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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A internet como campo de prova da anarquia

Olá!

Vivemos recentemente os agitos promovidos por legisladores estadunidenses, que tentaram promover uma série de limitações ao acesso de obras protegidas pelas leis de direito autoral, em especial os sites de compartilhamento de conteúdos, tidos como promotores de pirataria virtual - este dispositivo ganhou o nome de SOPA - Stop On-line Piracy Act - algo como "Ato de impedimento de pirataria on-line". Assim, qualquer domínio que disponibilizasse arquivos infringentes à proteção garantida pela propriedade intelectual estaria rapidamente sujeito à imposição de graves penalidades. Conhecendo a meca do capitalismo e seu horror a violações de direitos de propriedade (e, a bem da verdade, seu sistema jurídico bem mais eficaz que o nosso), não é de se estranhar a celeuma causada no mundo virtual. Se o foco fosse apenas esse, o problema seria menor, porque estaria basicamente circunscrito a quem disponibiliza conteúdo pirata, ao menos em tese. O grande busílis, no entanto, se dá com a extensão prevista para a punibilidade, que pode atingir qualquer provedor que tenha qualquer ligação com estes conteúdos. Isso quer dizer que a lei prevê punição até mesmo a quem meramente indique um site que tenha recheio caolho e com perna de pau. Uma busca no Google, uma indicação no Facebook, um link no Blogspot ou no Wordpress, uma fonte no Twitter, apenas para citar exemplos, dão mostra do tamanho do estrago que tal lei poderia causar. Já pensou, internet sem Google?



A reação foi imediata e contundente, portanto. Vários sites fizeram protestos abertos, como a Wikipedia, que se retirou do ciberespaço por um dia, no mês de janeiro. Mas o principal conjunto reativo foi adotado pelo grupo chamado Anonymous, ativistas da causa da liberdade na internet sem uma liderança reconhecida e de associação voluntária, conhecidíssimos por seu meme baseado em Guy Fawkes (para conhecer mais, pesquisem por “conspiração da pólvora” – vão rápido, antes que o Google feche!) que atacou os espaços virtuais de vários órgãos do governo e de entidades que apóiam a SOPA, como as empresas de televisão e de entretenimento em geral. O grande mote deste grupo é a liberdade na internet, que seria um espaço essencialmente destinado à democratização do conhecimento.

E aí vem a minha grande pergunta: será que efetivamente a internet se assemelha a um espaço democrático, como já acostumamos a ouvir? Não seria mais apropriado dizer que a internet é o campo de prova que a anarquia nunca teve para ser colocada na prática?

Ok, vamos com muita calma nesta hora decisiva. Em primeiro lugar, há em nosso senso comum a impressão de que anarquia é sinônimo de bagunça, de ausência de ordem. Não, crianças.

A anarquia é uma filosofia política dentre outras, como o capitalismo e variantes, socialismo e que-tais, fascismo e derivados, monarquia e assemelhados. Sua característica mais marcante é a ausência de um governo central, que exerceria coercitivamente seu poder, uma violência contra a liberdade humana. Obviamente, não houve nenhum relato histórico de que este sistema tenha sido adotado em algum país, o que evidencia seu caráter essencialmente utópico.

O anarquismo foi preconizado já há muito tempo, com passagens por filósofos orientais e clássicos gregos, mas somente foi visto como uma possibilidade real a partir da sistematização feita por pensadores como Proudhon, Kropotkin e Bakunin. A autoridade na anarquia não é baseada em um poder central, mas no consenso e na solidariedade, com a criação espontânea de agrupamentos sociais regida por interesses mútuos. Dessa forma, podemos deduzir que o anarquismo não significa ausência de leis e de ordem, mas sim de autoritarismo e coerção baseados em interesses individuais ou de uma classe privilegiada. Parece com comunismo? Parece, mas não é, porque neste há um governo central muito forte. Para Marx, o principal profeta comunista, a anarquia seria o estágio final do comunismo, enquanto para Bakunin a fase de governo centralizado era desnecessária e mesmo prejudicial.

Como seria um mundo regido pelo sistema anárquico? - é o que cumpre questionar, e, a partir daí, verificar como estes princípios estão se materializando através da dinâmica da internet. Vejamos.

Um dos princípios básicos do anarquismo é o mutualismo. Como os anarquistas repelem a hipótese de que é inevitável a existência de um governo central, a solução oferecida para que os membros de uma comunidade possam formar os patrimônios sociais, como a cultura, a disseminação do conhecimento, a assistência aos necessitados, é o compartilhamento de virtudes, que seriam colocadas à disposição de todos para serem utilizadas de maneira comum. Um bom exemplo que usa estas características no mundo cibernético é a Wikipedia, que trabalha de forma colaborativa e por livre associação para a construção de sua base. A própria possibilidade de interferência de outrem na construção desta base remete a características anárquicas: a correção de rotas é feita pela comunidade como um todo – ninguém é dono absoluto da verdade, esta se baseia a partir do consenso. Também as solicitações de colaboração para a manutenção do site têm certa coloração anarquista, já que eram as caixas de assistência mútua, que davam suporte aos sindicatos e aos membros em situação de amparo, e eram constituídas por cooperação comum e utilizadas de acordo com a orientação do grupo social respectivo.

Outra constatação interessante é o antiautoritarismo preconizado pelo anarquismo e visível nas recentes reações à SOPA. Já disse – os anarquistas têm verdadeiro horror a um governo centralizado. Esta ojeriza toda é baseada na ausência de liberdade proporcionada pelo poder coercitivo atribuído a um único homem ou a grupos privilegiados, que dispõe de recursos suficientes para o exercício de dominação, em uma tirania que não implica unicamente na utilização da força física, mas na condução, a seu bel-prazer, dos processos ditos democráticos, como eleições e elaboração de leis, já que o volume de meios influencia na formação da opinião da maioria, através da alienação e da ideologia (bom, isso é Marx – vamos aprofundar o tema em outra oportunidade).

Essa coerção não só é limitadora da liberdade, mas também é ferramenta para a manutenção do status quo do dominador em questão. A reação do grupo Anonymous, citada anteriormente, é bem representativa da atitude contrária ao ideário em tela, o de que as normas devem ser ditadas por uma autoridade colocada acima da sociedade como um todo, de forma a se destacar dela e de desatender aos seus verdadeiros interesses e necessidades. Através da ação direta (outro conceito anarquista), a reação buscou restabelecer a liberdade ameaçada, relativizando o direito à propriedade. Veja que este direito é contestado, neste caso específico, de maneira parcial, já que os direitos autorais são propriedades intangíveis, que os anarquistas reputam como patrimônio cultural a ser colocado em comum para toda a sociedade.

O tão propalado e moderníssimo mundo sem fronteiras proporcionado pelos novos meios de comunicação vai ao encontro de um corolário do princípio do antiautoritarismo, que é o internacionalismo. Basilar na anarquia, a delimitação das nações é vista como derivada maior do conceito de propriedade e de coerção, além de ser fonte permanente de conflitos e preconceito. Ao propiciar contato entre diferentes culturas de modo não-hierárquico, a internet amplia o campo da assistência mútua, transformando toda a humanidade em uma enorme rede comunitária, bem ao contrário do dogma da globalização, tese tipicamente capitalista que lança seus olhos (ou tentáculos, como queiram) à disponibilização de produtos para o comércio. Percebam a diferença: um com propósitos solidários, outro visando o lucro. A internet se presta aos dois, e quem define seu uso é o nicho cultural interessado.

É no quesito do direito à propriedade, como já esbocei anteriormente, que encontramos as discrepâncias mais graves. A sanha de posse nas sociedades humanas é especialmente voltada ao indivíduo. É o indivíduo que possui, mais do que as coletividades. Esse desejo de possuir, de ter, progressivamente evolui até chegar aos bens imateriais, o que turva a visão do indivíduo diante da participação de sua produção intelectiva no conjunto cognitivo de toda a humanidade. O capitalismo levado a extremos tão grandes conduz, no final das contas, a uma desumanização. Os anarquistas vão beber em Rousseau para basear suas soluções sobre o conceito de propriedade: para o pensador suíço, a propriedade é a causa maior de conflitos e das guerras, e principal artífice das diferenças humanas, gerando uma divisão anti-natural entre fracos e poderosos. Para os anarquistas, a propriedade individual equivale a um roubo, como estabelece Proudhon, e por isso deve ser suprimida.

Indubitavelmente, o direito de propriedade, ao menos para meios difusos, precisará ser repensado, já que a internet é hoje um meio impensável até há pouco. Toda tentativa de controle tem se revelado agressiva demais para ser colocada em prática, como é o caso da SOPA estadunidense ou da censura chinesa. A meu ver, a utilização da internet não representa uma democratização própria do conhecimento, pois a democracia ainda supõe alguma hierarquia e divisão de classes. O que a internet tem feito, na verdade, é sacudir o próprio direito de propriedade, ao estabelecer uma horizontalização extrema no acesso à cultura. E isso é característica anárquica. O artista não perde tanto quanto o intermediário que o agencia, porque ele tem o contato direto com sua comunidade – seus fãs e outros artistas. Não se compara assistir um show ao vivo ou no DVD, ver um filme no cinema ou na televisão. Perde muito mais toda a indústria cultural que há por trás de todo esse mecanismo.

Por todo o exposto acima, posso concluir que a anarquia finalmente parece ter deixado seu campo meramente teórico e utópico para se tornar palpável, experienciável. Não estou aqui nem defendendo sua expansão à sociedade como um todo, nem sua aplicabilidade a qualquer sistema humano, como é o político. Apenas procuro constatar que, pela primeira vez na história e de maneira espontânea, estamos tendo a oportunidade de vislumbrar um sistema aparentemente irrealizável ser colocado efetivamente em prática.

Em tempo, pessoas: já falei por aqui que escrevo essencialmente para a juventude. Não deixem que alguns termos incompreensíveis impeçam nosso debate. Digam assim – gordo maldito, o que significa (digitar aqui o termo em dúvida)? Pensa que todos nós somos coagidos a nos deleitar com sua prepotente, pernóstica e pretensa erudição? Supõe, por sua empáfia, ser a nós defeso o alcance à cognição de fundamentos que por ti são reputados como componentes peremptórios ao incremento de nossas envergaduras intelectivas? Ora, explique-se.

Pois bem, fá-lo-ei toda vez que instado a tanto (mas não sejam indolentes – pesquisem sempre que puder).

Recomendação de leitura:

Vejam as interessantes observações sobre a propriedade feitas por Proudhon, considerado pai do anarquismo moderno:

PROUDHON, Pierre Joseph. O que é a propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988.


Quanto à concepção de desigualdades entre os homens, recomendo o seguinte:

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Disponível em: www.ebooksbrasil.org/adobeebook/desigualdade.pdf.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sobre mulheres ricas e a fuga humana

Olá!

Dia desses, no Facebook, postei um vídeo em que algumas socialites puseram-se a discutir sobre o recente conflito ocorrido entre alunos e PM na USP. Afffffffffffffffffffffffff... Meu Papaizinho do céu! Comentei de maneira um pouco óbvia: nossa elite financeira não coincide com a elite intelectual. Esta vive no meio acadêmico e nas instâncias culturais, enquanto a primeira frequenta templos do capitalismo. Desde o começo do ano, essa impressão é reforçada pelo reality show da TV Bandeirantes denominado "Mulheres ricas". Não sou muito dado a esse tipo de programa, por um motivo extremamente simples. São simulações, nada mais do que isso. Ninguém está lá verdadeiramente aberto, cada ato é calculado. Se há algo a ser analisado é o público que o acompanha, o que farei em breve, mas esse não é o foco agora.

Pois bem, o que há então para discutirmos aqui? Certamente a maior crítica que podemos fazer às personagens do programa diz respeito à sua superficialidade. Por que mulheres com tanta grana não procuram se aprofundar em alguma atividade intelectiva, artística, altruísta, social, política (no melhor dos sentidos)? Sabemos que um dos principais problemas de nossos acadêmicos é a falta sistemática de recheio na carteira, o que não é problema para nossas heroínas. Ser superficial ganha um certo estatuto de boa qualidade de vida - preocupações metafísicas, ilações sociais, discursos educacionais, volutas filosóficas, trançagens estéticas, maquinações antropológicas são coisas para quem não pode fazer o que fazemos porque não chegaram onde chegamos, seja lá qual tenha sido o caminho traçado, a famosa inveja. Este parece ser o pensamento de nossas egrégias. Bem, há certo sentido - bem pouca gente não gosta de dinheiro, 'inda mais em quantias expressivas. Mas não para explicar a pobreza intelectual como produto a ser consumido.

Em primeiro lugar e só para por as coisas em seu lugar: não podemos generalizar. A elite parece superficial como um todo, mas nem todo membro dela pode ser tomado assim individualmente. Essa é apenas a impressão geral passada pelo programa (Por incrível que pareça, a rica oriunda da prole - Débora Rodrigues - parece a mais legítima delas - lembremos que ela já possui experiência televisiva). Isso posto, pensemos nos motivos da superficialidade já por mim tão decantada comparando hábitos, e ficaremos surpresos em constatar que as coisas que os ricos gostam, os pobres, medianos e demais remediados gostam também. Fanques, pagodes e sertanojos vendem ingressos aos milhares enquanto projetos interessantes como o Mapa Cultural de São Paulo são abandonados por falta de interesse do público; qualquer porcaria estadunidense onde jorra sangue e sêmen lotam um cinema, e estes mesmos espectadores não param prá ver como o cinema brasileiro melhorou de uns tempos para cá; nossos jovens amam Bieber e Cyrus, Fresno e Restart, Victor e Léo, mas nunca ouviram falar de Aylton Escobar ou Alexandre Moschella, para citar só dois.

Conclusão: não são nossos distintos ricos que são superficiais - é a humanidade. Há algum porquê?

Vamos tentar achar alguma luz no século XVII, com o hoje quase esquecido Blaise Pascal. Para quem não o conhece, foi um dos grandes gênios da humanidade, matemático, físico, inventor (criou um dos primeiros modelos de calculadora), teólogo e, no campo da filosofia, um semi-opositor de Descartes, ao afirmar que o sentimento não pode ser desconsiderado em nome do racionalismo, apesar de ser este o grande guia do intelecto.

Pascal dizia que a atitude mais digna do ser humano é o pensamento, seu distintivo e caracterísitica principal. Nenhuma outra atividade humana é mais nobre que essa, e o homem que se aprofunda em seus pensamentos estabelece de maneira bastante segura que não se trata de nenhum outro tipo de animal.

Com isso, podemos concluir que, como seres pensantes, deveríamos nos orgulhar e cultivar cada vez mais desse nosso caráter. Acontece que, ao tornarmos cada vez mais profundo nosso pensamento, arriscamos a dar de encontro com o objeto que nos causa nosso maior medo. Um ser cruel, que nos põe o dedo na cara e nos acusa dos piores crimes, dos maiores erros, dos mais temíveis pecados, e o faz de maneira incontestável. Um ser que nos conhece a vida inteira, todas as vergonhas pelas quais passamos, todas as decepções mais inconfessáveis, tudo o que sonhamos e não conseguimos. O ser humano teme muito esse ser que registrou todas as escolhas desastrosas, todas as paixões secretas, todas as mentiras e ocultações, e que desmonta todas as imagens que construímos. Enfim: o ser humano tem um medo patológico de encontrar a si mesmo, odeia olhar no espelho da alma. O homem é seu próprio demônio.


Esse é o motor da superficialidade: sua consciência de si está permanentemente à espreita. E, para afastá-la, a pessoa procura qualquer atividade que a distraia, qualquer divertimento, qualquer coisa imediata.

O problema é que de tanto buscar coisas imediatas, o homem não tem aporte mental suficiente para compreender qualquer fenômeno ou manifestação que se dá em sua frente. Obras complexas, pensamentos complexos, problemas complexos, tudo o que é complexo pula o muro e vira incompreensível.

Por conta disso, o homem superficial nivela-se por baixo, e passa a procurar toda sorte de porcaria. Mas o que se extrai de um arrasa-quarteirão facilmente compreensível que está bombando na internet? Cinco minutos de reflexão, quando muito? Daí que a quantidade de diversão deve subir em proporções exponenciais para ocupar todo o tempo de um indivíduo. Tudo por medo de se encontrar frente a frente à própria consciência. E daí temos o tédio e a depressão, que, por paradoxal que seja, preponderam em tempos cibernéticos, onde há tanta informação disponível.

Os ensinamentos de Pascal não são novos, mas são atuais. Em especial no sentido de que o homem não precisa temer ser um pensador.

Recomendação de leitura:

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973.