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quinta-feira, 15 de março de 2012

Sobre o panóptico e o novo papel da vigilância na obtenção dos desejos

Olá!

Bem no finalzinho de 2011, tivemos uma decisão de bom senso do governador Geraldo Alckmin (por incrível que pareça). Ele vetou uma lei estadual, já aprovada na assembléia legislativa, que proibia os motociclistas das cidades de mais de um milhão de habitantes de conduzirem “caronas” de segunda a sexta, sob o argumento de que muitos dos assaltos são cometidos em dupla e em motos, para garantir eficiência e fuga rápida. A punição prevista para o descumprimento era de multa – AVÁ.

Enfim, é um dos muitos métodos utilizados para que o detentor do poder possa auferir mais verbas e devolver menos benefícios. Não atribuamos aqui esse nefando privilégio à nossa indigitada assembleia, já que não é sua prerrogativa única dar exercício ao poder e utilizar de seus instrumentos. Os governantes são assim. Acham que ao estalar de seus dedos um deus ex machina surgirá do nada e solucionará, sem projeto algum, problemas que não se sanam sem uma grande dose de boa vontade e adesão popular. Pode ser revoltante, mas na maioria das vezes aceitamos compassivos estas interferências em nossos pobres campos de ocupação do espaço público, de nossas manifestações e de nossa liberdade, por mais imbecis que sejam. Por que essa cabeça baixa?

Para que possamos compreender melhor isso, é preciso captar o conceito filosófico de estrutura, que redundou em uma escola de pensadores conhecidos por (oh!) estruturalistas. Estes pensadores não formaram uma massa coesa e concorde, como os positivistas e pragmáticos, por exemplo, mas em comum eles entendiam que o existencialismo, então em voga (corrente que pincelo nestas mal traçadas linhas), possuía um erro em seu bojo: o homem não é tão livre para escolher, como pensavam seus arautos, já que nem toda escolha é feita conscientemente, dependendo muito de uma série de predisposições de natureza psíquica, social e cultural (as ditas estruturas), que acabam por influenciar seu modus vivendi, de modo que o sujeito, tão caro aos existencialistas, passa a se constituir de uma parte de uma relação, e não em seu centro.

Um bom exemplo do que seriam as estruturas nos é dado por Claude Levi-Strauss, antropólogo belga que trabalhou como professor e pesquisador no Brasil. Grande pensador, ele percebeu que muitos ritos e costumes se repetiam em diferentes culturas, ainda que estas nunca tivessem entrado em contato. É o caso da mitologia: em todas as partes do mundo, independentemente da evolução de uma etnia, busca-se dar explicação aos fenômenos que não são experienciáveis. Cria-se, portanto, um registro histórico baseado na suposição, que serve de fundamento para a construção de uma realidade. A princípio, poderia parecer uma mera coincidência que todos os povos criem suas próprias mitologias, mas não é. Isso é estrutural, faz parte da constituição da coletividade humana. Outro exemplo de estrutura é relativo aos parentescos: um guia oculto (a estrutura) leva os grupos humanos a disseminar suas características pelo mundo todo. Como se deseja expandir (inconscientemente e coletivamente) o patrimônio genético ao mais longe possível, surge a censura ao incesto, atitude restritiva desta expansão. E há pouquíssimas etnias que o admitem, fazendo crer que essa restrição é estrutural ao ser humano. As estruturas, portanto, seriam importantíssimas na constituição e no desenvolvimento da espécie, muito mais do que o individualismo existencial poderia levar a crer.

Mas o estruturalista que nos importa neste momento é Michel Foucault. Ele lidou com a questão das estruturas de uma maneira muito mais política do que antropológica, mas o fez de forma genial. Para explicar as estruturas de coerção, repressão e vigilância, e por extensão do exercício da dominação, lançou mão de um modelo de presídio criado pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham, chamado de panóptico.


Que seria essa coisa? Bentham imaginou que o modelo de presídios que ocultassem seus ocupantes era ineficaz, como as masmorras, já que a vigilância sobre seus atos ficava prejudicada. Efetivamente, a articulação de revoltas e motins tornava-se facilitada pela ocultação dos atos dos presos. Melhor seria dar uma guinada total no sistema, fazendo com que os presidiários ficassem totalmente expostos. A vigilância seria levada a cabo de maneira surpreendentemente simples: uma torre erigida no centro de um edifício em forma de anel, dividido em compartimentos individuais. As paredes dianteira e traseira de cada um destes compartimentos seriam feitas de material transparente, de modo a ser possível observar todas as ações dos ocupantes. As janelas de observação da torre seriam protegidas por persianas entreabertas, de modo a se tornar impossível a identificação de quem observa, ou a quantidade de vigias alocados, ou mesmo se há algum atalaia a contemplar nossos pobres-diabos. Um sistema eficiente, barato e possuidor de uma característica fascinante: mesmo inexistindo vigia na torre, há a impressão de vigilância, ou seja, de coerção.

A grande sacada de Foucault foi perceber o panóptico como estrutura. Sua aplicabilidade não se dá apenas em sistemas penitenciários, mas em toda atividade na qual se deseje exercitar o poder de coerção, principalmente baseando-se em seu efeito psicológico: o principal não é vigiar, mas dar aos indivíduos a sensação de que estão sendo vigiados. Isso é aplicável, por exemplo, nas fábricas, manicômios, escolas, repartições públicas, e mesmo nas ruas, nas praças, nos parques, de modo a causar o arrefecimento da vontade de subverter. Dessa forma, temos uma inigualável ferramenta ao exercício do poder.

Os sistemas tirânicos e ditatoriais procuram levar essa vigilância aos extremos, como podemos observar no decorrer da história: em nosso período de governo militar, por exemplo, observamos o cerceamento da liberdade em instâncias físicas que ocasionaram prisões, torturas e assassinatos. Vimos também a modificação dos métodos educacionais, transformando uma educação de molde humanista em um sistema eminentemente pragmático e cheio de loas ao Estado. E, principalmente, assistimos à implantação da censura, que buscou limitar drasticamente a liberdade de pensamento. O resultado está aí, para todo mundo ver: uma sociedade despolitizada e acrítica, incapaz de identificar adequadamente as propostas que podem trazer, de fato, o bem comum. E nascem fenômenos eleitorais como os Tiriricas da vida, um nome eleito como protesto, mas um protesto tolo, porque tem direito a voto no congresso e que carrega consigo um amplo sortimento de políticos que queríamos ver muito longe. Ou seja, também nos meios democráticos podemos perceber a onipresença do poder coercitivo.

Também na literatura encontramos obras que versam sobre as estruturas de dominação e poder, como o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, Sombras de Reis Barbudos de J. J. Veiga e 1984 de George Orwell. Neste livro, encontramos a censura e a coerção levadas ao paroxismo, através da vigilância extrema e da manipulação da história. Os habitantes da terra retratada estão reduzidos às funções que o estado totalitário quer deles, de forma a garantir a manutenção do poder através da repressão e da forja das consciências. Para tanto, o sistema de vigilância é total – mesmo no interior dos lares os habitantes são assistidos incessantemente por uma entidade abstrata, o Grande Irmão.

Falar de 1984 remete, invariavelmente, aos reality shows modernos, e é impossível não falar daquele de maiores índices de audiência, o Big Brother Brasil.

Este programa é tão assistido que é necessário analisá-lo filosoficamente. Se não passasse tanta impressão de que seus participantes têm atuações tão calculadas, seria possível fazer um belíssimo estudo antropológico, mas parece-me razoável levantar a seguinte questão: se a vigilância extrema é um atentado à liberdade, tão desejada pelo espírito humano, por que tanta gente deseja ser confinada na casa e ser refém de milhões de olhos sequiosos por devassar suas intimidades? Por que desejam ser colocados no panóptico?

O prêmio almejado é uma boa explicação, mas insuficiente. De todos, apenas um ganhará a bolada, e evidentemente alguns dos componentes sabem que não reúnem condições de atingi-la. Para mim, o buraco é bem mais embaixo.

Ao se inserir no programa, os participantes admitem o panóptico e buscam tirar proveito dele. Todos se tornam famosos, uns por mais tempo, outros por menos. Alguns virarão atores ou apresentadores, terão evidência. As meninas mais formosas posarão nuas nas revistas masculinas, em troca de cachês bem altos. Há o outro lado: o próprio público que os assiste. Também este admitirá o panóptico, desta vez exercendo o poder, já que é de seu voto que será escolhido o vencedor e que serão punidos os eliminados. Há ainda mais uma face, formando uma dicotomia - este mesmo público que exerce o poder é aquele que reconhece nos participantes os ideais de perfeição da nossa ditadura da beleza, e vê que existe vantagem em ser manipulado. A mistura da sociedade da imagem com os mecanismos de controle acaba por gerar este fenômeno. Neste ponto, podemos concluir que Foucault acertou na mosca: o panóptico atinge todos os dispositivos sociais, pelo arrefecimento da vontade e pelo reconhecimento da inutilidade de se lutar contra o poder, ainda e principalmente inconscientemente.

Além disso, e apesar disso, o programa serve para que a sociedade mande seus recados. Pincemos um exemplo a partir da temporada 2011.

Nesta edição, houve a participação inédita de um transsexual. O blá-blá-blá para sua inclusão foi que se trata de uma representante de uma determinada camada da população que se viu apenas esporadicamente representada anteriormente. O resultado foi acachapante: inclusão no primeiro paredão e eliminação na primeira oportunidade. A conclusão do programa deu a vitória a uma menina muito bonita, a primeira vez que isso aconteceu no programa. Para mim, o resumo é o seguinte: nossa sociedade é avessa aos homossexuais e é machista. A primeira constatação é um tanto óbvia, já que não houve dúvidas em eliminar o participante incômodo do programa. Não houve alívio, não queremos triunfo de ninguém que se desvie do padrão “normal” da sociedade. E mesmo a vitoriosa faz parte deste contexto. Como eu disse, nunca antes uma “moça simpática” havia vencido o programa: o prêmio destas residia na possibilidade de posar na Playboy, serem vistas em sua condição de objeto. Com isso, o público resolveu engolir sua inveja e escolher seu ideal de perfeição, porque era necessário que a sociedade informasse que ESTE é o padrão desejado: a exclusão para os homoafetivos e a vitória da mulher dita perfeita apenas e unicamente quando conveniente, ou seja, quando serve para informar qual é o limite do admissível.

Algum espertinho haverá de dizer que não é a primeira vez que um homossexual participou do programa, sendo que alguns obtiveram bastante sucesso, inclusive com a vitória do agora deputado federal pelo Rio de Janeiro Jean Willys, em uma das edições anteriores. Claro! Há uma diferença decisiva. Em primeiro lugar, o deputado não é transsexual. Em segundo, em nenhum momento do programa ele negou ser homossexual, mas também não namorou ninguém, não praticou nenhum ato que o caracteriza como tal. Por isso, foi possível detectar o limite da tolerância do grande público – que o homoafetivo pode até se declarar como tal, mas que oculte todas as ações que o caracterizem. Essas são constatações, e não uma tomada de posição da minha parte, até porque precisei fazer uma pesquisa sobre o programa, mau conhecedor que sou do mesmo – não sou daqueles que adoram reality shows, mas que não admitem que o fazem. Se dissesse que acompanho o BBB, estaria mentindo. Mas é inegável que, direta ou indiretamente, somos instados frequentemente a tomar conhecimento de seus desdobramentos.

ATUALIZAÇÃO: Apenas para corroborar a minha tese acima, o vencedor do Big Brother Brasil 12 voltou ao seu escopo normal, já que não havia nenhum recado a ser passado nos moldes do que já mencionei acima. A edição deste ano foi muito mais, digamos, normal. E com isso o resultado vai escorrer para seu leito costumeiro.

Recomendações:

Plethos: termo grego que significa pluralidade. Em honra ao endereço eletrônico deste blog, farei múltiplas recomendações.


A obra de Foucault onde é feita a análise das instituições sociais é extremamente ampla e rica, mas ele analisa os sistemas prisionais e seus reflexos em profundidade no seguinte livro (recomendo intensamente):

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.


O livro 1984 tornou-se um clássico da literatura universal. Sombrio, pessimista, perturbador, analisa a guerra e a manipulação histórica como mecanismos da manutenção do poder. Consagrou vários termos, como o Grande Irmão, as teletelas e o duplipensar. É sensacional. Não deixem de ler.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.


O show de Truman é um filme em que Jim Carrey procurou se desfazer de sua imagem de careteiro, adquirida em filmes como Ace Ventura e Débi & Lóide. Conseguiu. O resultado final é verdadeiramente bom.

WEIR, Peter. O show de Truman. Filme. Estados Unidos, 1998. 103 min.

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