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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 13º sopro: Conceição do Rio Verde e as dúvidas sobre o valor das privatizações

Olá!


Se a bala acaba, se o jogo acaba, se a vida acaba, por que diabos a viagem não há de acabar? Já se iam doze dias de navegação a seco (seco mesmo, a temperatura média desse período foi de 30 graus sem chuva), e o bolso estrila, não tem jeito. Ainda deu tempo de pegar uma piscina para refrescar o cadáver, até que fizemos as malas, demos um beijão na Regina de Caxambu e capamos o gato rumo a São Paulo, nossa desmazelada terra da garoa, passando antes por Baependi novamente, onde a patroa viu uma planta que gostou. Acontece que a fome é coisa que nos acompanha mais que a própria sombra, e bem pouco tempo depois de sair, houve o clamor estomacal. Como o Leão da Montanha, saímos pela direita e demos uma esticadinha até Conceição do Rio Verde, em busca de uma despedida gastronômica honrosa.


A ponte acima, naturalmente, passa por sobre o rio que parcialmente nomeia a cidade. O Rio Verde nasce na parte alta da Mantiqueira e vai desaguar na represa de Furnas. A outra parte do nome, Conceição, diz respeito à padroeira do local, Nossa Senhora da Conceição, cuja igreja tem o estatuto de basílica.


Basílica, em sua origem, significa residência do basileu, aquele que governa. Tem outro sentido na estrutura católica, e é usada para diferenciar certas igrejas com alguma particularidade em relação às outras. Isso significa que o papado fez alguma deferência especial a esta igreja, provavelmente por sua beleza arquitetônica ou valor histórico. Como foi restaurada recentemente, está em excelente momento de ser visitada.


É mais uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição, como é tão comum no Brasil e em Portugal. A Imaculada Conceição é um dogma do Catolicismo que proclama a pureza de Maria, mãe de Jesus. As suas eminências chegaram à conclusão de que, para conter o útero portador de uma divindade, o corpo de Maria não poderia carregar consigo o pecado original que toda a humanidade possui, desde que Adão e Eva resolveram concluir que estavam pelados. Desta forma, crê-se que Maria já nasceu preparada para receber Jesus, e, por isso, foi concebida livre de pecados. Complexas coisas da fé.


O interior da igreja, da mesma forma que tantas outras, como o paulistano Mosteiro de São Bento e a igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Carmo de Minas, possui doze colunas que são respaldadas pelos doze apóstolos, fazendo clara referência à pequena assembleia que deu suporte aos inícios do Cristianismo. São esculpidos em tamanho natural, e, pelo que entendi, também fizeram parte do processo de reforma geral da matriz.


Em uma de suas laterais, há um curioso acervo de santos, e não entendi muito bem o seu propósito. Talvez haja algum tipo de revezamento, dependendo da época do ano, ou sejam expostos unicamente na comemoração específica de cada um deles. De qualquer forma, há imagens de São Lourenço, Sagrada Família, São João Paulo e outros. Além disso, há os quadros do beato Padre Victor, já idoso...


... e da Nhá Chica, também aqui reverenciada, como em toda a região, e de quem cumpri a promessa de contar mais um pouco em meu último texto.


Sim, eles também estão em um dos nichos operacionais da igreja, ladeando a imagem de Nossa Senhora da Piedade, eternizada na Pietá de Michelangelo Buonarroti.


Ainda no âmbito religioso, há, na parte mais alta da cidade, um convento que abriga a Congregação de Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, mais conhecidos como betharramitas, em referência a Bétharram, região francesa que abarca a cidade de Lourdes e onde São Miguel Garicoïts fundou a tal ordem, dedicada a dar apoio intelectual em igrejas, escolas e seminários.


Anexo ao prédio do convento, há um espaço aberto ao público denominado Centro Cultural Libertas, que é composto especialmente por uma biblioteca e um playground, e que dá palestras e cursos, como o de informática.


O restante da cidade tem a tipicidade de tantas outras cidades pequenas do interior, com sua tranquilidade típica e elementos comuns, como uma praça com coreto...


... e as jardineiras que espalham sua beleza pelas redondezas dos parquinhos e das casas com técnicas de construção antigas, que abrigam o comércio local.


Assim como ocorreu quando visitei Lavrinhas, ou quando rodei por Sapucaí-Mirim, passei por Conceição do Rio Verde “de passagem”, o que me fez ter uma visão muito pequena da cidade. Mas este município faz parte do Circuito das Águas Mineiro, o que nos faz supor algumas fontes, ao menos espalhadas pela zona rural. Em um sonho de perfeição, deveríamos seguir aqui o exemplo das cercanias e ter um Parque de Águas. Ele existe, e se chama Águas de Contendas. E se encontra fechado.


Mais do que isso... Ele se encontra abandonado e interditado.


A história toda é a seguinte: desde 97, uma empresa de envasamento de água mineral arrendou a área do parque, com a condição de mantê-lo aberto e funcional. No entanto, a vigilância sanitária interditou a fábrica por falta de adequação nos processos produtivos (leia-se falta de higiene). Feito isso, os arrendatários abandonaram a manutenção do parque, o que deu no que deu: tudo estragado e precisando ser refeito.


O parque tem, originalmente, quatro fontanários. Atualmente, há duas mangueiras que levam para o lado de fora do parque, onde os moradores e visitantes ainda podem coletar água. A briga toda parece que foi resolvida, e há a promessa de recuperação do parque em seis meses. Vi o projeto e, se levado a cabo, honrará a cidade como participante do Circuito.


O bairro tem esse nome porque é fruto de muita disputa entre as terras. Parece-me uma espécie de estigma, já que a briga entre a empresa arrendatária e a CODEMIG, órgão estadual, impedia a prefeitura local de colocar a mão na área, ainda que quisesse. Como é razoavelmente florestado, talvez não seja tão difícil sua recuperação.


Descaso do poder público? Acho que não resta dúvida. Mas é preciso olhar para a questão com um pouco mais de calma do que estamos habituados. O primeiro impulso é dizer que o governo é um incompetente completo, e que um empreendimento como este parque deveria ser privatizado. O dono cobraria pelo acesso, mas garantiria bons serviços. Esse é o pensamento simplista, que temos quase sem perceber que privatização mal sucedida foi exatamente o que aconteceu aqui. É que temos essa onda atual, que, a bem da verdade, muitas vezes se justifica. Privatizações sempre ocorreram, com os resultados que tão bem conhecemos – uns bons, outros ruins. Na conta dos bons, vou contar ou refrescar a memória dos tempos da Telesp, Telerj, Celepar, Telemig e outras companhias estatais de telefonia. Telefone não era para qualquer um. Era algo tão caro que fazia parte do patrimônio financeiro da pessoa, tanto que era declarado no imposto de renda, na parte de declaração de bens. Ainda assim, era um negócio concorridíssimo, dada a oferta limitada. Quando o governo abria um plano de expansão da rede telefônica, as inscrições eram tantas que se formavam filas quilométricas à frente das agências em que os pedidos eram protocolados. E não havia garantia de contemplação. Como por um tempo a ordem era estabelecida cronologicamente, o pessoal começou a pernoitar na frente das agências, da mesma maneira que as tietes fazem à porta dos estádios, quando um ídolo teen qualquer desembarca em terra brasilis. Depois disso, por alguns anos aguardava-se a cartinha da Telesp, que mandava pagar ou arrumar financiamento para a aquisição da linha. Era momento de festa para alguns desesperados. Se fosse impossível aguardar o plano de expansão, o negócio era recorrer às bolsas de compra e venda de linhas telefônicas. Sim, existia isso. Com duas claras desvantagens: era muito mais caro e não lhe vinham as ações da Telesp, que eram adquiridas na marra no plano de expansão, mas que podiam ser vendidas a um preço razoável no mercado de investimentos. Não dá para dizer que a privatização do setor não melhorou radicalmente a telefonia no país, por mais que se reclame das operadoras. Isso ajudou, e muito, a mitigar a ojeriza que eu tinha pelas privatizações.

Mas há o lado de lá, as privatizações que não povoam nossos sonhos. Nos meus tempos de criança, era comum passar perto da administração regional da Vila Prudente (hoje subprefeitura) e ver as enormes retroescavadeiras e pás mecânicas colocando suas monstruosas cabeças por cima do muro. Se você entrasse lá, veria ainda os rolos compressores, as betoneiras, os espargidores de piche, as fresadoras de asfalto, os carros-pipa, tudo para que a própria prefeitura, com sua habitual leseira e burocracia, cuidasse das obras viárias. Hoje, se há alguma dessas máquinas, é para algum serviço muito eventual ou é ferro-velho em decomposição. Todo esse serviço foi terceirizado, há um bom tempo. Eu diria que antes ainda da privataria tucana onda de privatizações ocorrida na década de noventa, que trouxe o tema à tona e à moda, com benefícios, como já vimos. Por outro lado, se pensarmos que a prefeitura não realiza mais obras diretamente, concluiremos que o mesmo ocorre no plano estadual e federal, e observaremos que, ainda assim e a custo, obras de construção e manutenção são realizadas, desta vez por empresas privadas. Sabem quais? OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Construcap, Odebrecht e outras menos votadas, famosas vocês sabem bem no que. Em suma, privatização não é garantia de eficiência, nem livra da corrupção.

E aí hoje em dia, com nosso país idiotamente dividido, vemos um monte de gente acenar com soluções mágicas, pré-fabricadas. Por um lado, há a ideia de que o Estado malvadão é o culpado por todas as mazelas, consumindo recursos infinitos para distribuir ineficiência. Por outro, argumenta-se que o custo do lucro das empresas que ganham privatizações é exatamente retirar verbas que poderiam ser aplicadas socialmente. Opina-se que o país é composto por miseráveis gerados pela existência de uma privilegiada elite branca, que tem o dever de cooperar minimamente com aqueles que lhes dão base para pisar; e também que o brasileiro se tornou acomodado, dormindo no berço esplêndido do assistencialismo governamental. E todo mundo tem uma fórmula escrita na cartilha para resolver tudo em um sortilégio instantâneo. Bem, esse é um discurso que cabe bem na boca dos políticos, e não na cabeça de quem pensa. Por isso mesmo, ainda que eu tenha uma propensão a medidas progressistas, vou buscar explicação na obra de um conservador. Que, diga-se de passagem, não é sinônimo de reacionário. Vamos olhar para Michael Oakeshott.

Oakeshott é um filósofo político inglês que foge ao estereótipo do conservador. E, bem medido e bem pesado, suas teses não visaram apoiar nenhum partido, como o Conservative and Unionist Party, mas, pura e simplesmente, analisar política. Aliás, por não querer se envolver em política a não ser como um analista, recusou a indicação para a Câmara dos Lordes feita por Margareth Tatcher, ícone maior dos conservadores ingleses. Ele não tinha aquela imagem de velho turrão, vociferando raivosamente contra todos os que atentavam contra a moral ou mudanças no escopo social vigente, vomitando intolerâncias, vendo teorias da conspiração até em símbolos do consumo, enquanto enche a sala com a fumaça de seu cigarro fedorento. Inclusive, casou-se várias vezes e, já sexagenário, foi pego em cenas tórridas em um local público, o que lhe custou a indicação para um título de sir (que, de resto, pouco provavelmente aceitaria). Tinha para si uma visão laicista, que não costuma coadunar com a concepção de tradições arraigadas e exclusivistas dos conservadores, e esse tipo de atitudes vai dando a ele uma cara muito mais simpática e intelectualizada, descolada de posições extremistas, e, estando com menos barreiras, torna sua leitura bastante palatável, agradável até.

Feita toda essa pantomima, vamos ao que interessa. Sua principal peleja é contra o que ele chama de política racionalista. Algo contra Descartes, Spinoza ou Leibniz? Não, não é esse o sentido. O que Oakeshott chama de racionalismo é a redução do campo de ação na vida política a um conjunto de ditames de ordem teórica. Em outras palavras, um racionalista é aquele que planeja todo um sistema político no interior de um gabinete, como se fosse a planta de um prédio, para só depois colocar a mão na massa. Isso pode até dar certo nos projetos de engenharia, mas, ao trasladar essa técnica para o campo social, o racionalista “esquece” que há seres humanos e a História a fazer suas marolas, de modo que um projeto teórico fixo só pode sair molhado, a não ser que se lance mão da força. Só isso já nos faz perceber o quanto um racionalismo político é altamente ideológico.

Nosso caro filósofo imagina que essa sanha por tornar a Política uma instituição científica, como se fosse possível reger a coisa pública através de leis e postulados, vem do Iluminismo, o período de extremo otimismo na humanidade que se seguiu à Revolução Francesa e aos avanços tecnológicos que surgiam cada vez mais em profusão. Mas agora estamos no período das Guerras Mundiais, e as ideologias de livro, como o nazismo e o comunismo, prometem uma reforma geral do mundo e da sociedade ao serem estabelecidas suas regras. Seu programa somente olha para frente, para a sociedade refeita, e é aí que mora seu principal defeito, pois tudo o que a humanidade realizou desde seu surgimento é jogado na vala, incluindo valores e experiência.

A Política é por demais volátil. É claro que encontramos cada jabuticaba no Brasil que se torna muito difícil usá-lo como exemplo. Mas pensem em quantos encontros de ocasião já foram feitos nestes tristes trópicos. O Lula que tanto combateu a ditadura é o mesmo que aperta a mão de Paulo Maluf. O FHC que saiu do país exilado é o mesmo que se alinha a próceres oriundos da repressão, como ACM e Marco Maciel. O Temer que é o principal “parça” da Dilma é o mesmo que comanda sua derrubada, e o Aécio que lhe apoia nessa empresa é mantido no seu cargo pelo Senado que propugna uma ética de conveniências. Mas é exatamente aí que percebemos que não há mapa confiável quando se atravessa um campo minado. O que vale neste caso é muito mais a vivência que se tem na gestão dos negócios políticos do que um plano traçado. Temos a tendência atual, por motivos óbvios, a querer demolir nosso sistema político e implantar um outro, prét-a-porter, que resolveria a questão política. Duvido que um cara como Oakeshott concordaria com coisa semelhante.

Novamente, é na experiência que residem as melhores chances de bom funcionamento da mecânica governamental. Não a experiência advogada publicitariamente pelos candidatos a cargos públicos, mas a experiência acumulada através da prática e da participação na vida social, entender como as coisas se desenrolaram até se tornarem o que são no momento presente. Nesse sentido, o conservadorismo não é propriamente uma ideologia, mas um método, que tem em si a percepção de que não existe mundo perfeito, mas mundo possível. A própria história demonstra que as relações sociais e humanas vão se aperfeiçoando por si só, e as crises ocorrem justamente quando uma mudança radical nas instituições é implementada. Uma disposição conservadora não pode ser vista apenas como uma vontade de manter privilégios, mas perceber que o presente vivido deve ser aproveitado por aquilo que as tradições formaram. Elas não ocorrem no vazio, mas em uma constante busca de soluções para os conflitos que encontram no próprio mundo. É preciso notar que Oakeshott não enxerga o conservadorismo como uma lei natural, onde há um mundo privilegiado para os melhores, ou onde existe uma casta eleita pelos deuses, e que, portanto, é digna de suas salvaguardas. Antes disso, o grande segredo do conservadorismo é justamente a sua raiz empírica, sua capacidade de representar o que o acúmulo de experiências produziu em termos práticos.

Em suma, o conservadorismo se opõe ao racionalismo porque, entre ambos, é o primeiro que reflete o próprio desenrolar da vida e da obra humana. O racionalismo obscurece a vida real, por trazer ideias engessadas, privilegiando a teoria em detrimento da prática, com o mundo que nos rodeia sendo vivido praticamente, e não teoricamente, o que gera um descompasso entre o que se idealiza e o que ocorre de fato. Ele traz o exemplo do músico – dê a alguém um trompete e uma partitura. O que ela fará? Nada, a não ser que já tenha passado pela experimentação de ambos. É a isso o que o racionalista se contrapõe, tentando criar uma sociedade idealizada, mas que não passará pelo crivo da própria existência. Ela é imprevisível, e não é possível enxergar as contradições que vão se encontrar antecipadamente, e quando elas ocorrerem, não se achará resposta no manual.

E é aí que as ideias de Oakeshott podem ser usadas contra a própria ideia de conservadorismo que tanto vemos por aí. Também os ditos conservadores têm pacotes prontos de ideologia, sabendo muito bem a quem defender e a quem odiar. Ainda que não possuam um códice fechado (pelo menos não há um Marx ou um Gentile), há regras intensamente claras de um ideário que está menos preso à experiência no mundo do que a um discurso pronto. Quem é conservador, por exemplo, obrigatoriamente apresenta um substrato religioso, um liberalismo econômico que contrasta com rigidez moral, uma manutenção do status quo das camadas mais privilegiadas, uma valorização do mérito, sem grandes variações entre si. Pretendem uma pureza que lhes igualam aos racionalistas, porque, no fundo, é nisso que acabam por se transformar: em tendências a se prender a dogmas. É por isso que as teses de Oakeshott são aplicáveis ao próprio conservadorismo, e é isso que lhe torna único.

Concordo com ele? Não. Sou ainda mais pessimista, e creio que há certas coisas com as quais o mundo nunca soube lidar bem, e a experiência, nesse sentido, não tem muita coisa a trazer, até mesmo porque sempre persistiram pedaços da população que se privaram de alguma necessidade básica, e a prática nunca soube lidar com isso. Há certos momentos em que você se defronta com uma pessoa faminta e é necessário que se faça algo por ela. Perpetrar a exclusão de camadas inteiras da população sempre significará uma falsa vantagem, porque terei que torrar os tubos para me proteger delas, não é verdade? O conservadorismo nos dá a impressão de que não devemos nem mesmo tentar. Outra coisa. Não traçar uma linha a seguir significa não planejar. De que modo posso fazer um plano se ele sempre poderá ser modificado pelas contingências? Mas a ausência de planejamento só pode conduzir a uma anomia, porque não tenho como avaliar se algo vai bem se eu não tenho nada para me balizar. Quem sabe não tenha sido exatamente isso o que aconteceu com o parque de Águas de Contendas? Como teriam se dado as coisas caso existissem planos de contingências bem descritos, que previssem um fracasso em sua privatização?

Mas é perfeitamente possível respeitar esse conjunto de ideias da maneira como ele é colocado por Oakeshott. Virar o rosto para pensamentos que não gostamos não é uma atitude das mais filosóficas, principalmente quando são colocadas de maneira clara e inteligente, e ainda que não concordemos com absolutamente nada delas.

Recomendação de leitura:

Mais uma vez repito. Radicalizar o pensamento não é uma atitude digna de quem pretende, mais do que filosofar, ter a cabeça aberta. É preciso escutar o que todos têm a dizer e, a partir daí, concordar e se contrapor com aquilo que coaduna ao nosso pensamento. Como posso criticar algo se nem mesmo o conheço? O nome disso é preconceito, e não gostamos disso. Recomendo a seguinte obra de Michael Oakeshott, principalmente para aqueles que acham que não existem bons autores no espectro do conservadorismo.

OAKESHOTT. Michael. O Racionalismo na Política in Conservadorismo. Veneza: Ayiné, 2016.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 12º sopro: Baependi, os beatos e a hipótese da Religião como fenômeno humano

"Assim lembrava-se de Joana-menina diante do mar: a paz que vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um... A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha também de que não sabia se entoara 'tudo é um' ainda pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma". 
Clarice Lispector - Perto do coração selvagem

Olá!


Já havia dez dias que eu e a patroa estávamos rodopiando entre as montanhas da Alta Mantiqueira e Circuito das Águas, tudo isso pelo interior sul da província de Minas Gerais. Estando hospedados em Caxambu, era natural que passássemos por sua circunvizinhança, e o que há de mais próximo é a cidade de Baependi, que destrincharei a partir de agora.


Mbaé-pindi, a clareira que se abria ao lado do Rio Grande, que orientava os tropeiros em meio à Mata Atlântica, hoje transformada em Baependi, tem um verdadeiro festival de cachoeiras, especialmente no curso do Rio Gamarra. Algumas delas são acessíveis apenas com veículos off-road (percebi que a galera usa muitas motos por aqui) ou através de trilhas. Juntei um folheto da prefeitura para ter uma descrição mais completa de todos os atrativos naturais desta cidade.


Esta é uma das cidades em que primeiramente se teve notícia de localização de ouro, muito embora o tal do metal precioso tenha sido encontrado para valer mais ao norte. Esse é um dos fatos que levou Baependi, além da própria disposição geográfica, a fazer parte da Estrada Real, cuja importância histórica e estratégica procurei esclarecer em meu texto sobre Pouso Alto, o que é demonstrado por um dos marcos de milhagem que ficam próximos à entrada da cidade.


Bem, eu enchi tanto o saco de vocês, pacientes leitores, com as imagens de Padre Victor e Nhá Chica, presenças constantes em toda essa região, que ambos serão a principal pauta deste texto, aproveitando o fato de que estamos na terra onde descansam os restos mortais desta última.


Comecemos pelo beato Padre Victor. Nascido com o nome de Francisco de Paula, atuou na maior parte de sua vida na cidade de Três Pontas, ao noroeste dos limites da minha viagem, e, como já se aproximava perigosamente o dia de ir embora, resolvi deixar para uma próxima. Ele nasceu em 1827, na condição de escravo. Tendo proprietários tolerantes para o padrão da época, foi-lhe permitido aprender a ler e escrever, o que lhe propiciou um ofício: a alfaiataria. Conta-se que, nessa época, o ainda jovem Victor teve um sonho que lhe desvelou a vocação: queria se tornar sacerdote. O problema estava no fato de que a Igreja Católica não aceitava escravos em seus seminários, além de ser filho de pai desconhecido, algo ainda mais malvisto, e somente através da intervenção de sua senhora junto ao bispo Dom Viçoso, da diocese de Mariana, é que pode ser admitido em um convento. É evidente que sofreu lá dentro toda sorte de preconceito: os demais seminaristas tratavam-no como um criado ou cozinheiro, obrigando-o a utilizar as portas dos fundos do edifício para entrar e sair. Ou seja, nunca foi tratado como um igual – as honrarias da carreira eclesiástica, ainda que não baixadas em escrito, deveriam ser reservadas à elite branca. Diz-se que o jovem enfrentou esse processo de segregação com naturalidade, pois não estava lá para ascender socialmente, e sim para servir. Ao completar seu tempo para exercer o sacerdócio, foi indicado para a matriz de Três Pontas, onde enfrentou uma resistência maior ainda dos proprietários rurais. Foi preciso tempo, paciência e muita ação junto às comunidades mais carentes para que a aversão inicial se transformasse, inicialmente, em tolerância. Depois, pouco a pouco, essa condescendência virou admiração, especialmente após os frutos do trabalho do padre Victor começarem a aparecer, como a fundação da Escola Sagrada Família, que demonstrava sua preocupação com a educação das camadas pobres, e de sua vida de esmola e oração. Ficou durante 53 anos adiante da Paróquia Nossa Senhora d’Ajuda, até sua morte. Diz-se que tanta gente acorreu ao seu velório que foram necessários três dias antes do sepultamento, e que de seu corpo desfalecido exalava-se um odor de rosas. Uma das intenções que tenho de futuras viagens é o Vale Verde, do qual Três Pontas faz parte. Se e quando o fizer, prometo trazer melhores informações sobre o beato.


Com relação a Nhá Chica, cujo nome de batismo é Francisca de Paula de Jesus, o nível de reverência nesta cidade atinge seu clímax. Ela nasceu em São João del Rey, no ano de 1810, a cerca de 150 Km de Baependi, para onde se mudou ainda criança, e onde viveu desde então. A foto abaixo é a única disponível da beata, e é difícil perceber que se tratava de uma mulata, descendente direta de escravos.


Daqui por diante, vão os nossos agradecimentos à Miloca, voluntária na entidade que cuida do santuário, que tão gentilmente nos ciceroneou e contou histórias sobre a santa e o edifício que ajudou a construir, bem como o trabalho realizado junto aos peregrinos que lá buscam agradecer os favores recebidos. Nhá Chica, logo aos 10 anos, ficou órfã, e passou a viver unicamente com seu irmão, sempre na mesma casinha que hoje se situa nos fundos da igreja, e que faz parte do mesmo complexo.


Nhá Chica nunca constituiu família, ao contrário de seu irmão Teotônio, que fez carreira política e militar. Quando morreu, deixou uma herança razoável para sua irmã, que utilizou o terreno da propriedade e o dinheiro legado para construir uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição, de quem era devota fervorosa.


A igreja, no início, era uma capela que veio sofrendo algumas reformas no seu projeto inicial, até ficar com uma cara mais moderna do que o habitual. Não teve jeito, a igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição caiu no conhecimento popular como Igreja de Nhá Chica, com a devida vênia da padroeira oficial.


A beata era conhecida por sua capacidade de dar bons conselhos. Apesar de iletrada, conseguia acolher o convencimento das pessoas para as obras de caridade pela sua vida simples e benevolente, e toda campanha que promovia costumava recolher bons fundos. Essa fama crescente foi lhe dando estatuto de santidade ainda em vida, e sua figura se tornou um emblema da religiosidade desinteressada.


A igreja da Conceição (ou Nhá Chica) guarda uma simplicidade quase que austera em seu interior. Há uma constante peregrinação, em especial no dia 14 de junho. Esta é a data em Nhá Chica faleceu, e, por este motivo, foi-lhe designada para homenagem.


Por falar em morte, uma das principais curiosidades contidas no interior do Santuário é o túmulo onde Nhá Chica foi enterrada. Era parte da propriedade original herdada do irmão, mas que, por ocasião de seu falecimento, já estava coberta pela igreja. Ainda assim, foi o local escolhido para seu enterro. Este era um desejo manifesto: de ser inumada perto de sua santa de devoção.


Nas proximidades do altar, há um esquife que contém relíquias de Nhá Chica, mas eu já volto a ele. No espaço que fica entre os fundos da igreja e a parte de trás da casinha, a paróquia construiu um memorial, que preserva uma série de objetos pessoais e outras curiosidades que marcaram a vida da beata.


Nele, por exemplo, existem os fragmentos do que sobrou do seu caixão, como pedaços de madeira com o tecido de suas roupas de enterro colados ao mesmo, e os pregos que lhe fechavam. Todos esses objetos são tidos como milagrosos.


Há também uma urna de pedra, onde ficaram depositados os seus ossos após a exumação, daquela cova que fica no interior da igreja. Mas sua ossada não ficou para todo o sempre nessa caixa. Ela foi incorporada a um outro tributo.


Voltando ao interior da igreja. Quando eu vi a imagem dentro do caixão de vidro, tive a impressão de se tratar de um daqueles santos incorruptos, como Santa Catarina Labouré, Dom Orione, Santa Bernadette e outros, que mantém seus corpos sem decomposição após a morte, ainda que sem nenhum processo de embalsamação. Não é o caso, então daí passo a me surpreender com a capacidade técnica do artista que lhe plagiou a aparência em uma estátua que beira a perfeição.


Este foi o destino de seus ossos: um simulacro feito em sei lá qual material, praticamente indistinguível de um ser humano de carne e osso (bom, osso tem). Olhei com máxima atenção ainda várias vezes, para me certificar se havia alguma dica de que não se tratava de alguém de verdade. O nível de detalhes é realmente impressionante.


Para resolver definitivamente a questão da separação entre a dedicação da igreja a Nossa Senhora da Conceição e a necessidade de um espaço própria para Nhá Chica que, segundo a Miloca, está com um processo de canonização bastante avançado, um projeto ambicioso está em andamento, com a construção de um grande santuário dedicado à futura santa. Não caiu muito no meu gosto, mas não sou muito prá frente nessas questões de estética. Talvez aqui a praticidade seja mais relevante que a beleza ou a coesão do conjunto.


Os trabalhos já se encontram em andamento, como podemos observar na escadaria da matriz, às costas da célebre estátua, que recebe ininterruptamente flores e que deve ser recordista de selfies em Baependi, com o rosto sereno e a inseparável sombrinha. Parece aquelas avós que a gente gosta de sentar aos pés para ouvir histórias dos tempos em que os bichos falavam.


Em outros momentos, comentei sobre uma espécie de espiritualidade distinta da religião, alguma coisa como um impulso para a transcendência, ou uma integração ao universo como um retorno, ou mesmo uma sensação estética que causa uma catarse. Falei sobre isso principalmente na viagem que fiz a Catuçaba, distrito de São Luiz do Paraitinga, e para Águas da Prata, terra de vinculo da materialidade da água e da espiritualidade humana. Mas essa característica de fusão entre imanência e transcendência não é necessariamente uma religião. Será ela um ponto em comum de todas elas?

Como se trata de um fenômeno intangível, um estudo de sensação que não envolve um móbile concrescível em instrumentos, vamos ver o que o viés psicanalítico tem a nos dizer sobre isso. Sigmund Freud, referência constante neste blog, pensa a religião pelo caminho pessimista típico de seu tempo, o teatro da Primeira Guerra Mundial, com desdobramentos que incluem a Revolução Russa, o colapso do capitalismo e a ascensão do fascismo. Para ele, o que está na raiz da criação das religiões não é exatamente um sentimento natural e inerente aos seres humanos, mas uma neurose infantil que é replicada para o adulto, mudando apenas o objeto dúbio à qual é dirigida. Vamos trocar em miúdos.

No livro O Futuro de Uma Ilusão, Freud centra o sentimento humano em uma única palavra: desamparo. Temos consciência de nosso corpo frágil diante de um mundo violento, temos consciência do sufocamento de nossas individualidades perante uma sociedade moralmente uniformizadora, temos consciência da morte inevitável. Mas a sensação de que estamos desprotegidos é anterior à consciência; ela nasce conosco. Diante desse quadro, nossa psique se agarra a qualquer coisa que lhe possa oferecer algum tipo de proteção, e isso já se inicia instintivamente na primeira infância.

Logo que a criança nasce, ela é apresentada a um contexto de ameaça à sua estabilidade. Do escuro quentinho e da alimentação garantida no útero, o bebê é arremessado a um ambiente multimovimentado e que lhe exige coisas dantes dispensáveis: ele precisa respirar, mais tarde precisará se alimentar e passará mal com isso. É o primeiro momento em que é um organismo autônomo, com toda dor e susto que isso representa.

Seu primeiro ponto de apoio é a mãe, que lhe provê o conforto e a nutrição perdidos, sem saber que era o organismo desta que já exercia essa função. Isso gera um vínculo afetivo tremendamente forte, mas, com o tempo e com a maturação, surge a figura do pai, mais imponente e decisiva, mas também mais distante. O pai não é somente uma presença coadjuvante. É quase uma representação totêmica do que dita os destinos familiares. Em todas as decisões mais complexas, é a sua palavra que prepondera, e é dele que partem os castigos mais severos. Talvez o pai seja uma figura vista com menos carinho, mas com mais reverência; e, como o propósito do desamparado é obter proteção, o pai posa como melhor detentor do escudo do que a mãe.

Mas há um fato que é a gênese da neurose infantil – o pai disputa a mãe com a criança. Enquanto fonte de atenção, a mãe fere o egoísmo da criança ao ser dividida com o pai. Pior: a mãe fornece ao pai o mesmo que ao filho – comida, agasalho, companhia – mas há algo que o pai recebe que a criança não tem, mesmo que não o conheça explicitamente. Com isso, a criança tem uma relação conflituosa com relação à figura paterna. Não pode prescindir dela, dada sua capacidade de proteger; mas vê nela um concorrente desleal à posse da mãe. Tudo isso opera, evidentemente, no nível do inconsciente.

O que acontece com a maturidade é que todo esse processo continua válido, com a diferença básica de que, na pessoa adulta, o pai físico é substituído por um deus. Já se sabe aqui que os pais não têm a dimensão eterna que imaginávamos, em nossos infantis sonhos de estabilidade. Eles envelhecem, enfraquecem e também morrerão. Isso é resultado do aperfeiçoamento de nosso aparelhamento cognitivo e de nosso conhecimento empírico, e a solução que o inconsciente dá para um novo amparo, desta vez, vem de fora, vem transcendentemente. Novamente temos um pai. Só que novamente temos um conflito. E, pasmem, novamente temos a neurose infantil.

Da mesma forma que encaramos o pai, vemos um deus (que é chamado justamente de “pai” por tantas religiões) como uma entidade que não só protege, mas, em oposição, tem o monopólio da punição. Também ele dita o caminho e a moralidade reinante, também ele tolhe a liberdade, tudo como o pai biológico. E também ele fere nosso ego, ao nos apequenar infindamente diante de sua majestade, sem o lenitivo de pensarmos que um dia seremos deuses, assim como um dia poderemos ser pais. Aceitamos isso em nome de uma consolação e de uma expectativa de permanência, principalmente diante da morte. Esse é o alicerce das religiões, segundo Freud.

Isso tudo parece ter pouca correlação com o que apresentei sobre religiosidade anteriormente. Porém, em uma obra subsequente, O Mal-estar na Civilização, Freud é confrontado com outra hipótese. Um interlocutor não revelado menciona uma sensação denominada de sentimento oceânico, que seria uma reação humana perante o ilimitado, o imenso, o intransponível. É como se estivéssemos bem no meio de um de nossos imensos oceanos. Para todos os lados que se olhe, só vemos o mar azul, que se confunde na sutil curvatura da linha do horizonte com o próprio céu. Não há nenhuma noção clara nem de direção, nem de limite. Se navegarmos até a suposta linha do horizonte, saberíamos se tratar de um fruto da imaginação: de lá, teríamos mais do mesmo – novamente a mesma curvatura, a mesma fusão do mar com o firmamento, a mesma sensação de que há uma eternidade, uma continuidade. Isso tudo, por mais que saibamos existir, tira-nos a noção de finitude. Se há algo além de nosso alcance, queremos saber o que é. Dessa forma, mesmo a um ateu é permitida alguma forma de espiritualidade.

A partir deste pressuposto, Freud faz uma releitura da Religião como infantilidade, ou melhor, sem dispensar sua tese inicial, busca agregar o sentimento oceânico e lhe dar uma motivação. Vamos prosseguir.

O que é o ego de uma criança? Mais especificamente, até onde vai a capacidade de uma criança de distinguir a si mesma do mundo em que vive? Qual sua consciência própria? Freud entende que a criança em seus primeiros dias é eminentemente egoísta. “Sabe” de si, mas não dos outros. Ela é amoral, e não quer deixar o leite para ninguém, mesmo que seja seu irmão gêmeo. Quer se alimentar até a saciedade; se sobrar alguma coisa, muito que bem. Se não sobrar, dane-se. Esse é um dos motivos pelos quais a criança recém-nascida não se distingue do ambiente que a cerca: ela não reconhece a si mesma como uma entidade única, cercada de mundo por todos os lados. Falta-lhe a mesma noção de limite que o sentimento oceânico causa. No entanto, com o passar dos anos, evidentemente o ser vai amadurecendo e destacando-se na paisagem. Mas esse sentimento de indistinção de si com o universo permanecerá registrado em sua memória para todo o sempre, ainda que cada vez mais tênue.

A memória é um negocinho desgraçado. Eu faço força para tentar lembrar o que eu comi ontem, e de repente recordo do nada o que comi no dia da mudança de casa que fiz aos quatro anos. E há acepipes que recordo sem a precisão de uma idade, como, por exemplo, quando fui apresentado ao alecrim e com ele estabeleci uma relação conflituosa. Freud pensa o mesmo com referência ao sentimento oceânico: são reminiscências das primeiras infâncias que sobem à tona todas as vezes em que nos vemos diante de um painel de indistinção entre nós e o mundo, como na metáfora do oceano. Meio que “recordamos entre nuvens” do tempo em que não sabíamos a diferença entre nós e o cosmos.

Essa, portanto, não pode ser colocada como origem das religiões. Na verdade, estas aproveitam esse sentimento indefinido para se imiscuir nele, dando estatuto de beatitude a uma reação puramente psicológica. Esse sentimento de religiosidade é um espaço que a Religião chama de seu, invadindo-o para justificar um impulso natural que levaria as pessoas a buscar uma divindade, sem que a lógica da infantilidade seja descartada.

Tudo isso segundo Freud.

Então é isso. Cumpri minha promessa e narrei o que consegui saber sobre Padre Victor e Nhá Chica, e, em contraposição, trouxe as hipóteses de alguém que acredita que a Religião é um fenômeno puramente humano. Mas antagonismo é um dos pilares onde se sustenta a Filosofia, junto com a especulação e a lógica. Sejam sempre bem-vindos a estas praias quando o oceânico em suas vidas clamarem por uma direção.

Recomendações de leitura:

Vão aí as duas escritas de Freud sobre o assunto tratado acima. Eu diria que são alguns dos escritos mais eivados de Filosofia do polêmico austríaco, e, como eu disse, um é derivado do outro, pelo que deixa a entender o próprio autor. São textos curtos e concisos, vale a pena uma leitura rápida.

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2010.

______________. O Mal-estar na Civilização. São Paulo: Cia. Das Letras, 2011.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 11º sopro: Cruzília, os cavalos e os jogos contidos em seus negócios

Olá!


Quando pensei em ir a São Thomé das Letras, estando hospedado em Caxambu, comecei a procurar os melhores caminhos, conforme expliquei no texto citado. Uma das vias possíveis empurrava-me mais a leste, de forma a cruzar duas cidades antes de chegar ao meu pretendido destino. Uma delas não fazia parte do meu roteiro mental, mas como houve algo que me chamou a atenção nela, fiz sua adição ao meu circuito. Trata-se da cidade de Cruzília.


Esse nome, evidentemente, significa Terra da Cruz, mas não deriva simplesmente do sentimento religioso. O lugarejo que lhe deu origem era o cruzamento de duas estradas que levavam à região de extração de ouro em Minas Gerais, e, por isso mesmo, era conhecido como Encruzilhada. Acho que para dar uma aliviada na perspectiva umbandista do termo, foi acrescentado o nome do padroeiro do local à sua frente, e passamos a ter São Sebastião da Encruzilhada, até chegar ao nome hodierno, em sua emancipação municipal. Mas o padroeiro ficou, e é o patrono da cidade e da igreja matriz.


Sebastião, aliás, foi um daqueles mártires dos primeiros tempos do Cristianismo, que costuma ser representado em seu momento de condenação. O sincretismo com a Umbanda associou-o com uma divindade própria: Oxóssi, orixá da caça. Como é o padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, é um santo dos mais conhecidos no Brasil.


Sua reverência não para por aí. Na entrada da cidade, há uma imagem do santo abençoando os transeuntes ainda na estrada, e há uma série de referências no comércio local e em outros estabelecimentos, como esta escola, com prédio antigo e muito bonito.


A igreja matriz tem outros qualificativos. Ela é um santuário, que, na estrutura católica, significa se tratar de igreja destino de peregrinações, especialmente no caso em que possua algum tipo de objeto sagrado, como uma imagem ou relíquia. No caso, temos a cruz que fica no mirante da serra, e uma erigida bem na frente da igreja. É o Santuário da Santa Cruz.


O interior da igreja é fartamente decorado, com o estilo colonial típico destas cidades do interior. Chamou-me a atenção uma decoração especial feita ao redor do ambão, com jarros de argila, flores e tecidos, além dos detalhes do móvel em si.


O culto ao Padre Vitor e a Nhá Chica se estende por aqui, como por toda região. No próximo texto, finalmente vou me aprofundar um pouco mais na história de ambos, de como se originaram e persistem seus cultos até os dias de hoje. Desculpem pela foto com qualidade vergonhosa.


Do lado de fora da igreja, a tradicional praça, com o tradicional coreto, com a tradicional calma e com a tradicional limpeza, no topo de um morro que impera sobre as casinhas das ruas adjacentes.


Na parte de trás da mesma igreja, há uma outra praça, dedicada ao monsenhor João Câncio, primeiro padre daquele distrito, que se encarregou de cuidar não somente da parte espiritual, mas da educação do lugar, ao fundar sua primeira escola. Há um busto em sua homenagem, que está merecendo uma reforminha.


Cruzília é conhecida pela alta qualidade dos queijos que produz. Um deles, inclusive, foi classificado em quarto lugar em uma seleção dos melhores queijos do mundo. Seu empório é o local onde se vende tal acepipe, mas há vários outros produtores espalhados pela zona rural do município.


A bem dizer da verdade, o queijo é verdadeiramente sensacional, com um preço até que razoável, dada sua fama, e com uma variedade bastante farta. Mas há um probleminha: como queijo é uma coisa naturalmente onerosa, mesmo que não se pratiquem preços abusivos, é necessário que o comprador tenha critério. Somos um país pobre, infelizmente é isso. Dessa forma, sugerimos que os vendeiros não se aborreçam quando pedirmos uma prova. São limitações do orçamento, e não uma mera sanha em se aproveitar para provar de tudo e forrar o bucho.


Mas não há dúvida que o mais pitoresco que existe na cidade é o seu Museu do Mangalarga Marchador. É um lugar único, que se dedica a contar a história e de demonstrar como é essa raça de cavalos desenvolvida no Brasil, mais especificamente nesta região de Minas Gerias.


A casa em si já é um atrativo a parte. Era sede da Fazenda Bela Cruz, e é uma daquelas grandes construções que os fazendeiros mais endinheirados costumavam levantar para passar seus dias nas zonas urbanas próximas às suas terras, onde podiam fazer seus negócios mais confortavelmente. O edifício é construído na base mais comum à época: taipa de pilão, uma espécie de mistura de barro batido com substâncias aglutinantes, como a gordura. Moldava-se rigidamente às armações de madeira das paredes, formando uma estrutura bastante sólida, ainda que muito sujeita à umidade.


A casa em questão era pertencente a Gabriel Francisco Junqueira, mais conhecido como Barão de Alfenas, que tem o mérito de ter desenvolvido essa nova raça de cavalos, o Mangalarga Marchador, que dá nome ao espaço. Além disso, foi influente figura política dos tempos do império e proprietário de muitas, mas muitas posses.


O museu é dividido em duas partes. No andar inferior, temos um espaço destinado a exposições temporárias, chamado Espaço Cultural Beija-Flor.


Neste local, são realizados saraus, apresentações musicais, palestras e mostras temáticas. Na ocasião de nossa visita, tínhamos a exposição “Memórias da Casa Bela Cruz e Fazendas Tradicionais”.


Trata-se de uma ampla gama de objetos, utensílios domésticos diversos, artigos de uso pessoal e fotografias distribuídos pelo porão de forma a dar coerência nos seus contextos de utilização.


A ideia é retratar um conceito de época, fazendo o transporte histórico aos tempos em que casas como essa ainda eram residência dos proprietários de terra, do modo como viviam, como recebiam suas visitas, como se alimentavam e se levavam momentos de lazer.


Já o andar de cima é dedicado propriamente ao cavalo e a tudo o que o cerca. Há vídeos e painéis que explicam sua origem e padrões. Devido ao relevo da região, achou-se necessário produzir um cavalo veloz para o galope sem perder um mínimo de comodidade. Um cavalo rápido, mas desconfortável, acabaria com a espinha de qualquer peão; e um cavalo cômodo, mas lento, levaria qualquer viagem por esse jardim de morros ao infinito e além, interminavelmente.


O museu, além do cavalo em si, expõe um acervo considerável de equipamentos destinados à montaria e ao trabalho de campo, como estribos, rédeas, freios, bridões e selas.


E também são exibidas rouparias típicas dos peões que precisavam atravessar estradas e matagais, com a preponderância de artigos de couro cru. Com o calor que fazia naquela manhã de setembro, eu passava mal só de ver aquele montante de peças grossas, pesadas e impermeáveis.


Renilda e Luana são os nomes das guias do museu, tão simpáticas e receptivas como é a própria instituição (ABCCMM – Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador), mantida pela associação de criadores da espécie-tema. Um belo cafezinho com bolachas para fechar a visita.


Como eu já devo ter falado neste blog, sou um ser eminentemente urbano. Nasci na Mooca, cresci na Vila Ema, casei no Parque São Lucas, tive filhos no Jardim Elba e hoje moro na Sé, tudo na cidade de São Paulo, o maior conglomerado urbano desta Latinoamérica. Meu contato com as zonas rurais se limita aos meus parentes do Paraná e, embora não seja exatamente um nó cego nessas coisas do interior*, há certas lógicas que me são estranhas. Uma delas é o uso comum de leilões. Na cidade, leilão é uma coisa do imaginário ou do judiciário. Este último para, principalmente, quitar dívidas dos tristes insolventes, e o outro vindo das comédias de erros, onde um idiota qualquer compra involuntariamente algo aparentemente inútil. O roteiro geralmente se fecha com a tranqueira se revelando valiosa, depois de causar um monte de percalços ao seu abobado comprador. Mas no campo a prática é muito mais frequente, inclusive para comerciar o tal do cavalo Mangalarga Marchador.
Assisti uma vez a um leilão beneficente em Paraibuna, mas que, justamente pelo seu caráter caritativo, serve unicamente como amostra do que são os leilões de gente grande. A coisa é cercada de uma aura de combate, como se os contendores calçassem luvas de boxe. E isso tudo me fez pensar na Teoria dos Jogos, que estuda as estratégias e comportamentos das partes envolvidas para obter os melhores retornos possíveis, e que anda muito em voga nesses tempos de empreendedorismo e autoajuda.

Falando francamente, por mais que eu estude a tal teoria, não consigo me convencer da plenitude de sua validade, principalmente pelo seu uso profuso por aquela galera que gosta de jogar ciência no seu discurso como forma de convencer uma incauta audiência do mundo empresarial (aqui tem um bom exemplo), mas ela não me parece plenamente nula de valor, muito pelo contrário. É que talvez eu não manje tanto de Economia quanto deveria. Mas sigamos.

Para entendê-la, é preciso fazer alguns ajustes. Em primeiro lugar, o nome “Teoria dos Jogos” pode dar uma impressão de fundo lúdico, já que seu termo raiz, o latino jocus, significa zombaria, troça, escarnecimento, brincadeira, de onde vem a palavra “jocoso” e o termo inglês joker, que significa palhaço. Mas a teoria, em tese, cuida de coisas sérias, então é melhor pensar em termos mais duros, como certame ou disputa, que fazem pensar em confronto entre adversários.

Outra coisa é ter o cuidado de ter em mente que o valor preditivo da Teoria dos Jogos é zero, o que faz com que o próprio termo “teoria” seja impróprio (teoria, no sentido científico, tem o caráter que esmiucei neste texto). Seus defensores alegam que seu valor mais autêntico está na capacidade de gerar escopos de possibilidades, e não prognósticos, e aceitarei tal alegação, para o bem da concisão deste texto.

Feitas estas considerações, vamos ao cerne, como o faminto avança ao prato de comida. A Teoria dos Jogos tenta aplicar um modelo matemático às circunstâncias em que há uma disputa onde não há certeza de que será possível adotar estratégias colaborativas entre seus partícipes, mormente aplicáveis a questões econômicas e de negócios, mas também atribuíveis a outros campos. Com isso, a aplicação séria desta teoria visa fornecer os elementos estruturais de uma determinada relação competitiva. A Teoria dos Jogos pela via da autoajuda, por outro lado, tenta convencer o contendor de que lhe podem ser providas ferramentas para vencer qualquer tipo de embate financeiro. Deu para perceber a diferença de propósitos? Esse último tipo de baboseira, nós vamos deixar de lado.

Seguindo. Seres humanos, diferentemente do que ocorre com ursos ou toupeiras, gostam de viver em comunidade, e, se são assim, estabelecem relações que obrigatoriamente possuem interatividade (porque de nada adianta viver conjuntamente sem alguma forma de comunicação) e interdependência (onde cada um dos membros desempenha um papel necessário, que traz proveito para si e para os demais). Essa teia de relações, vistas como um todo, parecem funcionar bem, haja vista à própria existência da comunidade. No entanto, quando descemos aos subgrupos ou às individualidades, há situações de desequilíbrio, e não estou falando aqui de mazelas sociais, mas de um ganha-perde relativamente normal, até mesmo esperado. Todas as relações humanas envolvem algumas flutuações, onde, por exemplo, um lado cede e outro se beneficia; talvez o movimento se reverta em uma próxima ocasião. Isso significa que as interações, sejam no foro íntimo, sejam no mundo dos negócios, envolvem estratégia de ação. Por exemplo: há dois jogos no final de semana no mesmo horário – um do Juventus, outro da Portuguesa. Eu quero ir ao primeiro, a patroa ao dos patrícios. Para não colidir, podemos chegar a um acordo. Vamos no do Juventus esta semana, e na Lusa no domingo seguinte. Isso parece OK, mas pode haver algumas táticas por trás disso. A cara-metade cede hoje, sabendo que o jogo vindouro tem mais importância para o campeonato; eu faço questão hoje, tendo em mente que há previsão de chuva para a próxima rodada. E, assim, cada um de nós segue um tipo de decisão mais ou menos raciocinado. Isso é o que se pensa quando se fala em “jogo” na teoria ora analisada. Colocamos na mesa as hipóteses viáveis para a resolução de um determinado conflito e sopesamos cada uma delas, da melhor maneira possível. Para ambos? Nem sempre. Se sim, ou seja, quando ambos ganham e trabalham para isso, temos uma interatividade cooperativa. Mas há situações onde, para alguém ganhar, é preciso que outro perca. E por isso é que temos a disputa, a interação competitiva.

O que a Teoria dos Jogos preconiza é que essas estratégias podem ser reduzidas a esquemas, portanto. E, uma vez esquematizadas, as interações passam a oferecer um desenho lógico, de modo a se explicitar os rumos que estão tomando e para onde podem ser desviadas. E aqui a comparação com os jogos torna essa capacidade de se desenhar a lógica das situações um pouco mais fácil de entender. Vamos pegar o futebol de novo. Nele, você sabe exatamente quem são os disputantes, há um conjunto de regras bem determinado, há uma certa quantidade de informações sobre o que se disputa e o que é preciso fazer para se obter resultados positivos. Os envolvidos na disputa são os jogadores: onze para cada lado, com direito a três substituições e orientação de uma comissão técnica. As regras são aquelas famosas dezessete, que envolvem campo, bola, árbitros, duração da partida, faltas, impedimento, córner e etc. As informações dizem respeito ao que a partida vale: um campeonato e o quanto ele paga, um torneio amistoso, uma pelada de solteiros versus casados. E vencer ou perder depende de gols, esse é o meio que se tem para preponderar sobre o contendor. Em resumo, temos o quem, o como, o porquê e o para quê. De um modo tosco e sem considerar diferenças de placar, podemos correlacionar todas essas situações da seguinte forma:


Desta forma, podemos delinear graficamente as situações possíveis de uma partida entre os tradicionais times desta capital das terras de Piratininga. Cada quadradinho representa um placar possível, sendo que, quando os dois resultados são iguais, temos um empate. Do contrário, há um vencedor e um perdedor. Com isso, estão esquematizadas as possibilidades em uma matriz dois por dois e finito. Cada um dos quadradinhos é o que se chama de pay-off, que nada mais é do que um dos resultados possíveis, ou seja, o que cada um dos contendores paga ou recebe pela concretização de uma das hipóteses. No primeiro pay-off, a Portuguesa faz um gol e o Juventus toma um gol (isso é chamado de jogo de soma zero, que ocorre quando uma circunstância positiva para um player é obrigatoriamente negativa para o outro), e a Lusinha tão gloriosa outrora vence o embate. Temos dois pay-offs que preveem empates e um outro ainda que indica vitória do Moleque Travesso. Mas isso é só um exemplinho boçal. A coisa é muito mais profunda, e tem muito a ver com a incapacidade de se prever o que o pessoal do lado de lá vai fazer. E isso fica claro no problema mais clássico da Teoria dos Jogos: o Dilema do Prisioneiro. Seu enunciado:

Sejam dois meliantes que foram pegos com a boca na botija na cena de um crime qualquer, mas sem que se possa determinar com exatidão qual deles realizou a ação. Para tentar elucidar o delito, a polícia prende ambos em celas separadas e faz a cada um a seguinte oferta: se você acusar seu companheiro pelo crime e ele se calar, você será libertado e o infeliz ficará preso por dez anos. Se ambos ficarem quietos, a condenação será de um ano para cada um. E, se ambos acusarem-se mutuamente, a pena ficará em cinco anos.

Esquematicamente, teremos o seguinte (os números referem-se ao tempo de pena):


Vejamos o que há de características no problema. Como a decisão de cada um dos prisioneiros será simultânea e desconhecida para o outro, a estratégia a ser adotada deverá levar em consideração uma das duas seguintes opções: sendo certo que o ideal é ficar preso pelo menor tempo possível, melhor seria delatar e concorrer a uma pena zero ou silenciar e arriscar a pegar a pena mais leve, de um ano? Neste caso, é preciso procurar os pontos de equilíbrio do sistema, e, em um caso simples como esse, eles são dois.

Um deles é o Ótimo de Pareto, de quem já falei em um antigo post sobre a cidade de Arapeí. Seu princípio básico é a chegada em um ponto onde não há para onde se mover sem que se prejudique a posição de outrem. Em outras palavras, é aquele famoso caso em que um governo afirma não poder gastar mais em educação sem tirar dinheiro da saúde; se o fizer, haverá prejuízo nas filas de hospital, ainda que as mesmas diminuam nas creches. Como já falei sobre o tema, não vou me aprofundar. Na matriz, o ótimo de Pareto é representado pelo silêncio mútuo: não há como ser melhor para a situação de ambos conjuntamente, bastando somar as penas conjuntas das quatro situações, que, no caso, é igual a dois. Nenhuma outra situação proporcionará menos tempo de cadeia, mesmo que um dos prisioneiros fique livre.

O outro é o chamado equilíbrio de Nash, em referência ao matemático e economista John Nash, cuja epopeia de vida foi romanceada no filme Uma Mente Brilhante. Nash não foi o criador da Teoria dos Jogos (John Von Neumann, o criador do computador moderno, é quem primeiro sistematizou esquemas de estratégia de decisão), mas a aperfeiçoou ao ponto de ser laureado pela Academia Sueca pelo seu feito. Ele observou que, aparentemente, os oponentes em um sistema tenderiam a optar pelo melhor pay-off possível. No caso do Dilema do Prisioneiro, sem dúvida, seria delatar o rival, pois só assim seria possível conseguir a liberdade. Isso é o que se chama de estratégia dominante. Mas a adoção da estratégia dominante por todos os contendores encaminha a solução para fora da intenção de cada um, porque não há como ter dois vencedores em jogos não-cooperativos, assim como não dá para saber o que se passa na cabeça dos demais, e chegamos a uma situação de equilíbrio diferente do ótimo de Pareto. Aqui, não temos a melhor solução possível, mas uma situação em que nada mais pode ser feito no embate para que a situação dos adversários se modifique. Voltando ao Dilema do Prisioneiro, teremos que ambos os safardanas, optando pela estratégia dominante, alcaguetarão seu êmulo, na esperança de saírem livres. Mas o resultado será a condenação de ambos por cinco anos, pena para o mútuo dedo de seta. E esta se torna uma situação de equilíbrio, porque, considerando que o Prisioneiro 1 tenha delatado o prisioneiro 2, nada pode este fazer de melhor a não ser delatá-lo também. Ser delatado já faz com que cinco anos seja a pena mínima, com o risco de pegar dez, caso mantenha-se a quietude. Ser delatado significa impossibilitar a liberdade e a leve pena de um ano. Essa situação é o tal de Equilíbrio de Nash, e é o segundo ponto de equilíbrio de um jogo em que a colaboração não é viável.

No filme mencionado, há mais um bom exemplo de como Nash encara a Teoria dos Jogos e como chega ao seu equilíbrio, na guerra de conquista da loira linda. Outro filme que demonstra claramente o uso da Teoria dos Jogos, ainda que não a mencione explicitamente, é Jogos de Guerra, que assisti em seu lançamento no Brasil, algo raro na minha história. Ali, o peso maior está em decidir se vale a pena ou não atirar a primeira pedra. No caso, a pedra é um míssil nuclear. Vou recomendá-los mais abaixo.

E isso tem tudo a ver com os leilões de cavalos, que, como já comentei, é um dos principais meios com os quais o pessoal das coudelarias comercia seus simpáticos bichinhos. Quando estamos colocados para um leilão, é perfeitamente possível esquadrinhar, ainda que mentalmente, um diagrama de jogos, que seria tão mais complexo quanto maior for a quantidade de concorrentes. Os concorrentes presentes possuem estratégias que são, ao mesmo tempo, sucessivas e simultâneas. Quando um determinado lance é dado para um animal, já temos a concretização de uma estratégia. A decisão dos demais contendores em suplantá-lo ou não é outra, e assim sucessivamente, até o arremate final. Tudo é estratégico dentro do certame: reservar fundos para um cavalo específico, espalhar lances em diversas rodadas para valorizar os lotes, tentar fazer alguns dos itens fracassar para reduzir os preços globais, vistoriar os semoventes, fazer lances às cegas confiando no leiloeiro, arrematar lotes mistos para aproveitar as peças melhores. Isso faz com que as variáveis dos pay-offs sejam muito mais numerosas, e a matriz de cada um desses jogos fica muito mais múltipla do que o inocente esquema do Dilema do Prisioneiro. A imprevisibilidade das decisões faz com que, na minha humilde opinião, um leilão de cavalos se aproxime muito mais da não-linearidade dos sistemas da Teoria do Caos (veja aqui) do que da matematização proporcionada pela Teoria dos Jogos, e acho que é isso que me faz resistente, mas Matemática e Economia não são minhas áreas, por isso não fecharei vereditos. Prefiro me restringir aos parâmetros estéticos dos cavalos e da casa que abriga sua história, visita tão inesperada e agradável quanto a pequena cidade que os abriga.

Recomendações:

O livro abaixo é usado academicamente por contar com muitos exemplos de jogos com visão econômica:

BIERMAN, H. Scott; FERNANDES, Luis. Teoria dos Jogos. Campinas: Pearson, 2011.

Como eu disse, há um filme que contém uma biografia romanceada sobre John Nash. Sendo uma peça de livre autoria, é preciso ter certas reservas, mas Nash tinha mesmo alguns problemas, como a esquizofrenia. De qualquer forma, é um bom filme, mesmo que fosse de ficção.

HOWARD, Ron. Uma Mente Brilhante. Filme. Universal Pictures, 2001. Cor. 134 min.

E o outro filme citado, que parece uma aventurinha da Sessão da Tarde, mas não é. Em uma época de plena Guerra Fria, ver como era fácil uma potência disparar um saco de ogivas na cabeça da outra (com a reação óbvia) era assustador.

BADHAM, John. Jogos de Guerra. Filme. United Artists, 1983. Cor. 114 min.

* Bastando lembrar que, quando eu era um alegre petiz, a área onde hoje fica a Anhaia Melo era composta de chácaras de fora a fora, e eu era uma espécie de estafeta da casa, inclusive para comprar legumes e verduras, o que me fazia frequentar aquela mancha rural em plena cidade frequentemente.