bastava crescer, era preciso crescer depressa, os tais “cinquenta anos em cinco”. Substituir ferrovias por estradas de rodagem tinha duas grandes vantagens para esse modelo. Por um lado, era muito mais rápido nivelar e asfaltar um terreno do que enchê-lo de dormentes e trilhos. Por outro, dava-se um incentivo e tanto às recém-chegadas montadoras, que venderam caminhões aos borbotões para substituir os antigos trens. Estava aberto o sepulcro da linha férrea.



Pensou-se a longo prazo? Não, né... Mas na Ilha de Vera Cruz costuma ser assim mesmo. Os trens eram realmente lentos, e uma viagem de longo curso era um suplício. Nesse sentido, os ônibus são ágeis, menos barulhentos e possuem mais flexibilidade, podendo mudar de trajeto ao sabor das circunstâncias. O mesmo se aplica aos caminhões para o transporte de cargas. E para se ter uma malha decente precisaríamos substituir quase tudo, padronizando bitolas, reerguendo estações obsoletas, modernizando o maquinário, atualizando os funcionários... As vantagens não apareceriam da noite para o dia, mas, na ponta do lápis, elas seriam grandes. Um trem carrega muito mais do que os maiores caminhões, com risco ínfimo de acidentes e perda de cargas, além do menor potencial poluente. Além disso, bons equipamentos garantem velocidade muito superior à das poéticas, porém ineficientes marias-fumaça. Peço desculpas aos amantes do velho vapor, mas o seu lugar é o museu. E as velhas estações merecem uma nova destinação, mesmo que não esteja relacionada ao seu antigo uso.



Na verdade, o que é mais digno de notar é como esse tipo de reminiscência nos toca a memória afetiva. Embora não tenhamos o costume da resistência, o fato é que há coisas que nos cutucam o fundo da alma, e deixamos elas ir embora. Resta apenas o que lembramos, e por isso estes artefatos são tão importantes. Só que a tal memória afetiva é marota. Vamos ver isso rapidinho.

Endel Tulving é um psicólogo canadense de origem estoniana que se especializou no estudo da memória. Antes da publicação de sua original abordagem, já se dizia de uma tipificação da memória, sendo uma de curto prazo e outra de longo. Na primeira, estariam os dados que usamos no nosso dia-a-dia e que logo são descartados, assim que perdem sua utilidade. Por exemplo, quando pegamos um jornal, damos uma passada rápida pelas manchetes. Aquelas notícias que não nos chamam a atenção são brevemente esquecidas, e damos atenção àquelas mais importantes. Isso acontece porque não há nenhum proveito em reter as informações descartáveis, mas elas passam pela nossa memória, até mesmo porque são a porta de entrada para a memória de longo prazo, aquela que fica retida em nosso cérebro, e que são recordadas na medida em que se fazem necessárias, e estão intimamente ligadas à aprendizagem.

Para Tulving, essa divisão era insuficiente para explicar adequadamente o fenômeno mnemônico. No longo prazo, parecemos ter uma memória intimamente ligada ao conhecimento, e outra aos acontecimentos. Senão vejamos.



Eu posso pedir para vocês enumerarem quantas classes gramaticais conhecem. A lista começará – substantivo, pronome, verbo, artigo, etc. Pode ser que alguém lembre de todas, pode ser que se lembre de uma ou duas. Pode acontecer ainda que não se lembre de nenhuma, mas, a partir de uma dica, todas as classes venham enfileiradas. É um tipo de memória que é dividido internamente em categorias: diga uma cor, diga uma fruta, diga um nome. Essas memórias, portanto, tem uma carga de significados que permite traduzir conhecimento. Por este motivo, é chamada de memória semântica.

Mas, e se agora eu perguntar QUANDO ou ONDE vocês aprenderam o que são as classes gramaticais? Pode ter sido na escola, em casa, na biblioteca. Pode ter sido com professores, com os pais ou com os livros. O fato é que dificilmente alguém se recordará disso. Com perdão aos professores (ou a quem tiver ensinado), os itens da memória semântica não fazem distinção habitual do meio com o qual são absorvidos. Aprender uma classe gramatical não é um acontecimento, apenas um ato cognitivo.

Mas não lembramos de um monte de fatos que acontecem em nossas vidas? Sim, claro. E isso é função de outro tipo de memória, muito mais pessoal que a semântica. É a parte emotiva de nossas lembranças, onde o contexto geral dos acontecimentos é imprescindível para a sua compreensão. É o que se chama de memória episódica, ligada aos eventos de nossas vidas. E como é feito o resgate dessas informações pela memória?

Parece que possuímos uma espécie de indexador que ajuda a consciência a recuperar a informação armazenada na memória de longo prazo. Mas enquanto o indexador da memória semântica é a categoria temática onde encaixamos o conhecimento, e que funciona por semelhança, na memória episódica o índice é composto pelo tempo. Quando recordamos de um evento qualquer, todo um conjunto de circunstâncias é carregado junto, para que se possa remontar o contexto com o qual ocorreram. Dessa forma, é possível que se desça a um nível de detalhe muito maior na memória episódica do que na semântica. Pense no primeiro beijo: talvez você lembre até a roupa que vestia, o que certamente não ocorrerá se você tentar resgatar o que lhe rodeava quando você aprendeu o que é advérbio. Então o índice “primeiro beijo” vai te levar de volta no tempo, fazendo com que você reviva mentalmente o evento.



É exatamente o que acontece com a memória afetiva do pessoal que viveu sob a sombra das estações ferroviárias e das fumaças das locomotivas, que, nos casos das cidades pequenas, acabam por se tornar mais relevantes. Esses objetos são índices que lhe trazem um conjunto completo de recordações, como a partida de um filho para a cidade grande, um pedido de casamento feito em um de seus vagões, o apito que parecia mais triste no dia em que a avó morreu, ou o simples ruído da descarga do primeiro trem que partia no dia, um pouco mais tarde do galo cantar e que acompanhava o cheirinho de café coado na hora. Dessa forma, a memória afetiva, aquela que nos toca, é consequência da memória episódica.



E por que a memória afetiva é matreira? É que, embora a memória episódica traga uma informação de contexto muito mais detalhada que a semântica, nem todos os seus componentes são resgatados em um mesmo nível. Em outras palavras, as informações não são todas disponibilizadas para a consciência com a mesma vivacidade. Isso significa que a memória afetiva tende a ser distorcida, com ênfase em seus componentes centrais e desvanecimento dos elementos periféricos. Exemplificando, posso pensar que o cheiro do café da minha infância era o melhor do mundo, porque estava acompanhado de um monte de outras coisas que me felicitavam, de eventos positivos. Se eu tomar o café hoje em dia, poderei ter duas reações: decepção em perceber o quanto ele é igual aos outros, ou entrar em um processo de negação, exatamente aquele que diz como as coisas eram boas “naqueles tempos”, e que hoje não valem nada.

Não é verdade. Lembramos com carinho do tempo das marias-fumaça, mas não há sentido em achar que elas eram melhores que os atuais metrôs, mais rápidos, mais seguros, menos poluentes. E mesmo que a usássemos hoje, sentiríamos desconforto em lembrar o quanto eram barulhentas, pesadonas, incômodas. Não que isso seja um mal, mas tudo tem seu tempo certo, e o lugar das memórias e lá mesmo: nas memórias. Por isso, é preciso tomar um pouco de cuidado para não deixar que um saudosismo nos absorva, especialmente quando a nossa vida se encaminha mais para a memória do que para a vivência. Eu, por minha parte, sei de um monte de coisas que não são exatamente como as recordo, e procuro meter o pé na pedra e na lama, vivendo o hoje da melhor maneira possível, porque lembro de tanta coisa que eu sei que não vai voltar, e que, se voltasse, não seria como antes. Bons ventos a todos e até a próxima romaria!!!



Recomendação diversas:

Só em inglês ou nos compêndios de Psicologia. Este aqui está disponível no Google Books:

TULVING, Endel. Elements of Episodic Memory. Gloucestershire: Clarendon, 1983.

Uma belíssima pedida é o site mantido pelo Ralph Mennucci Giesbrecht, que vem pesquisando a tempos sobre as linhas férreas deste Brasilzão de meu Deus, incluindo muita coisa que já desapareceu quase que por completo dos anais de nossa história. Ele tem livros disponíveis para vender, que, assim que o parco orçamento permitir, pretendo comprar. Segue o endereço:


E, claro, todas as cidades deste périplo, todas a distância razoavelmente pouca da Terra da Garoa. Recomendo fortemente para todos aqueles que gostam de um cheiro do mato sem se descolar da história. A quilometragem corresponde ao melhor trajeto de carro possível, na minha humílima opinião.

Maria da Fé – 288 Km
Cristina – 299 Km
Marmelópolis – 255 Km
Delfim Moreira – 234 Km
Piranguinho – 257 Km
Brazópolis – 242 Km
Wenceslau Braz – 249 Km
Itajubá – 262 Km

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 8ª estação: Itajubá e os riscos de que a pós-verdade nos leve a verdade nenhuma

Olá!


Desde 2014 tenho feito relatos de viagens onde conto o que tive de inspiração filosófica em cada lugar por onde passei. Este é exatamente o espírito que permeia este espaço: concatenar dia-a-dia e filosofia, conforme grito de guerra que consta no banner de entrada. No entanto, pela primeira vez fiquei hospedado em uma cidade que eu não pretendia visitar. A razão foi estratégica. Itajubá fica no centro geográfico da área que tencionava alcançar, uma espécie de núcleo de uma rosa dos ventos, a partir do qual me despachei ao norte (Maria da Fé e Cristina), ao leste (Delfim Moreira e Marmelópolis), ao sul (Wenceslau Braz) e a oeste (Piranguinho e Brazópolis), grosso modo. Se não chovesse tanto, teria ido também a outros lugares, como Pedralva e Conceição dos Ouros, mas vai ficar para uma próxima, faz parte. Então achei por bem incluir Itajubá no próprio epílogo da série, sem um texto próprio que lhe contemplasse. No final das contas, repensei e resolvi não proceder assim, por dois motivos fundamentais: pela própria instabilidade climática, não usei Itajubá só como dormitório, e fui conhecer bastante coisa; e, por fim e por isso, soltei por lá minha coruja de Minerva. Então taí, vamos falar sobre Itajubá, a cidade cujo nome significa algo como “cascata” em tupi.


Como eu bem já disse, os primeiros dias desta aventura foram intensamente chuvosos, com poucos momentos de estio. Poderemos observar como o tempo mantinha o seu cenho carregado mesmo durante essas oportunidades. Em uma delas, fui conhecer o Santuário de Nossa Senhora da Agonia, curiosa igreja modernista, que tem um ligeiro aspecto de cápsula espacial.


Do alto do morro de onde o santuário pontua, que já fica quase escapando da zona urbana, é possível observar uma boa parte da região norte, e se ter a exata noção do quanto é maior que as outras cidades do pedaço. A neblina do momento dava uma bela recobrida nos outros montes ao redor.


Trata-se de uma igreja nova, da década de 1990. Adotou esse nome por exigência do doador do imenso terreno, um português que, inclusive, mandou esculpir a imagem que guarnece seu interior, com seu respectivo oratório.


O preponderante azul remete à tradição que atribui essa cor ao manto de sua padroeira. Há uma passagem no Apocalipse, livro bíblico que prevê o fim dos tempos, que menciona um grande sinal no céu – uma mulher revestida pelo sol e com a lua aos seus pés e doze estrelas ao seu redor, algo assim. Esse azul remete exatamente à cor do céu onde essa mulher está investida, e que seria Maria, a mãe de Jesus.


Apesar da aura contemporânea, todo o mobiliário possui um contrastante estilo rebuscado, cheio de chanfros, volutas e baixos-relevos, como é costumeiro acontecer na movelaria e na decoração das igrejas barrocas. Não consegui me informar se estes artigos foram transferidos de outro templo ou se foram preparados especialmente para cá. Talvez seja mesmo intencional.


O que há de mais impressionante neste santuário é o seu teto translúcido, de onde pende um enorme crucifixo, que, desta forma, se desloca de sua habitual posição próxima ao altar e vai para o centro da nave. O domo central, visto de dentro, tem o notável aspecto de um olho azul (se é mais um elemento para lembrar a tradição mencionada ou se é um eurocentrismo, não sei dizer).


No aspecto espiritual, a cidade não fica limitada aos traços inovadores do santuário. De construção bem mais antiga, a igreja matriz é dedicada a Nossa Senhora da Soledade. Foi reconstruída diversas vezes, a cada uma delas dando alguma alterada no seu aspecto. É bem mais central e construída toda em arcos para sustentar seus domos.


Itajubá, assim como tantas outras cidades que faziam parte da rota ou estavam próximas à Estrada Real, era terra de tropeiros, o que faz pressupor a existência de um mercado. Ele existe e fica bem próximo ao rio que atravessa o município, o Sapucaí. Apesar do aspecto meio largado, tem bastante coisa dentro e em suas redondezas.


Como sói acontecer, estes mercados municipais distribuem a granel produtos que são adquiridos por atacado diretamente dos produtores, o que lhes costuma enriquecer a variedade. Comprados a retalho, principalmente grãos, geralmente não são caros, o que atrai muita gente para sua aquisição.


Porém, como também acontece com seu xará paulistano, há um processo de gourmetização que encarece um bom tanto os produtos, apesar do aspecto mais refinado e menos de feira livre, o caos que dá charme. No entanto, há que se considerar o bom nível da mercadoria oferecida, como no caso dos queijos e cachaças.


Nem só de feijão e pinga o homem viverá, mas de toda junk food que provém das fritadeiras de Deus. Encontrei muita coisa boa de se comer na noite itajubense, algumas com um toque mineiro, outras absolutamente cosmopolitas, como este imponente hambúrguer de costela guarnecido de batatas rústicas...


... ou este inesperado coxinhaburguer, uma novidade da qual já havia ouvido falar, mas nunca tinha testemunhado. Haja chá de boldo. Não há monetização, minhas recomendações ficam por conta da excelência das guloseimas.


A noite em Itajubá, aliás, foi o instante em que pudemos apreciar um pouco das construções mais antigas do centro. Durante o dia, a cidade é tão agitada quanto se pode esperar de um local com quase cem mil habitantes, e o torvelinho maluco de gentes e carros não nos permite olhar os prédios com a merecida acurácia. Temos, por exemplo, a casa de Wenceslau Braz.


O emérito e já extenuantemente mencionado presidente mais uma vez é homenageado, não só pela manutenção do casarão, mas outrossim pelo busto erguido na praça que toma emprestado o seu nome.


A praça não é praça na acepção da palavra, mas, de fato, um alargamento do calçamento à frente da outrora residência do distinto ex-presidente. Por esta razão, ainda podemos tomar a fresca em um chafariz que foi construído no mesmo polígono.


O polo gastronômico desta terra fica na Praça Theodomiro Carneiro Santiago, um lugarzinho muito agradável, que tem chafariz com fachos de luzes coloridas e uma espécie de parlatório. No mesmo trecho, está a sede do clube Itajubense, onde vi algumas crianças que acorriam pressurosas para a aula de alguma arte marcial, já paramentadas por seus quimonos. O referenciado da vez foi um filho ilustre local, político e advogado.


Também aqui, maior cidade das cercanias, o trem passava. A antiga estação de trem tem um duplo uso atualmente: ladeia a rodoviária e acomoda uma biblioteca, além de servir informalmente como chaveirinho de Cracolândia, porque este tipo de modernidade também chegou a estas paragens. Para quem é vizinho da rival paulistana, nada que cause susto.


O que eu achei de mais curioso é o antigo postinho de gasolina da Sociedade de Motoristas de Itajubá. Muito diferente dos atuais estabelecimentos grandiloquentes, era uma pequena cabine com uma única bomba, pelo que deduzi, e ficava no próprio leito carroçável da via. Outras épocas, outros usos. O minúsculo imóvel é tombado pelo patrimônio histórico municipal e eu adoraria vê-lo em pleno funcionamento.


O que não pode deixar de ser dito sobre Itajubá é a quantidade de universidades lá instaladas, o que faz dela um dos mais importantes centros universitários do Brasil, uma autêntica terra de estudantes. Aqui existem instituições como a FEPI, a Universitas, a Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (ele de novo), a Faculdade de Medicina de Itajubá, a FACESM e, especialmente, a UNIFEI – Universidade Federal de Itajubá, que reúne alunos oriundos de todas as partes do país. A grande musa desta última é a Engenharia.


Há um prédio tombado pelo patrimônio histórico no centro da cidade, perto da matriz, todo com iluminação saindo do chão, e um campus enorme perto da igreja da Agonia, sem contar uma usina hidrelétrica que lhe serve para pesquisa e aula. São cerca de 80 laboratórios disponibilizados para seus mais de 6000 alunos.


Passando ao lado dessa entrada da foto acima, tive um insight triste e devo ter feito cara de Gabriel Jesus. Reduzi a velocidade para ver melhor e a patroa me olhou desconfiada. Acabei falando: “Que pena que este tipo de instituição esteja tão desprezado nos dias de hoje”, algo assim. Ela me redarguiu, recordando velhacamente de minhas próprias observações: “Mas não foi você mesmo que disse que hoje todo mundo só quer dar emprego mediante apresentação de diplomas, mesmo para cargos com pouca exigência?”. Sim, eu disse isso, mais de uma vez. Mas o “diplomismo” ao qual eu me referia, na verdade, é um sintoma da doença do desprezo. Embora já tenha tocado no assunto neste post, eu preciso voltar a ele. É muito preocupante a falta de compreensão do papel de uma universidade no Brasil. Vou insistir no tema, até morrer (eu ou minha paciência para martelar).

Olhando aquela imensidão de universidade, dou uma rápida repassada na vida e me angustio de não ter ingressado na vida acadêmica mais jovem. Afinal de contas, é uma questão de tempo. Por mais que eu me dedique a partir deste exato momento ao estudo e à produção de conhecimento, o fato é que muita água já escoou por este ralo. “Ora, foda-se”, é minha tendência em me autorresponder. Isso é só uma idealização, há um mundo concreto ao qual todos nós somos submetidos. Respiro fundo e concluo que meu interlocutor imaginário tem razão e sigo minha rota sem depressão, pensando mais na janta do que naquilo que poderia ter sido e não foi, sem tangos argentinos (Bandeira mode on).

Não entrei na faculdade uma vez só. Quando eu tinha meus 18 anos, aproveitando a conveniência do emprego exercido, pus-me a estudar para o vestibular de Ciências Contábeis. Eram outras épocas, e mesmo para ingressar em uma faculdade particular o funil era estreito. Sim, jovens de hoje, a oferta de vagas era pouca até mesmo para quem se propunha a pagar. Eu trabalhava, e o que ganhava era suficiente para bancar escola e livros, ainda que na base do aperreio. O curso tinha duas partes realmente bastante distintas: uma eminentemente técnica, que explicava a mecânica dos movimentos contábeis, o método das partidas dobradas (base do sistema criado pelo frade Luca Pacioli), as montagens das demonstrações financeiras e os controles patrimoniais. A outra era aquela mais voltada para o analítico: o que as contabilizações representavam para cada uma das áreas de atividades, a estruturação e análise dos balanços, as perícias, auditorias e controladorias, as estratégias e planejamentos extraídos do estudo das contas. Foi nesse âmbito que me defrontei pela primeira vez com um conceito que persegue todos os estudantes: as fontes. Não basta dizer que a contabilidade é isso ou aquilo, mas referenciar quem o disse. Se a declaração for de sua lavra, já aí é preciso fornecer todos os elementos que lhe fizeram chegar a tal conclusão.

A segunda vez que eu fui à faculdade também se deu na esfera do pragmatismo. Fui retomar a carreira de informata em um curso de Processamento de Dados. Como era uma cadeira de Tecnologia, o desenvolvimento era flagrantemente prático, como tem que ser mesmo. Neste caso, dificilmente você fugirá da técnica. Não vai formar opiniões, mas ensinar a utilizar ferramentas e desenvolver artefatos. A questão da origem das informações estará um pouco mais distante e terá menos relevância. Percebam a sutileza: não há produção de conhecimentos, mas uso de técnicas. ESTA é a visão predominante sobre a função de uma universidade no Brasil, como se o grande propósito desta instituição fosse formar trabalhadores. Mas sigamos.

Ainda mais uma vez ingressei no ensino superior e, desta vez, atendendo critérios outros que não a utilidade de me aprofundar na área de trabalho, mas no gosto. É quando fui cursar Filosofia. Aqui, os métodos de produção de conhecimentos se afloraram com todo o vigor. Cada passo tinha a necessidade de se dar reporte à fonte que lhe deu origem, artigo a artigo. A expressão mais bem acabada se deu no meu TCC. Quando apresentei o projeto, foi recebido com as aprovações de estilo, o que era animador, e foi-me nomeado um orientador, que ficou no aguardo da primeira entrega. Em cumprimento ao cronograma, entreguei o primeiro esboço cerca de uns quatro meses depois. A resposta parecia um autêntico varal de cortiço: observações de todos os tipos, tamanhos e cores. Se fosse só a questão das formatações da ABNT, tudo bem. É chato, mas é “só” uma formalidade facilmente sanável. O desespero se dava nas cobranças de fontes e exigências de melhores esclarecimentos. Um autêntico pandemônio que me levou à completa desolação. Na minha cabeça, eu nunca iria conseguir dar de comer ao tubarão que vivia na alma de meu malvado orientador. Explique melhor. Junte mais evidências. Dê o contexto histórico. Demonstre porque fulano e não sicrano. De onde você tirou isso? Cadê a fonte? Cadê a fonte? Cadê a fonte?

Juntei o que me restava de ânimo e entrei em contato com meu algoz. Ele me recebeu afável, dizendo que minha proposta era realmente instigante, e que a chance de ver meu trabalho publicado era batata. Mas, meu Deus, com tantas observações, tem certeza de que estamos falando o mesmo português? Ele me assegurou que meu trabalho estava muito bem estruturado, mas que existe uma diferença fundamental entre a dignidade de uma publicação e uma mera aprovação: a apreciação pelos pares. Pares... isso significa que eu era “um deles”, “igual a eles”. Eles quem? Dos entendidos, daqueles que compreendem a matéria que você trata.

Levantei os olhos e fiquei pensativo por infinitos dez segundos. Olhei novamente para o orientador e perguntei uma última vez: “É fato que meu trabalho está bem avançado? Você acha que eu consigo fechar algo decente?”. Sua resposta me deu uma bela injeção de ânimo: “Na maioria das vezes, esta primeira entrega é um mero rabisco. Você já passou um trabalho completo e delineado, que só precisa de alguns arremates. Se são muitos, é porque você já fez muito”. Com o ego insuflado até a ionosfera, mergulhei de cabeça pelos próximos vinte finais de semana, creio eu, até suprimir todos os defeitos encontrados pelo mestre. Inclui mapas e bandeiras, pesquisei em língua pátria e estrangeira, aprofundei vários detalhes que levaram a outros detalhes que pediam novos aprofundamentos, e a cada entrega o varal foi diminuindo, diminuindo, diminuindo... As últimas cuecas eram as meras formalidades que iam ficando para trás – capa, índices, abstracts, agradecimentos, um beijo pro papai, outro pra mamãe. No fim das contas, uma monografia impecável, um painel e uma banca bem superados e a oferta para a publicação. Estava suado, mas satisfeito.

É exatamente ESTA chatice toda que garante a qualidade de um trabalho de fôlego, digno de ser chamado de acadêmico. Milhares e milhares de estudantes e pesquisadores colocam seus trabalhos à prova não somente para cumprir suas obrigações formais, mas para registrar conhecimento submissível a refutações, com a obrigação de declarar seus métodos e de demonstrar, tim-tim por tim-tim, como foram realizados seus experimentos e pesquisas, para que possam ser reproduzidos a bel-prazer de quem queira avaliá-lo. Toda produção que utilize metodologia científica é trabalhosa, e visa aproximar-se o máximo possível de uma verdade objetiva, criando um mecanismo de fiscalização externo, que é composto pela revisão dos pares e pela reprodutibilidade das experiências.

Mas aí chega alguém que se diz mais sábio do que os outros e afirma que vacinas fazem mal, que as teorias heliocêntricas são fraudes, que o nazismo é de esquerda, que o aquecimento global é de araque, e tantas outras assertivas que não se baseiam na contraposição das teses acadêmicas e no combate com as mesmas armas, mas em teorias conspiratórias que trazem sempre os mesmos elementos: os cientistas mentem, os historiadores têm interesses, os acadêmicos querem ocultar a verdade. Por que será que isso acontece? Por que o ambiente de pesquisa é reduzido a um bando de malucos que olham para o céu que tentam adivinhar o que vai além dos sentidos? Essa é a desvalorização do ambiente universitário à qual eu me referia.

Nietszche nos oferece uma resposta, ainda que parcial, com a sua vontade de verdade, um impulso atribuído aos filósofos em conceder à verdade um valor absoluto. No entanto, o grande erro destes estaria em procurar esse valor de verdade em uma instância metafísica, como fazia Platão com seu Mundo das Ideias, e não na própria atividade criadora da humanidade. O propósito seria estabelecer uma verdade que hierarquizasse os princípios morais, como se estes não fossem criações humanas. Dessa forma, a verdade absoluta é uma invenção dos homens, e não uma possibilidade real.

A pós-verdade, termo em voga nestes dias, é uma versão extremada da limitação nietzschiana. A revolução representada pelo advento dos meios digitais e das redes sociais disponibilizou tal quantidade de informações que se tornou absolutamente indiscernível quais são as boas e quais não são. Antes tínhamos as donas Xepas nas janelas a especular as atitudes das filhas danadinhas de suas vizinhas; hoje, há Facebook para descobrir seus gostos, Instagram para ver seus rolês e centenas de usuários de Whatsapp para multiplicar a fofoca. O princípio geral de dona Xepa era dizer maldades para dar um pouco de tempero à sua vida sem sal e sem banha, sem alho e sem óleo. Dentre os “amigos” das vizinhas, há muito mais propósitos, muito menos sondáveis, que podem atrapalhar, magoar, detonar reputações. A verdade ficou difícil por excesso de versões. O que temos, portanto, é uma imposição de formadores de opinião, que oferecem uma verdade pronta e facilita a vida de nossos preguiçosos cérebros. Só que, se a verdade não é possível, ela tem uma... digamos... qualidade.

O fato é que, por mais que concordemos com a precariedade da verdade, há riscos em não assumir um lado. Exemplificando, se colocarmos na balança e vermos que tem o mesmo peso o que um cientista e um astrólogo leigo fala sobre aquecimento global, podemos cair em um ponto sem volta no desequilíbrio ambiental. Não dá para achar que, sendo impossível cravar quem tem razão, achemos que está tudo bem. É preciso chamar a responsabilidade para si e levantar algumas bandeiras.

Então onde depositar a confiança? Eu parto de uma premissa básica. Pode ser que, um dia, eu tente fazer pão. Não tenho nem ideia de como começar, mas pode ser que, na base do “eu acho”, acerte uma receita magistral. Qual é a chance real de que meu pão seja melhor que o de um padeiro? Pouca, né? Por isso mesmo, tenho a tendência a acreditar mais em um cientista em matéria de Ciência ou em um historiador em matéria de História do que em um palpiteiro, que pode até estar certo, e os especialistas errados, mas o próprio filtro crítico dos métodos me apontará para o caminho oposto. Não perguntarei ao açougueiro sobre planetas, mas sobre facas, assim como não perguntarei sobre maminhas ao astrônomo, mas sobre telescópios. Simples assim.

Mas essa minha conduta não é padrão, pelo que tenho observado. E a culpa, no final das contas, vem em parte da própria Filosofia. Afinal de contas, é ela, desde a inatingibilidade do noumeno kantiano, que assegura ser a verdade algo relativo. Percebam que toda abordagem fenomenológica é feita a partir de uma consciência, ou seja, por menor que seja a diferença, sempre há uma alteração pela variação de quem adquire o fenômeno.

Mas há o senso comum, e como nos diz Nietzsche, o vulgo opera com certezas enquanto o filósofo produz questões e mais questões. Percebam bem. Seja através dos mais rigorosos meios científicos, seja pelo mais prosaico papo de boteco, o fato é que as ideias e os pensamentos fluirão para o mesmo destino: a linguagem. É sempre ela que é o meio e o destino final que as apreensões que fazemos do universo vão transitar dos nossos sentidos para as nossas manifestações. A Ciência (aqui compreendida todas as suas correntes – naturais, humanas, exatas) busca compreender os seres em sua profundidade, enquanto o senso comum busca apenas aquilo que é tangível. Uma bola, por exemplo, é um objeto esférico fabricado em material flexível, oco, que adquire essa forma por uma distribuição de pressão similar em seu interior, através da compressão dos gases que forçam as paredes dotadas de uma certa elasticidade levadas a um determinado limite que lhe fornece a dureza ideal, nem tão mole que lhe esmaeça os saltos, nem tão dura que fira seus usuários, que é utilizada de modo lúdico para entreter crianças e adultos com o proveito de ser essencialmente barato, e de agregar uma boa quantidade de gente, o que lhe dá dois estatutos: objeto de culto e catalisador social, além de ser um distintivo inequívoco de cultura. Isso tudo para os diversos aspectos científicos; ou é aquilo que chutamos para fazer um gol, de acordo com o conhecimento vulgar. Qual dessas descrições será compreendida por um número maior de pessoas? A da Ciência ou a do senso comum?

É por isso que as fake news, o grande estandarte da pós-verdade, funcionam tão bem. A cada vez que uma afirmação científica é contestada, os pesquisadores voltam a dar suas explicações complexas, enquanto o senso comum opera com a apreensão imediata: olhe para o horizonte e perceba como a terra é plana. Isso vale principalmente para objetivos pragmáticos. Se eu estou insatisfeito com um político qualquer, espalhar uma notícia falsa sobre ele é eficiente, porque eu simplesmente reforço a crença de quem a lê. Verificar é muito mais difícil do que acreditar. E o senso comum acaba vencendo o senso crítico. Isso é perigoso: faz manés se passarem por gênios, faz com que amigos fraternos se tornem inimigos capitais, faz presidentes da república. Que medo...

É isto que esperamos que cidades como Itajubá ajudem a evitar, que o espírito universitário se mantenha como um propósito para os moços, que ainda creiam que podemos ir além do senso comum e que a “fé” no conhecimento cresça pela sua própria humildade em se reconhecer permanentemente incompleto. O contrário disso é o dogmatismo que temos assistido. (O que resta de) Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como já falei aqui e ali, a obra de Nietzsche é uma verdadeira colcha de retalhos, e podemos ver em mais de um lugar suas considerações sobre a verdade. É no livro abaixo, no entanto, que nosso caro alemão aborda o tema com mais contundência. Vale ler.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 7ª estação: Wenceslau Braz e a resiliência de quem quer escrever a própria história

Olá!


O feriado de 12 de outubro caiu em uma sexta-feira. Isso significa fim de semana prolongado, com o corolário de estrada cheia. A idade é uma coisa curiosa mesmo. Ganhamos cada vez mais paciência nas relações interpessoais e cada vez menos no trânsito. Não sei exatamente os motivos desta psicologia, mas ouso arriscar. Na medida em que ganhamos experiência, cada vez mais fica consolidado em nós que não adianta dar murro em ponta de faca: as pessoas não são exatamente como gostaríamos e fazem coisas que temos dificuldade em aceitar, mas elas são assim e pronto. Por outro lado, minutos de engarrafamento são tempo absolutamente perdido, o que é coisa preciosa para quem já está no segundo tempo da partida. Por esse motivo, pus-me de regresso no próprio sábado. Desperdicei o domingo? Em tese sim, mas vocês verão que eu tinha motivos para ter cuidados além do próprio porre do retorno congestionado.

Ainda havia boa parte do sábado para curtir. Fizemos um esquema meio louco, que envolvia cronograma e cronometragem precisa. É que a patroa queria levar laticínios para casa, incluindo leite in natura, o que envolve refrigeração. Encontramos uma casa que vendia leite cru, queijo e manteiga à beira da estrada. Reservados os produtos, deveríamos buscá-los às quatro da tarde, hora de encerramento das atividades. A partir daí, era carregar o Bedelho e pegar o beco que leva a São Paulo, visando manter a integridade do alimento transportado. Eu detesto leite, é verdade, mas não moro sozinho e fica muito mais em conta comprar direto do produtor.

O tal do laticínio fica bem na beirada da estrada que leva a Wenceslau Braz, pequeno município fronteiriço ao estado de São Paulo, e que nos contaram possuir uma boa e pouco movimentada cachoeira. É para lá que vamos, gelando as costas enquanto esperamos a hora certa de buscar o acervo lácteo.


O nome do lugar é Cachoeira do Areião, explicado pela quantidade de areia que fica no fundo das águas de seus remansos. Faz parte do curso do Rio das Bicas, o principal do município.


O lugar é propriedade particular, e cobra uma pequena taxa pela visitação. Quando a área é bem mantida, com uma estrutura mínima para quem a procura, acho justo que se faça a cobrança.


Não sei definir bem se o sítio fica localizado de fato em Wenceslau Braz ou se está em Delfim Moreira, mas o que importa é o contexto em que foi inserido em minha viagem. Sendo assim, por concordância geográfica ou licença poética, vai ficar por aqui mesmo.


A Cachoeira do Areião é composta por vários saltos e pedras descobertas, escorregadias até dizer chega, o que exige cuidado. Para chegar à parte alta, existem algumas trilhas mais ou menos fechadas, cheias de vegetação nativa.


A cachoeira principal tem bem a altura de um sobradão, uns dez metros, creio eu. É daquelas cujo volume d’água dá uma bela pancada na cabeça, para gáudio dos que morrem de calor. É um ponto bastante perigoso para quedas, no entanto. Melhor redobrar os cuidados e ser comedido nos atrevimentos.


Como curiosidade, a casa é guardada por um cachorro, que, se não me engano, se chama Tigre. É daqueles que vem correndo que nem louco quando te avista, e você se borra achando que ele vai te atacar. Nada disso, o bicho é boa praça e brincalhão.


Ele só vira fera se achar que o dono está sendo ameaçado. Além disso, foi ensinado a tirar sujeiras de dentro da água, inclusive galhos que por ventura caiam. Foi criado na água desde pequeno e sabe nadar sem muito esforço.


Nas redondezas, há mais algumas coisas a serem vistas. Um fato digno de nota é que Wenceslau Braz possui uma antiga unidade da IMBEL, uma indústria que produz material bélico para o exército. Para tocar sua atividade, foi construída uma pequena hidrelétrica que funciona até hoje, gerida pela REPI – Rede Elétrica Piquete-Itajubá. É considerada ambiente militar e seu acesso não é muito facilitado. Seu lago é formado pelo mesmo Rio das Bicas.


O tal rio é tão presente na cidade que corta inclusive seu pequeno núcleo urbano, exatamente na altura onde fica a antiga construção da retro mencionada fábrica. Estando na cidade ou nas estradas, o rio é facilmente localizável.


De saída do Areião, fomos dar uma passadinha pela cidade. O núcleo urbano é muuuuuuuuuuito pequenininho, e se assemelha a uma vila. Só tinha um lugar para almoçar, mas ok. Sua igreja matriz tem uma torre em curioso formato piramidal, e é nomeada para homenagear Sant’Anna. Só tirei fotos medíocres, peço perdão.


O adro da igreja fica em nível mais alto em relação à rodovia, e tem o de sempre: canteiros, bancos, bandeirolas para a recém terminada festa de Aparecida e coreto.


Por fim, há uma outra construção que pontua o centro, próximo à matriz. É um castelo. Seria um desejo exótico como o castelo Pioli de Brazópolis? Ou um templo, como faz antever a cruz inserida em uma de suas torres? Ou ainda a sede de alguma sociedade não bem especificada? Uma casa de shows temática? Não, é algo mais simples. É uma pousada, a Pousada Castelinho.


Wenceslau Braz foi um presidente do Brasil, já me repeti muito sobre isto nesta série. Mas o nome original da povoação era outro, remissivo mais uma vez ao rio: Bicas do Meio. Sendo parte da Estrada Real, e, por consequência, caminho de tropeiros, a presença de vários pontos onde se podia coletar água tornava a localidade importante e lhe explica o antigo topônimo. Já expressei neste texto todo o meu desalento com essas mudanças de nome, porque acho que infringem a nossa história. Tudo bem, pode ser um orgulho para uma região pequena ter um filho tão ilustre (muito embora seu nascimento tenha sido na atual Brazópolis), e eu não tenho nada a condenar nos anseios de quem tem o direito de legislar sobre o próprio nome, mas insisto que isso é tolher a história das gerações futuras, mas é coisa minha. E la nave va...

Wenceslau Braz é definitivamente uma cidade pequena. O núcleo urbano é reduzidíssimo e mesmo a extensão rural não é das maiores. Está na posição nº 5122 nos tamanhos em área do Brasil. Para um município predominantemente agrícola, é bem pouco. Conversei com o pessoal da cachoeira e da pequena lanchonete, e ouvimos o mesmo que em tantos outros lugares campesinos. Os velhos adoram o lugar, os jovens o abominam. A fórmula é bem conhecida. Muitos daqueles que moram aqui por prazer o fazem depois de ter habitado em cidades grandes, e optaram por um lugar tranquilo para passar os restos dos seus dias. Valorizam sobremaneira a paz que não tinham em São Paulo, Belo Horizonte, São José dos Campos, Curitiba... Enfim, fazem-no por escolha. Já os moços têm diante de si uma carência completa de oportunidades. Além dos estabelecimentos que citei, há terra e mais terra, com o agravante de estar inserida em área de preservação, o que é um bem para o patrimônio ecológico, mas um atravanco para quem quer mais do que colher ou extrair. Ainda que se esforcem muito em universidades, o exercício de suas profissões será limitadíssimo em uma cidade pouco maior que uma povoação. Ora, direis, São Caetano do Sul tem quatro páginas no guia Mapograf (alguém ainda sabe o que é guia Mapograf?) e é cidade riquíssima; Águas de São Pedro é menor ainda e ostenta um dos melhores índices de desenvolvimento humano do Brasil, perdendo somente para o precitado município do ABC. Tenho a dizer ao nobre e suposto interlocutor que uma das quatro páginas de São Caetano, sozinha, é preenchida por uma montadora gigantesca, o que garante emprego em grande quantidade e indubitável qualificação. Com relação a Águas de São Pedro, é movida por intenso turismo, provido por abundantes recursos naturais. Wenceslau Braz não tem, por enquanto, estes panoramas à sua frente. O que há de perspectiva em seu futuro?

Percebo que, em certos momentos, as pessoas têm uma propensão a ocultar suas origens. Não estou pensando em ninguém especificamente daqui, mas já ouvi muitos depoimentos de gente que parece ter um constrangimento de dizer de onde veio, seja pela pobreza da região, por um ar de provincianismo, por outro motivo qualquer. É uma forma de renegação da própria história, o que é sempre triste. Parece que há um trauma a ser carregado em ponto menor, e isso me remete à questão da resiliência, um tema que foi bastante desenvolvido pela psicologia dos últimos tempos, mais especificamente por Boris Cyrulnik, francês de ascendência judaica. Boris sofreu uma das experiências mais traumáticas que alguém pode ter tido. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando era uma criança, toda a sua família foi conduzida para um campo de concentração, onde foi violentamente assassinada. O menino foi o único que conseguiu fugir, em uma perspectiva altamente destrutiva. Isso foi inspiração para toda a sua carreira, até os dias de hoje.

A pergunta que cerca as teses de Cyrulnik é a seguinte: por que pessoas diferentes reagem de maneiras diferentes aos seus traumas? Por que há quem define sua história a partir de eventos prejudiciais e há quem não o faça?

Vamos colocar um caso hipotético, daqueles quase tolos. Dois torcedores de um mesmo time vão presenciar a final de um campeonato, justamente contra seu adversário mais ferrenho. O resultado é um desastre – lavada fora o baile. Ambos sofrem na hora, mas um deles, já nos próximos dias, retoma sua rotina normal: reage às gozações com outras tiradas e promete “vingança” para o próximo torneio. Vai trabalhar normalmente, participa das resenhas, mesmo que contrariado, almoça no mesmo lugar e não fica casmurro em casa, para a incompreensão de esposa e filhos. Já o outro apaga o assunto “futebol” de sua agenda. Consome seu banco de horas para faltar por uns três dias (o que aumenta a zoeira dos colegas), não come direito e deixa de ir ao estádio por uns bons anos. As camisetas do time vão parar no fundo da gaveta, quando não no bazar de uma igreja qualquer, e sua reação tende a ser explosiva. Aos mais íntimos, incluindo os familiares, reserva uma raivosa distância.

Ora, para o primeiro, o futebol representa um esporte e nada mais, uma diversão fugaz, que lhe afeta, mas não muda seu modus vivendi. Para o segundo, afeta a honra e tem um significado que lhe atinge em cheio a personalidade. O fato que ocasionou o prejuízo é exatamente o mesmo, mas as reações são diferentes porque o que está em jogo em sua consciência são separadas por um desvão abissal. O dano é uma coisa, a representação do dano é outra completamente distinta. Como isso se formou? Através da vivência de cada um dos nossos infelizes torcedores.

Saindo da brincadeira e lidando com questões mais dolorosas, podemos pensar em termos de abusos infantis, sejam lá quais forem. Um pai agressivo, por exemplo, causa lesões em uma criança. O dano em si pode ser curado com alguns unguentos, mas a representação do dano como um todo pode marcar a vida inteira. Se a mãe opta pelo silêncio ou por defender a atitude do pai (às vezes por conta do próprio medo), a criança se sentirá desamparada. Desenvolverá suas próprias defesas sem contar com mais ninguém, e, a partir daí, sua personalidade será moldada – arredia, desconfiada ou coisas piores, incapaz de traduzir em palavras suas próprias aflições. Afinal, ao tentar reproduzi-las, encontrará um paredão à sua frente, e o ato de reavivar as memórias só se consistirá em uma dupla dor. Toda a sua vida ficará crivada pelo ato violento, do qual terá dificuldade em se desvencilhar. Caso encontre apoio, poderá ter nesses efeitos e, mais precisamente, na representação da violência, uma redução significativa, deixando de atribuir a todo e qualquer adulto uma possibilidade de ressurgimento do trauma. Notem como a história de uma e de outra será marcada pelo trauma.

O termo resiliência vem do efeito mecânico de retorno à forma original após um corpo sofrer uma deformação. O processo de vulcanização, por exemplo, visa causar uma deformação permanente em um artigo de borracha, o que o torna resiliente a novas modificações em sua forma. Este termo foi emprestado pela psicologia como uma metáfora da resistência da personalidade a impactos. Ser resiliente, portanto, é uma maneira de não deixar que as adversidades da vida influenciem no jeito de ser de um ser humano. Como descrito acima, o processo de autoestima é o primeiro a ir para o vinagre: há uma tendência em se culpabilizar a si mesmo quando não se encontra eco na tentativa de reagir. A resiliência, neste caso, é sempre fomentada por agentes externos – o meio familiar e social. Relatos de outras pessoas que passaram por traumas semelhantes são bastante eficazes nestes casos. Basta para que o indivíduo não se enquadre solitariamente perante a sua dor. Não se trata de mero estoicismo.

Agora, podemos pensar em uma resiliência coletiva? Penso que sim. Tudo depende da maneira como uma comunidade constrói suas defesas aos próprios sofrimentos. É muito comum perceber que certos povos são mais sofridos, seja pela predisposição geográfica dos locais onde se desenvolveram, seja pelos relatos de conflitos que atravessam suas histórias. A reação perante um terremoto, por exemplo, pode ser um grande salve-se-quem-puder ou uma teia de solidariedade. No primeiro caso, as pessoas com certeza não aprendem a lidar com situações que podem voltar a ocorrer no futuro: diante de uma hecatombe, há bem pouco a se fazer individualmente. Já no segundo, o elo social se fortalece e as próximas ocorrências vão encontrar um povo mais estruturado para encarar as mesmas adversidades. Vejam como os japoneses se organizam para os frequentes sismos que ocorrem em seus territórios. Todos sabem exatamente o que fazer, ainda que o desastre seja grande.

E é aí que eu quero reduzir o ponto, como propus lá no início. Entendo que o mesmo princípio geral da resiliência possa ser aplicado não a traumas propriamente ditos, mas aos rótulos que são impostos a pessoas e a nichos sociais. Como já descrevi neste texto, o meio social tem uma tendência a se prender a descrições precisas sobre seus componentes, e o mais incrível é que os próprios indivíduos procuram se adequar à discricionariedade do rótulo. Roqueiros têm que andar de preto, emos têm que ter franja, hippies têm que ter flores no cabelo, grunges têm que usar camisas de flanela. Enquanto elemento de identificação das tribos urbanas, tudo bem. O problema se dá quando o rótulo vem de fora: nordestinos são extravagantes, negros são malandros, gays são lascivos, índios são incultos, interioranos são matutos. Ou seja, o preconceito vem travestido de distintivos de fracasso: fracasso em tentar se colocar como cultura válida, fracasso em se encontrar no meio do progresso, fracasso em se ver reconhecido como um cidadão como outro qualquer. Da mesma forma que diante do trauma, há duas maneiras em que podemos nos colocar diante do problema, vinculado à representação que se dá ao dano. Podemos nos conformar em receber a pecha e nos comportar como a mesma preconiza, ou podemos dizer um “não” ao rótulo, que, em última instância, nos tenta causar prejuízo. O morador da cidade pequena não pode e não deve se reduzir àquilo que constitui seu estereótipo. Não são jecas que andam de chapelão e pé descalço, que estão condenados a uma cultura rasteira, e a uma cidade sem perspectiva de progresso. Essa é uma história escrita por quem vê de fora, por quem não lhes conhece a realidade e que se fixa a uma visão de julgamento antecipado. Ninguém conhece o destino de ninguém, mesmo que seja de uma coletividade. Pode parecer autoajuda, mas a caneta que escreve a história está na mão de cada um. Se eu tiver que recomendar a cada um desses jovens que não veem expectativa alguma em suas vilas, é que estas serão aquilo que eles, moços que tem a vida inteira pela frente, fizerem delas. Achar ou criar um novo propósito na existência é a principal virtude da resiliência. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

O título parece de romance, e há outros do autor que remetem à autoajuda, mas é um ledo engano. Sua escrita é séria e trata de problemas delicados, conforme descrevi neste texto. Vale a pena conhecer.

CYRULNIK, Boris. Falar de Amor à Beira do Abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.