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terça-feira, 28 de março de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 66º tomo: o continuum (falácia da barba)

(Entre dois extremos, há um universo de camadas que buscam o infinito. Como se apegar a qualquer uma delas?) 

Olá!

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Tem certas coisas na vida que só fazemos na base da coação, algumas delas social. Isso significa que não precisamos ter uma arma na cabeça impondo uma rendição, mas uma pressão que o mundo exerce sobre nós, sob pena de sermos colocados no submundo dos desencaixados. É o caso do ato de se barbear. Isso para mim, claro. Eu não tenho uma barba muito espessa, mas os pelos são grossos, e isso dá aquela juvenil infestação de perebas se eu me atrever a fazê-la diariamente. É irritante, é feio, não gosto.

Só que não tem remédio. As convenções estabelecem que barba por fazer é coisa de malandro e, por isso, precisei chegar a uma fórmula redutora de danos. Em primeiro lugar, mantive uma barba, ao invés de rapá-la toda, porque isso evita que as pontas recém-nascidas se escancarem como em um rosto limpo, dando aquela aparência de Homer Simpson. Depois, consegui estabelecer uma relação de tolerância com minha própria pele, e cheguei em uma agenda de consenso: fazer a barba em um dia, descansar dois. É isso que faz navegar entre os tênues limites do aceitável.

Acontece que hoje eu me deparei com um dilema inusitado. Desde o início da pandemia, visitas presenciais no cliente rarearam bastante, já que as reuniões remotas se tornaram o padrão saudável. Entretanto, há aquelas em que há exigência da presença, nem sempre bem justificadas, como o contato olho no olho, a força das palavras e outros esoterismos, mas, no final das contas, eu sou um subordinado. Nos dois dias anteriores à agenda, vejo-me diante do espelho com o incômodo estado intermediário entre o fazer e o não fazer.

A encruzilhada é a seguinte: é domingo, dia inevitável de barba. Fazê-la à noite rende uma segunda elegante e uma terça claudicante. Para o dia-a-dia, vá lá. Mas para ver os diletos fregueses, já se torna um tanto relaxado. Sim, eu sou largado, mas as conveniências sociais fazem parte do ganha-pão. Não posso deixar de fazer hoje, porque estou com aquela alegre aparência de chihuahua, só que aí eu não tenho como deixar de repetir a ação antes da terça, ou seja, na segunda. E aí minha pele de bebê não resiste a tanto assédio. 

A solução foi simples, embora eu não curta muito: acordar mais cedo e fazer a barba na segunda pela manhã, o que a deixou ainda tolerável (com o truque da barba maior preexistente) para a terça, e vida que segue. O resto, puras impressões psicológicas, como se uma estranha força natural estivesse forçando meus pelos mais rapidamente nesta segunda inglória, como se imediatamente após as navalhadas já estivessem brotando os malvados folículos, em um hirsutismo instantâneo e momentâneo inexplicável pela ciência, como se eu tivesse a necessidade de me rebarbar imediatamente após passar a ardida loção.

A barba é, de fato, uma coisa esquisita. Como ela nunca para de crescer, dizer que a temos feita é algo inalcançável. De fato, se você chegar ao nível microscópico, verá na aguçada lente que o processo de crescimento é ininterrupto, ao ponto de se achar que, mesmo após a morte, ela persiste em seu mister. O que ocorre, na verdade, é que os tecidos relaxados do defunto recente tendem a se encolher, o que faz com que pelos já germinados ainda dentro da pele ponham-se para fora dos poros, dando a macabra sensação de que ainda há algo vivo naquele presunto que ali jaz. Sendo tudo isso assim, dizer que fizemos a barba é uma mera convenção e, como tal, fácil de ser alvo de contestações.

Tudo isso não é problema significativo, mas pode acabar se tornando. Isso acontece porque a barba é um exemplo lúdico para coisas bem mais sérias, que são igualmente difíceis de determinar, mas que não vão apenas te deixar com cara de descuidado. Quer um exemplo?

O que determina a maioridade? A resposta é simples: a lei. Mas como se chegou à idade da responsabilidade (lembrando que há diversas idades mínimas espalhadas pela legislação)? Eu pesquisei por toda a internet, e não achei uma resposta que tivesse cunho científico, o que me leva a crer que o principal componente é a tradição, algumas vezes ligada ao exercício da religião, já que vários ritos de passagem estão ligados à idade do gajo. Sempre é muito difícil determinar o ponto exato em que uma pessoa passa a ter efetiva responsabilidade pelos seus atos ou adquire capacidade suficiente para exercer uma função. Ninguém acorda de manhã e se vê revestido de novos hábitos e conhecimentos que dão uma guinada substancial na vida: poder dirigir, ser preso, eleger e ser eleito.

O caso é que a lei resolve a questão na canetada, porque sua arbitrariedade, no caso, é de rigor. Não há como avaliar caso a caso a capacidade e a responsabilidade de cada pessoa, por isso é estabelecido um parâmetro o mais próximo possível considerando fatores que rodeiam um contribuinte. Por exemplo, aos 18 anos há tempo na média para que alguém tenha estudado e obtido um ofício, e que este lhe permitirá se sustentar, ao menos em tese.

Na prática, contudo, essa régua é móvel. Haverá gente que, aos vinte anos, conseguiria gerir o país de melhor forma que ineptos de 67 anos. Como não dá para aferir essa condição, cravam-se 35 anos para que certo cidadão possa ser presidente. Mas essa condição existe, independente da conveniência social da imposição arbitrária. E há algum ponto na vida em que nos tornaremos mais capacitados e mais responsáveis. Só que essa é uma condição em que não é possível detectar o ponto exato de virada, porque não são coisas que acontecem de uma vez, como acontece com a barba que acabo de fazer e já vai crescendo novamente. Podemos estar perfeitamente aptos para dirigir em um momento, e somente preparados para casar em outro, para ingressar no serviço público em outro ainda.

Outro belíssimo exemplo costuma dar mais discussão ainda: quando podemos afirmar que principia a vida? Aqui, a mistureba de conceitos tende ao infinito. Uma resposta intuitiva seria dizer que é no nascimento, mas logo de cara esbarramos em uma pilha de problemas. Certo: aqui também temos o arbítrio legal, e, ao menos no Brasil, alguém ganha direitos ao sair do ventre de sua mãe. Mas quando vamos à espinhosa questão do aborto*, essa definição já não se aplica. Daí, a definição de vida vai ganhando uma plasticidade quase artística, e a continuidade de que estou falando se mistura a si mesma. Uma definição que se costuma utilizar é a transição do embrião para o feto, o que acontece após X semanas de gestação. Na real, o que determina que um embrião agora é um feto não é seu tempo de existência, mas um conjunto de amadurecimentos tais que caracterizam o trânsito. Mas como mensurar o momento exato em que uma quantidade de células deixou de ser um amontoado e virou um órgão definido? No limite, podemos descer até o nível molecular e isso é impossível de fazer. Outra definição é a capacidade de que o feto consiga viver autonomamente, sem ligações corpóreas com sua mãe. Mais uma vez, é possível imaginar esse momento nos milésimos de segundo: se o feto se desligar de sua mãe no instante X, virá a óbito; se for no instante X+0,001 segundo, já conseguirá sobreviver. Uma posição que é mais confortável é o momento da concepção, o exato ponto em que um espermatozoide invade um óvulo, mas também aqui a definição é insegura, porque a regressão não é nem impossível, nem absurda. Estes dois componentes, comumente, são considerados construtores da vida, mas não é um absurdo inequívoco considerá-los vivos. E a regressão pode ser feita ab ovo, o que, aí sim, é absurdo. Sendo assim, a continuidade, também aqui, impossibilita determinar um momento exato.

Tudo isso resulta em uma zona cinzenta que tramita entre dois extremos, e, como pudemos ver, nem sempre se consegue determinar com exatidão o ponto exato onde nos encontramos, e isso é um perigo em forma de falácia.

Imagine a seguinte situação: precisamos tratar de um câncer. A boa lógica indica que devemos procurar um médico, que fará uma avaliação e indicará o melhor tratamento possível. Se não for na senda da enganação, médico nenhum no mundo vai te dar certeza de cura, e sabemos o quanto a progressão da doença é agressiva. Isso leva uma pessoa a procurar outras rotas.

Minha mãe dizia que o tratamento do câncer era sempre mutilatório, antes ainda de ser acometida por este mesmo mal. Sua doença começou pela bexiga, que precisou ter sua capacidade reduzida pela metade. Tia Nica teve câncer no seio, e lá foi seu seio. Prima Cláudia teve câncer de útero, e lá foi seu útero. Tio Antônio teve câncer de pulmão, e lá foi seu pulmão. Até mesmo o insólito Homem-Cueca, atualmente taubateano (embora seja carapicuibano de nascimento), passou há uns nove meses por uma cirurgia para retirar mastocitomas da pele, sendo que um deles estava entre seus dedos da pata, e lá se foram os dois. 





Teria razão a progenitora? Uma cura sempre inclui uma perda corporal? Não totalmente. Embora realizar amplas extrações faça parte do protocolo de tratamento, o fato é que as rádio e quimioterapias atuam também para conter a expansão. O próprio cão, se deixado à própria sorte, a essa hora teria muito mais focos espalhados pelo corpo, tornando o tratamento muito mais difícil. Por enquanto, um bom tempo depois de operado, parece que está tudo bem com o vira-lata, ainda que com dois dedos a menos na pata da frente.

Acontece que, como nunca há a certeza de cura, é razoavelmente natural que se tentem alternativas menos canônicas de tratamento, desde novas drogas que não passaram por testes, passando por ervas da sabedoria popular e chegando a combinações esdrúxulas de beberagens, isso tudo sem contar os apelos para a senda espiritual. Em alguns casos, fia-se mais nesses do que nas preconizações científicas, a ponto de se abandonar tratamentos para se dedicar às bizarrices de um charlatão.

"Se ninguém tem certeza de nada, então vale qualquer tentativa", é o pensamento. Equivocado, certamente. Eu já disse que o desespero é um guia de conduta, mesmo que cego, e é compreensível que se apele para rotas alternativas quando o diagnóstico não traz boas notícias. Mas não se pode equiparar o que um médico diz com aquilo que um beberrão na porta de um boteco receita. Por caprichos da probabilidade, pode até ser que uma caipirinha de uísque com babosa possua, de fato, algum efeito profilático sobre certos tumores, mas qual é a chance de que isso seja verdade? Em quem a racionalidade mandaria confiar?

Para democraticamente demonstrar como essa linha é embaçada, teve um caso correlato na família ainda no mês passado. Um tio da patroa estava se sentindo doente, e foi no posto de saúde da pequena cidade em que vivia. Com os resultados na mão, o médico disse se tratar de câncer em estágio avançado. Todo mundo ficou meio em choque, mas uma das parentes sacou o revólver contra o doutor: "é um clínico geral que não sabe de nada… precisa levar no especialista em Londrina ". Tinha razão a revoltada parenta, mas alto lá. O médico que fez a análise tem formação, sabe interpretar o que diz um exame e não pode ser colocado na condição de mané, como faz crer a assertiva. Se fosse eu, informata metido a filósofo que lesse o emaranhado de letras e cravasse o diagnóstico, teria plena razão a indigitada. Mas esse não é o caso, já que o doutor clínico tem autorização social e conhecimento aferido para opinar. Por essa razão, esse argumento de continuidade tem não só dois lados, mas infinitos.

Portanto, a principal característica da falácia continuum é qualificar qualquer posição em um amplo espectro de possibilidades como tendo o mesmo valor. Isso é evidentemente falso, porque há níveis de precisão mesmo em um diagnóstico impreciso. A palavra de um médico vale mais no âmbito científico, assim como um teólogo terá mais peso em termos de religião, ou um estatístico terá maior aporte em questões de probabilidade, e nada disso pode ser comparado com palpiteiros. Há uma escala de valor nas afirmações de quem vive sobre um determinado assunto, que supera opiniões infundadas, ainda que devamos ter dosagens com as “carteiradas” do argumento de autoridade (vide). Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vou dar uma recomendação literária, de longe um dos livros que eu mais gostei de ler na vida. Aqui, vemos toda a força das zonas cinzentas, da indefinição das repetições e dos ciclos que parecem eternos. Vale muito a pena ler o quanto antes.

MARQUEZ, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão. Rio de Janeiro: Record, 2010.

* Se existe um tema em que eu não consigo me definir por completo, é nesse. Para saber mais, leiam este texto.

segunda-feira, 27 de março de 2023

A gangorra que inicia a despedida: os cuidados de uma grande escola para não entrar no esquecimento

(E a Vai-Vai, hein? Vai ou fica? Tem muita coisa social para dar a resposta)

Olá!

Como sabem aqueles que me leem, eu moro no centro de São Paulo, onde há imenso fluxo de pessoas durante a semana, e um processo de desertificação a partir do sábado à tarde, e assim fica até o rolar das portas de ferro na manhã de segunda-feira. Não tenho ficado muito tempo em casa, mas pude notar que, desde o final do ano retrasado, a movimentação no domingo está incomum. Cinco horas da tarde já deveria estar tudo às moscas, mas olho pela janela e vejo minha rua lotada. Deve ser alguma novidade do pastor da esquina, cri eu. Mas a repetição nos fins de semana seguintes e um som de batuque ao fundo obviamente me demonstraram que o fenômeno era outro. E a história é a seguinte: a Vai-Vai, uma das maiores escolas de samba da Paulicéia Desvairada, perdeu o direito que tinha de fazer seus ensaios no Bixiga, seu local de origem, porque lá será construída uma estação de metrô (linha laranja - estação 14-Bis), bem em cima de sua quadra, em claro desrespeito às suas raízes, mas como a questão é de transporte público, a defesa fica muito mais difícil. Para sobreviver, conseguiram que o Sindicato dos Bancários cedesse sua quadra para que pudessem tocar a vida, e essa quadra fica na saída da minha rua. Eu gosto de Carnaval e fiquei contente, mesmo com os protestos e esconjuros dos catolicíssimos moradores do meu prédio. Afinal, estamos no Advento e precisamos nos preparar para ficar tristes. A história se repetiu esse ano, mas não acontecerá no ano que vem, já que os bancários resolveram vender sua quadra para que - pasmem - seja construído mais um empreendimento imobiliário nesta cidade cada vez mais difícil de viver.

São Paulo encara o Carnaval de maneira diferente ao que ocorre no Rio de Janeiro, o grande referencial quando o assunto é desfile. Lá, todo mundo tem duas agremiações para torcer: o time de futebol e a escola de samba, com a combinação Flamengo-Mangueira sendo a mais frequente de todas. Essa maneira de encarar o Carnaval, mais o enorme nível de sofisticação alcançado nos desfiles, fez com que a torcida transcendesse as comunidades onde as escolas se localizam. Essa distinção clara não acontece em São Paulo. Desde a década de 90, os desfiles passaram a contar com escolas de samba oriundas de torcidas de futebol, começando pela Gaviões da fiel e sendo acrescida por Mancha Verde e Dragões da Real, que já chegaram ao grupo principal, com a estreia da Independente Tricolor ao mesmo nicho e que vem sendo seguidas por Camisa 12, Torcida Jovem, TUP e outras evoluções dos blocos que estão se transformando em escolas. O movimento parece inevitável e irreversível, porque o aporte financeiro é significativo e a adesão é grande, dada a vinculação com torcidas.

Pelo fato de eu ser corintiano, pode-se pensar que eu tenha apreço pela Gaviões ou pela 12, mas não. Em primeiro, são escolas de torcida, e, como eu já disse aqui, eu não torço pela torcida, mas pelo time. Depois, embora eu não pertença à comunidade do Bixiga, eu sempre simpatizei pela Vai-Vai. Mas havia, sim, uma conexão com o Corinthians nessa história: as cores preta e branca. De resto, ia até a Vila Matilde para assistir os ensaios da Nenê, e a escola do bairro em que morava era a Príncipe Negro, hoje na Cidade Tiradentes, longe de seu lugar original, onde hoje fica a Avenida Anhaia Melo e suas agências, ainda que na mesma imensa Zona Leste.

Passa por perrengues, a agremiação saracura*. Essa história vem desde a década de 2000, quando, por força de medida judicial, não pode mais ensaiar nas ruas do entorno de sua acanhada sede. Entretanto, o apego ao bairro fez com que eles lutassem por se manter no local. A desapropriação foi, porém, um tiro de misericórdia. Uma nova quadra, dizem, vai ser construída nas redondezas, ainda na Bela Vista, e prometem uma nova arena para fazer apresentações extracarnaval. A ver.

O problema maior da Vai-Vai certamente não está na questão da quadra, porém. Há muita desorganização administrativa em um meio que exige cada vez maior profissionalismo, e há uma batalha judicial que vem se arrastando há tempos pelo poder, que culminou com a inédita queda para o segundo grupo em 2019. É bem verdade que a reação foi a altura, com o regresso triunfal já no ano seguinte, mas com nova queda em 2022 e nova ascensão em 2023, o que lhe coloca a incômoda pecha de “escola ioiô”. Foi assim que se iniciaram as derrocadas de outras escolas igualmente tradicionais, como a Nenê de Vila Matilde e Unidos do Peruche, que passeiam hoje em dia pelas divisões inferiores. A alternância de divisões é um fantasma que campeia pelo cemitério do esquecimento.

A Vai-Vai tem força e tradição para manter sua grandiosidade, mas é preciso ter os pés no chão. É a última escola de ponta atual da zona central da cidade, e precisa lutar para não perder relevância, como ocorreu com a Lavapés, ou até mesmo ser extinta, como a Paulistano da Glória. Só que a própria desapropriação de sua quadra não ajuda em nada, porque demonstra que a cidade em si dá mais importância a outras coisas que não são sua existência. Talvez não enxerguem o que há de história por trás dela.

Quando falamos sobre a Lavapés e a Paulistano, não é pouca coisa que está por trás de ambas. Uma é a maior campeã dos desfiles dos primeiros tempos, a outra foi o cavalo de batalha do maior criador de sambas-enredo de São Paulo, Geraldo Filme. Vou dar uma pincelada rápida em ambas, começando pela última.

O Paulistano da Glória tinha esse nome por conta de sua localização, na tradicional Rua da Glória, hoje reduto oriental em São Paulo, que é daquelas ruas cujos postes foram transformados em luminárias japonesas. Parece estranha a localização, mas o fato é que o bairro da Liberdade era um dos principais redutos negros de São Paulo antes do espalhamento nipônico. Inclusive, seu nome se deve aos movimentos antiescravagistas dos fins do século XIX, e lá ficava uma das cadeias destinadas especialmente aos negros que aguardavam sua condenação. O Paulistano, antes de ser uma escola de samba, foi um dos principais salões de baile do centro, e seu principal sustentáculo. Originalmente nascido para proporcionar lazer ao operariado da região, lá ocorriam bailes carnavalescos que eram comuns até a década de 70. Eu mesmo lembro que minha mãe me levava nas matinês de um clube no Brás, pelos lados da Silva Teles, mas não tenho a menor condição de lembrar o nome. Íamos em tropa, com os primos que moravam na região. Eu costumava começar contrariado, meio de saco cheio com as pinturas de barquinho espalhadas pelo corpo e um chapéu de jornal na cabeça, mas na hora da farra, de jogar confete e correr atrás de serpentina, eu me divertia à beça. O Paulistano era um desses, só que de porte maior, muito mais famoso que os salõezinhos de bairro. Desses bailes, surgiu um cordão carnavalesco que virou escola de samba. Durou pouco, com cada vez menos integrantes, principalmente após a perda do salão, a sua origem, o que fez a escola ficar sem lastro. Em um momento onde a Rua da Glória ia ficando mais e mais dirigida para a cultura oriental, a escola enrolou seu pavilhão e foi para a história***. Restaram as composições de Geraldo Filme, provavelmente o mais importante dos autores paulistanos e, de longe, a parte mais memorável e competitiva da Paulistano eram exatamente suas letras. Compôs também para a Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Colorado do Brás e Unidos do Peruche. Sua principal característica era trazer enredos de cunho social que passeavam pela sua própria biografia, como no samba "Batuque em Pirapora", onde relata sua exclusão logo na infância e seu batizado na roda de samba.

Já a Lavapés tem uma história que transitou do apogeu para a obscuridade. Ela ficava localizada na Baixada do Glicério, um lugar tão tradicional quanto Mooca, Brás, Barra Funda, mas que nunca deixou de ser pobre. Como ficava nos baixios alagáveis do Rio Tamanduateí, só se submetia a morar ali quem não tinha outra possibilidade, negros à frente. Até hoje a região é muito pobre, embora o processo de verticalização que vem sofrendo certamente fará o perfil mudar futuramente, mais uma vez com a formação de uma classe média (ainda que baixa) e afastamento das comunidades negras para a periferia.

Quem passa pelo Glicério atentamente, verá que ainda restam muitas casinhas térreas, daquelas sem garagem e sem quintal, cuja porta já desemboca direto na sala do contribuinte. É por entre elas que surgiu a Lavapés, escola de samba que leva o nome da rua que nasce do desembocadouro da Rua do Glicério e que leva o fluxo até o Cambuci, no caminho para o Ipiranga. Nos tempos em que a condição de várzea afastava investimentos, havia espaço suficiente para que a escola de samba pudesse realizar ensaios e armazenar materiais. Só que o terreno que lhes servia de quadra, guarnecido por um pequeno arvoredo, virou um daqueles prédios como o registro da Saudosa Maloca: o progresso atropelando histórias e espaços. Os ensaios passaram a ser feitos na rua mesmo, e o armazém dos instrumentos e fantasias era a casa dos dirigentes, com a perda de recursos e integrantes cada vez maior. Estava em funcionamento ainda mais por conta da teimosia de sua presidente Rose, neta da fundadora da agremiação, Madrinha Eunice.

Recentemente, a escola ganhou um novo fôlego, pela sua associação com o Instituto Pirata Negro, comandado pelo ator Ailton Graça. Foi o jeito de se salvar a Lavapés, mas a um custo alto: a mudança de sede para a Zona Sul, lá pela região de Americanópolis. Desde então, a escola vem novamente subindo pelas divisões, e este ano ascendeu ao Grupo Especial de Bairros, anterior aos desfiles no sambódromo. Sendo assim, que seja assim, mas há coisas a observar.

Quem transita pelos entornos do Glicério e da Várzea do Carmo, percebe facilmente um dos mais claros muros imaginários da cidade de São Paulo. A Rua Conselheiro Furtado divide o bairro da Liberdade em dois: a parte alta, onde ficam os orientais, com a feirinha, os festivais, as lojas típicas, os cosplayers e o metrô; no rumo da baixada, o comércio miúdo, os botequins calcanhar-rachado, as moradias deterioradas, os gatos, os cortiços, a violência, em uma densidade cada vez mais apertada. Quando se fala em Liberdade, logo se pensa na região de cima, nunca na baixada, justamente onde ainda estão suas raízes mais profundas. Entretanto, ao se chegar na região vizinha, na Várzea do Carmo, notam-se alguns terrenos imensos, alguns dos quais onde se começam a construir empreendimentos imobiliários, sempre eles. Será que seria tão imensamente caro reservar alguns metros quadrados, até mesmo com contrapartidas, para que a Lavapés pudesse ter uma quadra na região? Não estamos falando de qualquer coisa: é simplesmente a mais antiga escola de samba ainda em atividade na cidade de São Paulo. É história pura do município, e qualquer pessoa que quiser compreender as manifestações culturais desta terra esbarrará na escola vermelha e branca. Ao invés disso, a prefeitura faz uma estátua em tamanho real da Madrinha Eunice e a coloca na praça da Liberdade. É uma homenagem válida, mas injusta, porque não tem efeitos práticos. Uma pessoa que a veja pode se interessar pelas histórias que tem para contar, mas onde está a escola? A uns trinta quilômetros dali, em um bairro que nada tem a ver com sua origem. Repito: não tenho nada contra a mudança de endereço da Lavapés, mas ao desmonte das raízes de São Paulo como um todo, especialmente dos contos proletários, dos quais os negros são indissociáveis. Tenho certeza absoluta de que o Instituto não se negaria a manter a parceria caso fosse possível manter uma estrutura mínima para sua manutenção em seu local de origem, até mesmo porque uma de suas bases é preservar o que ainda resta de elementos da história negra de São Paulo.

Isso tudo é um aviso para a Vai-Vai. O Bixiga está para a Bela Vista como o Glicério está para a Liberdade, e isso indica que a rota do fracasso já está bem desenhada, e nem sempre se encontrará um padrinho disposto ao mecenato, só restando o esquecimento, como se deu com a Paulistano da Glória. Se eles pretendem se manter em uma posição digna, sabem que não podem contar com a vontade pública da cidade. A memória de uma agremiação antiga e campeã não é suficiente para mantê-la, como comprova o caso da Lavapés. Será melhor acertar suas diferenças e procurar caminhos para sua própria preservação.

Eu não sei como fazer isso, mas gostaria muito que aqueles que influenciam nesses destinos saibam e ajam. Bons ventos a todos!

Recomendações:

A primeira é fazer uma visita à própria Vai-Vai, especialmente quando começarem os ensaios para o desfile do próximo Carnaval. A diferença de ver um ensaio ao vivo é semelhante a assistir um jogo na televisão e no estádio. Recomendaria a quadra da Vai-Vai, mas ela não há. Portanto, o ideal é acompanhar suas redes sociais ou seu site, que é o seguinte:

https://vaivai.com.br/

Com relação à Lavapés, há um belíssimo documentário disponível no YouTube contando não só suas origens, mas toda uma análise sociológica ao redor da escola.

ANDRÉ, Carminda et al (Grupo de Pesquisa Performatividades e Pedagogias). Lavapés: Ancestralidade e Permanência. Filme. São Paulo, 2017. 57 min. Cor.

Por fim, uma recomendação para lá de lateral. É o livro de HQ Paulistano da Glória, que de comum com a escola só tem o nome e o jogo de palavras, mas que é bem interessante e vale a pena ser conhecido.

OLIVEIRA, Carlos A.P (Xalberto) et al. O Paulistano da Glória. São Paulo: Via Lettera, 2004.

* Esse apelido se deve ao fato de sua sede tradicional localizar-se às margens do que era o rio Saracura, hoje soterrado pela Avenida Nove de Julho

** Pelo que eu consegui averiguar, hoje há um mercadinho chinês onde ficava o salão, mas esta não é uma afirmação totalmente confiável.

 *** Recentemente, uma nova escola adotou esse nome, lá pelos lados da Vila Ré, o que me tentaria a dizer que é mais uma comprovação do fenômeno de êxodo do centro aqui descrito, mas não há nenhuma correlação entre ambas.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – Epílogo: Somos nossa consciência e a natureza que nos compõe

(A natureza não estará fora de nós quando compreendermos que ela é indissociável de nós mesmos)

Olá!

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Eis que mais um ciclo de viagens acaba. Eu não concentrei renda para viajar para fora do país, nem mesmo para as praias paradisíacas do Nordeste, ou as bucólicas paisagens da faixa central, ou até mesmo as oníricas serras vinícolas do Sul. Todos esses adjetivos que só usamos nessas ocasiões podem ser usados para as cidadezinhas por onde passei no último mês de novembro, na semana do feriado da Proclamação? Fica a critério do freguês, como eu costumo pensar. Fiquei novamente por aqui perto, em um raio de 250 Km, o que traz um custo mais baixo, um tempo de deslocamento menor, certa facilidade de retorno. Enfim, para uma extensão mal programada do que já é minha vida, é o que era factível para aquele momento. Fui para o Sul de Minas, onde já estive outras duas vezes (aqui e aqui) e ainda por onde dei umas andejadas avulsas. Para mim, é excelente, porque são cidades que combinam paz real com beleza, mesmo que simples. Dadas as condições que me são dadas, está para lá de bom. 


Os verdes mares de onde não há mar... Minas não tem fronteira com o Oceano Atlântico, mas isso não lhe tira nenhum pedaço, especialmente porque possui um mar de morros recobertos pelo verde e pelo clima ameno. Mantive meu costume de filosofar por lá, às vezes anotando uma inspiração nessa agenda virtual que é o celular, às vezes refletindo a posteriori, observando novamente as fotos que tirei. E sempre tem um epílogo para colocar ponto final no conjunto da obra, exatamente este que lhes apresento agora. Normalmente, destaco um ponto excepcional ou monto uma costura com pontos em comum, exatamente como agora. Há uma diferença fundamental nos momentos em que viajamos para o meio natural, a tal da integração com a natureza. É uma afirmativa meio pretensiosa, do tipo mística, que supõe uma possibilidade de que poderíamos buscar uma reaproximação alla Diógenes, o cão, com o meio natural que nos moldou como somos, um animal em meio a outros. Fique dois dias e meio sem internet e você verá se tem alguma vocação para viver em ambiente distante das urbanescências. Não digo que não é possível, e nem quero me desviar do assunto. É que, mesmo no mais moderno dos arranha-céus dos países do Oriente Médio, há um ser que vive e que foi moldado por influência da realidade que o cerca, mormente pela própria natureza que parece tão distante.

Discussões sobre o meio natural e o meio cultural são comuns no meio filosófico, e eu mesmo já dei meus pitacos sobre o distanciamento que existe entre ambos. Mas será que essa separação é real? Mais ainda: é possível pensar em uma espécie de substância que una o que é propriamente humano de tudo aquilo que não tem consciência?

Esse tipo de pensamento bate na gente quando passeamos por esses estados intermediários entre natureza intocada e produção humana. De fato, quando atravessamos essas estradas, algo exemplarmente de manufatura humana, temos a oportunidade de observar e conviver com culturas plantadas, exemplificadas aqui pelo café, pelo milho e etc, e o que ainda resta de originário nas magníficas montanhas da Mantiqueira, praticamente sem intervenções. E vemos que há uma certa semelhança - ambas possuem uma espécie de linha guia. Tanto a cultura com a mão humana quanto a sem intervenção é regida por ciclos de nascimento e morte, e neste intervalo parece que mesmo a mais inanimada das matérias sabe exatamente o que fazer, como se as plantas conhecessem o caminho das águas, que por sua vez segue os cursos necessários para chegar onde deve, a pedra sabe que deve rolar até o fundo dos vales porque é lá que elas ficarão estáveis, como se as coisas possuíssem uma… inteligência!

É claro que uma informação dessa parece cercada de um esoterismo que beira a loucura, mas, se colocarmos as coisas como o Deus que Espinoza pensou, que foi do agrado até de gente fraquinha como Albert Einstein, parece que pode fazer mais sentido, e vamos buscá-lo no idealismo alemão, com Schelling.

O que divide ser humano e natureza? É que o "eu", aquele que percebe o mundo, aquele que interpreta a natureza, que deduz o universo que o cerca, precisa possuir uma consciência, e isso só nós temos, os caniços pensantes. Mas essa divisão fica alocada apenas no plano do reconhecimento em si, porque o humano não existe fora da natureza. O meio natural é o substrato, o caminho físico por onde a consciência se realiza. A distinção mais essencial está nisso.

Mas se a consciência é parte da natureza, por que se vê como distinta dela? É aí que entra o conceito de Espírito (Geist), tão caro à tríade idealista, que ainda conta com Fichte e, principalmente, Hegel.

Quando se fala em Espírito neste contexto, não devemos pensar em uma sinonímia com alma, o que é nossa intuição inicial. O Espírito no idealismo é uma espécie de impulso que é responsável por empurrar a história para a frente. O Espírito é o fundamento da razão, que é a única instância capaz de fornecer sentido para toda a realidade que existe. Nada existe se não estiver apresentado para uma consciência, e, com isso, temos que toda a realidade é subjetiva. Dessa forma, o Espírito é uma instância metafísica que justifica as coisas como são. Há quem faça a identificação do espírito com deus, como diz Schopenhauer ao afirmar que nada mais é do que uma “impessoalização” de uma divindade, mas essa não é uma crítica, uma relação obrigatória, mesmo que aceitável. O que o Idealismo pensa é que esse geist é uma capacidade de realização que a mente tem diante de sua colocação perante um objeto. Esse conceito surge como solução para o criticismo kantiano, que estabelecia ser impossível conhecer o que as coisas são em si mesmas, já que todo conhecimento é subjetivo e depende do aporte de cada consciência individualmente.

Há duas coisas aqui a sopesar: a natureza existe independentemente de uma consciência que a observa, mas só ganha sentido a partir do momento em que é observada por uma consciência. Mas o seu funcionamento demonstra que ela não é movida por pura aleatoriedade. Poderíamos pensar que qualquer coisa seria factível em um universo entregue ao deus-dará, mas não é o que se vê acontecer. Existe uma ordem natural que limita os acontecimentos em uma determinada faixa de escopos cada vez mais previsíveis, à medida que o conhecimento e a ciência avançam. Isso significa que a natureza, embora não possua um estatuto da consciência, tem um caminho que demonstra sua inteligência. Não quer dizer que a pedra sabe que deve rolar para o fundo do vale porque lá sedimentará e trará estabilidade ao sistema fluvial, mas porque o mesmo geist que faz o homem detectar essa dinâmica do equilíbrio, faz com que essa mesma dinâmica ocorra. Só não há consciência nas coisas.

Schelling afirma que a natureza é um processo contínuo e com uma linha evolucionária, com um ápice semelhante à scala naturae do velho Aristóteles, que dizia existir uma rota que conduzia dos seres mais brutos (incluindo os inanimados) até o apogeu humano, permeado por uma causa final. Aqui, entretanto, há o tal geist a orquestrar esse caminho, que é orgânico e permanente, e onde o ponto final é a fusão do Espírito com a matéria, formando o Absoluto. Esse termo foi reaproveitado por Hegel em sua própria filosofia, embora com algum nível de diferenças, e sintetiza a ideia schellinguiana de que a natureza humana só difere das demais porque é uma natureza que se tornou consciente.

Fichte trazia uma clara distinção em sua filosofia entre o Eu-puro e o não-eu, sendo que o primeiro era o que realmente importava, o máximo da subjetividade. Schelling procura corrigir esse rumo que tornava a natureza como algo descartável na relação epistemológica, pois entendia que a mente não flutuava solta como se lhe fosse dispensável uma matéria por onde ela tinha uma base. Essa base é a natureza, e tinha a mesma atividade pura que Fichte atribuía ao Eu-puro como caminho para o conhecimento: na medida em que o Eu absorve o não-eu, ele mesmo se avoluma. Já com Schelling, a natureza não é única e exclusivamente o não-eu. Ela tem uma capacidade de se mesclar e imiscuir mutuamente e compartilhar o Espírito. Estar banhada em materialidade faz com que a natureza seja a visibilidade do Espírito, enquanto o Espírito é o provedor da inteligência da natureza. Uma estrutura tão organizada como a natureza não é explicável sem uma inteligência por trás dela (segundo Schelling), que lhe dá força de coesão e direção evolutiva. E temos o Espírito que dá sentido e consciência ao Eu, que não pertence ao círculo físico da natureza. Ambos, uma vez colocados em funcionamento, dirigem Espírito e Natureza ao Absoluto, a fusão entre ideal e real. Em resumo, temos, por um lado, o ideal que detecta a realidade no Espírito, e o real que delineia as ideias na Natureza. O produto, a realidade, é o Absoluto. Dessa forma, de acordo com o sistema pensado pelo filósofo alemão, não é ilícito que sintamos a natureza como parte de nós mesmos e que doemos a ela um sentido que pareceria romântico a um materialista puro.

O Idealismo é, provavelmente, o movimento que trouxe a Alemanha em definitivo à crista da onda filosófica, em tese somente sendo comparáveis com os antigos gregos. Entretanto, ao contrário de Sócrates e sua trupe, que tinham um princípio pedagógico de se fazer entender, os tedescos não parecem muito preocupados em ser didáticos, e são dificílimos de serem alcançados. Entretanto, são parte significativa da história da filosofia e é necessário fazer-se esforço para compreendê-los. Até mesmo porque suas respostas são válidas para que encaremos o desafio de destrinchar o mundo que nos cerca. E ele é bonito, muito bonito.

Deixo vocês com meus escritos, espero que tirem proveitos deles, e que se sintam impulsionados por seus próprios espíritos idealistas para visitar esses lugares tão simples e belos, e lá encontrem também suas motivações para enxergar o que vai além da casca de aparências que é apresentada a nossas consciências. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Não gosto muito de recomendar diretamente obras difíceis, mas também não podemos simplesmente fugir delas. Vou deixar a indicação aqui, mas é sempre bom estar acompanhado por escritos de comentadores.

SHELLING, Friedrich. Ideias para uma Filosofia da Natureza. Lisboa: Casa da Moeda, 2001.

E recomendo também uma passagem por todas as cidades que tratei nestes textos. Segue a distância de cada um delas com relação ao centro da cidade de São Paulo.

Ouro Fino – 224 km

Santa Rita do Sapucaí – 223 Km

Congonhal – 224 Km

Borda da Mata – 236 Km

Tocos do Moji – 195 Km

Bom Repouso – 183 Km

Bueno Brandão – 166 Km

Inconfidentes – 235 Km

Conceição dos Ouros – 235 Km

Consolação – 174 Km

Cachoeira de Minas – 227 Km

Senador José Bento – 243 Km

Pouso Alegre – 210 Km

segunda-feira, 6 de março de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 13ª Parada: Pouso Alegre e os cafés que nos despertam para a realidade

(Às vezes as coisas que mais gostamos colocam a gente diante de uma realidade que não queríamos ver)

Olá!

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Tempos atrás, fiz uma pequena viagem à região de Itajubá, que, aliás, fica próxima de onde estou agora. Naquele momento, fiquei hospedado unicamente naquela cidade e fiz incursões em um sistema de estrela, com a minha "casa" no meio e flutuando para os pontos cardeais na medida em que os dias corriam. Repeti a estratégia desta vez, só que o centro do meu sistema solar foi Pouso Alegre, sem dúvidas a maior cidade da região Sul de Minas. Da mesma forma que outrora, relutei em fazer meu relato de uma cidade que me serviu principalmente de dormitório. Mas pensei bem e, debruçado sobre as fotos, percebi que foi muito mais do que isso, e que, portanto, havia méritos em ter seu texto próprio, que é este que vocês, meus pacientes leitores, seguirão a partir de agora.

Pouso Alegre não é exatamente o que chamamos de cidade turística, mas ela é muito bem estruturada e contém muitos serviços disponíveis, além de uma quantidade boa de história espalhada em seus prédios, começando pela Catedral Metropolitana.

Muitos dos prédios que ficam em seus arredores possuem valor histórico e estético, representando a época em que esta cidade deu um passo adiante para se tornar o que é hoje, como o Grupo Escolar Monsenhor José Paulino…

 … e o Teatro Municipal, ambos ainda em atividade. Quase que peguei o show do Zé Geraldo, que estava em cartaz por lá, mas perdi os últimos ingressos por conta de meia hora. Fui na praça dar milho aos pombos.

Também circulei pela cidade a esmo, e cheguei no Parque Municipal, para relembrar os tempos de namoro. Lá tem as coisas básicas de um parque, com playground, árvores, gramados e um lago onde habita um jacaré que, dizem, é inofensivo se não for cutucado.

Também fui coletar água mineral nas bicas disponíveis na cidade. Não chega a ser um espetáculo hídrico como em São Lourenço, Caxambu, Cambuquira ou Lambari, mas cumpre bem seu papel de fornecer boa água a custo zero. Fui na mina João Paulo…

… e na Fonte Dona Maria, que fica embutida em um pequeno parque.

E claro, estando nas Gerais, não há como não cair na gastronomia. Não vou ficar aqui descrevendo cada um dos pratos que vocês já conhecem tão bem, e vou concentrar minha homenagem no curioso e desafiador pirulito de porco servido na casa The Tudo um Porco, um barzinho que nos acolheu no estômago e da chuva.

E café. Eu e a patroa fomos andando pelas ruas da cidade e procurando o café perfeito, sendo que encontramos muita coisa boa, com torras próprias e terceirizadas, cafés espressos e coados, derivações com leite (blergh) e chocolate, e um aroma de paraíso que só o café feito na hora tem.

O café em que eu mais compareci fica em uma rua discreta, e foi montado em uma casa, o que aumenta a sensação de aconchego. Chama-se Café Donna Flor, onde bati altos papos com o dono, especialmente sobre o futebol miúdo de São Paulo e Minas, já que eu estava paramentado com a incongruente combinação de camisa do Nacional e bombeta do Juventus.

Por lá, eu não só sorvi o sacro fruto da rubiácea, mas também jantei um belo croque monsieur, enquanto a patroa mandou brasa em uma sanduba chique, feita à base de pera e presunto cru, coberto de rúcula.

Num balcão de canto, o belo costume de manter alguns livros para se folhear enquanto o tempo passa e o líquido desaparece do copo. Enquanto eu esperava chegar minha pedida, peguei um deles para compartilhar com a esposa. Era um livro de fotos do renomado Sebastião Salgado, e o tema, óbvio, café.

É uma obra toda em preto e branco, típica do autor quando quer demonstrar o relacionamento harmônico do homem com o ambiente. Apesar disso, não sei muito bem qual é a intenção do livro, se é foco no grão, no ambiente, na diversidade da produção no mundo, na integração de tudo isso, mas eu foquei nas pessoas, e isso me incomodou.

Quando eu paro para pensar no que tem sido minha vida, percebo que os dias são contas de um longo rosário onde se misturam realizações e frustrações. Como nosso universo gira todo ao redor de nosso próprio umbigo, tendemos a enxergar dificuldades maiores para nós do que para os outros, assim como méritos mais perfeitos em nós mesmos e menos apurados nos amiguinhos. Isso tem motivos, e o principal é a casca pública com a qual nós nos apresentamos ao outro e o efeito ator/observador que nossa mente nos impõe. Geralmente ela é mais perfeita do que a realidade, mas, por vezes, dá se o fenômeno contrário. Portanto, para o bem ou para o mal, há um certo teor de afastamento com o mundo efetivo, mas o fato é que, bem ajustadas, as histórias de todos nós são contadas e ouvidas reciprocamente.

Só depois de fritos os ovos, percebemos que elas são muito semelhantes entre si. Tem uma gema no meio, uma clara à sua volta e uma bordinha, que pode ser crocante ou molinha. Ou seja, desenhamos nossas vidas de maneira bem parecida. Há pouco tempo, tínhamos aquela trilha de nascer, crescer, estudar, trabalhar e estudar, trabalhar, trabalhar e casar, trabalhar e ter filhos, trabalhar e formar os filhos, aposentar e esperar a morte. Alguma coisa pode ter mudado, mas mudou para todo mundo, então as coisas são mais ou menos iguais, estruturalmente iguais. Porque vamos ter os dentistas e os arquitetos, os casados homo e héteros, os filhos próprios, adotivos ou não-humanos, o trabalho autônomo, público ou privado, e a aposentadoria cada vez mais distante, terminando em enterro ou cremação, mas com a mesmíssima lógica que conduz para um fim tranquilo, ao menos nos objetivos das pessoas.

Como a vida corre, nossas esperanças, nossas desilusões, o que era para ser e não foi. É isso… nossas vidas são todas muito semelhantes, um rio que corre sempre pelo mesmo leito. Mas não, há um engano nisso.

Quando vejo as páginas das impecáveis fotografias do nosso mestre, uma coisa me faz olhar o líquido que tanto gosto com certo desespero. Como eu disse, não cheguei a descer ao detalhe das intenções do livro, mas a arte tem essa caraterística que é só dela: é uma verdade para quem a produz e outra para quem a aprecia, sem haver nenhum dos dois que lhe seja o proprietário. E na minha verdade particular eu vi as mãos, os pés e os rostos dos trabalhadores.

O primeiro olhar parece mostrar as diversidades de produção do café no mundo, mas somente uma coisa é capaz de se provar comum: a miséria do trabalhador no campo. Seja na Costa Rica, na Tanzânia, na Colômbia, na Guatemala, na China, na Índia, no Brasil, uma outra via da coincidência que eu mencionei de nossa realidade se abre. Não é mais uma vida que se cumpre pela crescente nos objetivos, porque também aqui tudo se repete: rostos calcinados pelo sol, mãos marcadas pelo uso repetitivo, pés grossos como cascas de árvores. As famílias inteiras, incluindo crianças e bebês que as mães amarram ao corpo mostram que o caminho estrutural que temos nós, pessoas da classe média das grandes cidades, também aqui existe. Só que sob uma estrutura muito diferente, que nós só entendemos existir quando somos defrontados, de maneira quase involuntária, e de forma abrupta.

A linha de destino que eu encontrei, para o caso desses trabalhadores, é muito mais limitada: do começo ao fim, a esperança se limita à sobrevivência. Haverá quem diga: existem aqueles que saem dessa condição. Entretanto, se pensarmos percentualmente, qual é o tamanho desse estrato?

Eu não deveria estar tão surpreso, porque não há ineditismo para mim nessas histórias. Eu tinha um tio-avô que era cafeicultor no norte do Paraná. Ele e meus primos trabalhavam bastante duro na lavoura, apenas eles, naquele famoso esquema de sol a sol. Carpir as ruas, arar a terra, aplicar adubo, remover as pragas, cavar as contenções e tudo o mais era feito por eles mesmos. Eu, do alto da minha meninice, achava aquilo divertidíssimo, mas isso porque eu me enfiava em uma carroça e ia cansando o cavalo com meus volteios desnecessários. Mas o fato é que eles viviam apertados, e quando precisavam fazer compras colocavam uma ou duas sacas de café nessa mesma carroça e levavam o produto para a beneficiadora, onde pegavam o dinheiro e compravam sal, açúcar e coisas que não dava para tirar da terra. Mas, apesar das costas doloridas e das mãos calejadas, havia perspectivas: trocar o cavalo por um trator, a carroça por uma caminhonete, comprar mais alguns hectares para melhorar a renda. Então, mesmo no campo, existia aquele encaixe a que eu me referi no começo.

O único momento em que eles não davam conta sozinhos do plantio era nas colheitas. Não há máquina que colha café, como ocorre com milho, trigo ou soja. A tarefa é manual, porque não há como arrancar o café sem destruir a planta, afinal, ele vem de uma árvore. Sim, ele é um fruto.

Era nesse momento que vinham os boias-frias. Eram homens e mulheres que viviam dos períodos de colheita, que recebiam aquele pouco para sobreviver até a próxima, porque não tinham terras eles mesmos. Nas fazendas maiores, eles eram legiões. Faziam seu trabalho e iam embora, esperar a próxima vindima. Faziam parte de uma cooperativa, mas eram muitos e consolidavam a extensão da pobreza. Meu tio, mesmo aos trancos e barrancos, vivia e tinha alguma perspectiva de crescer economicamente, dar aos netos a chance de estudar, de um dia trabalhar a terra de maneira mais produtiva, ou de cuidar dos animais com ciências, e não com mezinhas. Isso se não quisessem se desvincular da origem agrária. Já o pessoal da colheita…

Era gente que se via de vez em quando, e estavam sempre enfiados no mato, vivendo nas suas taperas. Se eu quiser fazer a comparação do início deste texto, teremos um teto muito mais baixo. Não fosse o êxodo rural, e teríamos uma equivalência entre existir e sobreviver.

Por este motivo, eu tive a infeliz sensação de que aquela xícara na minha frente continha, além da cafeína, da trigonelina e do ácido clorogênico, um alto teor de injustiça social, e isso fez com que eu olhasse com tristeza para o líquido escuro, ainda levemente fumegante. Não há paralelo entre a vida que vivemos e a vida que eles sobrevivem, e isso fica invisível sob o véu do sabor agradável, da mesma forma que os corpos dos mendigos da Sé, obscurecidos pelo esplendor da Catedral, ou dos subterrâneos do Brás, onde milhares de andinos respiram sem que observemos, submersos pela oferta de roupas a custo baixo. São invisíveis não porque não o vemos, mas porque não temos dimensão de que suas vidas são tão distintas das nossas que nem conseguimos compará-las.

E aí entra o dilema: tomar o café faz com que esse estado de coisas seja mantido, junto com toda a injustiça social que vem com ele, mas, por outro lado, garante um mínimo para a sobrevivência, mesmo que na permanência da miséria. E aí a resposta fica muito difícil. Em que momento levantar bandeiras é mais importante do que saciar a fome?

Não serve de consolo, mas desde então tenho pensado nas fotografias todas as vezes em que preparo meu café matinal, que passou a vir com notas de miséria junto do aroma fresco e do gosto de acolhida.

Este texto é menos sobre a desigualdade social que enfrentamos diariamente, mesmo que nem sempre a percebamos, e mais sobre o ato de se ter a realidade caindo sobre nossas cabeças como se fossem pedradas. É isso que eu queria dizer e não sei se consegui traduzir.

Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

O livro, como obra de arte, é primoroso. Espero que tenha o aspecto de denúncia que não percebi naquela hora em que fiquei na cafeteria.

SALGADO, Sebastião. Perfume de Sonho. Uma Viagem ao Mundo do Café. Rio de Janeiro: Paisagem, 2020.