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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Navegar é preciso viver - Epílogo

Olá!


Malas feitas, vamos pedir a conta. Este é o quarto conjunto de relatos de viagens que faço no meu blog, e espero que todos tenham gostado. Só para rememorar, a minha proposta é acrescentar viagens filosóficas em minhas viagens turísticas. Essa é a minha cabeça, fazer o quê? Lembro muito bem do meu compadre Plínio. Quando criança, ele não se preocupava em ganhar brinquedos para brincar, mas para entender como eles funcionavam por dentro. E isso fazia com que os carrinhos e robozinhos fossem desmontados todos em menos de uma semana de uso. Terminou seus dias como mecânico e eletrônico, como que a confirmar sua vocação. Acho que algo semelhante acontece comigo. Olho para uma construção e não me admiro simplesmente com sua beleza. Fico me perguntando por que foi feita daquele jeito, e não de outro, ou o que significa a busca pela beleza. Vejo uma paisagem e me dedico a pensar quais são as possibilidades de interação desta com seu maior predador, o homem. Enfim, não desmonto brinquedos. Desmonto causalidades.

Estes epílogos servem, em tese, para costurar a boca do saco das viagens que realizo e dar uma certa unicidade e noção de conjunto aos que elas têm em comum. No diário de bordo de uma nau sem rumo, por exemplo, comentei sobre a força dos relatos e do diálogo que podemos construir com as pessoas; nas cartas náuticas para marinheiros de terra firme, falei sobre a crise hídrica generalizada, pela pouca água que encontrei em locais onde ela deveria ser abundante. Menos mal que a chuva tem sido pouco miguelenta nos anos posteriores, mas uma estiagem igual pode acontecer a qualquer momento. E no cesto da gávea de onde observo o mundo... Bem, desse eu sei que ainda devo o epílogo, mas com motivos que estão explicados no último texto da série: primeiro vou visitar o Núcleo Santa Virgínia, depois eu fecho aquele pacote.

E com relação a esta última viagem? Em tese, eu correria dois riscos: o de desenhar panegíricos que falam muito pouco sobre as localidades que busquei retratar, e o de falar mais do mesmo. Mas tenho dois assuntos relevantes a abordar, distintos mas correlatos, que aguçaram minha percepção no decorrer da viagem, além de me arriscar a ser vítima. Trata-se das imprudências dos motoristas nas estradas e do binômio bebida-direção. Aliás, o assunto não é um só porque agressividade no volante e motoristas bêbados não possuem correlação necessária, embora comum.

As estradas do estado de São Paulo, como um todo, são boas no quesito revestimento, e as rodovias principais possuem infraestrutura suficiente para realizar viagens tranquilas, como telefones a cada quilômetro, acostamentos, baias de emergência, iluminação em áreas críticas, encostas contidas, veículos de atendimento e outras benesses. É bem verdade que os pedágios têm espaçamento abaixo da crítica e preços proibitivos, mas fazemos parte do Brasil e estamos acostumados a tomar no lombo em silêncio. Mas entre estradas baratas e perigosas ou caras e seguras, é melhor ficar com a segunda opção.

No entanto, a maior parte da malha é constituída de estradas secundárias, daquelas que acompanham os contornos naturais do terreno sobre o qual avança. Evidentemente, o nível de investimento aqui é outro.


Nas regiões serranas, o problema é agravado pelo fato de que as trilhas naturais que deram origem às estradas vicinais são compostas por elevações que se alternam com vales. Mamãe natureza as fez assim, e isso torna as estradas que as serpenteiam bastante sinuosas, além de detentoras de desníveis significativos, gerando abismos perigosos. Como mirante, é bonito; mas como via de transporte, é inspiradora de cuidados.


A intensidade do fluxo, por vezes, justifica o alto investimento para construir rodovias que rompem as barreiras naturais, como acontece com a Floriano Rodrigues Pinheiro e, principalmente, com a via Imigrantes, que leva e traz da Baixada Santista. Para quem não a conhece, foi construída na parte mais escarpada da Serra do Mar, de modo a emular uma daquelas modorrentas estradas de planície: reta e com vistas ao infinito. Lembro-me de como, quando criança, meus familiares enchiam até a tampa a Kombi do meu tio para descermos a tal serra pela estrada velha de Santos, que hoje só se percorre a pé e de bicicleta. Sem cinto, sem faróis e com crianças no chiqueirinho do porta-malas, dançando pelas curvas fechadas, com muito movimento e nenhum juízo. Eram outros tempos, de muitos acidentes. A falta de estatísticas não permite a comparação, dificultada também pelo aumento inacreditável da quantidade de veículos no Brasil (lembro que, em 1978 ou 1979, o governo militar arrotava a vitória que representava a construção de 1.000.000 de carros. Hoje, esse número é semestral), mas o fato é que, decepando morros, furando montanhas com túneis, plantando pilastras copadas com viadutos e emergindo pontes do mangue, a via Imigrantes, um colosso da engenharia e da tecnologia, tornou o Caminho de Santos um verdadeiro troglodita, e, com certeza, poupou muitas vidas.

Só que não dá para fazer isso com qualquer estradinha que ligue São José de Baixo a São José de Cima. São vias necessárias à vida local, mas que têm fluxos de dez, doze, quinze carros por hora. Por isso mesmo, muitas vezes essas estradas nem mesmo são asfaltadas, já que não pagam a pena do investimento. A boa terra batida é relativamente tranquila para andar em tempo seco.


Óbvio que, em termos de proteção, as estradas de chão são ainda mais desprotegidas que aquelas asfaltadas. Em geral, é a rua e o precipício, raras vezes guarnecidos por uma cerca de arame farpado que não tem o intuito de segurar nenhum carro, apenas demarcar territórios.


O problema maior é nos tempos de chuva. Tenho um carro com DNA asfáltico, um sedã de quatro portas com motor pouco potente, pneus estreitos, propulsão e tração dianteira, com as rodas traseiras servindo de mero apoio à carroceria. Um carro de cidade, em suma, pago em infindas prestações. Ainda assim, com muito cuidado e contando com um bom protetor de cárter, atrevo-me em inúmeras estradinhas de terra, munido de atenção e paciência. É claro que não me atreveria a me enfiar na terra em plena chuva; o guaio é quando você já está enfiado quando começa a precipitação. Nesses casos, as “boas maneiras” mandam achar um lugar seguro e lá permanecer, mas é evidente que nem sempre isso é possível, e o cuidado redobra: evitar os baixios e atoleiros, procurar as faixas de pedregulhos, não travar as rodas, essas coisas.


Dadas todas essas condições, seria verdadeiramente desejável que todos os motoristas que trafegam por vias secundárias se confederassem em uma espécie de irmandade pela segurança de todos. Mas não.

As rodovias de alto fluxo possuem limites de velocidade que variam de 100 a 120 Km/h. Nas estradas de serra aqui na Mantiqueira esse limite é bem abaixo: 50 Km/h em média. Só que muitos motoristas parecem não perceber a diferença, e querem aplicar velocidades de autobahn em picadas com mania de grandeza.

Cinquenta por hora é pouco? Para mim, sim; e até admito que burlei esse limite muitas e muitas vezes. O problema é quando você, já acima dessa velocidade, percebe que há um contribuinte colado em seu porta-malas, com farol alto ligado e tenteando de um lado e de outro. E, o que é pior, muitas vezes seguidos por uma fila, comprovando que a prática é comum. Se eu posso, coloco-me na faixa do acostamento e espero toda a manada passar, retomando o ritmo tranquilo de minha viagem. Mas isso pressupõe a existência do acostamento, o que nem sempre é real.


Neste caso, escolho o melhor lugar possível, longe de curvas cegas, e diminuo ainda mais minha velocidade, permitindo ao afoito diabinho fazer sua bobagem da maneira menos arriscada possível. Houve até mesmo momentos em que optei por adentrar o acesso de um sítio qualquer para aplacar a ira de algum motorista especialmente feroz. Acham-se autênticos Villeneuves; pesquisem no YouTube para ver como Villeneuve acabou.

Não há garantia de que os carros estejam em perfeitas condições. Quem verifica a calibragem dos pneus, alinhamento dos faróis, espessura das pastilhas todas as vezes que vai para a estrada? A coisa se torna especialmente dramática em condições adversas: noite, neblina, chuva.


Há sempre algum engraçadinho para dizer e tentar provar que é tão habilidoso em qualquer tipo de piso. Não é. As estradas não são sempre iguais, os veículos não são sempre iguais, as pessoas não são sempre iguais. Há imprevistos: óleo na pista, pneu que fura, deslizamento de encostas. A velocidade máxima de uma rodovia é pensada justamente para haver uma margem de reação dos motoristas a estas situações imponderáveis. Transpor essa barreira não é só temerário, é irracional. E, se somos animais ditos racionais, por que fazemos isso?

Vejamos os vários fatores. O mais simples faz supor uma pressa. Eu, em minhas viagens, estou passeando. Se eu chegar dez minutos antes ou dez minutos depois ao meu destino não fará diferença alguma. Isso não é verdade para todo mundo; há gente que precisa marcar ponto, comparecer a reuniões, n motivos. O problema continua não sendo meu, mas passo eu também a correr riscos. As pessoas justificam seus atrasos com intrincadíssimos enredos, mas o fato é que a questão é só de falta de responsabilidade com horários. E tenta-se descontar a perda na estrada, o que não é bom.

Mas creio que essa justificativa é insuficiente. Há alguns casos em que temos uma questão de autoafirmação, ou, como diria meu amigo Bubu, “síndrome do pinto pequeno”. Ele dizia que todas as vezes que você ouvir algum filho da puta feliz proprietário com aquelas bazucas sonoras instaladas em seus carros (e que nunca tocam Beethoven), pode abrir a braguilha que lá estará a lastimável minhoca. E o excesso na ostentação seria uma espécie de substituição afetiva à exiguidade dimensional do membro. Quem tem pinto grande mostra o pinto grande e se dá por satisfeito. Não sei como o Bubu obteve dados para corroborar suas teses, e mesmo sabendo que não é o tamanho, mas a dureza que faz a diferença para o prazer do parceiro, aceitá-las-ei como razoáveis. Bubu explica.

Tudo isso para dizer que é extremamente raro ver abusados do volante no seu carro a fazer merda sozinhos. É gozado. Entendo que isso seria mais comum em jovens, mas não é muito difícil de ver barbados e carecas no meu retrovisor. O que é difícil é não ver alguma companhia, especialmente feminina.

Mas o mistério ainda se mantém quando vemos gente que normalmente é ponderada tomando esse tipo de atitude. Gente tranquila, sem atraso, bem resolvida com suas limitações e tamanho do pênis (ou da vagina – mulheres também são aptas a fazer merda) apronta das suas às vezes. O que tira dessas pessoas a noção de linha que não deve ser saltada? A resposta vem de um aditivo químico extremamente comum: o álcool.


Sim, meus caros. A lei seca, apesar de um bom começo, tornou-se um retumbante fracasso. Não só aqui, mas especialmente nestas terras altas, a galera gosta de dar um tapa no beiço, notadamente os turistas, pelos mais variados motivos. Há o romantismo dos vinhos que acompanham os fondues. Há a imensa variedade de cervejas artesanais produzidas em quase todas essas cidades. Há o fato de estarmos pegados ao sul de Minas e termos tradição em cachaças. Há um frio à espera de um bom conhaque. E há doces que só um licor bem forte consegue dar guarida.


Esses exemplos que dei acima, presenciei todos. E em todos, absolutamente todos, havia gente que enchia a lata para, logo em seguida, tomar o comando de seus automóveis e brincar de ser piloto. Gente que, como eu disse, não ofereceria nenhum tipo de risco estando sóbria, e que, mesmo bêbada, não causaria problema fora da estrada.

Não sou um purista. Eu gosto de tomar minhas biritas, como já falei tantas vezes neste espaço (aqui temos um exemplo), e também às vezes passo do ponto, mas, como já comentei neste texto, seja por medo da lei, seja por uma disposição ética, após a lei seca não mais dirigi, por mais que me sinta em condições de fazê-lo. Nunca dá para saber quando aquela fina linha é saltada. 

Todo mundo que dirige bêbado se acha em condições de consegui-lo. E a lei não tem condições de avaliar qual é o ponto em que uma pessoa começará a ter os sentidos obnubilados. Por isso, ela está certa em não permitir tolerância. Mas as pessoas tendem, cada vez mais, a perceber seu relaxamento e a burlá-la.

Soluções são difíceis. O ideal seria o salto ético, mas os exemplos que vêm de cima, aqueles que realmente são candidatos a se transformar em paradigma, são ruins. Enquanto isso, que se aperte novamente a fiscalização. Se beber, não dirija, ou aguarde a metabolização do álcool pelo seu organismo. São cidades lindas, que tem muitos atrativos que podem ser visitados a pé. Uma cervejinha na hora do almoço não atrapalhará seu retorno ao cair da tarde.

Por fim, dois arremates rápidos. O fenômeno do abuso na direção e do álcool não é exclusividade desta região. Quer ficar verdadeiramente horrorizado? Vá a São Roque.

E, como neste epílogo falei só de problemas, pode dar a impressão de que eles preponderaram na viagem. Não é verdade. São todas cidades bonitas e acolhedoras, com histórias interessantes contadas por pessoas interessantes, o que se torna ainda melhor quando você tem alguém interessante ao seu lado.


Não é verdade?

Recomendação de leitura:

Vou recomendar fortemente a leitura de uma lei: o Código de Trânsito Brasileiro. Nesses tempos de abrir o coração para os riscos enfrentados, é possível perceber que o brasileiro médio não o conhece muito bem. Antes de reclamar das multas, é bom saber o que pode ocasioná-las.

BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Edipro, 2004. Disponível em www.planalto.gov.br/ccvil_03/leis/L9503.htm. Acesso em 15.07.2017.

Recomendações de visita:
Recomendarei também, como de hábito, a visitação de cada uma das localidades por onde passei nesta jornada. As distâncias e rotas sempre dizem respeito à cidade de São Paulo.

Monteiro Lobato – 132 Km – Via Dutra até a saída 152 seguir até a Rodovia Monteiro Lobato

São Francisco Xavier (distrito de São José dos Campos) – 152 Km – Via Dutra até a saída 152 seguir até a Rodovia Monteiro Lobato. No centro de Monteiro Lobato, acessar a Estrada Vereador Pedro David.

São Bento do Sapucaí – 194 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123). Seguir até a SP-046 (Rodovia Osvaldo Barbosa Guisardi), em Santo Antonio do Pinhal. Entrar na SP-050 (Rodovia Vereador Júlio da Silva), atravessar a Divisa SP/MG em Sapucaí-Mirim e a Divisa MG/SP até São Bento do Sapucaí

Sapucaí-Mirim – 180 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123). Seguir até a SP-046 (Rodovia Osvaldo Barbosa Guisardi), em Santo Antonio do Pinhal. Entrar na SP-050 (Rodovia Vereador Júlio da Silva), atravessar a Divisa SP/MG

Campos do Jordão – 175 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123).

Santo Antonio do Pinhal – 173 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123). Seguir até a SP-046 (Rodovia Osvaldo Barbosa Guisardi), em Santo Antonio do Pinhal.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Navegar é preciso viver - 6ª ancoragem: Santo Antonio do Pinhal e a solidão de quem observa o frio

Olá!


Como já falei nos outros textos desta epopeia, tivemos em Santo Antonio do Pinhal um pouso seguro. Em outras viagens, procurávamos portos ao sabor do vento, mas o preço atrativo e a posição central em relação ao mapa de nossas pretensões fizeram com que fechássemos questão sobre hospedagem. Claro que essa atitude fez com que muitas idas e vindas se desenhassem, e não partimos para conhecer os recantos desta cidade em um único dia. Portanto, decidi deixá-la por último, mas não em último (acho que falei isso em algum lugar por aí).

Pinha, pinheiro, pinhão... Tudo isso dá um pouco de reflexo sobre o que significa o “pinhal” que guarnece o nome da cidade. Tecnicamente, é uma determinada extensão de terreno onde são abrigados numerosos pinheiros, na mesma relação laranjeira-laranjal, bananeira-bananal e outros. Seu produto é o pinhão, que tem um sem-número de utilidades culinárias, mas que tem seu preparo mais comum sendo simplesmente cozido com sal. A cidade tem intenso comércio do acepipe, como pudemos ver em ruas, estradas e estabelecimentos.


O pinhão é tão importante para a economia local que, além de ajudar-lhe a construir o nome, ajuda-lhe a construir a fama, e tivemos a oportunidade involuntária de pegar a festa do pinhão realizada na praça do Artesão, como, aliás, também ocorria na cidade de Campos do Jordão.


O mascote da festa é um simpático pinhãozinho, que deve fazer a alegria das crianças. Porém, para quem lembra do desenho South Park, há uma incômoda semelhança com um personagem chamado Soretinho. Aplicar um Google, no caso, haverá de sanar as dúvidas.


Gracinhas a parte, a festa tem comida e bebida para lamber os beiços, levando em conta os ingredientes mais usados: pinhão e truta. Além disso, as seis cervejarias locais armaram uma barraca com suas diversões etílicas. Abaixo, um cuscuz de truta acompanhado de caldo de feijão e pimenta, em combinação daquelas que nos faz ainda acreditar na humanidade.


No dia seguinte, fomos até uma estação de trem histórica, chamada Eugênio Léfebvre, que ainda funciona e que faz ligação turística com Campos do Jordão. Frustração: é preciso comprar passagem com antecedência de não sei quantos dias para fazer o passeio (caro). Paciência. Contentamo-nos em conhecer a gare e seus bolinhos de bacalhau.


Todo o complexo é composto por edificações centenárias, e que estão quase todas em bom estado de conservação, com a vila ferroviária e uma subestação de energia. Mesmo as que estão ruins passam por processo de restauro. Tem a tradicional lojinha de recordações e alguns jardins ao redor.


A linha passa pelo meio da mata local, serpenteando por altitudes acima de 1000 metros. É uma estrutura típica de trens movidos a energia elétrica, embora já tenham havido locomotivas e trens a óleo que operaram por aqui.


O local possui também um mirante, dedicado a Nossa Senhora Auxiliadora. Uma imagem linda para meu gosto, que reina em meio a quantidades miríficas de borboletas, apontando para o horizonte que se vê à sua frente.


Que, por sinal, é esse, de onde é possível enxergar um pouco da fauna urbana da cidade de Pindamonhangaba. O que faz de vento nesse lugar é coisa para deixar doente quem gosta de empinar pipas – não, não é, o vento é forte demais.


Novamente à noite, descobrimos uma casinha que serve sopas, o que é muito adequado para as noites frias de então, em um ambiente do tipo familiar. Tão familiar que você pode ver até mesmo as sopas e cremes sendo preparados. Abóbora, palmito, caldo verde... Tomamos de todas. Chama-se Cebola e Salsa, e recomendo (sem ganhar tostão).


No dia seguinte, fomos visitar o Ecco Parque, por recomendação da Dona Lúcia, de Monteiro Lobato (vide na 1ª ancoragem destes relatos). Tratava-se, até não muito tempo atrás, de um morro pelado, totalmente consumido pela exploração de gado. Os proprietários atuais modificaram-no para um conjunto de jardins onde se destacam os diversos ambientes temáticos.


Esta cascata de pedras, por exemplo, tem seu material trazido diretamente de São Thomé das Letras, região de Minas Gerais famosa pelo aspecto... místico. O ruído da água caindo nas pedras produz um leve cantar, como se fosse um daqueles mensageiros dos ventos das feirinhas de artesanato.


À medida que se sobe o morro, percebe-se o cuidado com que o espaço foi engendrado. Além dos jardins em si, há painéis explicativos de cada um deles e um guia (o Eduardo, no nosso caso) que vai orientando tudo, tim-tim por tim-tim. Na foto abaixo, por exemplo, temos um jardim de bolhas, técnica inspirada em modelo inglês.


Outros ambientes apostam mais no universo de cores do que na composição arquitetônica. A festa é feita por colibris, abelhas, mamangavas e borboletas, com suprimento de néctar garantido por um bom tempo.


Bem no cume da colina, um gazebo de bambus se propõe a ser um espaço de reflexão, especialmente voltado para a harmonização entre a natureza da flora e a construção humana das paisagens. Fica lá no alto, já bem longe da estrada e cercada de ervas aromáticas. Poderia mostrar aqui muitos outros jardins, como o japonês, o desértico, as helicônias, mas ia ficar maçante.


Outro dia, outra paisagem. Pouco antes da virada de tempo que tão tristemente relatei em outros textos desta série, visitamos a cachoeira do Lageado, situada em bairro de mesmo nome.


Imagino que o nome se deva à quantidade de pedras que fazem as vezes de platô, onde é possível tomar um bom solzinho para se secar. São quedas pequenas, que agradam a visão e a pele ansiosa por refresco.


A última queda é expressivamente maior, e, aos seus pés, há uma boa piscina natural. Estando em uma propriedade particular, cobra-se uma pequena taxa para uso, com o lado bom de se haver uma estrutura mínima para se livrar de certos aperreios.


À noite, o tempo virou e esfriou muito. O problema não é o frio, mas a contínua garoa que produziu muita limitação à visita de espaços naturais. Mas faz parte. Fomos passear pela cidade, que parece uma Campos do Jordão em ponto menor, o que tem os seus aspectos positivos. Há fontes que estão em reforma, como aquela que leva o nome do padroeiro, situada à beira de um riacho. As ruas da margem dão um certo aspecto de Targa-Florio* a este canto da cidade.


Também visitamos as igrejas da cidade, para não perder o costume. Sempre se pode extrair dados históricos e arquitetônicos interessantes. Em uma das pontas da região urbana, temos a igreja de São Benedito. Aproveitando do relevo típico da região, dá para ter uma boa vista dos arredores.


O mesmo se aplica ao morro do Cruzeiro, que possui a cruz magna do município. Fizeram uma interessante arquitetura de praça, apesar de estar bem no alto...


... como se pode observar pela vista da praça do Artesão, a mesma de onde falei que se dava a Festa do Pinhão.


E também tem a igreja matriz, dedicada a (oh!) Santo Antonio. Além dos habituais anteparos de igrejas do interior (adro com praça, mastro do divino, etc.), temos aqui também uma fonte luminosa, que fica festejando os fins de semana e outros dias de folga e de guarda.


No último dia de viagem, uma rápida passagem pela Bodega, um dos lugares mais famosos de Santo Antonio do Pinhal. Trata-se de um pequeno complexo que inclui vendas de roupas, artesanatos, plantas, algumas lagoinhas e bancos para descanso...


... além de muita, mas muita cachaça, como era de se esperar. São mais de quarenta tipos, incluindo as purinhas, misturas com frutas, macerações com ervas e até mesmo com pimenta, devidamente advertidas para uso como tempero. A patroa saiu zonza de lá; eu, motorista, não.


Na última noite antes do nosso regresso, tive um momento de epifania. Minha esposa foi tomar um banho antes de dormir, como é seu hábito. De saco cheio da televisão, e sem muita gana de navegar pela internet com o celular (coisa que detesto), fui curtir um pouco do frio na varandinha do apartamento que ocupávamos. A foto abaixo é dele, só que tirada durante o dia.


No silêncio da madrugada que se aproximava, e com o frio que ameaçava rachar meu rosto, achei que deveria fechar tudo e esperar deitado. Mas um véu de melancolia estranho me tomou antes que eu o fizesse, ao avistar a iluminação distante do morro em frente a mim. Como se fosse possível naquele pequeno lapso temporal, tive uma espécie de fuga da minha percepção e me senti na mais bem-acabada sensação de solidão. Eu sentia-me absolutamente isolado do mundo, como se apenas eu e a aragem gelada estivessem presentes.

Não sei muito bem dizer o que foi isso. Já falei anteriormente sobre a solidão como doença da linguagem, mas sob outro viés. Desta vez, a coisa é mais metafísica, quase mística. Meio que lembrei de tanta coisa que perdi nos últimos tempos: minha mãe, meus padrinhos, meu compadre. Lembro dos amigos que não cuidei bem, e que sumiram do meu contato. Lembro dos meus afilhados, como cresceram e como cada um se enveredou pela vida, todos ao seu modo. Lembro também de quando minhas crianças ainda eram pequenas, e eu tinha fôlego suficiente para correr atrás de uma bola, ensinar a andar de bicicleta, jogar maçaneta, pular sela. Aos poucos tudo isso foi indo parar na arca de minhas memórias. Algumas dessas coisas, evidentemente, nunca mais sairão de lá; outras, não tenho dimensão exata de como e se poderão ser revividas. A memória é isso mesmo: um grande baú de ossos, já diria Pedro Nava.

Na verdade, acho que tive um breve encontro com a minha existência, e, como costuma ocorrer com tanta gente, não consegui compreender muito bem o sentido de tudo isso. O homem vive um grande drama, como já postulava o psicólogo humanista norte-americano Rollo May: o de ser sujeito e objeto ao mesmo tempo. Isso é um papel da autoconsciência, a capacidade humana de se enxergar a partir de fora – algo como uma alma que sai do corpo para observá-lo. Só que isso não é uma predisposição espiritual. É um trabalho de decifrar a si mesmo, constantemente. E não é possível decifrar a própria existência sem que se tenha a noção de que há um mundo que nos rodeia, no qual temos um papel. Sim, somos sujeitos, porque é a partir de nossa visão que conseguimos compreender o mundo; sim, somos objetos, porque NOSSO mundo só é mundo porque fazemos parte dele.

Teimamos muito em nos reconhecer unicamente como sujeitos todas as vezes em que projetamos o nosso futuro. É o que os educadores modernos costumam chamar pelo pomposo nome de protagonismo. Mas quando as coisas não dão certo como queríamos, temos a tendência de nos sentirmos objetos: do azar, das maldições, da má vontade universal contra nós. De titeriteiros, passamos a marionetes, como se não estivéssemos inseridos na mesma relação. Só que não é nada disso – não há conspirações, apenas somos fadados a determinado destino, sem que se necessite atribuir isso a uma divindade, mas apenas às contingências das quais fazemos parte.

Pensando com a cabeça existencialista, temos a necessidade de ser livres. Isso implica em fazer escolhas por si mesmos até quando não queremos fazê-lo. Com um agravante: somos responsáveis por nossas escolhas, pelo que trazem para nós mesmos e para o que isso terá de reflexos para a família, a comunidade, o país, para o universo inteiro. A personalidade que se conscientiza disso tem a dimensão chocante da importância de cada um de nossos atos. E isso é uma máquina de fabricar angústia. Só que isso não é uma coisa de visionário, maluco ou neurótico. É coisa que atinge a todos.

Ter angústia é, dessa forma, próprio do ser humano. E o conforto que May nos traz é que não há porque se sentir menores quando sofremos. O sofrimento faz parte do pacote que “compramos” quando nascemos, e, se apesar de todas as dores ainda queremos viver, é preciso entender que não há nenhuma contiguidade entre doença e fracasso. A doença é uma perturbação, uma desordem, uma limitação em uma normalidade. Se dissabores são encarados como algo normal, da qual todos somos passíveis, não podem ser equiparados a moléstias. Nada se perde quando encaramos um problema, e muitas vezes é só no aparente vazio do insulamento que podemos fazer um reconhecimento das coisas que nos afligem e como podemos ser resilientes a elas. Ou mesmo reconhecer a nossa incapacidade de continuar a buscar significado para um universo que não é mais o nosso.

Ao final, pode-se perder a fé em Deus, a esperança na humanidade e o amor ao próximo, e se chegar a uma completa e repleta solidão, onde só estamos nós e nós mesmos. Uma oportunidade de reflexão como nunca existiu, mas sempre ladeada pela companhia pouco visível de uma depressãozinha marota, daquelas que tira o restante de significado da vida. Não deixa de ser uma espécie de preparação para a morte, um tipo de autodefesa que vai nos afastando da vida, de maneira contraditória... A própria angústia pela vida que se esvai aos poucos é uma maneira de não encarar o fim com desespero, apenas tristeza.

Parei de escutar o ruído do chuveiro. Fechei a janela e fui preparar um chá para tomar com a patroa, acho que dessa vez de camomila.

Recomendações:

Rollo May é um dos principais profetas da psicologia humanista-existencialista, abordagem que enfrentou o mecanicismo dos behavioristas e o imperativo do inconsciente dos psicanalistas. Desta forma, é uma escola que costuma dar muita voz ao próprio sujeito da análise, e, como o próprio May dizia, o sofrimento não é doença, o que tira o aspecto patológico da análise. Recomendo a obra abaixo:

MAY, Rollo. O homem a procura de si mesmo. São Paulo: Vozes, 2002.

Também tem um vídeo. É um vídeo institucional. Portanto, só espere ver belezas e guloseimas. Mas chamou-me atenção pela beleza e singeleza da música que lhe faz fundo. Vale a pena fazer uma pequena audição.


terça-feira, 11 de julho de 2017

Navegar é preciso viver - 5ª ancoragem: Campos de Jordão e a música que se abraça à metafísica

Olá!


Chegava-se próximo do feriado prolongado do Dia do Trabalho. Como se sabe, cidades turísticas costumam encher até a tampa nesses momentos, e, dado o frio repentino e inesperado destes dias, seu maior atrativo, ir a Campos do Jordão talvez não fosse uma boa ideia. Mas não há como ir ao sul da Mantiqueira e deixar de passar por lá. Portanto, eu e a patroa convencionamos a sexta-feira como dia bem adequado para subir ao ponto mais alto da serra (e de todo o estado de São Paulo também), com a intenção de não voltar tão tarde, e pegar um fondue no retorno a Santo Antonio do Pinhal. Acontece que a vida tem dessas coisas, e tivemos um bom motivo para ficar até tarde na cidade, como veremos daqui a pouco.


Campos do Jordão é bem maior que todas as cidades circunstantes, e, como tal, possui suas vantagens e mazelas. No primeiro tópico, é preciso dizer que quase tudo naquele lugar é muito bonito, sendo que o próprio portal de entrada já é considerado, por si só, um atrativo turístico.


Mas é um lugar serrano, como eu já falei, e a neblina é algo que fica gravado no subconsciente quando se vai para lá. Mais que isso, pegamos um dia de nevoeiro espesso desde cedo, e muitas das fotos que ornarão este texto estarão devidamente preenchidas por estas partículas de água disseminadas no ar, como no valezinho abaixo. Outrossim, o mesmo fenômeno ocorrido em São Bento do Sapucaí e Sapucaí-mirim se deu por aqui: tudo o que possuísse mais de cinco metros de altura estava invisível. Com isso, teleférico do Morro do Elefante e Pedra do Baú estavam riscados do meu mapa turístico particular.


A arquitetura de Campos do Jordão é bem conhecida: influência europeia. Mas, ao contrário dos sobradinhos portugueses da Vila Maria e das casas operárias italianas da Mooca, o que temos aqui são as construções de tipo enxaimel, típicas da Alemanha, Suíça, Áustria, Bélgica e outros países do norte da Europa. São caras prá burro, mas lindas de morrer.


Fomos dar umas bandas pelo bairro do Capivari, especialmente festivo naquele dia, em vista da festa do Pinhão (que também ocorria na vizinha Santo Antonio do Pinhal). O aspecto das pessoas encapuzadas dava a dimensão da temperatura de então.


Imaginávamos que, caso quiséssemos comprar algum tipo de roupa, teríamos os olhos furados, mas não. Sim, isso era perfeitamente possível, mas com um pouco de paciência foi possível escavar roupas de lã com um preço nem tão para Deus, nem tão para o diabo.


Ao cair da noite, todos os restaurantes de Capivari acendem seus réchauds; tanto os pequenos, para derreter os fondues, quanto os grandes, para manter nossos enrijecidos cadáveres razoavelmente aquecidos. Além dos já mencionados queijos, há também algumas churrascarias e outros típicos da culinária alemã.


Na região do Alto da Boa Vista, visitamos o Palácio Boa Vista, residência de inverno do governador de São Paulo. Foi construído e inaugurado por Ademar de Barros, que, muito antes de Paulo Maluf, já carregava o pouco honorável epíteto de “rouba mas faz”. Óbvio que nosso ex-governante o fez para uso próprio, a toque de caixa, sob o esfarrapo de que se tratava de um lugar digno para um cargo digno, e que a casa não era para ele, mas para todos os governadores em exercício. Bem... a parte disso, a casa é realmente muito bonita, repleta de obras de arte, só que é proibido fotografar seu interior, por alegadas questões de segurança.


Na sequência, fomos ao Museu Felícia Leirner, no mesmo espaço físico onde fica o auditório Cláudio Santoro, aquele do célebre Festival de Inverno. O lugar fica situado em um morro de onde se pode avistar com privilégio a Pedra do Baú, desde que não haja tanta neblina.


Felícia Leirner, como explicou o guia do espaço, foi uma escultora polonesa radicada no Brasil, casada com um industrial da área têxtil. Após a morte do marido, passou a se dedicar à arte da escultura, utilizando os mais diferentes suportes e passando por vários estilos, que constituíram fases em sua carreira, refletidas na divisão a céu aberto das alas do museu.


Foi aqui que ocorreu um fato que mudou a rota do meu rolê. O mesmo guia que nos atendeu informou que haveria uma apresentação GRATUITA da Orquestra Jazz Sinfônica naquela noite no auditório. Será que eu me interessaria?


Só que faltavam muitas horas para o concerto, e o jeito foi continuar fazendo visitas a outros locais. Como já havia vindo aqui quando criança, busquei pela memória minhas passagens, e a que estava mais presente era a Ducha de Prata, onde há muitas lojas e uma corredeira um tanto artificializada, além de uma pequena trilha que leva a uma paisagem com menos interferências.


Apesar de ainda ser sexta-feira, a cidade já estava bastante movimentada, como podia ser observado na Vila Abernéssia, no centro. Passamos meio que voando pela igreja matriz, dedicada a Santa Terezinha...


... e pela praça do chafariz, onde, nas proximidades, encostamo-nos para almoçar.


Logo após, fomos à Casa da Xilogravura, um museu particular dedicado a ensinar aos leigos o nobre ofício da impressão. É instalada em uma grande residência do bairro Jaguaribe.


O espaço é simbolizado por um cachorro, como pode ser visto na pedra talhada na entrada do museu.


Qual seu sentido? É que havia um cão, chamado de Chiquinho, que vivia pelas redondezas, virando uma espécie de mascote da casa. Quando morreu, seu corpo foi enterrado no quintal. A pedra é, portanto, uma lápide. Está tudo bem explicado em um memorial do museu.


Xilogravura, para quem não sabe, é uma técnica em que o artista entalha imagens em madeira para embebê-la em tinta e reproduzi-las em papel ou outro suporte, de maneira idêntica a um desses carimbos de repartição pública. É sobejamente utilizada em literatura de cordel, porque é barata e permite a reprodução de várias cópias, mas a técnica também pode ser utilizada para produzir obras de grande tamanho, como várias das que estão expostas.


Tivemos a oportunidade de conhecer o dono do espaço, o escritor e pesquisador Antonio Fernando Costella, que já legou o museu à USP após sua morte. Estava cuidando do transporte de mais uma obra com sua esposa, por isso não quisemos tomar muito do seu tempo.


Bem ao lado da Casa da Xilogravura, fica situada mais uma igreja, essa dedicada a Nossa Senhora da Saúde, bem mais sóbria que a matriz.


Com a proximidade da noite, tratamos de nos achegar novamente ao auditório Cláudio Santoro, desta vez para assistir ao concerto programado. No foyer, ao invés de um mero café, optamos pelas clássicas sopas locais. No caso, de abóbora.


Já na sala de concertos, como pede a voz da mocinha, nenhum uso de celular após os toques da campainha de Moliére, para respeito à nobre arte da música. Um último flash só para registro, já sabendo que versaria sobre este tema no presente texto.


Devo confessar uma completa emoção já nos primeiros acordes da orquestra regida pelo maestro Fábio Prado, que tem como propósito trazer para o formato sinfonia os clássicos da MPB. Não há como comparar a audição de uma orquestra ao vivo com uma gravação. É a mesma diferença de assistir um jogo de futebol no estádio ou na televisão de sua casa.

Não quero usar aqui a expressão “música de verdade”, porque não é meu direito arbitrar o que é arte e o que não é (vide este texto), mas é somente em uma sala de concertos que podemos notar certas características musicais, como a tridimensionalidade sonora, algo impossível com os paredões acústicos dos grandes shows, com o espaço limitado dos barzinhos ou com os individualistas fones de ouvido. Do primeiro, é possível explorar a potência sonora; do segundo o intimismo e, do terceiro, o isolamento. Mas só no auditório temos a percepção das diferentes profundidades que o som musical pode obter. Uma orquestra é distribuída de modo às diferentes intensidades instrumentais fazerem parte do tecido sonoro, nada está lá por acaso. Percebemos, por exemplo, os sons da tuba vindos de uma direção, os dos timbales vindos de outra, e a tapeçaria de violinos guarnecendo todas as partes, como se fosse possível tocá-los. Isso não é possível de obter em estruturas cuja emissão de som seja concêntrica. E é impressionante como isso faz toda a diferença, inclusive na dramaticidade das peças.

Por isso, não é só uma questão de ser música clássica (até mesmo porque, aqui, temos uma adaptação advinda do popular). É um fato que precisa ser presencial para ser percebido. Outra coisa: somente ao vivo conseguimos ter uma dimensão mais exata da importância de um maestro. A regência é imperceptível no som gravado, e subestimável quando vista pela TV, dando aparência de uma tradição ou dogma, e não de um papel realmente vital. Já no próprio auditório, consegue-se entender sua função quase pastoral, de conduzir seu rebanho musical de forma a ditar-lhe o ritmo, a elevar-lhe a intensidade, a conferir-lhe uniformidade, a destacar-lhe o detalhe. Assistir a um concerto é uma experiência única e necessária.

Mas é preciso tentar entender porque as artes, e a música em especial, exercem em nós tanto fascínio. A música, notadamente a instrumental, não pode nos parecer vazia de sentido? Por que dizemos que uma melodia é triste, heroica, irrompedora, cômica, se ela não diz nada e se nos momentos em que ocorrem fatos tristes, heroicos, irrompedores ou cômicos não há nenhuma música em seu substrato? Vamos tentar entender com Schopenhauer, meu filósofo favorito, mas passando primeiro por Kant.

Racionalistas e empiristas viviam às turras desde os fins da Idade Média. Os primeiros diziam que todo o conhecimento partia do intelecto, enquanto os outros achavam que nascia da observação. Kant resolve a charada, dizendo que os racionalistas tinham razão no que diz respeito à estrutura da mente, que tem a capacidade para receber e processar informações, e que os empiristas estavam corretos ao afirmar que a mente não é nada sem conteúdos. Desta forma, o processamento é racional, e o dado é empírico. No entanto, Kant não deixa de dar uma certa primazia ao processo empírico, porque o homem não é capaz de observar a coisa-em-si, o objeto essencial, o noumeno. O que é possível observar é o particular, o acidental, um exemplar existente, o fenômeno. E por que?

Porque todos os homens são, antes de mais nada, indivíduos. E, como tal, possuem uma perspectiva única sobre as coisas, o que não se resume a uma questão de opinião, como pode parecer. Temos todo um ambiente que influencia nossa formação, fornecendo usos e costumes, temos contingências fisiológicas que podem modificar o modo como apreendemos os objetos, e temos um modo particularíssimo de exercer nossa percepção que é simplesmente impossível de ser constatado pelas demais pessoas. Para entender melhor, imagine o que é a percepção das cores. Pense como eu, você, seu vizinho e todas as pessoas do mundo enxergam a cor azul. Será que todos a vemos igual? É perfeitamente possível que aquilo que é azul para mim, é verde para você. Não se trata de um tipo de daltonismo, onde há um erro na percepção de certas cores. Se absolutamente tudo o que é azul para mim for verde para você, então estaremos de acordo que o objeto é azul e pronto, acabou. Mas qual seria a cor-em-si da coisa-em-si? O meu azul ou o seu azul (que para mim é verde, apesar de não notar)? Percebem como é impossível alcançar o noumeno?

A inovação de Arthur Schopenhauer é a seguinte: sendo um materialista convicto, remove qualquer componente idealista da equação imaginada por Kant. Na sua dimensão ontológica, o mundo é regido pela vontade. Já discuti essa questão neste texto, mas é necessário que me aprofunde um pouco mais para as coisas ficarem claras. A vontade, na concepção schopenhaueriana, é a verdadeira essência do mundo. Trata-se de uma força disforme, incontrolável e que não tem outro objetivo a não ser continuar a existir. Não precisamos perder tempo para tentar imaginar como é a vontade, ela é simplesmente inatingível. É dela que partem todos os desejos e impulsos, por mais ilógicos que sejam, já que na sua dimensão não há causalidade necessária, não há tempo transcorrido e não há espaço preenchido, coisas características dos fenômenos.

Como a vontade se manifesta, se ela é cega e informe? Na forma de representação. Todas as vezes que a vontade nos guia para um desejo, ela passa a ser representada pelo mesmo, de acordo com a circunstância fenomênica. Se tenho fome, a vontade toma a representação de uma picanha. Após ser devorada, outra vez a vontade buscará uma representação, agora na forma de rede para dormir; ao acordar, mais uma vez a vontade será representada por outra coisa, e outra, e outra, e outra... A vontade é um ciclo infinito de representações, que se repetirão insaciavelmente até a morte. Captaram que o noumeno e o fenômeno de Kant são a vontade e a representação de Schopenhauer? A novidade está na dinâmica deste último, que coloca materialidade à ontologia do noumeno e à tangibilidade do fenômeno.

Acontece que tudo isso é agonizante. O desejo infinito impulsionado pela vontade não dá descanso para um ser humano, e, passados anos e mais anos de frustrações causadas pela não satisfação dos anseios desta vontade ou pelo tédio de sua concreção, o que resta é a angústia e uma sensação de impotência e irrealização. Como sair desse círculo vicioso? Schopenhauer dá dois caminhos.

O primeiro é a ascese. Schopenhauer era um estudioso de doutrinas orientais, especialmente do Budismo. A prática contemplativa dos monges, para quem é mais desejável um descolamento do mundo do que o enlace vigoroso aos bens e às vaidades, é um modelo a ser seguido. Para resistir aos imperativos da vontade, é preciso voltar as costas às suas representações. É um processo que requer um costume, doloroso a princípio, dada a intensa sensação de perda, mas que aos poucos se solidifica, na forma de indiferença.

A outra chave é a contemplação estética, atingindo seu apogeu com a música. Schopenhauer entende que as artes possuem o condão de fugir do grilhão da vontade justamente por não se focar em causalidade ou temporalidade, necessárias para formar a representação. A experiência estética é uma maneira de fazer uma intuição direta dos sedimentos que ficam por trás do mundo experienciável, sem passar pelo crivo da individuação. De fato, se notarmos que a apreciação da obra de arte tem o viés de escapar do fenômeno que é apresentado diante do apreciador, poderemos perceber o alto nível de abstração que temos como atingir. E a primazia da música vem justamente disso: enquanto manifestações como a arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro e a literatura lançam mão de objetos concretos para suportar seu sentido subjetivo, a música prescinde disso. Seu único ponto de concretude é o som, e nada mais. A música consegue transcender a razão, dispensando a formação de conceitos que, em tese, desvirtuariam o acesso direto à vontade, transformando-a novamente em representação. É como eu já falei mais acima – sem adicionar nenhum tipo de ideia ou linguagem, a música consegue trazer expressão aos mais diversos sentimentos, sem que consigamos explicar o porquê. Justamente porque sintoniza a vontade sem a atenuação da lógica, do sentido, da razão. A música plasma a própria vontade.

Desta forma, enquanto a ascese é uma solução que volta as costas para a vontade, a música a encara nos olhos, mesmo que não seja um fármaco permanente para o problema do sofrimento causado pela sua eterna pulsão. O absurdo da existência, portanto, é atenuado por essa panaceia, e não extinto.

Percebam como Schopenhauer precede um monte de gente. Os existencialistas lhe são tributários pela expressão da angústia. Nietzsche importa e concorda com a vontade nas camadas inferiores da consciência (ainda que mais tarde passe a discordar de sua posição), e Freud traz dele o conceito de inconsciente que rege as ações e desejos. É pouco?

Incluam uma audição em sala de concertos naqueles projetos para fazer antes de morrer, nem que seja para discordar verticalmente de mim. E, se possível, aproveitem para aquecer o estômago e o coração na fria região da Mantiqueira.

Recomendação de leitura:

Já recomendei anteriormente o capolavoro de Schopenhauer, por isso recomendarei outra obra, na verdade um extrato de seu imenso livro Parerga e Paralipomena, em que são reproduzidas suas aulas na Universidade de Berlim relacionadas à arte.

SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2003.