Marcadores

quinta-feira, 28 de julho de 2016

A ética da etiqueta: sobre o modo como ela aparta e quando ela reúne

Olá!

Mais uma vez estou sentado em minha mesa ao ar livre no Parque da Água Branca, enquanto a patroa corre atrás de couves e maçãs. Estou diante da habitual xícara já gelada de café, pelo motivo mais simples de todos: está frio bagarai. Blusa fofa e minhocão por baixo das calças dão-me a alegre e exagerada impressão de astronauta. A gola alta me permite tapar o rosto até a altura dos olhos, mas a ausência de uma touca limpa me fez apelar para o meu boné confederado.

Algo não está me deixando confortável. Minha mãe, minha avó, minha madrinha e mesmo minha esposa sempre me disseram que não se senta à mesa de chapéu. Isso me dá a desaconchegante sensação de que todos me olham e inquirem: um homem tão velho, dando esse péssimo exemplo às crianças em lugar público. Ora, direis, boné não é chapéu, ao que responderei se tratar de mero subterfúgio. Sentar-se à mesa e não tirar o chapéu é falta de educação. Entre tímido e ressabiado, retiro o boné e tenho o primeiro arrependimento: como eu já disse, está um frio digno dos tempos que fizeram esta cidade ficar conhecida como Terra da Garoa.

Mas o segundo arrependimento é pior. Pego o celular e, discretamente, faço de conta que estou lendo qualquer coisa. Aciono a câmera e a configuro para selfie, transformando-a em espelho. Bom, quem tem cabelos crespos já deve ter uma ideia da imagem – um ninho de mafagafas, sem as sete mafagafinhas. Uma massa informe, compacta, com fiapos grudados uns aos outros mas em luta por independência. Chego à conclusão de que falta de educação é deixar aquilo exposto. Reponho o chapéu azul de pala curva preta, alteado por dois rifles cruzados. Tenho a revigorante sensação de que o mundo ao redor compreendeu o “foda-se” que acabo de aplicar aos bons modos e retorno a essas mal digitadas linhas.

Estranho como temos uma quase opressão sobre o que pensam de nossa aparência. Eu seria capaz de me colocar a chapa do coco a frio pelo simples fato de que outros me veem, algo que seguramente não faria se estivesse sozinho em casa. E me ponho a refletir em outras situações em que o mesmo ocorre, e de modo ainda mais arraigado.

Uma dessas situações vai nos deslocar para o extremo oposto das condições climáticas. Lembro-me de mim no mês de janeiro, sol a pino, e eu enfurnado dentro de um paletó. Tudo acrescenta fatores ao contrassenso: o terno é escuro, a camisa tem mangas compridas e a gravata aperta a garganta, não deixando passar nem uma formiga, quanto mais um pouco de vento. O nó tem que ser legítimo, já que é brega usar aqueles prontos, com ajuste por zíper. Não consigo encontrar nenhum tipo de explicação racional para o uso de terno em um país tropical como o Brasil. Isso ainda porque falo de São Paulo, Capital. Fico pensando no pessoal de São José do Rio Preto, do Rio de Janeiro, de Salvador, de Brasília, de Cuiabá... Deveríamos receber adicional por insalubridade.

Bem, já está claro que estou colocando em confronto as questões de ética e etiqueta. Os casos do boné e do terno já nos remetem à dúvida: é ético proporcionar sofrimento a uma pessoa em nome de sua aparência? Há aspecto positivo possível?

Vamos lá. A princípio, vamos já separar coentro de salsinha. Ética e etiqueta são palavras semelhantes, inclusive dando a ideia de que a segunda seria um diminutivo da primeira. Mas não, nada a ver. Ética vem do grego ethos, que tem definição bastante ampla, mas que pode ser resumida pelo conjunto de costumes de uma pessoa ou povo, que extrapola as contingências e lhe caracteriza. Já a etiqueta vem do francês étiquette, que significa, em sua origem, uma tira de papel esticada em um produto qualquer para identificá-lo; o bom e velho rótulo.


Mas é muito bem possível encontrar relações entre ambas, que vão além da semelhança ortográfica. Como já falei acima, a etiqueta serve para rotular. E, como se pode perceber, temos uma tendência a distinguir não apenas os objetos, mas também e principalmente as pessoas. E isso se dá em seus modos de vestir, falar, comer e così via.

Os mecanismos de distinção são muito eficazes. Nós interiorizamos as coincidências entre determinados membros de um grupo e as diferenças com os demais de forma tão aprofundada que este processo é quase automático.
Vamos fazer um exercício, que vai começar maneiro e vai apertar na medida em que andamos. Imagine uma garota com uma sapatilha, meia fina, saia tutu e collant. Bem, temos uma bailarina, ok? Agora vamos imaginar um rapaz qualquer, com camiseta, bermuda, chinelão, barba malfeita. Ele é... um rapaz qualquer! Pensemos agora em um homem sério, de paletó, gravata, sapato tinindo de lustrado, com um celular no ouvido. O que temos? Um executivo.
Bem, agora vamos acrescentar um elemento a cada descrição, e ver no que isso vai modificar nossa percepção sobre cada uma delas. No caso da bailarina, vamos inseri-la em um determinado ambiente; um banco, digamos. O que faz uma bailarina em um banco? A estranheza nos moverá para uma nova conceituação, já que só esperaríamos ver uma bailarina em um teatro ou, vá lá, em um circo. O espaço por excelência daquilo que escapa a um padrão é a loucura; portanto, já não consideraremos a mocinha como uma bailarina, mas uma louca.

Pois bem. Passemos ao rapaz qualquer. No caso, não vamos inseri-lo em um ambiente específico, mas acrescentar uma única peça em sua indumentária. Vamos pegar uma daquelas toucas multicoloridas, com as cores da bandeira da Jamaica, feitas de tricô e com uma copada enorme, adequada para os cabelos rastafári. Desta forma, transformaremos nosso rapaz qualquer em um maconheiro qualquer. Não adianta insistir. Reggae e maconha estão tão fortemente associados em nosso imaginário que nem precisamos ver nosso amigo ouvindo o estilo ou com um cigarrinho de artista na mão para reputá-lo como usuário da ervinha com cheiro de pano queimado. Ou seja, uma única peça e, no limite, um único ato é suficiente para modificar todo o juízo que fazemos de uma pessoa.

O caso do executivo vai ser mais breve, e ainda mais dramático. Vamos pegar a descrição feita  e apenas acrescentar o fato de que o homem em questão é negro. Desculpe, mas tanto eu quanto você já pensamos: ele não é o executivo, mas o motorista do executivo. Não é?

Portanto, fatores extrínsecos, como ações e ambientes; ou intrínsecos, como cor e sexo, fazem com que as pessoas sejam qualificadas de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau. Esse é um processo social que ficou conhecido como Teoria do Rótulo, conforme denominada pelo sociólogo norte-americano Howard S. Becker. Segundo ele, nossa identidade e nosso comportamento são o espelho das descrições e classificações que fazem de nós. Segundo nosso emérito ianque, os rótulos são produtos de um caminho de duas vias: um que o forma e outro que o aceita. Vamos ver.

A rotulagem funciona assim: em uma sociedade onde algumas classes detêm melhores condições de vida do que as outras, evidentemente seu modus vivendi e suas opiniões acabam sendo vistas como referenciais. São os moldes para onde todos os outros grupos devem convergir. Evidentemente, o grupo paradigma exerce essa atratividade à aderência através do poder, seja ele objetivo, como o poder político e econômico, seja ele tácito, como os detentores dos meios de comunicação e os dirigentes religiosos. As classes que lhes são subalternas podem buscar se amoldar aos seus ditames, mas, em seus extremos, sempre existirão usos e costumes que não se adequam totalmente ao padrão, o que Becker chama de desviantes, aqueles cujo comportamento escapa da norma estabelecida pelo acordo comum da classe dominante.

Mas os atos desviantes são praticados apenas por indivíduos ou grupos desviantes? Nem sempre. Lembremos que a norma é estabelecida por quem detem o poder, mas há sempre a possibilidade de um dos seus membros, como os políticos, juízes e etc praticar o ato desviante. E a maneira como a sociedade vai olhar para esse indivíduo é muito subjetiva, mas com a tendência de apontar a culpabilidade da própria pessoa nos casos em que este pertencer a um grupo subalterno, ou a outras condições, como uma situação esporádica, caso o membro seja da classe poderosa.

Uma maneira fácil de reconhecer isso é comparar como os noticiários tratam as duas situações. Por exemplo, um delinquente juvenil é acorrentado a um poste após levar uma bela de uma surra. Alguns jornalistas consideram a atitude dos agressores compreensível, dada a impunidade reinante no país. Já um astro da música resolve, sabe-se lá por que, quebrar tudo no hotel em que se hospeda. Os mesmos jornalistas entendem ser um ato de rebeldia típica da juventude. Um é bandido, o outro é inconsequente. Um pratica o crime porque é mau e o outro porque é levado a fazê-lo pelas circunstâncias eventuais. Percebem o rótulo sendo preso no pescoço? Esse é o cidadão que Becker chama de outsider, aquele que está do lado de fora.

Mas o outsider não é totalmente passivo nesse processo. Ele absorve a classificação e acomoda-se a ela, aceitando, ainda que inconscientemente, o rótulo que lhe é imposto. Esse é o segundo aspecto do processo de rotulagem. Alguém impinge o rótulo, como descrevi acima, e outro o aceita. Quase todos os executivos se vestem de terno, ainda que sofrendo – porque precisam informar ao mundo que são executivos. Quase todos os delinquentes se adaptam ao modelito função (ou leleque, para os tempos atuais), ainda que isso denuncie sua “profissão”. Todo metaleiro se veste de preto, mas é impossível gostar de heavy metal vestindo-se de branco, ou azul, ou rosa, ou sépia, ou siena, ou solferino? Claro que não, mas não é só o establishment que nos determina; nós mesmos nos ajustamos. Nós mesmos buscamos nos adequar ao molde que nos é colocado. Em suma, somos convencidos que somos mesmo passíveis de rotulagem.

Estou me apegando muito à questão da indumentária, e o faço por se tratar da casca, da questão mais aparente de todas. Mas, evidentemente, a moldagem não se limita a isso. A etiqueta é um dos aspectos conformadores das classificações, porque indica normas de conduta predeterminadas e um forte elemento de distinção: o costume. Bem resumidamente, somente quem adere ao protocolo é capaz de ter acesso à elite que é representada por esses costumes. É preciso saber sentar-se à mesa, vestir-se adequadamente, usar o tom correto de voz, conhecer gestuais de apresentação e despedida, etc. Enquanto estes são sinais de boa educação, tudo bem. O problema é quando dominar a etiqueta significa colar o rótulo da diferenciação na testa; não dominar é ser expulso da festa.

Bom. Se a rotulação não tem nada de ético e aplicar etiqueta nada mais faz do que criar preconceitos, em que aspecto ela pode ser positiva? Vamos tentar uma resposta.

Todas as vezes que eu chamo uma pessoa na minha casa, procuro recebe-la da melhor forma possível. Isso significa que prepararei boa comida, comprarei boa bebida e as deixarei na temperatura certa, limparei a casa, forrarei a mesa, providenciarei alguma alternativa para veganos/vegetarianos/hipertensos/ diabéticos e tentarei ser pontual para recebê-los. Posso tomar todos esses cuidados por dois motivos: causar uma boa impressão ou demonstrar meu apreço por quem me visita.

Ter todo esse trabalho para receber pessoas não quer necessariamente dizer que eu queira exibir meus dotes culinários e minha elegante porcelana, ou que eu saiba montar pratos, talheres e copos à mesa. Mais que isso. Quer dizer que eu não me importo em proporcionar o que eu tenho de melhor para as pessoas com as quais eu tenha ou queira ter afinidade. O seu lugar à mesa está reservado, não porque eu queira me mostrar, mas porque eu me importo com você, ainda que a mesa seja apenas um elemento figurado: mesmo que sentemos ao chão, teremos uma etiqueta ética pelo simples fato de eu respeitá-lo, e por isso mesmo não vim recebê-lo pelado, com um monte de pelo de cachorro espalhado pela casa, com o banheiro sujo e comida de micro-ondas. Esse é o verdadeiro ponto de inflexão da etiqueta – quando ela é inclusiva, prova de cuidado e acolhimento, quando temos o zelo para que todos que nos rodeiam se sintam a vontade.

A etiqueta é ética, finalmente, como elemento de aproximação. Não precisa ser um elemento de distinção, mas justamente do contrário. Dessa forma, a etiqueta foge do protocolo e se aproxima de uma democrática celebração do respeito. Mas aí uma coisa não parece ter nada a ver com a outra. Só que temos de lembrar-nos da etiqueta como norma de conduta, e pensar onde esta norma nos ajunta ou nos afasta.

Recomendação de leitura:

Becker é um dos principais sociólogos vivos que temos hoje. Embora contestada por muitos, sua teoria do rótulo é muito rica, e que está bem exposta na obra abaixo:


BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sobre a desonestidade intelectual e o Pequeno Guia das Grandes Falácias - 29º tomo: o Atirador do Texas

Olá!


Por mais que gostemos de algumas coisas, chega uma hora em que é preciso dar uma renovada. Afinal de contas, objetos não são pessoas e podem ser descartados sem grandes dores, apesar de nem sempre estarmos convencidos disso. Eu sei, eu sei... sempre tem algo que queiramos guardar por algum tipo de laço afetivo, seja por trazer boas lembranças, seja por sua beleza, seja por sua atávica utilidade; mas não é a isso que me refiro. Falo sobre aquelas coisas que realmente não nos servem mais, que ganhamos e não gostamos (e que só mantínhamos para não ficar chato) ou que compramos errado.

Tudo isso para dizer que tomei coragem e dei uma esvaziada na minha estante. Como a galera sabe que gosto de ler, este é um presente recorrente em meus natais e aniversários, e não há logística que suporte grandes coleções em um apartamento. Livrei-me de alguns dicionários velhos, daqueles em tomos; de livros que estavam muito estragados, de livros que comprei e me arrependi, e, principalmente, de livros que herdei. São livros que tiveram sua chance – não descartei nenhum que ainda não tivesse lido pelo menos umas trinta páginas. Ainda creio que uma história precisa de oportunidades para crescer, mas vejo que isso é raro.

Na medida em que ia separando os condenados ao degredo de um dos sebos da João Mendes (conseguindo, ao término, zerar três das sete prateleiras), submetia-os à apreciação dos demais habitantes de casa. Afinal de contas, eu não moro sozinho e não tenho este egoísmo todo. Desta forma, fazia pilhas separadas, para distinguir os descartes certos dos candidatos a banimento ou piedade. Um desses foi decidido pelo emérito Homem-Cueca, que deliberou por mastigar um livreto de poemas de algum autor obscuro. Espantei o cachorro e selei o destino da obra, em arremesso curto e grosso ao latão. Ao retornar à árdua e poeirenta tarefa, dei de cara com um livro do meu pai, um pequeno tratado sobre as profecias de Nostradamus.

Sentei um pouco na banqueta e pus-me a recordar. Lembro-me daquele livro, mas não faço nem ideia de como veio parar em casa. Meu pai, de vez em quando, era tomado por alguma mania (como, de resto, sói acontecer a quase todo mundo, eu incluso) e uma delas foi uma fixação em Nostradamus, por um curto período. Comprou dois exemplares das “Centúrias”, sendo uma delas uma edição bilíngue (!) que trazia os obscuros versos em português e no original francês. Também comprou dois livros de interpretações, sendo um deles o que agora estava em minhas mãos, escrita por Kurt Allgeier. Meu pai tinha dessas coisas.

Sempre tive um bocado de curiosidade em compreender o que leva uma pessoa a acreditar e incomodar-se com profecias, vaticínios, predições, prognósticos, adivinhações e augúrios que se apoiam em um mero nada. Minha capacidade em crer nesse tipo de previsão exauriu-se quando eu tinha tenros nove ou dez anos, nada mais do que isso. Por isso mesmo, percebo uma grande diferença entre ler as Centúrias e seus comentários. Nostradamus, acreditem se quiser, é uma leitura até agradável – cheio de lirismos, repleto de alegorias, muitas referências metafóricas, e, evidentemente, um estilo de época que não deixa de ser pitoresco. Claro que uma linguagem cifrada é ideal para alguém que alega ter contato direto com as divindades para nos trazer notícias fresquinhas, mas confesso que não é um gênero que me desagrada de todo, pelo menos enquanto literatura. Já o conteúdo e seus comentadores...

Em primeiro lugar, o desagravo. É óbvio que não só Nostradamus, mas qualquer outro profeta, se de fato lhes fosse dado enxergar o futuro, dificilmente conseguiriam compreender os objetos da modernidade. Por exemplo: o trecho...

Armas e documentos dentro do peixe
Dele sairá o homem que fará a guerra

... pode muito bem ser interpretado como um submarino de guerra. No século XVI, não se fazia a menor ideia do que seria tal artefato. Daí, ser razoavelmente aceitável que um comentador arrisque a concreção da metáfora em um objeto real.

Portanto, o problema não está aí, ou seja, no uso de um mecanismo interpretativo. O X da questão acontece quando, mesmo admitindo a liberdade das interpretações, algumas das afirmações completamente furadas das Centúrias são simplesmente esquecidas e o gajo continua reputado como um profeta a ser levado a sério. É bem difícil, mesmo com o uso de alegorias, deixar de perceber que uma passagem como essa...

No ano 1999, sete meses
Do céu virá um grande rei de Terror
Ressuscitará o rei de Angoumois
Antes que isso ocorra Marte reinará entre eles

... não tenha sido um tiro n’água. E então dá-lhe contorcionismo para justificar o erro. Está lá, claro e cristalino: ano de 1999. O que aconteceu de grave em 1999? Nada do que já não estejamos acostumados. Era a famosa profecia da virada do milênio, que tanto horror já havia causado na virada do ano 999, e que tornou a ocorrer. Só que, da mesma forma, continuamos aqui a escrever as linhas tortas do dia-a-dia do planetinha azul. Poder-se-ia forçar a barra, dizendo que os calendários na época de Nostradamus eram diferentes dos atuais, jogando para frente o evento, de modo a, por exemplo, coincidir com o famoso 11 de setembro. E daí também seria possível dizer que o sétimo mês não seria julho, mas SETE... mbro! Não é uma maravilha? Ou, o que é mais fácil ainda, simplesmente esquece-se uma passagem como essa, como se não existisse.

Mas há quem ainda defenda as predições de Nostradamus, mesmo nos dias de hoje. Um rápido périplo pela internet mostra um monte de gente interessado em indicações do que virá pela frente, sempre utilizando da seleção de trechos do seu interesse, e desprezando solenemente aquilo que prejudica sua tese. Há até uma seleção infindável de “livros secretos”, “livros perdidos” e outras aberrações do gênero.

Óbvio que isso é uma falácia. Quando selecionamos os fatos que dão guarida ao nosso raciocínio, porém sublimando aqueles que o desfavorecem, praticamos um erro de argumento que é conhecido pelo curioso nome de Atirador do Texas.

A estorinha que dá origem ao nome desta falácia é obscura, mas poderia ter a seguinte base: em um rancho perdido no interior do estado norte-americano do Texas, no tempo do faroeste, um bando de forasteiros bem armados e mal intencionados espalha confusão e insegurança por toda a localidade. Certa noite, a corja se aproxima da habitação de um humilde proprietário rural. Quando já estavam bastante próximos, percebem a existência de um celeiro e observam algo curioso e mais ameaçador que eles próprios:  há vários alvos pintados em suas paredes, todos eles crivados de balas bem perto de suas respectivas moscas. Deduzem que o fazendeiro é hábil atirador e desistem da empreitada, temerosos em serem os próximos alvos de tão experiente atirador. Mal sabem eles que nosso esperto herói lançou mão de um astuto expediente, já pensando em ocasião semelhante: encheu de buracos algumas regiões das paredes do celeiro de maneira concentrada, para DEPOIS pintar os alvos ao redor dos mesmos!!! Desta forma, mesmo não tendo grandes habilidades balísticas, conseguiu iludir os facínoras.

Nesta falácia, adaptamos as circunstâncias ao argumento

Esta é uma falácia que funciona, de certa forma, de maneira oposta à falácia das traves móveis (vide), na medida em que uma procura associar similaridades e afastar discrepâncias, e a outra faz o exato oposto, ou seja, atrair a disparidade e desprezar a concordância. É informal, de destaque e ocultação de relevância e que faz dispersar pontos controversos.

Mas a coisa toma um vulto importante quando a intenção de enganar não vai meramente no benefício de seu argumento, mas no prejuízo de outra pessoa. Um caso infelizmente claro se deu com o livro “Guia Politicamente Incorreto da América Latina”, um livro destinado a, em tese, desmistificar o heroísmo de uma série de personalidades da História de nossa sofrida Latino-América, e onde os seus autores, os jornalistas Leandro Narloch e Duda Teixeira, apenas para citar um exemplo, tentam desconstruir a aura de mito estabelecida em torno do presidente chileno Salvador Allende, um dos ícones da esquerda terceiro-mundista. Para esclarecer, Allende é tido como um exemplo e mártir da resistência contra a intervenção norte-americana na América Latina. Eleito democraticamente, implantou um governo socialista no Chile, e foi vítima fatal de um violento golpe de estado conduzido por Augusto Pinochet, que governou este país ditatorialmente pelos próximos anos. Alguns dizem que cometeu suicídio antes de ser capturado, outros que foi assassinado. Para desmerecer essa imagem, Narloch apresenta Allende como um racista, servindo-se de informações advindas de uma tese de doutorado em medicina deste último, e que, portanto, seria um igualitarista de fachada, pelo que se pode deduzir. Extrai vários trechos onde, pretensamente, o proponente da tese desce o cacete em negros, ciganos, judeus e outras etnias, especialmente do contestado livro de Víctor Farías, chamado “Antissemitismo e Eutanásia”. Todos estes trechos estão de fato na tese de Allende, mas na forma de citações das obras de Cesare Lombroso, cientista que tentou vincular criminalidade e etnia – um negro ou judeu estariam predispostos naturalmente à prática delituosa. Em resumo: Narloch coloca as palavras de Lombroso na boca de Allende, como se fosse este que desejasse formar esse vínculo. É o mesmíssimo caso de manipulação de dados por omissão que já mencionei nesta crítica ao filme Deus Não Está Morto.

É um caso da mais viva e pura desonestidade intelectual. Várias pessoas denunciaram esse modo de proceder de Leandro Narloch, dentre os quais o historiador Leandro Karnal e a professora Maria Ligia Coelho Prado. Narloch procurou se defender, fazendo um tímido mea culpa, mas utilizando mais de apelos à ignorância e traves móveis do que propriamente assumindo erros.

Por exemplo: na revisão do livro, após a vergonha passada, Narloch diz que Allende não corrobora as teses de Lombroso, assim como também não as rejeita. Legal, né? Também diz que não há nos escritos de Allende nenhuma manifestação expressa contra o racismo. Ora, isso o torna racista? É decente que alguma pessoa seja denunciada como racista por não se manifestar expressa e contrariamente ao racismo? Vejam com base em qual frase nossos caros escritores levantam sua defesa:

 “...carecemos de datos precisos para demostrar este influjo en el mundo civilizado”.

Esta é a conclusão de Allende: as teses de Lombroso não são fundamentadas por dados suficientes para relacionar etnia e predisposição à criminalidade. Punto, basta. Dizer que Allende pode ser racista por essa frase tem a mesma consistência de se dizer que eu não gosto de Serramalte porque gosto de Original.

É isso o que acontece quando uma pessoa procura desmerecer uma ideologia oposta à sua com fanatismo: fica-se cego. A proposta desta polêmica série dos guias politicamente incorretos é a de derrubar versões “oficiais”, o que não é um mal em si. Eu mesmo gostaria de saber melhor os defeitos de gente que admiro, para fazer um ajuste fino no modo de ver e perceber que possuo delas. Mas ter uma conduta antiacadêmica como esta desmerece não o personagem de quem se escreve, mas o autor. Primeiro, porque se fica com a impressão de que nada foi encontrado que possa desabonar a quem se tenta desabonar, e para fazê-lo foi necessário um subterfúgio (o que fortalece o suposto mito); e segundo, coloca-se sob suspeita tudo o mais que o autor publicar: o que garante que os métodos texanos não foram também utilizados em outros escritos? O pessoal que se alinha à mesma ideologia deveria ver com péssimos olhos um trabalho deste gênero, porque dá munição pesada aos seus opositores, que correrão como loucos para fazer a generalização apressada: “Olha como a direita age! Olha que merda é o pensamento conservador!”. Até explicar que berimbau não é gaita, dá-se uma tremenda volta. Melhor seria dizer que a bobagem dita por um não representa o pensamento de todos. Mas não... Há tanta falta de bons pensadores na vertente, que a figura em questão continua a ser incensada, legitimando a opinião dos seus opositores... É muito complicado.

E para que ninguém diga que este texto usa o Atirador do Texas para atacar os conservadores, declaro solenemente que sim, também há na esquerda quem use do mesmo expediente. Falácia é uma coisa democrática.

Recomendações:

Dei uma caçada na internet para ver se achava uma das versões das Centúrias que me pai havia comprado, mas não consegui. Portanto, vou recomendar uma outra versão, que, aparentemente, traz os versos puros e simples, despidos de interpretações. Não vou indicar nenhum livro de comentadores.

NOSTRADAMUS, Michel de. As Profecias. Martin Claret: São Paulo, 2006.

O vídeo abaixo mostra um trecho de uma palestra do professor Leandro Karnal, onde o mesmo discorre rapidamente com relação ao livro de Leandro Narloch e Duda Teixeira:


O texto abaixo é um pouco mais detalhado, e é da professora Maria Lígia Coelho Prado, tratando do mesmo assunto:


Já o artigo abaixo é a defesa de Leandro Narloch sobre suas correções na edição original e alguns outros argumentos:


Finalmente, no link abaixo temos a tese completa de Salvador Allende, para que possa ser lida e julgada como vocês quiserem:

http://www.socialismo-chileno.org/sag/Biblioteca/MemoriaSAG.pdf

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Sobre a batalha entre criação e evolução nas salas de aula (Pequeno guia das grandes falácias - 28º tomo: as traves móveis - moving the goalposts)


Meninos e meninas, pensem bem certinho quando lhes vierem com aquela velha conversa de que “no meu tempo é que as coisas eram boas”. Não eram, não. Ou melhor, algumas coisas podiam até ser consideradas melhores, mas, no todo, o tempo passa e as coisas evoluem. Como já tive a oportunidade de escrever neste espaço (aqui), o argumento dos bons tempos está ligado à perspectiva pessoal de um indivíduo que envelheceu, e aí sim: as perdas de vigor e as saudades daqueles que foram os grandes anos da vida levam ao convencimento de que tudo é pior.

Mas há alguns exemplos banais que nos provam do contrário – pesquisas, rotas, pagamentos e um prosaico chamar de táxi, tudo com um simples deslizar de dedo no celular, mostram a revolução das comunicações. Salicilatos, pirazolonas e aminofenóis mitigam dores que só eram resolvidas à base de mezinhas e paciência. Asfalto, luz, telefone, água encanada e esgoto substituíram macadame, vela, carta, poço e fossa. E até mesmo algo em que poucas vezes pensamos: é cada vez mais raro pagar por algo que não compramos.

Sim, é verdade. Balanças viciadas e metros de 95 centímetros eram coisas irritantemente comuns, seja nas feiras livres, nos mercadinhos, nos empórios, nas tecelagens ou nos armarinhos. Lembro-me que uma das práticas mais recorrentes era colocar um ímã na lateral do ponteiro das antigas balanças analógicas. Na medida em que o leve ponteiro metálico se aproximava do fim da escala do mostrador, o ímã punha em prática sua estranha e fascinante propriedade magnética e fazia o traquinas comerciante se locupletar em alguns preciosos gramas, para prejuízo do incauto adquirente.

Pode-se dizer que hoje em dia o laço afetivo entre as pessoas é mais propenso a se desfazer, e que não há tranquilidade no mero vagar e divagar pelas ruas de nossa urbe, mas é inegável que o aperto na legislação e a aferição dos instrumentos pelos órgãos públicos nos trouxeram um pouco mais de segurança de que meu quilo de batatas pesa mesmo um quilo.

Essa propensão em ocasionar desvios em pesos e medidas pode ser aplicada a argumentos? Pode, e como... Há duas maneiras de fazê-lo – aproximar o foco a nosso favor ou deslocar a meta contrária a nós. Vamos tratar hoje deste segundo aspecto, que pode ser sentido intensamente no furibundo debate entre partidários do criacionismo e do evolucionismo. Para tanto, vamos fazer uma rápida definição de cada uma dessas correntes, mas antes vamos falar da escola que estava em voga antes de Lamarck.

Quando a humanidade ainda não contava com um aporte muito significativo de conhecimentos científicos, a sua curiosidade não era menor que a de hoje, bem como sua tendência a tentar adivinhar as coisas. Para fazê-lo, o homem juntava os elementos que tinha à sua disposição. No caso das espécies, podia observar que de homens surgiam homens, de cavalos surgiam cavalos, de pulgas surgiam pulgas e de agriões surgiam agriões, incessante e invariavelmente. Alguém poderá dizer que existia uma tese de que seres podiam surgir de outras matérias (hipótese abiogenética), mas não vou descer a esse nível de detalhe no momento – até porque os elementos que surgiam eram iguais a outros preexistentes, o que mantém o raciocínio no mesmo lugar. Mas o entendimento obtido através dessas observações era o de que as espécies eram prontas e acabadas.

A hipótese fixista elabora que todas as espécies surgiram tais e quais são hoje. Pode parecer estranho, mas cientistas e filósofos de respeito eram partidários desta ideia, que, de resto, descomplica muito a vida de quem quer entender as origens das diferentes espécies. Gente do porte de Carlos Linneu, que é o cientista que inventou o método para denominar as espécies – homo sapiens para o homem, equus caballus para os cavalos, pulex irritans para as pulgas, nasturtium officinale para o agrião e demais que-tais. Outro exemplo é Georges Cuvier, criador da anatomia comparada. Ou seja, o fixismo era o conhecimento consagrado até então e tinha grande aceitação.

O fixismo é aderente a ideias de que há uma inteligência por trás da formação das espécies. E, com isso, nasce o termo criacionismo. Os criacionistas não são obrigatoriamente fixistas. Por exemplo, a doutrina do Vaticano tende a reconhecer plenamente os mecanismos da evolução, sendo que Deus seria uma espécie de arquiteto da ação que a natureza produz. Mas, como eu disse, o fixismo acomoda-se perfeitamente bem a um dogma de criação, onde um Deus plenipotente tem um ato de vontade própria e forma as criaturas do jeito que bem entender. Claro que temos a tendência em pensar no Cristianismo, formador de nossa cultura, mas, basicamente, todas as religiões explicam o surgimento do mundo, animais e plantas inclusos, através de uma manifestação divina. Mas, por outro lado, o eixo do fixismo também prescinde de uma criação divina – as espécies poderiam se originar de outros planetas, do oco da Terra, de uma materialização de estados etéreos e etc. Passons.

Só que o conhecimento evoluiu, vitaminado por quantidades cada vez maiores de observações de que, seja por qual motivo for, as espécies não permaneciam sempre iguais, mas evoluíam. A descoberta dos fósseis, por exemplo, levou à compreensão de que muitas formas de vida desconhecidas já não caminhavam sobre a Terra. E isso fez nascer o conceito de adaptação ao meio. A princípio, surgiu Lamarck, de quem já falei aqui (e por isso mesmo não vou me aprofundar), que imaginava o surgimento e desaparecimento de características de acordo com sua utilização. Um belo exemplo vem dos órgãos vestigiais, como é o caso do apêndice intestinal humano, uma tripinha perdida nos emaranhados do intestino, que só lembramos que existe quando inflama – a malfazeja apendicite. Observando a proposta de Lamarck, diríamos que nossa alimentação se tornou mais branda, em especial pela descoberta do cozimento, e o intestino já não precisaria mais ser tão longo. O apêndice seria o vestígio de um órgão em pleno desaparecimento. Já temos aqui a ideia de evolução baseada na regra de uso e desuso.

Mas outras evidências fizeram com que a investigação sobre a origem das espécies tomasse ainda outro rumo. Como podemos observar nos estudos embriológicos, existe uma diferenciação muito menor entre os fetos de baleias, cães, cangurus, tamanduás e homens do que os indivíduos já plenamente formados podem fazer supor. Isso conduz à ideia basilar do evolucionismo darwiniano: somos originários de um ancestral comum, e as diferenciações ocorrem principalmente pela seleção natural. Esta evidência se torna mais robusta na medida em que comparamos as diferentes estruturas corpóreas de espécies semelhantes e observamos como cada uma delas se adapta a diversas condições ambientais. Os que mais bem se adaptam são aqueles que permanecem. Bem resumidamente, é a seleção natural (mais detalhada aqui).

Acontece que as ideias que persistem por séculos, como é o caso das doutrinas fixistas, não se rendem sem resistência, ainda mais quando oriundas de um componente cultural muito forte, como é o caso da Religião. A Religião não vive apenas de normatizar a ligação com a transcendência, mas de explicar o universo que nos rodeia, coisa que é o mesmíssimo objeto de estudo da Ciência, e as colisões são inevitáveis.

E com isso chegamos ao atual debate entre evolucionismo e criacionismo, problema muito evidente nos EUA e que tem crescido significativamente no Brasil. A questão toda reside na exclusão da hipótese criacionista nas aulas de Ciências, o que, para os adeptos desta corrente, tolhe dos estudantes a oportunidade de se confrontar teorias distintas. Os evolucionistas se contrapõem, informando que a Ciência tem um método a ser seguido e que a Religião não o faz. A hipótese de criação se baseia em fé, e não em provas que possam ser refutadas. Em síntese, é isso.

Tem mais detalhes. Da afirmação que fiz há pouco, de que a cúpula católica não vê problemas significativos na evolução, vocês poderiam perguntar porque o problema tem recrudescido. São duas as respostas. Em primeiro lugar, nos EUA temos uma maioria de cristãos de origem protestante, que, em geral, seguem a doutrina da sola scriptura. Isso significa que apenas a Bíblia pode ser encarada como fonte válida para a interpretação dos dogmas. E lá está escrito que Deus fez o céu, a Terra, os homens e demais espécies. Isso não é um problema para católicos e ortodoxos, que estatuem também a tradição e o magistério como fontes lícitas de embasamento teológico. Desta forma, se do Vaticano emana um entendimento magisterial de que a evolução não pode ser descartada, punto e basta. Mas é diferente com as doutrinas protestantes, muito mais literalistas. Com o crescimento contínuo das Ciências e da tecnologia que a suporta, cada vez mais difícil fica de dar sustentação a teses extraídas ipsis litteris de algum livro sagrado. E para que isso seja amenizado, servem-se da proposta de confrontar seu pensamento diretamente em sala de aula, na disciplina de Ciências. Vejam a série de vídeos que eu recomendo abaixo, com toda a paciência do mundo, e vocês compreenderão bem o modus operandi desta corrente criacionista, inclusive a insólita estratégia da cunha.

O segundo ponto diz respeito ao Brasil, país de maioria católica pouco praticante, e que vem assistindo a um crescimento exponencial de sua camada evangélica. Deste segundo ponto, derivo outros dois: 2a – os evangélicos conseguiram constituir uma bancada muito sólida no Congresso, organizados e pragmáticos que são. 2b – nós sabemos muito bem como são as coisas no Brasil. Diferentemente dos EUA, onde a 1ª Emenda de sua Constituição estabelece o estado laico e é defendida com unhas e dentes pelo seu judiciário, aqui a solidez das instituições tem a consistência de uma maria-mole. E num descuido qualquer pode ser enfiada goela abaixo da classe docente a obrigatoriedade do ensino de criacionismo em aulas de Ciências.

Pois bem. Religião e Ciências talvez não sejam irreconciliáveis, mas costumam quebrar a cara mutuamente quando uma tenta penetrar no terreno da outra, ou seja, quando a Ciência tenta refutar a fé e a Religião busca refutar as evidências. Já tratei de uma certa arrogância dos cientistas em texto passado, e agora vou cuidar do inverso. Vamos lá.

Na minha opinião e em primeiro lugar, está errado o entendimento de que Religião deve ser ensinada apenas nas igrejas, e deixá-la fora das escolas. Até mesmo porque a religiosidade se exerce mesmo sem que haja vínculo com uma religião instituída. E não é possível compreender a formação das diversas sociedades e a escrita da História sem reunir todos os elementos que compõem o seu patrimônio cultural, sendo a Religião indissociável da cultura. Havendo a disciplina, no entanto, é preciso cuidar para que ela seja o menos enviesada ideologicamente possível, sempre lembrando que componentes culturais que nos atinjam tenderão a receber alguma ênfase em relação a outros que nos são completamente estranhos. Aulas de Religião deveriam explicar o surgimento deste fenômeno, como influenciaram a história da humanidade, os conceitos de imanência e transcendência, os seus propósitos epistemológicos e éticos, e descrever, em linhas gerais, o funcionamento de cada uma delas, pelo menos as principais, demonstrando como as mesmas articulam com o mecanismo social. Esse é o espaço adequado a teses criacionistas de origem religiosa.

Mas o criacionismo não pode ser ensinado em aulas de Ciências, pelo fato mais simples de todos: não é científico.

Imagine, por exemplo, que seu professor de Português invalide uma redação sua porque há um erro em uma afirmação histórica, por exemplo. Seu texto é escorreito, fluente, bem referenciado, coeso, corretamente pontuado e acentuado e, ainda por cima, criativo. É correta a atitude do professor? Pode até valer a observação do erro histórico, já que estamos falando de ensino, mas a análise deve ser enfatizada nos aspectos redacionais, e não históricos. Ou pensemos em algo mais direto: imaginemos que de fato haja aulas de Religião em escolas laicas. Faria cabimento uma lei que obrigasse a inserção do evolucionismo na grade desta disciplina?

O criacionismo não se prova cientificamente, e isso basta para que a confusão que mencionei se estabeleça. Criacionismo é artigo de fé, não tem como se comprovar – premissa fundamental das Ciências. Quando um cientista especula, já corre para tentar encontrar um método de obter evidências, por que é isso que caracteriza a matéria-prima do seu trabalho. O religioso só tem um livro e sua crença para lhe dar amparo. Percebam – não quero discutir o que é mais válido, mas sim dar a César o que é de César, e à Ciência o que é da Ciência: o espaço da prova, da evidência e do indício que busca comprovação.

Só que a batalha continua e, para fazer frente à Ciência, os criacionistas buscam incessantemente falhas na teoria evolucionista. E, talvez por isso mesmo, o criacionismo tenha cuidado de parecer científico, através, basicamente, da refutação às teorias evolucionistas. E aqui chegamos a quê? Sim, a ele mesmo, o magnânimo Pequeno Guia das Grandes Falácias.

Vejam só. A tática criacionista consiste em desmerecer as linhas mestras da pesquisa evolucionista. Quando se correlaciona uma espécie existente ao fóssil de outra espécie extinta, afirmam que ambas estão distantes demais para que tal ligação seja válida. Quando um surge um fóssil de transição, que seria um elo para suprir essa insuficiência, uma nova lacuna é aberta, sob a alegação de que ainda não se está próximo satisfatoriamente. O exemplo mais clássico é o do surgimento de asas. Entre os fósseis de espécies mais antigas e os de aves primordiais, faltaria o que os criacionistas fixistas chamam de “meia-asa”. Se esta for encontrada, repete-se o argumento e faltará o “quarto-de-asa”; uma vez achado, onde estará o “oitavo-de-asa”? E assim se repetirá ad nauseam, 1/16 de asa, 1/32 de asa... porque é a salvaguarda de um argumento que se constrói pelo desvio da meta a ser atingida.

Para quem gosta de futebol, o termo “meta” vem do linguajar tucano para designar o bom e velho gol. Chamamos de gol tanto o ato quanto o aparato, e este último é composto, como se bem sabe, de uma armação de traves e rede. Para convalidar o ato, é necessário que a bola atravesse completamente o aparato, ou seja, a linha demarcada de cal que preenche o espaço entre as traves laterais, e que corre paralelamente ao travessão superior no sentido horizontal. Em miúdos, o gol ocorre quando a bola penetra totalmente no retângulo formado por todos esses elementos. Para evitar licitamente que o gol ocorra, temos um goleiro que é destinado a agarrar as bolas, único jogador que pode tocá-la com as mãos. Mas este personagem também pode fazê-lo deslocando levemente a meta. É o que fazem marotamente alguns guarda-metas, que puxam um pouco a trave para dentro do campo quando o adversário se prepara para bater um escanteio. Essa atitude faz com que o ângulo fique mais fechado, dificultando a conclusão do lance. O deslocamento deve ser evidentemente pequeno, mas nessas coisas de futebol sabemos que a diferença entre a bola dentro e a bola fora é medida na casa dos milímetros.

E aí vem o ponto de contato do futebol com a falácia em testilha: da mesma forma que o goleiro move o arco para evitar o tento, o argumentador move o tema para evitar a conclusão lógica indesejada. Por isso, essa falácia é chamada de traves móveis, apesar de ser mais conhecida pelo termo em inglês moving the goalposts.

Uma mexidinha na trave já é suficiente para atrapalhar o atacante

Ao clamar pela meia-asa, o criacionista radical nada mais faz do que mover a trave. Usa uma falácia de dispersão, que busca desqualificar um argumento decretando sua insuficiência insistentemente. A complexidade irredutível, tese defendida pelos criacionistas que afirma existirem estruturas tão complexas em si próprias que fica inexplicável sua construção sem a intervenção de um artífice, é a expressão mais bem moldada e bem acabada deste estratagema. O exemplo mais usado é o do olho humano (desprezando o fato de que há animais com visão muito mais sofisticada), mas inúmeros outros podem ser aventados.

É um argumento que se vale muito da incapacidade humana de compreender a totalidade das transformações que ocorrem em dimensões inalcançáveis por seus sentidos, que acabam por acorrentar seus balizamentos mentais: é a tal da mente descontínua, que já tive a oportunidade de discutir aqui.

É claro que exigir evidências convincentes não é um mal em si mesmo, muito pelo contrário. Até mesmo porque provas ínfimas ou claudicantes constituem outras falácias, a evidência anedótica e a amostra não significativa, que tratarei oportunamente. O problema acontece quando uma posição é defendida com pura e simples intenção de desmerecer as provas oferecidas em posição contrária; seja pela quantidade, ao afirmar serem poucas as evidências apresentadas; seja pela qualidade, respondendo que as evidências são pobres. 

Resumidamente: em geral, esta falácia dispersa a própria falta de consistência do argumento que defende, apontando defeitos no argumento dos outros e criando novos empecilhos a cada meta atingida, ou seja, puxando mais e mais as traves para longe do lugar em que elas permitem ao adversário marcar um gol. Só que há uma armadilha: quando o deslocamento é grande demais, o juiz poderá percebê-lo, e mandar o velhaco goleiro mais cedo para o chuveiro. Ou o INMETRO pode confiscar a balança metida a favorecer o danadinho do comerciante.

Recomendação de vídeos:

A série de vídeos abaixo, evidentemente feita sob o ângulo do cientista, dá um painel completo do embate entre a criação e a evolução. Recomendo assistir aos poucos, mas quem tiver tempo pode assistir em uma sentada só.

Canal do Pirulla:
https://www.youtube.com/playlist?list=PLet1ZJ4fv0cpIz9c29WIU3MUyTr5DwixR

Não sejam preguiçosos e assistam também os vários vídeos de refutação feitos à lista acima. Não encontrei nenhum que me convencesse, mas, se houver algum bom, deixe nos comentários. Caso seja realmente significativo, faço questão de acrescentá-los a estas recomendações.