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segunda-feira, 26 de março de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (02 - Metafísica)

Olá!


Existem alguns termos que aparecem no nosso quotidiano de forma tão distorcida que acabamos tendo imensa dificuldade em compreender corretamente seu sentido. É preciso separar o joio do trigo, mas esse processo é sempre contraintuitivo. É o que acontece com as universidades, por exemplo, cujo engano no propósito já dissequei aqui, e que repito rapidamente: o objetivo principal de uma universidade não é formar profissionais, mas construir conhecimento. A formação acadêmica e profissional é uma consequência dessa atividade e não uma causa. Mas é esmurrar ponta de faca. Cem entre cem cidadãos lhe dirão que o que explica a existência das universidades é a conferência de diplomas aos seus estudantes.

Algo muito semelhante acontece com a Metafísica, tema do segundo episódio da presente série, que visa propor o esclarecimento do que se referem algumas áreas da Filosofia. Quando falamos em Metafísica, a associação é quase imediata no meio laico ao misticismo, o que é um ledo engano, uma triste ilusão, um erro crasso. Sim, é bem verdade que certos raciocínios que se valem do misticismo podem ser aproveitados na racionalização metafísica e vice-versa, mas são coisas absolutamente distintas. Esse é o primeiríssimo ponto a ser compreendido. Mas vamos com calma.


Quando eu era criança, geralmente tinha preocupações de criança: basicamente brincar, ler gibis, assistir desenhos e arrumar desculpas para justificar notas ruins. Eu não era exatamente mau aluno, mas não me fixava tão bem como deveria no mundo didático de então. Minha mãe era um bocado rigorosa nessas coisas educacionais, e todas as vezes em que acabava a reunião bimestral na escola, o roteiro já estava escrito: chinelo cantando e castigo por tempo indeterminado, até a raiva passar. A penalidade aplicada é conhecidíssima pelas pessoas da minha idade – veto às saídas de casa e TV desligada, para “pensar um pouco na vida e na dificuldade que passamos”. Como se pode ver, minha mãe não era dada a longos discursos.

As poucas atividades permitidas eram aquelas impossíveis de proibir, como o rádio que a minha mãe mesma ligava para passar o tempo na máquina de costura e as lições que eu aproveitava para pôr em dia. Como não fossem afazeres que me tomassem cem por cento do tempo e da atenção, a cabeça por vezes ia viajar aos confins. Geralmente, pensava nos confrontos contra o time da rua de cima que eu estava perdendo ou no céu coalhado de pipas sem que a minha estivesse lá. Mas algumas vezes eu era tomado por raciocínios do tipo: “ok, eu estou aqui e agora, completamente entediado. Se não estivesse aqui, estaria em qualquer outro lugar. Mas como seria se não houvesse outro lugar? Aliás, se além de outro lugar, nem o mundo houvesse? Não o espaço vazio que sobraria se não existissem nem planetas ou estrelas, mas nem mesmo o espaço? Como seria se não existisse a realidade, apenas um grande e imenso nada?” Eram pensamentos tão estranhos porque excluíam noções básicas do conhecimento: se há nada, não há tempo e não há espaço. Não há agora, não há antes, não há depois, não há lento, não há rápido; não há longe, não há perto, não há grande, não há pequeno, não há reto, mão há torto. Não há para onde ir e nem quando ir. Estes, meus caros, eram pensamentos legitimamente metafísicos de eu-menino. Da Metafísica, portanto, escapa essa história toda de energias místicas, medos de demônios e outras instâncias esotérico-religiosas.

Mas é possível compreender a confusão. O próprio termo “metafísica” já nasce criando essa possibilidade. É um daqueles gols espíritas (epa!), uma coincidência que deu certo, mas que abriu algumas portas de intromissão. A palavra é grega e composta de duas partes: meta e physika. A primeira significa “aquilo que está além” ou “aquilo que vem depois”, ou, por extensão, “aquilo que está por trás”. Já a segunda parte representa o mundo físico, o cosmos, aquilo que nos rodeia e do qual fazemos parte. Portanto, em uma tradução direta, metafísica significa “aquilo que está além do mundo físico”, “aquilo que está por trás da Física”. A coincidência está no fato de que o campo de estudo da Metafísica é praticamente esse mesmo: entender o que há por trás da nossa realidade e que os sentidos são incapazes de detectar, mas a sua criação é muitíssimo mais prosaica. Vejamos.

Como bem sabemos, é anacrônica a ideia de que livros são objetos simples de colecionar. Encadernações, tipografia, capas e livrarias são coisas recentíssimas na História, e não é de se surpreender que a produção e a guarda de escritos fossem precárias em eras anteriores à cristã. Aristóteles, um dos maiores de todos os filósofos, produzia conteúdo prolificamente, mas dispunha de meios rústicos – uma pena e algo semelhante a um papel. A reprodução de sua obra era dada por cópias, o que a tornava rara e dispersa. Um dos seus discípulos, Andrônico de Rodes, teve a boa e laboriosa ideia de coligir toda a obra do mestre e classificá-la de acordo com as temáticas, que eram bem vastas. Um dos itens do catálogo abrangia o que Aristóteles chamava de Filosofia Primeira, que discorria sobre temática semelhante aos da minha infância carcerária. Esses quatorze livros foram ordenados em sequência aos tratados sobre Física, o que os tornou os livros que vão “além da Física”. Poderiam ser metaética ou metapolítica, se se seguissem a tais livros, mas calhou de ficarem logo após os de física. Ainda bem, porque não daria tão certo. Provavelmente por isso o nome pegou.

Mas do que trata exatamente a Metafísica? A primeira pergunta que tem esse caráter questiona o que as coisas são de fato. A Metafísica, portanto, é o estudo da natureza da realidade. Busca compreender as características mais profundas de tudo o que existe, para lhe calçar os fundamentos. Sua principal matéria-prima é a razão, já que é conhecimento apriorístico. Conhecimento o que?

Vamos detalhar. A priori é todo o pensamento que se dá por pura dedução, ou seja, que prescinde de uma experimentação direta para ser conhecido. Ou seja, não preciso ter contato com o objeto em si para que possa chegar a algumas conclusões sobre ele. Por exemplo, o clássico triângulo. Por definição, sabemos se tratar de uma figura de três lados, com três ângulos internos cuja soma obrigatoriamente será de 180 graus. Não preciso materializar um triângulo para chegar a essas conclusões, basta que eu raciocine e aplique a lógica matemática para descrever características suas. São conhecimentos que vem antes, a priori em latim. Já o conhecimento a posteriori exige algum contato com o objeto de estudo para que este se torne cognoscível. O exemplo: quando o cosmonauta Yuri Gagarin, o primeiro homem a fazer um voo espacial, pode ter campo visual suficiente para contemplar todo o planeta Terra, ele afirmou: “a Terra é azul”. Percebam que, mesmo a Ciência da época já contendo elementos para chegar à mesma conclusão, a romântica frase do soviético dá conta de uma experiência definitiva – agora que vimos, sabemos que o judiado planetinha é azul. Não se soube disso porque alguém o raciocinou. Alguém foi lá e viu, investigou, pesquisou, experienciou. É um conhecimento que vem depois do contato com o objeto. Portanto, a posteriori.

Dadas estas descrições, podemos entender que a apriorística é o método epistemológico da Metafísica, enquanto a obtenção de informação a posteriori é tarefa da Ciência. E também podemos concluir que estas formas de conhecimento transitam, como já escrevi neste texto, sempre no sentido que vai da primeira para a segunda. Acontece que, de tempos em tempos, alguém decreta a morte da Metafísica. E não são manés que o fazem, mas gente com cacife, como Hume e Kant. Essa morte se daria principalmente por três motivos:

1. A transição do conhecimento apriorístico da Metafísica para o conhecimento a posteriori da Ciência chegaria a um ponto em que haveria completude. Não haveria mais nada que não pudesse ser obtido sem que exista forma de experienciar. Tudo seria Ciência;

2. A Metafísica não traz nada de útil, porque o pensamento apriorístico não apresenta novidades. Dizer que um triângulo tem três lados, três ângulos internos e que estes somam 180 graus já está embutido na própria definição de triângulo. Informação nova é aquela que obriga à experiência: para saber se um triângulo é equilátero, isósceles ou escaleno, necessitamos conhecer sua angulatura interna ou a medida dos seus lados, e isso é trabalho da investigação. Toda dedução metafísica é vazia se não pode ser colocada no campo da experiência;

3. Ainda que instâncias metafísicas sejam possíveis, são incognoscíveis. Como temos uma consciência e uma percepção sensória que são próprias para cada indivíduo, todo contato com um determinado objeto é variável. Mais ainda: toda materialização de algo tem características próprias, e o contato com sua forma primordial nunca é completo. Dessa forma, temos contato com uma concreção individual da coisa-em-si, o fenômeno, e nunca com a própria coisa-em-si.

Portanto, a Metafísica é:

1. Desnecessária;
2. Inútil;
3. Impraticável.

Basta agora fechar a tampa do caixão? Ora, ora... Nem tanto a Deus, nem tanto ao Diabo. Se pensarmos na Metafísica como prerrogativa científica, ela realmente parece servir meramente como usina especulativa. Mas não podemos esquecer das coisas que a Ciência não alcança. Há uma materialidade imprescindível para que o experimento e a pesquisa possam agir. Se há algo suprassensível, isso vai para o campo da Metafísica. O mais belo exemplo é o tempo, mas vou tratar desta questão em texto próprio. Há as moções dos sentimentos, a dualidade corpo-alma, a hipótese de finalidade da vida, a infinitude e a eternidade, a imanência e a transcendência, a existência de divindades, e aqui temos a confusão com o misticismo. Enquanto este se consubstancia em narrativas onde a fé é o elo com a suposição afirmativa, na Metafísica tenta-se explicar a deidade racionalmente. Quando se diz que Deus existe porque sua presença é perceptível para a alma das pessoas, temos a fé agindo. Se dissermos que Deus existe porque é preciso que exista um modelo de perfeição que se plasma a todo o cosmos, para que se tenha um elemento distintivo para a realidade, temos uma disposição metafísica. Percebem a diferença? A segunda é erguida sobre uma construção lógica, universal e necessária, que não depende da sensação individual nem de uma posição dogmática, seja ela oral, seja ela escrita, ainda que suas proposições não coadunem com a realidade. Isso distingue a Metafísica real e legítima das imposturas em que tentam metê-la: ela privilegia a lógica e a construção racional.

Em resumo, para finalizar. A Metafísica é aquela área da Filosofia que trata da realidade mais profunda, que escapa ao tangível e ao observável. Foi a principal propositura filosófica desde o seu princípio, até o momento em que as melhores respostas sobre a natureza da realidade passaram à Ciência, mas que ainda sobrevive em conceitos sofisticados, como o Designador Rígido de Kaplan, os Mundos Possíveis Próximos de Lewis e os Contrafactuais de Kripke, dos quais falarei quando surgir oportunidade. A Metafísica foge do real palpável para compreender se há algo que vá além do que é possível alcançar pela técnica, mas não por pura adivinhação. E ainda lembro que a Filosofia nasce com o espírito da Metafísica, e tudo o mais que seja buscado, ainda que pelas vias da prova e da pesquisa, guarda consigo o mesmo propósito: saber o que as coisas são de fato. Não é isso o que a Metafísica buscava e o que outras áreas ainda buscam?

Recomendação de leitura:

Obviamente, vou recomendar a obra que deu origem ao termo:

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2012.

terça-feira, 20 de março de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (01 - Filosofia)

Olá!


Certamente todos os que me leem neste momento tiveram alguma vez a sensação de estar apregoando em terras de gringos usando a última flor do Lácio, o que equivale a dizer que há algum furo na comunicação entre as partes: eu falo, falo, falo e a audiência faz aquele olhar típico de quem mira o horizonte. É que muitas vezes misturamos em nosso discurso coisas que são típicas de nossas vidas, e que não obrigatoriamente fazem parte do quotidiano de quem nos ouve. Falamos com naturalidade sobre fatos e objetos que não estão no alcance de nosso interlocutor, como se fossem íntimos frequentadores de nossas vidas. A minha patroinha é useira e vezeira nessa prática. Ela conversa com algum comerciante como se o mesmo fosse assíduo habitué de nosso biombo, e lhe pede opiniões, principalmente se o vendeiro em questão for uma vendeira: você acha que isso vai ficar bom na sala? Como se a moça soubesse como é o arranjo de tal aposento. Na maioria das vezes, a interlocutora dá asas ao seu vezo comercial e toreia a situação, dizendo que tal badulaque ficará bom em qualquer ambiente; outras trarão a consorte de volta ao planeta, perguntando se a sala é grande ou pequena.

Digo tudo isso porque percebi que é comum eu me perder no jargão achando que a minha pequena, mas cativa clientela está compreendendo perfeitamente cada uma de minhas palavras, e não me toco do quanto isso é desestimulante, principalmente nestes tempos em que “textões” são tão malvistos e malquistos. Há dicionários, é verdade, mas às vezes eles são sintéticos demais, e há momentos em que é preciso tocar no assunto de forma um pouco mais lúcida. Também é bem verdade que sempre que eu me lembro, cruzo referências com temas que já tratei anteriormente, mas isso não dá certificado de garantia de que tudo o que escrevo está nítido e luzidio. Então você está todo empolgado, achando-se o próprio filósofo de palestras, e o seu ouvinte se perguntando internamente: “Tá, só não saquei bem o que essa tal de (pontinhos)”, que é justamente o ponto chave para a compreensão de tudo o que você tenta transmitir. Por isso, resolvi iniciar uma pequena série, onde eu trocarei em miúdos cada uma das áreas da Filosofia que abordo, bem como suas primas-irmãs que também estão presentes nos meus textos. Se aparecer mais alguma área após seu término, a mim bastará acrescentá-la à lista.

O plano da obra é simples. Primeiramente tratarei das divisões mais fundamentais da Filosofia, o que chamarei de Filosofia de Base; em seguida, vou cuidar das áreas derivadas, ou seja, aquelas que dependem de algum conhecimento básico anterior, e que se voltam para um objetivo mais específico, e serão chamadas de Filosofia Aplicada. Por fim, falarei sobre áreas um pouco mais descoladas da Filosofia, mas que mantêm com ela relações diretas de parentesco, seja porque se tratam de Humanas, seja porque a Filosofia encontra-se em seus fundamentos, como, de resto, está na base de todo o conhecimento. Estas são as Áreas Correlatas. Começarei essa tarefa por ela própria, a Filosofia.


Ao lado de outros sentimentos, como o medo, o amor, o tédio e a inveja, nós, seres humanos, somos banhados em um mar de curiosidade. Na maioria das vezes, chama-nos a atenção aquelas coisas que estão fora de seu lugar, como uma roupa cafona ou uma maquiagem extravagante, e nos perguntamos porque determinadas pessoas as usam. Mas há momentos em que a pergunta se aprofunda. Por que as pessoas se vestem e se maquiam, por que as pessoas se ocultam e não se mostram como são, peladas e cara-limpa? E podemos descer ainda mais o nível: a vida é só uma aparência? A mentira é uma necessidade? Esse é o nascedouro da Filosofia: o questionamento.

Manjadamente, o termo Filosofia normalmente é traduzido como “amor pelo saber”, e vem do grego philosophia, onde philo não expressa o amor erótico dos namorados nem a ágape incondicional devido às divindades, mas aquela forma de amor que pode ser interpretada como estar afeito a, uma coisa mais como afinidade e amizade. Já o sophos é o sábio, aquele que sabe e que sabe que não sabe, porque sabedoria não é sinônimo de inteligência. Para o filósofo por excelência, a maior sabedoria está na busca, e não na detenção do conhecimento. É na busca pela resposta que poderemos distinguir se nossa conduta é filosófica ou não. É óbvio que a Filosofia não tem as restrições das Ciências, que exigem experimentos e provas formulados a partir de hipóteses que tentam se consolidar em teorias (como descrevi aqui). Mas também não tem a liberdade imaginativa e a infinitude de possibilidades das Artes. Sua matéria-prima é a especulação, e sua ferramenta é a razão.

Pode parecer restritivo demais dar a primazia aos gregos pela busca de um conhecimento racional, vez que há fortes indícios de que outras culturas, como a chinesa e a egípcia, já o faziam anteriormente, mas é uma questão de registro e, principalmente, de substrato: o pensamento grego está nas raízes de nossa cultura até os dias de hoje. Ela nasce quando alguém procura fugir da explicação dada por mitos e lendas. No primeiro caso, alguma conformação física do ambiente, como a posição das estrelas, o formato de uma montanha ou o ciclo diário clama por uma explicação que é dada através do desenvolvimento de uma narrativa criada de acordo com a percepção desses fenômenos. Dessa forma, temos os nomes das constelações, dos acidentes geográficos e a divisão entre dia e noite. Já no segundo caso, há personagens reais a quem são atribuídos fatos fantásticos, muito maiores do que aqueles ocorridos fora do imaginário popular, e essas lendas são o vertedouro de onde escoa uma espécie apartada da humanidade geral, que lhes é superior, seja por sua força ou capacidade taumatúrgica. Percebam que essas soluções são muito criativas, mas que nada mais fazem do que buscar uma explicação rápida para o problema.

Ainda que as construções míticas e legendárias possam ser bastante complexas, elas têm uma lógica subjacente bastante palatável – é preciso pensar pouco, bastando dar a elas a sua aceitação. São entregues prontas e acabadas, e, por isso, geralmente são ricas em seu valor estético, mas deficitárias no aspecto epistêmico. A partir do momento em que alguém deixou de consentir com a explicação intuitiva do mito, passando a analisar o objeto em si mesmo, começou-se a Filosofia do jeito que conhecemos. Esse alguém tem nome: era Tales, e ele buscava a arché, o princípio originário de todas as coisas, do qual já falei à exaustão neste espaço, ao ponto de dedicar uma consolidação exclusivamente a ela.

Notem duas coisas: a Filosofia não nasce se desvencilhando inteiramente do mito e a Mitologia não é despida de Filosofia. A arché era uma causação primordial e um fundamento de todas as coisas, mas mesmo Tales não desvinculava o seu uso da manipulação divina, que poderia ser a criadora de tal essência. E a Mitologia pode falhar na Metafísica da constituição do cosmos, mas traz à tona muito sobre o convívio social, a cultura e o modo de pensar e escrever a história de seus povos, o que também é (ora vejam) Filosofia.

A Filosofia nasce tentando explicar princípios fundamentais, sendo que ela mesma o é, e permeia tudo aquilo que chamamos de conhecimento. Quando um cientista tenta supor a causa de um fenômeno inexplicado, está praticando Filosofia. Quando um historiador pensa sobre o que faz um fato fluir para um determinado resultado, está praticando Filosofia. Quando um artista se expressa de uma forma em detrimento de outra, para a busca de uma melhor comunicação, está praticando Filosofia. Quando um sacerdote desvenda a lógica de um determinado rito, está praticando Filosofia. Quando um educador analisa as opções metodológicas do ensino, está praticando Filosofia. Até mesmo um humorista, quando escracha algum prócer da comunidade, está praticando Filosofia. É uma atividade indissociável da atividade humana, a partir do princípio de que haja alguma forma de correção do pensamento, como a Matemática o prova. Isso ajuda a dar uma resposta à pergunta incômoda: Para que serve a Filosofia?

Falei da Matemática, que é sua gêmea xifópaga. Vista isoladamente, ela não serve para rigorosamente nada: um amontoado de números que resultam em outro número, e ça tout. Dois mais dois é igual a quatro. Quatro o que? Laranjas, digamos. Ah, agora há sentido, mas apenas porque aplicamos uma função concreta à Matemática (no caso, a contagem). Sem esse elo, 2+2=4 não significa coisa alguma, é abstração pura. As Ciências em geral se servem da Matemática de forma instrumental, de modo tão profundo que há cálculos que atingem coisas inobserváveis, como infinitas dimensões.

A Filosofia tem a mesma mecânica. Responder perguntas como “o que é a vida” não muda em nada a própria vida, mas é na atribuição de valor ao conceito “vida” que nos é possível definir o quanto é importante resguardá-la, e isso é vital para o Direito, para a Medicina, para a Biologia, para a Sociologia, para a Ecologia e tantas outras coisas. Se eu não defino filosoficamente o que é a vida, qual é o parâmetro de trabalho de um médico ou de um juiz? O que justifica seus ofícios e suas funções sociais sem essa resposta?

Vejam que o exercício filosófico é tão intrínseco ao raciocínio humano que nem percebemos quando o praticamos. Não pensamos filosoficamente quando comemoramos o gol do nosso time ou quando xingamos a pobre genitora do árbitro, mas o fazemos quando questionamos que diabos estamos fazendo embaixo do sol escaldante ou da chuva torrencial, vendo vinte e dois peludos correndo atrás de uma bola, ao invés de estar criando banha no sofá de casa, protegidos do sol, da chuva, do torcedor adversário, do amendoim mal torrado, da patolada do policial, do guardador de carros que nos extorque, do copo de mijo na cabeça, da fila do ingresso, do banheiro fétido. A diferença, no caso, é dar uma explicação racional para um comportamento contestável, é se questionar ao invés de aceitar passivamente uma situação impensada. Se eu pensar no futebol como substituto dialético da guerra, tudo bem. Se eu simplificar a coisa e disser que é um entretenimento bom e barato, tudo bem também. Nada muda, com a diferença de que não estou mais no campo berrando como um idiota à toa, mas como um idiota com causa justificada (ironic mode on).

A Filosofia, vista desta forma, deixa de ser uma besteira para intelectuais metidos a devaneios para ter o mesmo propósito da Matemática: dar reflexo à realidade, em cada um dos seus componentes, de modo a consubstanciar o todo, e a atitude filosófica é composta de um amálgama de estranhamento, curiosidade e dúvida. Não consiste na discordância implicante que alguns gostam de ter para parecer contestadores natos, nem em um descrer doentio, mas em um modus operandi que nos permite dizer “peraê” no momento justo, e isso é um exercício para o conhecimento. Enquanto a Matemática dá as fórmulas, a Filosofia disseca-lhes os elementos.

E por que a pouca importância que se dá à Filosofia, já que ela é tão vital ao pensamento? Bem, podemos pensar em tanta coisa... Mas vamos tentar traçar dois itinerários rápidos: a via do dogmatismo e a via do pragmatismo.

Pensamento dogmático é aquele que admite verdades absolutas e imutáveis, tão o contragosto de filósofos como Nietszche. Se admitirmos que toda a realidade é dada e conhecida, então toda forma de raciocínio antitético será uma contestação. E é fato, não gostamos de ser contestados. Temos uma propensão real em nos considerarmos donos da verdade. Isso é natural, porque se estamos vivos no presente momento é porque as coisas deram certo, e nosso sentido de estabilidade nos impede de nos sentirmos confortáveis com mudanças, ainda que estejam somente no nível intelectual. Confrontar a crença das pessoas é uma maneira segura de conseguir seu afastamento. Por esse motivo, o filósofo é um incômodo, que, para ser combatido, uma das melhores armas é a redução à insignificância. Quando perguntamos sobre a serventia da Filosofia, dificilmente o fazemos com o espírito aberto, mas maliciosamente, com desprezo e apelando para o ridículo. Dessa forma, o filósofo é colocado na condição de maluco, que quer discutir coisas como o sexo dos anjos.

Na outra senda, resgato aquilo que já expressei neste texto. Como a Filosofia trabalha com o desvelamento, é sempre provável que sua rota seja escalar de um nível para o outro, cada vez se aprofundando mais, como se arrancássemos pouco a pouco as camadas de uma cebola. Este é um tipo de processo complexo, que vai se distanciando do objeto inicial cada vez mais, até atingir um nível de abstração tão alto que todo o sentido prático do questionamento inicial se esvai. Uma Filosofia de base é sempre de difícil compreensão, justamente porque perde os lastros aparentes com a realidade. Mas é exatamente esta uma das maiores tarefas da Filosofia – escapar das aparências. Só que isso não se dá impunemente. Os filósofos têm a pecha de herméticos e lunáticos porque não solucionam problemas simples. Se você perguntar a um filósofo porque há músicas que gostamos e que não gostamos, ele vai te levar aos mais íntimos conceitos estéticos para definir gosto e beleza e aos mais intrincados conceitos ontológicos para definir escolhas e suas consequências. E não é isso que um mundo da velocidade da informação deseja.

Para finalizar, é preciso entender se o escopo da Filosofia é hoje menor que no passado. Respondo dizendo: mais ou menos. É que ocorre um fenômeno de transformação na medida em que uma ideia vai ganhando a possibilidade de ser comprovada, como já expliquei neste texto. Apenas para rememorar: quando pergunto o que é um determinado objeto, faço uma elucubração baseada em bons argumentos lógicos. Aqui, estamos no campo da Filosofia. À medida que se ganha a possibilidade de experimentar essa hipótese, ela vai se transformando em Ciência. Antigamente, uma hipótese filosófica tinha tão poucos instrumentos para comprová-la que ela ficava nesse âmbito por muito tempo. Hoje, com tanto conhecimento científico, modelos matemáticos e ferramentas de experiência, rapidamente uma consideração metafísica pode ser verificada. E há ainda uma especialização cada vez maior nas Ciências Humanas que “tiram” da Filosofia parte da sua abrangência. Áreas como Sociologia, Antropologia e Psicologia eram abarcadas pela Filosofia, e se destacaram dela à proporção que ganhavam metodologia própria e se aproximavam das formas de pesquisa das Ciências Naturais. Mas, como eu já disse, possuem um cordão umbilical que as liga à boa e velha Filosofia de modo intrínseco, vez que esta se encontra na própria estrutura do pensamento.

Então é isso. Espero que tenham lhes agradado este primeiro capítulo. Bons ventos a todos e voltem sempre.

Recomendação de canal:

Vou recomendar aqui, evidentemente, um canal de Filosofia. É o canal do Devanil Junior, cujo nome é Alimente o Cérebro. Ele traz uma boa quantidade de conceitos filosóficos sob medida, nem superficiais a ponto de não esclarecer nada, nem profundos que se tornem intermináveis caceteações, reservadas para acadêmicos.

https://www.youtube.com/channel/UC3fBS89aQ7mt5G1TodU4HNg

* A figurinha da coruja é o símbolo mais comum da Filosofia. Trata-se do bicho de estimação da deusa Minerva, a divindade romana da sabedoria, correspondente à Atena grega. No caso que coloquei aqui, trata-se de um mocho, que extraí de um dos melhores álbuns de uma das melhores bandas que conheço, o Fly by Night dos canadenses do Rush. Espero que não haja problemas, por se tratar de uma homenagem, mas, caso contrário, posso retirá-la a qualquer momento.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Sobre histórias em quadrinhos e grafite: reminiscências infantis e apreciações sobre a intersecção artística entre ambos

Olá!

Um dos indicativos que as coisas iam bem ou mal em casa acontecia nos domingos, pela manhã. Isso se meu avô já não tivesse sumido comigo para um desses campos de várzea da vida. Era o seguinte: meu pai não era exatamente um grande literato, mas, dada sua condição de operário, até que o danado gostava de ler. Isso incluía o jornal dominical, que era um calhamaço cheio de cadernos disso e daquilo, incluindo até um suplemento infantil e outro feminino, como se apenas reportagens sobre maquiagens e panelas interessassem às mulheres. Mas era, naturalmente, a edição mais cara da semana. Nos tempos de aperto, meu pai limitava-se a comprar meio quilo de batatas na quitanda do seo Minoru, às vezes acompanhado de um pé de alface. Quando as coisas estavam melhores, ia à feira, que ficava um bocado longe, principalmente se levarmos em conta a longa e íngreme ladeira que precisávamos vencer logo de cara, para chegar à rua do Toco. Eu ia a tiracolo, para carregar as coisas mais leves, porém volumosas, como as verduras. “É coisa de homem”, dizia o velho.

A coisa compensava porque o melhor estava na volta. Sacolas devidamente cheias, parávamos na banca de jornal que ficava de frente à precitada ladeira, onde meu pai comprava a Folha. Sempre que isso acontecia, sobrava para mim um gibi qualquer, e, com isso, a empreitada já tinha valido a pena. Quem não gostava muito era minha mãe, já que meu pai era dado a espalhar jornal por todos os móveis e pelo chão da sala, que chegava ao caos quando o vento maroto arrastava as leves e grandes folhas pelo cômodo inteiro. Menos mal que uma edição fornecia um mês de reposição para a gaiola dos passarinhos.

Isso tudo parece uma bobagem qualquer que se passa na vida de quase todo mundo, mas não é só uma memória afetiva. Na verdade, a leitura de gibis foi, no meu caso, um grande meio de incentivo à leitura. Modéstia à parte, leio muito bem, provavelmente melhor que a média no Brasil. E, embora tenha diminuído muito o costume de comprar gibis, os quadrinhos foram propedêuticos no meu gosto pela leitura, e continuo a preferi-los aos semanários (nem tão) jornalísticos nos consultórios de dentista. Ou seja, a visão que se tem dos quadrinhos como mero entretenimento é uma grande bobagem. Isso acontece com muitas outras coisas, como se verá.

Isso posto, um tempinho atrás, algum artista anônimo instalou bem na esquina da rua de casa uma série de quadros dispostos sequencialmente, dissecando algumas considerações filosóficas e sociais de um mendigo que tramita pelo centro desta desvairada pauliceia. Uma história em quadrões! Ela já não está mais lá, evidentemente, surrada pelo clima maluco e açoitada pelo vandalismo, e finalmente arrancada pela prefeitura, que construiu umas casinhas no terreno ao lado.


Entre as dissertações do morador de rua que caminha sarcástico com sua meia dúzia de pertences e as historinhas da minha infância há uma distância abissal. Destas últimas, extraímos apenas a função de entreter, mas há sempre algo a mais que podemos retirar de uma manifestação cultural, ainda que destinada precipuamente a crianças, como também é o caso dos desenhos animados. Vamos tentar ver isso.

Quais eram as revistas que meu pai me comprava? Sempre uma por vez, flutuava entre Turma da Mônica e Disney, com raras exceções, porque eram as mais em conta. Gostava de ambas, mas o meu personagem favorito disparado era o Zé Carioca.

Se fizermos uma análise bem crítica, é um personagem dos mais politicamente incorretos, porque sua construção reforça o estereótipo maldoso que temos do carioca. Por um lado, é um vagabundo, a quem a palavra “trabalho” causa calafrios. Por outro, é um aproveitador, o malandro romântico que dá a volta no mundo para conseguir algum tipo de vantagem, principalmente aproveitando da ingenuidade de seus amigos e da complacência de sua namorada Rosinha. Sabemos que esse estigma nasce das ideias mirabolantes de um dos presidentes mais bem conceituados do país, Juscelino Kubitschek, ídolo mineiro (como consta deste texto) que mudou a capital federal do Rio de Janeiro para Brasília. O grande problema (além do consumo de recursos exorbitante) é que o Rio deixou de ser a sede administrativa do país sem um plano para encontrar uma nova vocação econômica, mesmo com todo o seu potencial turístico. Desta forma, a fama de cidade inoperacional foi se fixando perniciosamente, sem que a sua população tivesse exata noção do que fazer. O mais interessante a notar aqui é que a figura do bonachão desinteressado pelo labor não foi construída pelos seus criadores ianques. Sua apresentação original foi a de um anfitrião hospitaleiro, dado sim a prazeres, mas por aquilo que de paradisíaco seu ambiente apresentava. Eram épocas da política da boa vizinhança e nada muito polêmico seria mesmo elaborado. A personalidade que nos é apresentada foi esculpida por brasileiros, quando assumiram a personagem para redigir argumentos próprios. O pior é quando nos é apresentado o Zé Paulista, seu exato contraponto. Um executivo sempre com pressa e afazeres concomitantes, é a antítese da vida vivida prazerosamente. Ambos se dão mal, em geral, nos desfechos de suas aventuras, mas que há um reforço imenso nos estereótipos, isso há mesmo.

Com relação à Turma da Mônica, gostava ma non troppo. Eu sempre tive a impressão de que o Cascão era um menino pobre, em oposição à classe média baixa do restante da turma, e achava legal isso, porque não havia nenhuma nota de comiseração para tornar a história panfletária. Pelo menos no que eu percebia, o Cascão era como uma espécie de primo pobre, e não um mero detrator dos banhos. O que não impedia seu convívio com os demais meninos da turma. Também gostava do Penadinho, com suas estórias do pós-vida, uma maneira didática de se lidar com a imprevisibilidade da morte. Eram historinhas feitas com um pouco mais de delicadeza, apesar das dolorosas coelhadas da famosa dentuça.

Ora, se os quadrinhos da Turma da Mônica têm uma qualidade intrínseca superior aos do Zé Carioca, por qual motivo prefiro este último? Pela simples razão de que o conterrâneo de Machado e Vinicius é mais divertido, só isso. No que diz respeito ao humor, ele é melhor, punto e finito. Ele tem o mesmo temperamento transgressivo do Pica-pau das antigas, que confrontava claramente a lei e as regras sociais ianques: roubava gasolina, não pagava ingressos, desafiava as autoridades com rachas e quedas de cascatas, com os policiais sendo apresentados como autênticos idiotas. Beijava na boca meninos e meninas, sem se insurgir contra figurinos femininos. Era vingativo, desonesto e péssimo inquilino, uma autêntica medula de todo o hedonismo, contraindicado para ensinar bons modos às nossas crianças. Em suma: as histórias das primeiras versões do Pica-pau mostravam um personagem prenhe da vontade de ser livre, e nisso o Zé Carioca é o representante tupiniquim, ainda que por outras vias, menos exacerbadas. Nestes chatos tempos onde a incorreção política é prerrogativa obrigatória do pensamento dito de direita e a defesa dos direitos sociais só fazem parte da pauta à esquerda*, o Zé Carioca se coloca como uma contradição: ao mesmo tempo em que é um reforçador de estereótipos, é também um signo dos caminhos que o pobre adota para viver minimamente. Também ele é transgressivo e se defende como pode da miséria. Seus amigos não acompanham sua modorra e quase compulsividade pelo não-trabalho, e continuam tão pobres quanto ele, vivendo no morro despossuído da Vila Xurupita. Eles são um belo contramodelo da atual onda de meritocracia.

Mas esse é só o aspecto mais analítico da coisa, e não quero me perder em divagações didáticas. Obviamente, com o passar do tempo meu gosto quadrinístico foi se diversificando. Mafalda, Calvin, Hagar o Horrível, os belgas Hergé e Leloup (de Timtim e Yoko Tsuno), a descoberta da Gibiteca do Centro Cultural São Paulo e de leituras adultas de Robert Crumb e Gilbert Sheldon, além de outros que não vou lembrar agora. Depois, as graphic novels da Marvel e a série Watchmen da DC Comics foram me dando uma noção mais apurada dos quadrinhos como categoria artística. Uma miscelânea da capacidade narrativa da Literatura, da captação do instante da Fotografia e da abstração inventiva da Pintura.

Vejo os quadrinhos como uma espécie de vingança da Pintura contra a Fotografia. Com efeito, esta última, apesar de não ocupar obrigatoriamente o espaço da primeira, veio lhe retirar uma função pragmática importante: a de retratar. Antigamente a pintura (e o desenho, seu consequente facultativo) era o recurso disponível para espelhar a aparência de pessoas, objetos e paisagens, e consistia em ofício que demandava grande técnica, o que a reservava para poucos. O advento da fotografia mudou esse estado de coisas. A habilidade do artista é transferida para a tecnologia embarcada em equipamentos cada vez mais modernos, com a capacidade cada vez maior de reproduzir a realidade circunstante de maneira fidedigna. Para o objetivo aletológico de reproduzir, não há como comparar os dois resultados finais. Por melhor que seja a mão de quem delineia, sempre haverá o filtro dos seus olhos. Com as máquinas, não. A não ser que o objetivo seja artístico, e o fotógrafo interfira no modo como se fotografa, no filme (ou nos chips de memória) estará uma reprodução acrítica, sem interferências, e esse é o melhor resultado possível para quem deseja obter um retrato fiel. Podem observar como a partir da evolução da fotografia os pintores retrativos passaram a ser tratados como artistas menores, que impressionam nas feiras, mas que não tem lugar nas galerias**.

Pois bem. Observem que os quadrinhos se valem da estrutura fotográfica para cumprir sua função. Inclusive, se observarmos um filme físico à moda antiga, veremos que ele se vale do mesmo sequencialismo que é aplicado à HQ. Ainda que de forma ficcional, os quadrinhos têm a mesma função da fotografia – retratar. E aqui com uma impossibilidade para a fotografia, a de resgatar a abstração pessoal do artista. Cada quadro é uma pequena obra de arte que não depende de uma existência concreta para acontecer. A banda desenhada rouba a retratividade da Fotografia e a devolve, de certa forma, à Pintura, por ter com ela mais elementos em comum: a técnica do traço, os jogos de cores, a liberdade abstrata.

Os aficionados pela Fotografia hão de pensar: “Quanta merda junta”. Os dos Quadrinhos: “Onde esse cara enxergou isso aí?”. Os da Pintura: “Que pobreza comparar pintura com uns desenhinhos”. Paciência, é impossível agradar todo mundo, e, às vezes, até mesmo a poucos. Mas tive essas impressões e queria manifestá-las, e não hierarquizar nenhuma das três. A Fotografia não nasce de um objetivo estético e, no final das contas, dá à Pintura o benefício de deixar de ser um ofício para virar arte pura, e mesmo ela pode e deve ser desvinculada do pragmatismo.

Mas ainda há mais um ponto que eu gostaria de desenvolver, e por isso peço a paciência de todos. Quando consideramos o gênero quadrinhos como um todo, não estamos falando apenas da banda desenhada, as histórias em tiras. Há também as charges, que levam esse nome por conta da carga satírica que lhe caracterizam, e os cartuns, onde há reforço nas caricaturas e muita paródia. Bem, bem... Nesse sentido, não podemos incluir o grafite nessa festa? Comparado a estes dois últimos, seus maiores diferenciais estão no grande formato e no critério subjetivo, mais descolado do real palpável. A mídia é outra, enorme e exposta, mas traslada inúmeros elementos expressivos das charges e dos cartuns, como a aproximação ao Expressionismo, o sarcasmo intenso, o universo urbano, a rapidez na interação com o apreciador, a síntese da mensagem, a menor importância da palavra escrita comparada com a imagem.


O grafite vai no comboio da arte de rua, que tem como principal representante a cultura hip-hop, sendo um dos seus pilares (ao lado do rap, do break e dos MC’s). Quando observado friamente, percebemos o quanto o grafite é embebido politicamente e o quanto causa de espanto para uns, de admiração para outros e de indignação para muitos. Isso acontece porque é uma modalidade que escancara, em espaço público, verdades que não gostamos de ver. Os muros são o lugar de fala possível para toda uma geração que tem talento e não tem espaço expressivo possível.


E é um lugar imenso, impossível de esconder. Lembro quando, já há muito tempo, eu acompanhava da janela do ônibus 314V (Almeida Jr-Vila Ema) os estranhos personagens amarelos que começavam a surgir a partir da entrada do Cambuci. Em um deles, um nordestino mirrado de chapéu típico desfalece no colo de uma mulher em prantos. Em outro, uma gorda disforme se adorna para disfarçar sua feiúra. Era o embrião da arte dos irmãos Pandolfo, conhecidos como OsGemeos, os principais nomes do país. Se levarmos em conta que a escola paulistana de grafite é uma das mais respeitadas do mundo, teremos uma dimensão mais exata do que ambos representam, ao lado de outros ícones como Nina, Nunca, Mari, Vitché, Rodrigo Branco, Kobra, Finok, Zezão e tantos outros.


Esse “enfiar de dedo na cara” da sociedade faz com que seja frequente vermos grafite e pichação serem jogados na mesma vala comum da marginalidade. Há dois pontos a serem observados:

1. Vemos governantes que afirmam privilegiar o trabalho dos grafiteiros. O que deve ser eliminado é o vandalismo das pichações. Porém, sempre que se lança um programa de eliminação destas últimas (Cidade Limpa, Cidade Linda), acaba sobrando para os grafites também. A justificativa é sempre a mesma: os agentes não têm tirocínio necessário para diferenciar ambos. É uma desculpa tão cambaia que se torna inaceitável. Se os agentes não têm preparo, que sejam preparados ANTES de mandá-los às ruas, ora pois. E é impossível que um agente, por mais energúmeno que seja, não tenha nenhuma dúvida em apagar um painel de quase 700 m2, como na medíocre foto que tirei do carro e como é mostrado no ótimo documentário Cidade Cinza, indicado abaixo;


2. Até que ponto a pichação não é, também ela, uma manifestação de quem não tem lugar de fala no espaço público, ainda mais por não ter o mesmo talento dos grafiteiros? Não será sua coragem irresponsável um grito para ser ouvido, ao menos? Não sou um cara que gostaria de abrir minha porta e ver as paredes do meu prédio todas rabiscadas (já são), acho efetivamente atos de vandalismo a sujeira aprontada especialmente em monumentos e patrimônio histórico, porque aqui se confunde protesto e significação do equipamento, e por isso mesmo não estou aqui defendendo os pichadores. Mas entendo que, embora a maioria deles só esteja atrás de “ibope”, é preciso nos perguntar porque essa utilização destrutiva do espaço público. Pensem no seguinte: a primeira pessoa que instalou uma grade na janela ao invés de tentar entender o porquê de ter sido vítima de roubo ajudou a decretar nosso modus vivendi atual. Trancou-se em si e não olhou para o seu redor, não buscou as causas da violência, e apenas se esconder dela. Se o tivesse feito, não teria restringido a própria liberdade de deitar os cotovelos na janela. Deveria ter lutado pelo direito de manter suas janelas sem grades, isso sim, denunciando a falta de eficiência das políticas públicas de segurança e de inclusão da época. É bom não repetir o mesmo erro.


Recomendações:

O livro abaixo é a coleção completa de uma história lançada originalmente em capítulos, que dá uma boa dimensão do poder dos quadrinhos em pinçar fragmentos da História e de aplicar emblemas para gravarmos em nossas cabeças. Trata-se de um ótimo exemplo dos quadrinhos a serviço do público adulto, contando em uma narrativa recheada de simbolismo como o holocausto judeu influenciou até mesmo na vida íntima das pessoas que o vivenciaram.

SPIEGELMAN, Art. Maus. A História de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

O documentário Cidade Cinza está (ainda) disponível no Netflix, e ganha o jogo ao mostrar, mais do que a indignação dos grafiteiros que veem seu trabalho perdido e sua reconstrução, o total despreparo de quem é encarregado da tarefa de distinguir arte e garatuja.

MESQUITA, Marcelo; VALIENGO, Guilherme. Cidade Cinza. Filme. Brasil, 2013. Cor. 80 min.

* Leiam aqui minha posição sobre essa guerra imbecil.

** Podem me chamar de ignorante ou quadrado o quanto quiserem, mas discordo veementemente desta posição. Gosto da abstração, mas não aquela em que a principal característica é ser incompreensível. Sinceramente, penso que são casos em que o crítico é mais criativo que o próprio artista. Há muitos anos atrás, fui a uma exposição no Centro Cultural São Paulo chamada “14/30”, onde uma artista cujo nome esqueci pintou dezessete telas de grande porte, contendo bolas, bolas pretas de nanquim. Não eram bolas perfeitas, pareciam aqueles círculos que tentamos desenhar sem compasso. O primeiro quadro tinha 14 bolas, o segundo tinha 15, o terceiro, 16; e assim sucessivamente, até chegar ao último, com 30 bolas. A coisa era bem pouco diferente do seguinte:


Não entendi nada, mas tive uma salvaguarda: um folder na saída da exposição, onde um entendedor esmiuçava o trabalho de cima a baixo, falando sobre minimalismo, vacuidade, descontinuidade e reelaboração, causando tensão no apreciador, a artista se posicionando como partícipe da estupefação de sua audiência e esta sentindo a progressiva ausência que tem o efeito de catalisá-la à própria obra. Ou seja, o crítico ligou o gerador de lero-lero com tal magistralidade que, se não conseguiu dar sentido à obra, ao menos executou ele mesmo a obra-prima da tentativa de tirar um produto impenetrável de seu hermetismo. A peça estava tão bem feita que resolvi guardá-la, e o fiz tão bem que não consigo mais encontrá-la. Quando eu trombar com ela por uma destas pastas da vida, prometo escaneá-la e anexá-la aqui.