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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Sobre tristeza e barcos a vela

Olá!

Aconteceu um negócio muito chato no prédio em que trabalho há poucos dias atrás. Uma funcionária, bem menina ainda, cometeu suicídio por ingestão excessiva de medicamentos, a famosa overdose. Ao que parece, começou a desenvolver ainda recentemente um quadro depressivo, logo após ter sofrido algum tipo de problema locomotor. Não me constam muitas informações a mais, a não ser o fato de que ela estudava na mesma faculdade que meu filho. Triste, verdadeiramente triste.

Já cuidei do tema suicídio por algumas vezes neste espaço, como quando falei sobre a pulsão de morte neste texto, ou quando pensei em sua dimensão estética (aqui), quando o associei ao martírio (neste), ou ainda quando discuti sobre a eutanásia. Mas o fato é que, quando nos defrontamos de maneira direta com o assunto, não podemos deixar de pensá-lo como resultado das dificuldades em lidar com o próprio eu, o que farei agora.




Em primeiro lugar, precisamos pensar no que é a consciência de finitude e na função individual no mundo. Se levado a cabo e a rabo, perceberemos que os motivos racionais pelos quais permanecemos no mundo são bastante pobres. Por mais que sejamos bem sucedidos em tudo na vida, o que é uma enorme utopia, a sensação de que as cortinas do palco podem ser fechadas a qualquer instante perpassam nossos pensamentos e relações. Sempre pensamos em nosso legado como método de permanência em um mundo que já não terá nossa presença. É uma das poucas maneiras que encontramos para justificar que nossas práticas éticas não se baseiem unicamente no máximo de prazer pelo maior tempo possível. Há uma coisinha chamada alteridade que nos impede de um hedonismo completo, porque, afinal de contas, eu preciso pensar no outro, me colocar diante do outro, fazer com que o outro me reconheça em seus próprios sentidos de alteridade. Eu sou eu para mim e para o próximo, é o que tentamos fazer reconhecer. E apostamos na persistência da memória e em sua transmissão para que, de uma forma ou outra, sejamos eternos. Por conta disso, sonhamos sempre em deixar não só uma obra concreta e tangível, mas também abstrata, um morar eterno nas mentes e principalmente nos corações. Gostamos de nos sentir queridos e reconhecidos por aqueles que nos rodeiam, e sentimos necessidade de que esse círculo tenha o maior diâmetro possível, tanto em seu plano temporal quanto em sua dimensão espacial.

Acontece que nem sempre isso é possível. Em nossa vida, há uma tão constante alternância entre aquilo que queremos e aquilo que podemos, e por consequência há um tão constante ir e vir de convicções que dificilmente podemos arrogar uma firmeza de propósitos que dure pela vida inteira. E a cada vez que atingimos estes pontos de inflexão, algo fica para trás, com sua tristeza correspondente.

Toda tristeza está ligada a uma perda. E é de acordo com nossa capacidade de detectar seu foco que podemos melhor isolá-la (e, talvez, resolvê-la). 

Quando pensamos em tristeza, muito provavelmente lembramos imediatamente daquelas mais agudas, como a morte de uma pessoa querida. Nesse tipo de perda temos um objeto bem claro e bem definido, que varia de intensidade: perdemos nossos pais, e geralmente isso é muito dolorido; perdemos um amigo de longa data, perdemos um emprego, perdemos um objeto que gostávamos muito, perdemos uma oportunidade, perdemos uma viagem, um encontro; tudo isso são perdas, que nos causam maiores ou menores danos. Como sabemos exatamente o que nos entristece, damos a esse sentimento o nome de luto.

Como o luto é bem marcado, conseguimos ritualizar facilmente nossa conduta enquanto durar seus efeitos. Deixamos de fazer certas coisas, como comparecer a festas, ficamos um tanto reclusos, e até algum tempo atrás, era costume vestir-se de preto e rezar-se uma missa de sétimo dia. No caso da morte de alguém, há também o esvaziamento dos armários, a distribuição dos badulaques. Se o problema foi a perda de um emprego, compra-se um jornal com classificados, corre-se ao banco para sacar direitos, vai-se homologar a rescisão do contrato e tudo o mais. Vejam como tudo isso é facilmente identificável e vinculável a um evento. Desta forma, o luto é uma forma de tristeza com causa certa e bem delineada. E, salvo exceções, tem algo como uma data de validade, que chega com a cura das feridas, mesmo que estas deixem cicatrizes. Após o período de baixa, as cabeças se reerguem e a vida continua.

Há outro tipo de tristeza, mais difuso, que não está vinculado a um evento claramente visível, mas que faz parte da constituição de uma pessoa. A tristeza aqui não tem a mesma data de validade do luto. Ela é mais permanente e menos possível de ser atribuída a uma causa. Não há nem evento crítico nem divisor de águas. É a melancolia.

Na melancolia, também existe a perda. Só que aqui não temos um objeto claro que a identifique. Talvez ela esteja muito mais ligada a uma forma de descrença na capacidade em realizar e deixar legados dignos de recordação do que propriamente em algo palpável. Há algo perdido que o melancólico tenta buscar dentro de si, e, como sempre ocorre em processos subjetivos, essa busca se torna sempre ambígua. Enquanto no luto temos uma plena consciência do que nos angustia, na melancolia é adicionado esse elemento muito mais cruel, que é o de tentar resgates dentro das instâncias inconscientes. Freud entende que o melancólico tem uma dificuldade narcísica, ou seja, é uma inadequação do si-mesmo.

(Explicando rapidinho o que é narcisismo: Narciso é um personagem da mitologia grega que seria uma representação da beleza corporal perfeita. Seduzia todos, homens e mulheres, mortais e deuses, mas era tremendamente senhor de suas qualidades, o que irritou profundamente a deusa Nêmesis, ao passar-lhe sonora esnobada. Como castigo, a nefanda divindade obrigou o orgulhoso mancebo a olhar seu próprio reflexo na água. Fascinado com a própria beleza, Narciso nunca mais conseguiu tirar seus olhos do espelho, o que o levou a definhar e morrer. Narciso, desta forma, é o símbolo da insensibilidade causada pela exacerbação da vaidade, mas também é uma representação do amor próprio).

Só que, mesmo com esse caráter soturno, onde há uma permanência do estado de tristeza intrinsecamente ligado à estrutura da pessoa, ainda assim o melancólico consegue compreender sua função e seu lugar no mundo. Há, talvez, um sentimento de alienação com relação ao sentido geral da existência, mas ainda existem porquês que o situem e lhe justifiquem. Em resumo, a pessoa tem consciência de que é útil, de que as pessoas a percebem de alguma forma, de que existe uma alteridade. Ou seja, há um eu, uma identidade, ainda que adoecida. O que aconteceria se até mesmo isso se perdesse? O que aconteceria se houvesse uma perda de si mesmo? É neste caso em que temos a depressão.

A depressão é um tipo de tristeza muito mais atroz, porque nela temos um desligamento com o mundo. Se na melancolia já temos dificuldade de localizar as perdas, no caso da depressão essa percepção se torna quase impossível. O depressivo já não se encontra no mundo, simplesmente pelo fato de não se encontrar a si próprio. Tudo o que fizer, derivará em tédio e mais tristeza, daí a imobilidade tão característica desse estado. A palavra mais característica do deprimido é desencanto.

As fontes do desencanto são muito variadas, e muitas vezes difíceis de detectar. O seu mecanismo é mais ou menos o seguinte: temos uma série de desejos e tendências na vida, que de uma forma ou outra vão sendo reprimidos no transcurso da existência. Queremos muito alguma coisa, e esse querer vai persistindo até que ocorra uma das duas alternativas – ou esse desejo se realiza, ou é abandonado. A realização do desejo, no plano psicológico, não se dá apenas na concretização. Também é possível ocorrer uma compensação, como no caso dos carros com volumes altíssimos para compensar um desempenho sexual abaixo do desejado; é possível existir uma substituição do objeto de desejo, ou lapsos e atos falhos, tão bem descritos por Freud, que são formas abstratas de realizar desejos. Isso acontece com todos, indistintamente. Só que uma das formas de lidar com o desejo é reprimi-lo, e isso faz com que, no mais das vezes, surja um ódio contra o desejo inalcançável, ainda que de forma irreal.

Vou dar um exemplo que ocorre comigo mesmo. Desde muito pequeno, sempre adorei a água, e, por consequência, ir à praia era o passeio por excelência. Nunca tive medo de ir para o fundo da praia, além da quebração, mesmo mal sabendo nadar cachorrinho. Da orla, gostava muito de observar os barcos ao longe, e sempre tive a vontade de navegar. Não em um navio, onde é reproduzida uma ilha – os cruzeiros, por exemplo, são simulacros de terra firme, não os compreendo muito bem. O que eu queria era um veleiro. Um veleiro pequeno, daqueles em que você controla as velas com suas próprias mãos. Vida que vem e que vai, e a cada dia que passava cada vez menos eu via possível o meu veleiro, uma vida ligada intimamente ao mar, já quase velho que sou. E daí a desilusão vai afastando as ondas dos meus sonhos, e cada vez menos a praia me seduz, a ponto de que tudo o que há de ruim em uma viagem à costa começar a aflorar com muita força. O sol excessivo e suas queimaduras, a areia que suja o corpo, o sal que torna a pele grudenta, a necessidade imperiosa de sombra, as dificuldades do saneamento básico, as filas enormes para comprar o pão nosso de cada dia... Tudo vai tornando a praia algo chato, repulsivo. A impossibilidade do veleiro não só me afasta do desejo direto de usufrui-lo, mas até mesmo do ato de ir ao litoral. Ir à praia poderia continuar sendo algo prazeroso, independentemente do barco, mas não. As uvas estão verdes. Para agravar, as crianças não precisam mais de mim para se divertir na praia. Se eu tinha o viés de transferir meu prazer para eles, isso hoje não é mais necessário.

Isso significa que eu seja uma pessoa deprimida? Não necessariamente. Pode ser que ainda eu volte a apreciar as viagens a beira-mar. Esse não é um estado permanente, já que somos humanos, variáveis por definição. Também não significa que eu não vá à praia se convidado; há o fator companhia, o fator comida, o fator histórico – não deixaria de conhecer a FLIP por ser Parati uma cidade praiana. Mas é um exemplo quase perfeito do que origina um estado depressivo. Não é perfeito porque é descritível. Na depressão isso não acontece.

A depressão vem disso: sem que reconheçamos diretamente, começamos a descrer de nossa função no mundo, e esta descrença se espraia, lentamente, para absolutamente tudo. Como as causas vão se tornando tão dispersas, todas as vezes que tentamos diagnosticar o porquê da depressão de uma pessoa damos tiros n’água.

Em indivíduos mais velhos, é mais fácil de entender os estados depressivos. As impossibilidades físicas, as doenças degenerativas, as pessoas que se vão, a percepção do pouco tempo restante, os custos de oportunidades pelas quais não se fizeram opção durante a vida, o mundo que muda, tudo isso faz com que esse processo de perda de pertença se torne mais óbvio, e é preciso muita experiência e autoconsciência para não ser afetado por uma tristeza mais persistente. Mas vemos no nosso mundo moderno quanto essa patologia se espalha por indivíduos mais jovens, como é o caso da menina que deu origem a este texto.

É sempre muito difícil tentar compreender esse fenômeno, principalmente se levarmos em conta que não há um fator único para explicá-lo. O que faz com que um indivíduo tão jovem perca seu amor-próprio pode ter diagnóstico clínico, não apenas psicológico. Há hereditariedade em jogo, há o mundo calcado no ter, há a sociedade que se prima pelo prazer, há os modelos sociais nos quais nem todos se encaixam, mas há pessoas que vivem absolutamente bem com isso. E também acho que há fatores levados mais a sério apenas em tempos mais recentes. É o caso do bullying.

Por muito tempo, achei isso uma besteira, devo confessar. Achava que bullying era algo de crianças frescas, que o mimo dos pais fazia com que não resistissem a nenhum tipo de pressão externa. Mas a informática, mais especialmente a velocidade de transmissão de informações que a internet proporciona, fez escalar o número de relatos de suicídios de jovens a índices preocupantes. São inúmeros, que podem ser pesquisados facilmente: Amanda Todd, Alyssa Funke, Andrea S., Lamar Hawkins, Felicia Garcia... Peguei esses nomes todos em menos de um minuto de pesquisa. É desesperador.

Entendo que o bullying é pernicioso porque devasta os sustentáculos psicológicos da pessoa. Cada vez que alguém é atacado, principalmente por características sobre os quais não tem controle, como obesidade, homossexualidade, deficiências físicas – mesmo banais, como uso de óculos, seu amor-próprio sofre algum tipo de fratura. A pessoa começa a utilizar seus mecanismos de repulsa contra si mesmo. O barco que não posso atingir, no exemplo anterior, é externo a mim. Pode me causar sofrimento, mas não é inerente à minha sobrevivência. O bullying ataca justamente aquilo que é indissociável da pessoa, e por isso fere fundo. Não vou conseguir, por exemplo, deixar de ser baixinho, ou narigudo, ou ter sexualidade aflorada, são coisas que pertence ao meu ser, são constitutivos do meu indivíduo, e iniciar um mecanismo de repressão a estas características vão me tirar o lugar do mundo, inclusive meu desejo de legado. Tudo o que eu quererei é não-ser, e, na sequência, não-existir. Se essa ideia se multiplicar a ponto de suprimir meu instinto de sobrevivência, começarei seriamente a buscar um processo de escape definitivo, e para aplacar a dor nada melhor que não haver o que doer.

Há uma vacina para isso, embora não seja aplicável a todos os casos. Da mesma forma que a inoculação de anticorpos torna o corpo imune às doenças, é tarefa importante dos pais e orientadores educacionais preparar seus filhos para os “vírus” que enfrentarão, inevitavelmente. Se possível, ainda antes de ocorrer o contágio. Os pais são o primeiro contato que a criança tem com a sociedade, o que os torna um porto seguro. As crianças aprendem a confiar nos pais, desde que estes se tornem dignos disto (há casos em que os próprios pais são fonte de bullying, mas não tenho como me estender muito nesse assunto). Conversar claramente com os filhos sobre o modo como age a ciranda social, com o cuidado de não torná-los arredios, faz com que seu organismo psíquico esteja preparado para reconhecer e se defender de uma ação ofensiva. Não se trata de superproteger, mas de colocar o mundo como ele é e deixar um espaço disponível para o afeto. Essa correspondência entre ensinamento dos pais e realidade ocorrida no mundo lá fora fará com que essa relação de confiança aumente, e a criança terá um esteio ainda mais firme. Os parafusos que sustentam seu amor-próprio estarão bem atarraxados e o indivíduo, já adolescente, saberá que as ofensas são tão transientes quanto qualquer outro organismo que tente contagiá-lo.

Por fim, gostaria de falar algo sobre a ideação suicida. A vontade de se matar não é só uma violação moral; ela vai contra a natureza da espécie. Há casos em que situações extremas podem fazer com que a pessoa queira morrer independentemente de um processo de depressão (e até mesmo leve a cabo a tarefa), como no caso de um motorista que, por imprudência e negligência atropela e mata crianças, não suportando o arrependimento, mas essas são situações mais difíceis de prever e controlar, porque há o ímpeto no meio do caminho. Mas a confissão de uma intenção ao suicídio deve SEMPRE ser levada a sério. Temos a tendência de acreditar no senso comum que diz que alguém que quer se matar não conta nada a ninguém. Vai lá e faz. Mas procurar alguém para contar essa vontade pode ser a ÚLTIMA tentativa que um ser humano faz antes de cometer o ato. Mesmo que a intenção não seja real, essa pessoa PRECISA de ajuda, nem que seja um ombro para chorar. Há coisas difíceis de admitir, e dizer que a vida não vale mais a pena é uma das piores.

Um bom ano a todos.

Recomendação de leitura:

Citei Freud no texto, mas não detalhei pormenorizadamente como ele encara a questão da depressão no interior da psique humana. Se o fizesse, teríamos uma postagem muito longa, o que não é minha intenção. Se o assunto interessou a vocês, sugiro o livro abaixo, de onde se pode extrair o ideário freudiano relacionado ao tema.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Obrigado à Rê por deixar eu utilizar sua foto na ilustração deste texto.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias - 5º tomo: A mão quente (falácia do jogo de azar)

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas  

Estamos no fim do ano e rola, incessantemente, uma tradição que se consolida cada vez com mais força em terras tupiniquins. Não se trata do franciscano presépio, do importado Papai Noel, da mística romã, da saborosa lentilha, dos atléticos sete saltos das ondas, nem da brancura Omo das roupas de reveillon. Também não é o extemporâneo show do Roberto Carlos, nem as retrospectivas mais-do-mesmo. São os bolões da Mega-sena da Virada.

Eu, assim como todos meus irmãos proletários, que não sou de ferro, também desperdiço meus oprimidos proventos nas improbabilidades estatísticas promovidas pela Caixa Econômica Federal, para locupletar os cofres públicos e os dois ou três felizardos (quem sabe eu!) contemplados pela sorte. Entrei em três: um com o pessoal do trampo (R$ 25,00), outro com uma galera que presta serviços para nós (entrei de metido - mais R$ 25,00) e um mais arrojado - leia-se caro - com os esperançosos vizinhos de condomínio, e, neste caso, morreram 90 dilmas. A meninada já queria fazer um amplo estudo sobre o histórico dos números sorteados, com um histograma explicitando quais foram aqueles por mais e por menos vezes contemplados. Afinal de contas, quanto menos uma bolinha tenha saído do globo da sorte, tanto maior sua chance de ser sorteada agora, não é mesmo? Pó pará.

Esse erro de raciocínio é prá lá de comum, e vou explicá-lo de maneira mais simples e clássica. Pensemos em um jogo qualquer, onde apenas duas alternativas são possíveis, como um prosaico par-ou-ímpar. Logo de cara, vamos descartar as possíveis traquinagens dos jogadores, que não "escalarão" seus dedos. Será que ainda se usa esse termo?

Quais são as possibilidades de dar par ou ímpar a cada jogada? Pela quantidade de hipóteses disponíveis, são 50% para cada lado. Digamos que eu tenha me amarrado ao ímpar e que tenha feito cinco jogadas até agora, e todas resultaram na minha escolha, para nossa alegria. Na sexta jogada, parece existir uma tendência a sair um resultado par, e que essa tendência vai aumentar na medida em que passarem as rodadas e seus resultados insistirem em se repetir. É exatamente aí que está o engodo: a lógica da primeira rodada é exatamente igual à da sexta, da sétima e de qualquer outra - 50% de chances para cada lado. Nós tentamos prever um resultado futuro em função do resultado anterior, o que não é real. Não há mudanças na probabilidade atual por conta de resultados já ocorridos, simplesmente isso.

Isso, por extensão, também se aplica aos jogos de loto promovidos pela Caixa. Se o número 01 foi sorteado no concurso da Mega-sena anterior, sua probabilidade de ser sorteado no atual é exatamente a mesma, ou seja, 1:60. Todos os sessenta números tem a mesmíssima possibilidade de serem sorteados, salvo se pensarmos em fraudes no sistema, o que não é o caso agora. Digo mais. Se o resultado final for o incrível 01-02-03-04-05-06, provavelmente clamaremos aos céus contra a desonestidade do governo, que lesa seus cidadãos em qualquer oportunidade que encontra.

Ok, sabemos que o governo está cheio de gente inepta e de rapinadores, mas se você disser que isso está explícito na sequência acima, falará uma imensa e suculenta abobrinha, porque a probabilidade de que ela ocorra é EXATAMENTE a mesma de qualquer outro resultado. Compreendido?

Há uma forma correlata deste erro de raciocínio, que prima pelo sentido oposto. Enquanto até agora verificamos casos em que a ocorrência comum de um fato nos induz a pensar que ele não terá vida longa - mais dia, menos dia o par terá que sair - em outro modelo achamos que haverá uma persistência no acontecimento. Essa crença é igualmente errônea. É a chamada falácia da mão quente, e existe uma explanação para explicar seu surgimento. Vamos a ela.


Mãos "quentes" sugerem persistência. Mas isso é um engano

Vocês sabem que os estadunidenses são apaixonados por basquete, correto? As ligas amadoras e profissionais, em especial a conhecidíssima NBA, são extremamente populares, lotando seus ginásios por onde passam e multiplicando a audiência televisiva a números invejáveis. Eles discutem basquete na mesma proporção (ou até mais) do que debatemos futebol, e com igual paixão. Tanto interesse acaba por criar um jargão todo próprio. No nosso caso futebolístico, há uma série de termos próprios, como "dar um lençol", "bater de três dedos", "goleiro mão-de-pau" e tantos outros. Não é de espantar que o fenômeno se repita nos EUA e com o basquete. Quando um jogador está com um percentual altíssimo de acertos em seus arremessos, diz-se que ele está com a mão quente (hot hand, no idioma local). Forma-se um raciocínio de tendência, passando-se a acreditar que tal atleta fará cada vez mais acertos.

O problema não está em achar que o jogador está acertando seus lances porque está em excelente fase técnica, mas porque há uma probabilidade matemática de que eles continuem ocorrendo simplesmente por conta de sua tendência em acertar. Sua precisão está vinculada à sua habilidade, e não à sorte ou alguma outra causa transcendente. Essa atribuição de sobrenaturalidade à mão quente faz com que ela seja deslocada também para jogos de azar, onde a habilidade conta menos. E, com isso, para um apostador de roleta ou de poker que esteja ganhando suas apostas, também é atribuído o raciocínio da mão quente.

É possível perceber quando o argumento da mão quente é falacioso? Quando nenhum influenciador externo, como preparo físico, quantidade de treinos, qualidade de equipamento ou outra coisa qualquer existir, podemos dizer que a mão quente é falaciosa. No sentido contrário, não há nada de anormal - há um fator que justifica essa boa capacidade de acerto. Não há apenas o acaso para decidir o futuro.

E esse tipo de falácia, evidentemente, não está presente apenas e tão-somente nos esportes e jogos de azar. Imagine-se um pretenso vidente que acerta três características suas em uma consulta. Já se pensa imediatamente que ele terá a possibilidade de acertar a quarta, a quinta e a sexta, tornando-se para você uma espécie de deidade, cuja palavra é uma forma de lei sagrada - não se explica, só se acredita. Oportunamente, vou preparar um texto sobre leitura fria, e essas técnicas poderão ser melhor compreendidas. Mas, por enquanto, é suficiente para entender que é preciso saber o que pertence ao todo e o que pertence à parte, e os cuidados que devemos tomar para não cair nas armadilhas das estatísticas e da linguagem.

Recomendação de filme:

Não é bem pela falácia, mas pelo tema abordado e pela maravilhosa sequência final. A recomendação da vez vai para o filme "Golpe de Mestre", repleto de bons atores, como Robert Redford, Paul Newman e Robert Shaw. Boa parte do enredo se desenvolve em um cassino, onde tensos jogos ajudam a explicar o nome do filme. O mundo das apostas nunca pode ser explicado sem a irracionalidade. Vale a pena assistir, independentemente de seus mais de 40 anos de filmagem.

HILL, George R. Um golpe de mestre. Filme. Estados Unidos, 1973. Colorido. 129 min.

Agradeço à Renata por me deixar tocar fogo em sua mão.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias - 4º tomo: O argumentum ad hominem (ataque pessoal)

Olá!

Vocês certamente já assistiram algumas campanhas eleitorais, especialmente os cada vez mais inconclusivos debates, certo? Parece que todos os candidatos colocam as propostas nas pastas e os porretes na mesa. Antes de analisar qualquer tipo de proposta, é preciso torpedeá-la, muitas vezes jogando na discussão questões relativas ao passado do opositor, ao parentesco, a pensamentos colaterais e outros desconfortos. Se a proposta é boa ou não, pouco importa, desde que haja como bater em quem a profere. Essa é a essência do ataque pessoal, ou, mais tucanamente dizendo, argumentum ad hominem (argumento contra o homem).

Atacar a pessoa, e não os argumentos, é uma das formas mais desonestas de falácias

Essa é uma falácia de dispersão das mais conhecidas e utilizadas de todas. Isso quer dizer que o seu objetivo principal (muitas vezes involuntário, de tão habitual) é remover o foco do argumento a ser contestado e voltá-lo contra o interlocutor, obviamente algo que se considera um defeito (ainda que não o seja), como desvio de caráter, desconhecimento, etc.
 
Bom, remexendo nos alfarrábios da minha memória, encontrei bons exemplos destas falácias fora do campo político. Para quem tem mais de 35 anos e gosta de futebol (e viveu em São Paulo na época), certamente deve ter alguma recordação de um programa de televisão exibido nos domingos à noite, chamado “Mesa Redonda”, transmitido pela simpática e nanica TV Gazeta – canal 11. O programa ainda existe, mas tem um formato muito diferente. No final da década de 70, a coisa funcionava assim: uma bancada composta por jornalistas apaixonados, que se portavam como torcedores de boteco, reunidos para debater as rodadas de final de semana – José Italiano, Flávio Iazetti, Dalmo Pessoa, Peirão de Castro, Milton Peruzzi, Geraldo Bretas, Roberto Petri e intrépida trupe, a maior parte já falecida. A palavra de ordem da atração não era fazer uma análise ponderada das jogadas, resultados e perspectivas. Pelo contrário, sua proposta era trazer a visão apaixonada do torcedor, o que, invariavelmente, fazia com que seus componentes deixassem a racionalidade de lado. E, como sói acontecer em situações dessas, a jeripoca piava.

Há um outro programa de debate futebolístico, desta vez da TV Cultura – Canal 2, chamado “Cartão Verde”. O formato aqui é totalmente outro. Há o debate, mas está muito mais focado nas ideias do que na emoção. Os jornalistas são torcedores também, é verdade, mas aqui há mais cuidado na influência da paixão. Não há semelhança com botequim, os temas são discutidos quase que academicamente: as teses são lançadas e discutidas, rebatidas com outras teses e com fontes frequentemente citadas, mesmo que de cabeça.

Querem uma base de comparação? Mesa Redonda está para MMA assim como Cartão Verde está para xadrez. Isso significa que toda discussão da Mesa Redonda é cenário d’ Um Samba no Bixiga*? E que de todo debate do Cartão Verde pode ser extraído um artigo para publicação científica? Não e não. Vamos ver.

Lembro ainda muito claramente de uma certa noite, em que eu ainda era criança, com algo em torno de 11 ou 12 anos. Minha mãe dormia com seu sono habitualmente pesado, enquanto meu pai e eu assistíamos a Mesa Redonda, eu do tapete, ele da cama. O precitado Milton Peruzzi, palmeirense xiita, fez uma afirmação quotidiana: “O Palmeiras faz por merecer benefícios da arbitragem... É muito mais prejudicado do que os outros clubes”. Algo do gênero.

Meu pai, corinthiano exaltado à época e já em repouso da bebedeira habitual, abriu a caixa de ferramentas e extraiu de lá as mais violentas, berrando impropérios que fariam os zumbis descamparem de seus túmulos, se porventura estivéssemos à beira de um cemitério. Minha mãe pulou na cama e quase grudou no teto, tamanho o susto, de lá revidando contra meu pai, sem que, no entanto, se pusesse a defender o fanático jornalista alviverde. A única coisa publicável do discurso do genitor foi, evidentemente, “tinha que ser palmeirense”!!!

Não, pai. Você usou a falácia do ataque pessoal, além de descompassar o ritmo cardíaco da minha mãe (e o meu também, diga-se). Você não analisou racionalmente os motivos da declaração do jornalista em questão. Não é o fato de que se tratava de um palmeirense dos quatro costados que o impediria de falar algo racional e verdadeiro a favor de seu clube de coração. Correto seria construir um contra-argumento – questionar por provas que embasassem a declaração, contrapor o exagero de erros contra clubes menores, evidenciar a anti-esportividade dessa opinião, sei lá. Esse é um erro argumentativo que costuma suscitar ódio entre as partes, porque, em geral, é uma agressividade desmotivada.

No exemplo acima, falei sobre o ataque pessoal baseado em uma circunstância (o fato de que o jornalista era palmeirense). Por isso mesmo, esta modalidade é conhecida como argumentum ad hominem circunstancial. E é bastante usado quando tratamos de ativismos, aquele tipo de coisa: “Você defende a causa indígena porque é descendente de índios”, “Você é a favor do casamento homoafetivo porque é gay”, “Você defende o exame da OAB porque já fez o exame de suficiência” e outras bobagens do gênero. Mas nessa modalidade ainda temos algum aspecto racional. Mesmo que exista o desvio do argumento, não é mentira o fato de que defendamos posições que nos interessem. Isso não tem nada de ilegítimo, mas é um pouco mais compreensível que se ataque uma posição baseada no legítimo direito de pleitear. Entendam bem: o argumento não deixa de ser falacioso, ele se torna mais compreensível, apenas isso. Há outra modalidade, mais pesada, que se aproxima mais do preconceito, como veremos adiante. É o argumentum ad hominem abusivo.

Neste tipo de falácia, o interlocutor dispersa da argumentação com base em qualquer característica irrelevante que possui aquele que proferiu a sentença em debate. O abuso vem do fato de que o adversário é desqualificado por possuir atributos considerados maléficos, e, mais uma vez, não pela validade de seus argumentos. E, neste caso em especial, nem mesmo o interesse ou as circunstâncias podem ser usados para explicar a falácia. Vamos, por exemplo, imaginar o espinhoso assunto “redução da maioridade penal”, tema deste meu post. Algum parlamentar que defenda a redução é colocado em um grupo denominado bancada da bala. O simples fato de que alguém seja favorável a esta redução não o enquadra como defensor das limpezas étnicas e das violações aos direitos humanos como o estereótipo tenta retratar. Disso resulta: são assassinos, torturadores, eugênicos, nazistas, etc. Por outro lado, quem é contrário à redução é colocado na conta de defensores de bandidos, de agentes das gangues armadas, ou mesmo de viver em um mundo de faz-de-conta – e recebem a pecha de cínicos, que deveriam adotar presidiários, ou levar menores infratores para morar em seus bairros, e mesmo de comunistas (!?!?!!?!?!!?!?!?!). Percebam que não são os argumentos que são atacados, mas as pessoas. Chamar alguém de assassino no primeiro caso, ou de defensor da criminalidade no segundo, é mero desvio de argumento. Explique-se o porquê de não se considerar boa ou ruim a ideia, e combata-se a ela, e não quem a lança.

Agora, o outro lado. Por mais que uma pessoa não deva ser atacada por seus argumentos, é fato que as pessoas têm defeitos. Qual a credibilidade que um mentiroso contumaz possui? Isso faz com que a investigação de seus argumentos seja elevada à enésima potência. Isso tem a ver com confiabilidade, e uma fonte fidedigna sempre é um bom começo, ainda que não seja garantia de nada. Mas, mesmo assim, é preciso ter cuidado, já que mesmo o mais doentio mitômano pode, de vez em quando, soltar uma verdade. Se observarmos apenas o interlocutor, e não o argumento, corremos o risco de desperdiçar boas ideias.

Por fim, quero fazer uma pergunta-desafio, já que nunca consegui chegar a uma conclusão definitiva sobre a questão: os atestados de antecedentes são aplicações da falácia ad hominem? Até que ponto um documento comprova que um indivíduo cometerá ou não novos crimes? Não será este instrumento um dificultador da reintegração de pessoas no exercício de sua cidadania?

Por outro lado, não será o atestado de antecedentes uma mera comprovação da ineficiência do nosso sistema coercitivo, em que ainda é preciso dar um mínimo de segurança à sociedade que o exige, já que não existe nenhum tipo de garantia de recuperação do indivíduo? A exemplo do que ocorre com as funções judiciárias, que exigem fé pública, não haveria a necessidade de uma “fé particular” que fosse além dos contratos, e que o tal atestado representa, ao demonstrar uma ineficiência individual no cumprimento do contrato maior, que é a lei?

Coisas para discutir.

Recomendação de leitura:

Muita gente critica o Jorge Amado. Eu gosto. Acho sua escrita bastante fluida, fácil de ler, ainda que eu deva reconhecer que algumas de suas obras de costumes sejam chatíssimas (desisti de Teresa Batista cansada de guerra bem no meio do caminho – tava chato demais). Mas, como um todo, é leitura agradável. No livro que recomendo abaixo, o Capitão Vasco Moscoso de Aragão é perseguido insistentemente por um fiscal aposentado que desconfia de seus decantados atributos e quer desmerecê-lo, mas os fatos conspiram em seu apoio. Bons exemplos de argumentos ad homimem.

AMADO, Jorge. Os velhos marinheiros ou a completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

* Adendo

Um Samba No Bexiga

Adoniran Barbosa

Domingo nós fumo num samba no bexiga
Na rua Major, na casa do Nicola
À mezza notte o'clock
Saiu uma baita duma briga
Era só pizza que avuava junto com as brachola


Nóis era estranho no lugar
E não quisemo se meter
Não fumos lá pra brigar, nós fumo lá pra comer
Na hora "h" se enfiemo de baixo da mesa
Fiquemo ali, que beleza vendo o Nicola brigar

Dali a pouco escutemo a patrulha chegá
E o sargento oliveira falá

Num tem importância
Foi chamada as ambulância
Carma pessoal,
A situação aqui está muito cínica
Os mais pior vai pras “crínica”



Obs: A “rua Major” é uma referência à rua Major Diogo, reduto típico dos boêmios frequentadores do “Bixiga”, parte baixa do tradicional bairro da Bela Vista, em antagonismo com o Morro dos Ingleses, mais próximo da Avenida Paulista, a porção “nobre” do mesmo bairro. Aliás, e aproveitando o ensejo, é um bairro interessantíssimo, porque tem uma das divisões mais claras da cidade entre o requinte e a pobreza que convivem não tão bem quanto quereríamos. Vale visitar (e comer até cair).

Agradeço à Jazz pela sofrida foto que ilustra este texto.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias - 3º tomo - O post hoc ergo propter hoc (correlação de coincidência ou falsa causalidade)

Olá!


Você já arrancou o tampão do dedo logo após um gato preto cruzar à sua frente? Seu time perdeu logo depois de você passar por debaixo da escada? Sua namorada te aplicou um cartão vermelho depois que você perdeu seu pé de coelho? Não, meu caro, isso não é azar. É você tentando aplicar a falácia post hoc ergo propter hoc às circunstâncias de sua vida.

Quebrar espelhos dão azar especialmente quando os cacos te cortam

Esta falácia também é conhecida pelos nomes de “correlação de coincidência” e “falsa causalidade”, e acontece quando temos uma falsa relação de causa e consequência. Acontece quando amarramos uma causa a um efeito apenas e tão-somente porque uma acontece antes da outra. Sabe, né? Passarinho voando baixo traz chuva. Não, não e não. Pássaros voam baixo porque seu alimento, os insetos, são empurrados para perto do solo quando as correntes de ar que antecedem as chuvas se aproximam. Como não é fácil perceber isso logo de cara, acha-se que os pobres alados são capazes de arrastar as pesadas nuvens.

A falácia do post hoc ergo propter hoc (depois de tal coisa, portanto por causa de tal coisa) é tremendamente utilizada na formação de superstições, como já expus neste texto, em que tento imaginar a criação do mito do espelho quebrado. Mas não se limita somente às superstições, mas à formação de discriminações. Só para ilustrar, vou dar um exemplinho rápido.

Nos idos dos séculos XIX, no âmbito do positivismo e do cientificismo mais exacerbado, surgiu uma pretensa ciência denominada “frenologia”. Esta disciplina procurava estudar e vincular o comportamento humano através de suas características físicas. Trocando em miúdos, através da aparência de uma pessoa, a frenologia julgava-se capaz de identificar se o mesmo tinha tendências a ser um psicopata, um desonesto, um mentiroso e outras coisas do gênero. Isso era uma arma e tanto na mão de quem queria atribuir a um determinado grupo étnico uma maior tendência à criminalidade, e, desta forma, legitimar formas mais agressivas de vigilância. Não é preciso nem dizer quem era a vítima principal, não é mesmo? E por causa de uma teoria sem comprovações, mas que procurava se travestir de uma estrutura lógica convincente, muitas ideias eugênicas foram surgindo, até culminar no nazismo e no holocausto. 

Nisso tudo podemos enxergar não só uma falácia, mas uma estrutura post hoc: por causa da forma da cabeça, fulano tem tais características de comportamento; em etnias que possuem essa característica, todos seus membros tem essa mesma peculiaridade. E isso é reduzir toda a complexidade do caráter humano à sua cara.

Conclusão: mesmo com a total inexistência de vínculo lógico entre dois fatos consequentes, é atribuído a um o estatuto de efeito do outro, anterior a ele.

Às vezes é muito difícil notar uma discrepância entre causa e consequência. Para percebemos como essa falácia é uma profícua geradora de armadilhas, vamos estudar uma tese científica que foi considerada válida por muito tempo. É a teoria de evolução de Jean Baptiste de Lamarck.

Lamarck foi um dos primeiros cientistas a perceber que as espécies, de alguma forma, sofriam um processo evolutivo. Para ele, os organismos vivos mais simples, como as bactérias e protozoários, surgiam de forma espontânea a partir de matéria bruta, e que, de acordo com o ambiente em que viviam, eram levados a transformações que os adaptavam e traziam melhoramentos, de modo a torná-los cada vez mais complexos. Estas adaptações eram conduzidas, principalmente, por variações ambientais, que podiam fazer com que os organismos passassem a contar com novas funções ou extinguir as desnecessárias, naquilo que ficou conhecido como “lei do uso e desuso”.

O mais clássico exemplo desta lei é o que leva em conta o estranho tamanho dos pescoços das girafas. Lamarck usava sua tese para explicar que, ao procurar os brotos mais tenros no alto das árvores, as girafas – que em tese possuíam ancestrais de pescoço mais humilde – passaram a se esticar cada vez mais. Como esse esforço produzia um alongamento dos pescoços, e este alongamento era hereditário, as girafas passaram a ficar cada vez mais altas, de geração a geração.

Post hoc, ergo propter hoc. Após o esforço para alcançar as folhas mais altas, portanto por causa do esforço para alcançar as folhas mais altas. A seleção natural de Darwin derrubou a tese da natureza adaptativa, mas é uma ideia bastante convincente, e que perdurou por muito tempo. Lógico que os argumentos de Lamarck não podem ser considerados pura e simplesmente falaciosos, porque eram extremamente coerentes, mas havia o defeito de não se ater a provas científicas suficientes, como as teses darwinianas fizeram. O ambiente não cria as funções nos organismos, mas seleciona aqueles melhor adaptados.

O post hoc também pode ser negativo. Como exemplo, cito uma viralização que tem a ver com a falta d’água recente que vem ocorrendo em São Paulo neste ano. A frase diz o seguinte: “Toda vez que a gente ia no Playcenter, chovia. Aí, fecharam o Playcenter”.

(Explicação rápida para quem não mora em São Paulo – o Playcenter era o maior parque de diversões da cidade, onde se passava o dia inteiro, e quase todas as atrações eram a céu aberto – se dependessem de mim, morreriam de fome, porque eu nunca achei legal pagar para sofrer).

Neste caso, a relação de causa e efeito – irônica... que fique bem claro – está no fato de que não chove mais porque não há mais Playcenter. Alguma estranha divindade nega-se a soltar os pingos porque não há mais como estragar o dia de ninguém.

Uma variação desta falácia é conhecida como cum hoc ergo propter hoc – com tal coisa, portanto por causa de tal coisa. Neste caso, a relação de causa e consequência não se dá pela sequência dos fatos, mas por sua simultaneidade. E é facilmente identificável na utilização de talismãs e amuletos.

Eu sempre achei que fossem sinônimos, mas há uma diferença sutil. Enquanto o talismã é utilizado para atrair boa sorte, o amuleto é um objeto que se usa para afastar má sorte. Mas em ambos os casos o cum hoc funciona de maneira idêntica: se estou com um pé de coelho (talismã clássico), então a promoção que tive no emprego ocorreu por conta deste porte; se estou com uma figa da Índia (amuleto clássico), então o ladrão não me assaltou, como fez com o rapaz que estava passando pela mesma rua. Perceba que essa correlação é absolutamente ilógica: no primeiro caso, minha promoção se deve à minha eficiência, à minha antiguidade no emprego, ao meu parentesco com algum diretor, à pressão que exerci para permanecer no emprego – não à posse do pé de coelho. Da mesma forma, o ladrão não me assaltou porque eu estava mal vestido, porque pareço ser mais forte, porque estava mais longe do que o infeliz que foi efetivamente assaltado, porque o punguista não me viu primeiro – e não à presença do amuleto (que, se fosse de ouro, poderia mudar a opinião do fora-da-lei).

É preciso ter cuidado com o outro lado, e não produzir exageros, enxergando falsas causalidades em tudo. É necessário sempre ponderar de maneira aberta e adequada. Nem sempre a associação de uma causa e uma consequência é falaciosa, isso é óbvio. Quando dizemos que os avanços da tecnologia geram desemprego, temos uma verdade, ainda que parcial. De fato, ao utilizar máquinas para produzir algo que antes era feito por mãos humanas, temos a tendência a precisar cada vez menos de pessoas no trabalho. Mas olhem só: isso, por si só, não explica totalmente uma onda de desemprego, já que os trabalhadores podem se adaptar a outras atribuições, pode existir influência econômica, pode-se estar em tempo de guerra, e assim por diante. A ferramenta a ser utilizada aqui novamente é a lógica e o bom senso.

Recomendação de leitura:

Para que a literatura nos traga um exemplo de como um amuleto pode ser importante na vida de uma pessoa (e no desenrolar dos enredos, claro), trago a vocês a recomendação de uma das principais obras do modernismo brasileiro, onde são descritas as agruras do anti-herói Macunaíma na reconquista do Muiraquitã, um amuleto dado de presente por Ci, a mãe do mato e sua falecida esposa, e que foi roubado pelo gigante Piaimã, comedor de gente.

ANDRADE, Mario. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Vila Rica, 1997.

Agradeço à Darci (meu anjinho, minha parceira) pelo empréstimo da mão e pelo obséquio de sangrar seu dedo para produzir a foto deste texto.

Pequeno guia das grandes falácias - 2º tomo - O apelo à força (argumentum ad baculum)

Olá!


“(...) Ele estava com medo. E o medo dele me mostrou um caminho melhor: confessar e dividir a culpa com ele. Era uma maldade, mas ele precisava de uma lição (...)”
J. J. Veiga

O argumentum ad baculum, ou apelo à força, é uma falácia do tipo informal que acontece quando uma explicação calcada na lógica é preterida em favor da utilização de uma ameaça. Este medo incutido em quem é adversário no debate visa apenas e tão somente colocar um ponto final em argumentos contrários, sem a necessidade de se chegar a uma conclusão bem construída. Perceba-se que a inserção da força no meio da discussão não produz nenhum tipo de prova. E o que faz com que o debate se encerre é a prudência, e não a razão.

Dá para argumentar com quem põe uma faca em nossa cabeça?

O termo latino “baculum” pode ser traduzido como báculo. Esse objeto pode ser visto na mão de bispos da Igreja Católica e tem o sentido da condução que seus representantes têm sobre a massa de fiéis, ou seja, é um símbolo do pastoreio tantas vezes repetido nos Evangelhos. Fora do contexto religioso, báculo é um nome coxinha para o bom e velho cajado, a bengala que auxilia os camponeses em suas tarefas diárias. Esse objeto tem múltiplos usos: serve como apoio para subir e descer dos morros e colinas, serve como alavanca para deslocar objetos pesados, serve para afugentar os lobos que se aproximam dos currais, serve para dar nas costas das ovelhas mais obstinadas em não se recolher ao redil. Em resumo, o cajado é uma alegoria à imposição pela força. E o argumento ad baculum (ou apelo à força) faz exatamente isso, ou seja, mostrar que quem detém o porrete tem sempre razão.

Talvez um dos empregos mais comuns desta falácia é o famoso “Deus castiga” que aplicamos às crianças. O argumento é de todo ilógico, mas muito convincente. Ensina-se insistentemente que Deus é bonzinho, que Deus fez tudo de bom e bonito, que Deus tem piedade dos homens, que Deus é isso, aquilo e o outro. Na primeira escorregadela do fedelho, tacamos a imprecação peremptória:

- Não faça isso! Deus vai te castigar!

Cadê aquele ser benévolo, sereno, misericordioso, a quem devemos confiar? Ora, virou uma ameaça, um objeto de medo!

Ao invés de se justificar logicamente os porquês da inconveniência da traquinagem, utiliza-se a força, a ameaça e, no caso, a incoerência também.

Mas há argumentos com a aplicação de ameaça que não são falaciosos. São aqueles em que a ameaça é real, e que geralmente não partem voluntariamente de quem os profere. Quando alguém lhe disser...

- Não passe debaixo dos andaimes. Um martelo pode cair na sua cabeça.

... ele estará lhe advertindo de um risco real, não estará dando um falso argumento. Neste caso, não há uma falácia, porque a ameaça está intrinsecamente ligada à lógica da frase. O mesmo se aplica ao policial que ameaça o bandido pego em flagrante delito, em mais um exemplo. Não temos uma ameaça pela impropriedade do argumento, mas pelo dever de ofício.

A diferença reside no uso da razão, como eu disse acima. Se meu chefe me ameaça com uma punição (ele nunca faria isso, meu chefinho tão bonzinho), pode fazê-lo por dois motivos. Ele pode querer que eu trabalhe até mais tarde e bradar pelos corredores que, se eu não o fizer, poderei ser prejudicado na minha carreira. Mas também pode me explicar a necessidade real do trabalho, que se eu não conseguir terminá-lo a tempo todo o setor será prejudicado, que nossos superiores contestarão os prazos que nós mesmos prometemos e que, em vista disso, terei mais dificuldades para seguir confiante na carreira. Perceba-se que, em ambos os casos, terei elementos suficientes para me borrar inteiro, só que o argumento do medo é único no primeiro caso, enquanto no segundo há toda uma construção das causas e consequências que, mesmo me impondo temor, são reais e devidamente ponderadas.

Como se pode observar, é muito difícil que não recorramos a este tipo de apelo, até mesmo com certa frequência, e isso é natural. O risco não está na informalidade de seu uso, mas na sua aplicação como argumento lógico, o que pode ser muito compreensível no quotidiano, mas é sempre preciso lembrar que apelar para a força nada tem de lógico. Portanto, cuidado com as armadilhas da tentação de utilizar um porrete quando sua característica de ser racional servir de prova para sua condição de humano.

Recomendação de leitura:

Várias obras literárias já tiveram a possibilidade de demonstrar como os apelos à força podem ser utilizados para alienar e oprimir. Alguns dos exemplos mais clássicos são 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Gostaria de recomendar aqui um outro livro que tem esta pegada, de onde extraí a epígrafe do começo do texto. Trata-se da obra-prima de José J. Veiga, maior representante do realismo fantástico no Brasil, ao lado de Murilo Rubião. A história é uma alegoria do período repressivo no Brasil, em que o governo militar é representado por uma empresa que se aloca em uma pequena localidade e se alastra até estar presente em todos os aspectos das vidas dos cidadãos. Vale a pena conhecer.

VEIGA, José J. Sombras de Reis Barbudos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Agradeço à Renata e ao Azul por autorizarem o uso da fotografia.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A teoria do gomo da mexerica

Olá!

Já perceberam que as pessoas costumam se estapear por motivos banais? Quando vemos uma briga de bar, daquelas que podem terminar em morte, quase sempre o estopim foi alguma discussão do tipo futebol, infidelidade, adjetivos maternos pouco recomendáveis e outros motivos irrelevantes. Quando os envolvidos são do sexo feminino, o problema é o mesmo, porém deslocado para motivos conjugais (extra, para ser mais preciso), pequenos desencontros informacionais alheios, e via discorrendo. Mas há motivos ainda menores, como, por exemplo, um pedaço pequeno, já inútil, mas muito cobiçado, de plástico-bolha...

Sim, já vi brigas por causa de um pedaço de plástico-bolha usado. Que tipo de fascínio um detrito desta ordem pode exercer nos seres humanos para que eles se voltem as costas mutuamente, apenas e tão somente porque 51% das bolhas ficaram disponíveis para um, e apenas 49% para o outro?

O encanto diante do plástico-bolha é tanto que encontrei, em uma rápida pesquisa na internet, dois artefatos curiosos: um aparelho chamado “ploc-ploc” (olhem neste endereço) que se auto-proclama um plástico-bolha infinito, pois as bolhinhas se enchem novamente após os estouros, e há o plástico-bolha digital (experimentem aqui), que expõe um quadrado de suculentas bexigas disponíveis para explodir com o ponteiro do mouse. Sem dúvida, há gente com tempo no mundo...

Meu plástico-bolha é outro. Sou capaz de passar muuuuuuuuuito tempo tornando absolutamente limpos... gomos de mexerica! Tiro fiapo por fiapo, dos mais longos aos mais curtos, até desprover completamente cada um dos gomos da fruta, buscando pela peça perfeita. Começo pela parte baixa do gomo, a mais trabalhosa. Supervisiono as laterais e retiro as eventuais fibras lá existentes. Removo a junção do alto e, em seguida, os caroços inevitáveis (há exceções, é verdade). Aí sim, com a peça totalmente isenta de “penugens”, mando a infeliz para a garganta, descartando eventualmente as peles laterais, mas sorvendo a inferior. Às vezes limpo umas quatro ou cinco de uma vez, outras vezes vou deglutindo os gomos na medida em que os limpo. Prefiro as ponkans, altissimamente fibrosas. Também gosto das recentes dekopons, uma laranja com forma de mexerica (ou uma mexerica com gosto de laranja, tanto faz). As pequenas cravo são diversão para poucos minutos, e as murcotts... Bem, não considero as murcotts mexericas.


Tangerinas, bergamotas, mexericas... Por que, hein?

Bom, há duas maneiras para ver a coisa: uma é nossa propensão a desvendar as coisas, mas com a impossibilidade de ficar com as mãos paradas. Meu falecido compadre Plínio, por exemplo, ficava extremamente feliz quando, ainda criança, ganhava de presente algo que tivesse um mecanismo, como um relógio ou carrinho de corda, não porque lhe seria útil, mas porque poderia desmontá-lo, e compreender seu funcionamento interno.

Outra coisa é que provavelmente temos diante de nós uma questão de possessividade com um objeto sem dono. O plástico já utilizado não serve para mais nada, apenas para ser estourado. Nunca vi, nem tenho notícia, de alguém comprar um metro de bolhas para estourar com o sagrado e constitucionalmente garantido direito de propriedade, somente o plástico que já cumpriu sua missão pode ser utilizado. Com a mexerica é a mesma coisa, mas aí temos a questão da reminiscência infantil. Isso porque nós pagamos (e caro) pela dúzia da precitada fruta, mas temos inscrito em nossa memória o tempo em que elas estavam disponíveis nas árvores da vizinhança (bem como goiabas, pitangas, abacates, etc.). A fruta está lá, pendurada na árvore, desprotegida e oferecida ao primeiro guloso que se dispusesse e catá-la. Essa sensação de pertença ainda permanece, mesmo que tenhamos comprado a fruta, porque o sentido do prazer em sorver o que foi conquistado a custo é maior do que o sentimento de segurança jurídica de haver adquirido legalmente o produto.

Mas há outros motivos, ao menos aparentemente. Estourar bolhas assemelha-se a técnicas de yoga. Como os esforços táteis são repetitivos e dispensam grandes demandas mentais e foco estrito, proporcionam um agradável isolamento do mundo exterior, favorecendo a meditação. Também é comum transmitir uma sensação de proteção – quando não estamos em vigília contra o perigo, algo que nasceu com nossos ancestrais. Afinal, é difícil ver alguém estourando bolhas andando nas ruas (plástico-bolha não é celular). Fazê-mo-lo sentados, em ambiente fechado, e temos com isso uma sessão de descarga de stress. Damos uma desligada nos sentidos e com isso vem a sensação de prazer. Também tem mais um fator. Um pedaço de plástico-bolha representa um objetivo, e queremos levá-lo até o fim, não deixar uma obra inacabada, ainda mais tão simples que é. Pode ser que aí entrem as brigas. Um quadradinho destes tem começo, meio e fim, mas ele é MEU, só MEU. Dividir o derivado do petróleo, no caso, atiça os instintos primevos do contribuinte, como um pedaço de carne mal repartido. Sei lá, acho que é isso, tudo junto ou separado.

Tudo isso pode ser aplicado ao desnude de meus gominhos. Também ali tenho uma sensação de relaxamento, também ali tenho uma tarefa a levar a cabo até o fim, também ali tenho o sentimento de proteção, também ali tenho a insatisfação quando alguém vem serrar minhas pequenas partículas (Ok, não nego gomos a quem me pede – basta não ser folgado). E enquanto executo a dissecação do precioso alimento, aproveito para filosofar.

E neste vai e vem de fiapos, de retirada de caroços, de gomos de mexerica levados à perfeição gastronômica, em todo esse esmero na dissecação do objeto, o cuidado para desnudar a proposição que se quer estudar, enxergo as lições do mestre francês René Descartes, um dos maiores filósofos da Idade Moderna, o pai do Racionalismo, e percebo que, de certa forma, aplico as regras de seu famoso método para dissecar o “problema” da limpeza das minhas partículas frutíferas favoritas.

Descartes vive em um tempo em que vemos a aposentadoria de um paradigma filosófico e ressurgimento de outro. Era a época do esgotamento do modelo teocêntrico da Idade Média e da nova antropologia suscitada pelo Renascimento. Tal como na era socrática, o homem volta para o centro da especulação filosófica, mas com uma roupagem diferente – a Ciência já não é mais uma possibilidade distante. Os métodos de observação e experimentação propiciam possibilidades que ficavam antes restritas à imaginação dos pensadores. Apesar disso, Descartes coloca o homem ainda mais ao centro. Para ele, não é apenas o homem o objeto a ser analisado – ele mesmo é a usina que produz esse conhecimento.

A principal percepção de Descartes é a ausência de um método que desse guia para a razão em suas especulações. Esse método é o que ele mesmo chamou de dúvida metódica, um grande clássico da Filosofia, especialmente da Filosofia da Ciência.

A frase mais conhecida de Descartes é o famosíssimo “cogito, ergo sum”, o penso, logo existo. Seu desenvolvimento derivou da implantação da dúvida como método científico e foi mais ou menos assim: apaixonado pela matemática, e incomodado com os desvios dos sentidos e com o poder das opiniões, que obscurecem o verdadeiro saber, Descartes iniciou sua investigação em busca de uma certeza perfeita. Para tanto, extremou a dúvida ao máximo, colocando entre parênteses até mesmo sua própria existência. Para matar a charada, lança mão da hipótese do gênio maligno. Esta entidade teria o poder de enevoar qualquer tipo de conhecimento, capaz de iludir o intelecto sobre a existência de toda percepção, como a visão, a audição, a memória, todas as coisas exteriores, a noção cosmológica, tudo; até mesmo o próprio corpo. Descartes passou a supor a existência de tudo isso como meras ilusões produzidas por esse gênio maligno.

Acontece que, mesmo imerso em um universo de ilusões, é preciso que se admita a existência de algo para ser iludido. Quando somos objeto da ilusão, pensamos; quando erramos em nossas opiniões, pensamos; quando fazemos um julgamento qualquer, pensamos; até mesmo quando duvidamos, estamos pensando. Há sempre algo necessário para qualquer atividade mental, e esse algo é o pensamento. Desta forma, o pensamento é prova inequívoca de existência. Existimos enquanto pensadores.

Com essa premissa de que é possível atingir alguma certeza, Descartes abandona a possibilidade de um ceticismo absoluto, que, em seu limiar, impediria a Ciência. O conhecimento deveria se apresentar a razão passando pelo crivo da dúvida cartesiana. E esses filtros são clareza, distinção e evidência. Por clareza, devemos entender, na concepção cartesiana, como aquilo que se apresenta ao espírito de maneira direta, ou melhor dizendo, sem necessidade de intermediários. Isso significa que o conhecimento não pode ser intuído como real por se “ouvir falar”, é preciso tê-lo à sua frente desnudado e sem nenhuma espécie de opinião para distorcê-lo. Por distinção, temos que pensar na ideia que se insere descolada de qualquer outra, ou seja, é preciso ser possível que todos os elementos que compõe um determinado objeto da razão sejam individuais, que sejam únicos. E por evidência, temos uma consequência direta das anteriores, da clareza e da distinção, aquilo que é inequívoco para nossas representações mentais, e com isso temos a base para nossas construções racionais.O cogito tem todas essas características, e passa a ser um paradigma para todas as demais elucubrações.

Tendo em conta essas regras para aceitar o que deve ser considerado em nossas pesquisas racionais, Descartes constrói seu método. Não vou fazer longas assertivas, até mesmo porque este método é, no final das contas, facilmente resumível. Sua composição básica é a seguinte:

1) Evidência: como disse há pouco, é preciso estabelecer se nosso objeto de estudo é claro e distinto, ou seja, se temos diante de nós um alicerce seguro para a ideia a desenvolver;

2) Análise: o fato de existir evidência não significa que a representação que temos seja simples. Se há dificuldade na compreensão direta de uma ideia é preciso que se faça a sua divisão em partes cada vez mais simples, o que permite uma melhor organização, já que a ideia dividida em “módulos” permite a elaboração de um rearranjo cada vez mais vasto e, por conseguinte, com melhores possibilidades de entendimento;

3) Síntese: uma vez dividida a representação, em tantas partes quantas forem necessárias para sua compreensão, temos elementos que nos permitem reorganizá-la adequadamente. A síntese é a reconstrução do objeto do pensamento já devidamente ordenado. Esse processo deve ser considerado levando em conta a utilização de suas partes mais simples, agregando seus significados em conjuntos cada vez mais complexos, até a abranger a totalidade do seu significado.

4) Enumeração: trata-se de uma revisão de todos os processos anteriores, com a reanálise de todo o raciocínio aplicado a casos que possam levar a desvios do resultado geral. Perceba-se que o método, de certa forma, é circular, porque a enumeração pode levar a novos resultados inconclusivos, que deverão novamente ser injetados nos critérios de verificação.

E com isso temos um método que deixa seus rastros nas Ciências até os dias de hoje. Aplicado às mexericas (agora em tom de brincadeira), tenho por evidente o objetivo de descascar e deixar perfeitos os gomos da fruta, verificando as possibilidades de trazer máximo prazer ao meu paladar. Para tanto, faço um processo de análise, que inclui retirar a casca, isolar os gomos, descartando os menos saudáveis, de extrair as fibras uma a uma e de ter todos os aproveitáveis diante de mim. Após isso, reúno todos em meu prato, já agora com o nome de sobremesa (sua síntese). E, por fim e por perfeccionismo, reviso todos, para ver se não escapou nenhum fiapo, se as películas laterais estão soltas e se todas as sementes estão devidamente removidas. E lá vão meus cartesianos frutos carnosos do tipo baga goela abaixo...

Poxa, tudo isso num gomo de mexerica? Pois é, a Filosofia é assim...

Recomendações de leituras:

Renê Descartes discorre sobre seu método nos seguintes livros;

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
________________. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias – 1º Tomo – Uma introdução

Olá!

Conforme havia prometido neste post, inicio uma pequena série sobre as falácias, estas danadinhas que insistem em nos enganar, e que são tão utilizadas nos discursos de nossas ilustres autoridades políticas, em especial nos tempos de eleições.

Muito do que nos é apresentado como argumentos
 válidos nada mais são do que falácias

As falácias pertencem ao campo da Lógica e da Filosofia da Linguagem. Desta última, gosto bastante, mas com relação ao estudo da Lógica... Bem, confesso que é meu ponto fraco. Tabelas-verdade, notação formal, transposição, regras de inferência, não são bem minhas preferências, mas foi justamente com o estudo das falácias que eu compreendi melhor essa parafernália toda. E comecei a encará-las com menos repugnância (talvez até um pouco de admiração). Por isso, acho que vale a pena tratar do assunto.

Mas... o que é uma falácia?

Falácia é um termo oriundo do latim fallere, que significa faltar. No caso, com a verdade. Uma falácia é um argumento construído de tal forma a dar impressão de ser verdadeiro, mas que, na verdade, possui em si uma tentativa de ludibriar o interlocutor. Enfim, uma falácia nada mais faz do que lançar mão de defeitos da linguagem, como os paradoxos, os duplos sentidos e outras coisinhas mais.

As falácias, falando bem basicamente, podem ser de dois tipos: formais e informais. Vamos falar um pouco da questão da formalidade, com o mestre Aristóteles.

Aristóteles é uma espécie de “padroeiro” da Lógica. Não que seus antecessores não tenham se ocupado com a retidão do raciocínio, mas é com ele que pela primeira vez temos uma sistematização do pensamento de modo a torná-lo mais matemático, a se preocupar com a forma com que deve ser disposto. A ferramenta dessa lógica formal é o silogismo.

O mais clássico de todos os silogismos é aquele que nos é apresentado como exemplo inicial em todo manual de introdução à Lógica: a questão da mortalidade de Sócrates.

Todo homem é mortal
Sócrates é homem
Logo, Sócrates é mortal

Este silogismo está bem estruturado. Possui uma proposição universal (todo homem é mortal), que chamamos de premissa maior, aquela em que cabem mais coisas; possui uma proposição particular (Sócrates é homem), denominada premissa menor, ou seja, aquela com menos elementos; são concatenadas através de um termo médio, comum às duas (homem), e delas deriva uma conclusão (Sócrates é mortal). De uma articulação antecedente (as premissas), extraímos um consequente, que é a conclusão.

Pois bem. Esse conjunto de proposições que remete a uma conclusão é chamado de argumento. Quando esse argumento está bem formulado, ou seja, há coerência interna entre as premissas e a conclusão, podemos dizer que ele é formalmente válido. Vejamos outro exemplo:

Alguns homenzinhos verdes são marcianos
Eu sou um homenzinho verde
Logo, eu sou marciano

Há um erro neste silogismo. Perceba-se que as duas premissas são particulares – a premissa maior não abarca a totalidade dos homenzinhos verdes existentes no universo. Com isso, o fato de que eu seja um homenzinho verde não me torna, automaticamente, um marciano. Pode ser que eu seja de outro planeta que também tenha homenzinhos verdes, pode ser que eu esteja doente do fígado, pode ser que tenha caído uma lata de tinta verde na minha cabeça, entre outras desventuras. Quando falta ao argumento uma estruturação lógica, como no caso acima, dizemos que ele é inválido.

Quando o erro do argumento está na sua forma, ou seja, quando ele é inválido, afirmamos que qualquer utilização dele produzirá uma falácia formal.

Só que aí temos um pulo do gato. Um argumento formalmente bem construído é garantia de que ele produzirá verdade? A resposta é não.

Vejam bem. Dei dois exemplos de silogismos, um formalmente válido e outro inválido, sendo que o segundo nunca poderá receber um valor de verdade, já que tem problemas em sua estrutura (ainda que sua conclusão seja verdadeira). É como um carro sem rodas – não tem como cumprir sua função, há algo essencial a faltar nele. Carro sem rodas não transporta nada, argumento sem lógica não exprime nada. Já o primeiro argumento, o do Sócrates, que já concluímos ser válido, tem o “poder” de receber um valor de verdade, ou seja, ser verdadeiro ou falso. E mais ainda: a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. De fato, sem prejuízo da estrutura do silogismo, podemos fazer as mais diferentes elucubrações para tornar o argumento falso (ainda que válido): Sócrates pode não ser um homem, mas uma divindade; pode não ser um homem, mas o nome de um cachorrinho de estimação; pode ser o sobrenome de uma mulher; pode ser o título de uma obra, e não o filósofo em si; pode ser que a palavra “Sócrates” represente qualquer outra coisa em uma língua diferente. Isso tudo falsifica a premissa “Sócrates é homem”, e consequentemente a conclusão, mas não invalida o argumento. Quando isso acontece, temos os casos que produzirão as falácias informais.

Há ainda um tipo específico de falácia informal que não está ligada à veracidade do argumento, mas ao desvio do foco da discussão, e ocorre quando buscamos “ajuda” externa, no mais das vezes pela falta de justificativas para responder adequadamente ao interlocutor. É o que chamamos de apelos, e são dos mais variados tipos: apelamos à força, à misericórdia, à autoridade, à popularidade, à velhice, etc., de modo a usar um subterfúgio para encerrar a questão escapando do campo lógico. Exemplo:

- É melhor você me obedecer. Emprego anda difícil.

Uma ameaça nada sutil. Neste caso, não há uma explicação dos motivos pelos quais o dever de obediência é conveniente. O que temos é uma interrupção da linha argumentativa, de forma peremptória. Apelos e ataques são extremamente comuns.

E é isso. De agora em diante, pegarei algumas das mais significativas falácias e as deixarei nuas. Não haverá ordem, nem sequência, nem um roteiro específico, e também procurarei não me alongar muito em cada uma delas, mas tentarei explicar suas origens e demonstrar como podem ser detectadas no dia-a-dia, como é o escopo deste blog.

Recomendação de leitura:

Aristóteles fala sobre a construção de silogismo como a formalização de argumentos em sua seguinte obra:

ARISTÓTELES. Analíticos Posteriores. In: Órganon. São Paulo: Edipro, 2005.