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quinta-feira, 20 de abril de 2017

País do futebol: o que precisamos avaliar para saber se isso é ou não uma verdade

Olá!

Você gosta de futebol? Não há nenhum mérito se sim, nenhum constrangimento se não. E vice-versa. Corre uma lenda no senso comum de que o Brasil é o país do futebol. É bem verdade que há alguns indicadores seguros disso. São cinco títulos mundiais da seleção, um monte dos clubes, onipresença em copas do mundo, times mundialmente reverenciados como alguns dos melhores de todos os tempos e bons jogadores espalhados pelos quatro cantos do planetinha azul. Além disso, os meninos recém-nascidos têm um presente praticamente garantido: macacõezinhos com o distintivo do time de preferência do pai. E, cada vez mais, o mesmo tem acontecido com as meninas. A não ser que haja uma grave desavença entre pai e uma mamãe especialmente fã do time rival. Mas o consenso aparece quando a criança começa a andar: lá vem a bola de presente. Nesse sentido, o senso comum parece ter plena razão.

Mas a afirmação, por outro lado, é facilmente contestável. A imensa maioria dos jogos não chega a ter metade de sua ocupação, quase todos os estádios são precários (neste particular, não tenho grandes problemas, pelos motivos que se verão adiante) e não há um esquema bem fornido para a transmissão das divisões inferiores, que são, afinal de contas, os maiores empregadores e os piores pagadores do universo da bola. Além do mais, a formação de opinião se dá nos grandes centros. A situação no interior do país é de total penúria, invisíveis que são. Mas também são sonhadores; o êxodo é o objetivo de todo aquele que postula um lugar aos refletores. Um autêntico país do futebol não trataria seus filhos menores e mais carentes dessa maneira. Mas a pecha de população mais apaixonada do mundo permanece. E tento entender por que.

Bom... eu gosto de futebol e minha maneira de encarar a questão tem a ver com minha infância e juventude, e uma boa parte do meu contato com esse mundo já foi descrito aqui. Mas vou acrescer alguns detalhes.

Nasci em um momento onde ainda resistiam muitos campos de várzea. Eles não proliferavam mais, mas ainda existiam aos montes. Aquele que eu mais frequentava era próximo a quatro das casas onde cheguei a morar, peregrino do aluguel que era à época. Meu pai era zagueiro grosso e meu tio era bom goleiro no time que lá jogava, o Disparada. Como faz parte do rito, os pais levavam os filhos para assistir os rudimentos do esporte colocados em prática, e de lá, sentado em um montinho de barro, nasce não propriamente o torcedor, mas o apreciador de futebol. É óbvio que uma criança de seus cinco ou seis anos não tem a cognição necessária nem a paciência de suportar 90 minutos de caneladas ali parada, mas o ambiente de socialização é muito atraente. No campo do Disparada, por exemplo, havia a birosquinha do seo Geraldo, pequena e suja como ele próprio, fundidor que era de profissão. Lá, os pais tinham crédito livre, possibilitando-nos o empanturramento com toda sorte de porcarias, para a aflição de nossas mães. Também sempre havia uma bolinha sobrando nas laterais do campo, estimulando a reprodução da peleja em escala menor pelos alegres petizes filhos dos “craques”, eu incluso. Era o aprendizado por imitação, tão caro a Albert Bandura, de quem não deixarei de falar oportunamente.

No momento em que nossa bola ia parar no campo, a lição de hierarquia era inevitável: Não atrapalhem! Nem sempre dito de maneira tão gentil. Aliás, nem sempre dito. Ocorria por vezes de a ordem vir na forma de um chutão a mandar nossa bola para fora do perímetro do campo, inclusive para a perigosa estrada da Vila Ema. A regra de ouro diz: atrás de uma bola, sempre vem uma criança. Alguns dizem que é essa consciência nos motoristas, outros que é o anjo da guarda, mas o fato é que nunca ocorreram atropelamentos nessa circunstância naqueles eventos; só alguns sustos. Bem grandes, eu diria.

Mas a atitude do chutão dava a noção, em nossas vazias cabecinhas, da importância do que acontecia nas quatro linhas – algo que flutuava entre o rito sagrado e a prática da guerra. Afinal, se nossos pais e vizinhos nos falavam abruptamente, eles que eram tão legais, que nos pagavam doces, que nos compravam bolinhas de gude, que nos deixavam sujar suas calçadas e berrar até tarde em suas portas, não era alguma coisa frívola que era disputada naquele terreno esburacado e cheio de linhas de cal. E sentíamos necessidade de ter participação ativa nesse universo.

O clímax era o intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Abandonado pelos combatentes, que iam à precitada bodega refrescar a garganta e reorganizar as táticas, o terrão ficava disponível por restritíssimos quinze minutos para nós, rascunhos de pernas-de-pau. Não eram as pedras que delimitavam agora o arco imaginário; eram as próprias e imensas traves, ainda maiores em seus 7,32 x 2,44 metros para os minúsculos jogadores de pés descalços. Os meninos maiores praticamente ignoravam os pequeninos, mas é só uma questão de espera e vingança – haverá de chegar nossa vez de crescer e pregar a mesma peça nos recém-chegados. Mas sempre sobrava uma bola na medida para batermos de bico na direção do gol, com força insuficiente; mas está lá a defender a meta outro minúsculo ser, e a bola entrando dá a sensação de triunfo na final de um campeonato, justo a mim, caneludo como meu pai. A ruindade futebolística pode até não ser hereditária, mas parece. Só que, dessa forma, a várzea dava uma sensação de proximidade, de pertencimento e de emulação da glória que se arrastaria pelo restante da vida, independentemente da qualidade pessoal de passes e arremates.

Meu avô materno também viria a ter sua participação. Não tinha mais idade para ele mesmo jogar, mas era um amante da várzea, igualmente. Cansei de ir nas manhãs de domingo com ele no CMTC Clube para assistir ao Desafio ao Galo. Com esse aporte, dá para perceber porque não tenho problemas com lugares precários, mesmo concordando que muita coisa poderia melhorar. Não tenho medo de sujar a bunda de barro, em resumo, mas acho mesmo que é melhor sair com o pé um pouco mais limpo. Foi com meu avô que fui a primeira vez (e a segunda, a terceira...) a um estádio de futebol. Não, não foi... Lembrando bem, foi com o meu pai mesmo, na rua Javari para assistir um jogo do Juventus. O que meu avô fez foi me levar pela primeira vez a um jogo do meu time, o Corinthians, no mítico Pacaembu. Assistir um jogo no estádio tinha a mesma diferença com relação a um campinho de várzea que assistir um filme no cinema ou na TV; que levar uma criança, acostumada às piscinas, para ver o mar. A sensação é de assombro ou de admiração; de qualquer forma, de deslumbramento. E o que pode ser mais filosófico que o deslumbramento?

Daí por diante, ir ao estádio passou a ser um hábito, que se manteve até o final da década de 80, sem time certo, e apenas pelo prazer de ver um bom jogo, objetivo nem sempre alcançado. Sempre gostei de assistir os jogos sentado, com observação atenta. Não tenho nada, rigorosamente nada contra os torcedores que pulam e cantam – eles são a autêntica alma dos estádios – mas meu jeito de assistir um jogo é outro, fora das extintas e legítimas gerais, e não acho isso um defeito, apenas uma maneira diferente de acompanhar e apreciar legitimamente o futebol. Isso tira o estatuto de sem graça a uma partida com pouca presença de público.

De onde eu morava, o campo da Rua Javari era o mais fácil de ir, 20 ou 30 minutos de ônibus era o suficiente. O mesmo se aplica ao campo do extinto Saad, de São Caetano do Sul, que jogava no Lauro Gomes (hoje Anacleto Campanella) e também exigia só um ônibus. Outros estádios davam um pouquinho mais de trabalho para ir: Fazendinha (sim, é verdade. Até a década de 80, era comum o Corinthians mandar seus jogos menores lá, com suas arquibancadas enviesadas e sua biquinha de água mineral benta) ficava próxima, mas fora de mão. Para ir ao Canindé, precisava pegar metrô. Para a Comendador Souza, trem. O mesmo valia para o Bruno Daniel, em Santo André, acrescido de ônibus. O Pacaembu era fácil também: ônibus até o Ipiranga e de lá o Pompéia, descendo no cemitério do Araçá. Dali, era morro abaixo. Deu para perceber que não tínhamos carro, correto? O mais complicado era o Morumbi, que ficava longe, longe mesmo. Um jogo no Morumbi te tomava o dia inteiro, não dava para ver jogos lá a toda hora. E é exatamente lá que os grandes clássicos aconteciam. Além do mais, é um estádio imenso. Dependendo do lugar, é muito difícil ver o que se passa em campo. Por isso mesmo, era o estádio em que eu menos ia; em geral, só quando o Corinthians enfrentava os outros grandes. No Parque Antarctica eu nunca fui, por uma ética que hoje acho tola, e a Vila Belmiro conheci mais recentemente, apoiado pela patroa santista.

Com a explosão da violência da década de 90, deixei de ir aos estádios. Já não havia mais campos de várzea para levar meus filhos, e a corrente se quebrou, infelizmente. Mas recordei dos pequenos jogos dos igualmente pequenos clubes e voltei a frequentar os igualmente pequenos estádios. Voltei, em suma, a comparecer nos jogos dos quais nunca deveria ter me afastado: aqueles que dispensam grandes preparações e gastos vultosos das novas arenas. Aqueles jogos em que basta dar na telha e ir, com poucos problemas para encontrar ingresso, para se acomodar no primeiro lugar que se achar e assistir a partida procurando novos craques e reconhecendo antigos operários da bola que ainda resistem à aposentadoria. Se o campo fracassar, há sempre um canolo (canoli é plural, gente) ou um bolinho de bacalhau para fazer compensar a viagem. E tenho lá minhas camisas. A do Santos é da patroa.

Falta a da Lusa, que apanhou anteontem do Oeste de Itápolis
Tem gente que acha ridículo que eu vá em um sábado à tarde assistir a um Juve-Nal pela Copa Paulista. São pessoas que só vão a jogos do seu próprio time, que acham que não existe sentido em acompanhar outras agremiações, a não ser que seja para secá-las, o que pode ser feito remotamente pela TV. Respeito a posição, mas acho que quem faz isso não gosta de futebol, gosta do seu time. Mais ainda: gosta das vitórias do seu time, e acompanhar equipes que passam a maior parte de sua existência mais preocupados em sobreviver do que em conquistar títulos já é, por si só, um fracasso. É o mesmo fenômeno que afeta as viúvas do Senna; a despeito da excelência do precitado piloto, as pessoas que dizem que acabou a graça de levantar cedo no domingo para assistir uma corrida não gostam de automobilismo, gostam de brasileiros vencendo. Por isso mesmo, entendo que a galera que só se preocupa com seu próprio e único time gostam exclusivamente de seu próprio e único time; gostar de futebol é outra coisa. E quem só se ocupa de grandes jogos, gostam de grifes, não de futebol. O futebol nasce e vive nesses pequenos clubes, que não ostentam grandes etiquetas nem vendem camisas a trezentos dinheiros, mas que representam uma determinada comunidade, uma cidade do interior. Um time de futebol, antes de mais nada, é o representante de um determinado conjunto de pessoas que, não necessariamente, precisa ser o time da moda, como o Barcelona ou o Bayern. Sim, são times ótimos de se ver, mas é preciso que exista um Alavés ou um Bochum para o campeonato existir.

Por falar em grifes, há uma tendência em se transformar um jogo de futebol em eventos rodeados pelo espetáculo, e embora não tenha essencialmente nada contra em ser bem tratado, vejo um certo risco em se tirar a importância do jogo em si, além de se fazer com que o ato de se comparecer a um jogo se torne mais significativo pelo aspecto midiático do que pelo esportivo.

Sem dúvida que precisamos atentar um pouco às transformações em nosso sistema social para entender um pouco melhor a pasteurização à qual me refiro. Ou, melhor dizendo, tentar compreender como os níveis da realidade que procuro analisar ficam em consonância entre o que percebemos e o que efetivamente temos. E é aqui que precisamos entrar com os conceitos de simulação e simulacro de Jean Baudrillard, sociólogo e filósofo francês que atacou a fundo a questão da influência da mídia na maneira como as pessoas constroem suas impressões sobre as identidades do que percebemos.

Baudrillard entende que a realidade tangível é algo que ficou no passado. O modo de produção capitalista surgido a partir da Revolução Industrial tornou possível uma reprodutibilidade tão intensa que não há a menor condição de distinguir um original de suas cópias. Isso foi a mola propulsora de um processo em que o mundo físico, do aqui e agora, foi paulatinamente perdendo significado em relação à sua imagem. Esse é um processo de simulação em que a cópia se confunde com o original, mas que ainda vai se agravar, em um mundo onde o virtual substitui o real, na forma de simulacro. Esse tal de simulacro é uma transformação da realidade em idealização, que vem no lugar do real palpável e que se torna objeto de desejo.

Um exemplo para deixar as coisas bem claras: as essências com sabores de fruta. Não há nada nelas que seja oriundo das próprias frutas e, sendo bem justos, algumas delas não chegam nem a lembrar o sabor da fruta a quem pretendem substituir, a não ser pelo nome que lhe foi dado. Há até mesmo essências em que nem se intenciona criar correlação com uma fruta real, como o clássico tutti-frutti, o blue ice ou o beijinho doce, que simplesmente não correspondem a nada de concreto na realidade, mas que o pessoal resolveu lançar assim mesmo porque é gostoso. Mas mesmo aquelas que, em tese, correspondem a uma fruta, tem seu sabor aperfeiçoado de modo a se tornar um paradigma, um novo ditame a ser seguido para tudo o que se relacione a determinada fruta suposta. E a fruta real, essa foge completamente da “reprodução” da essência. Pensem no seguinte: há algo mais doce-tão-doce-mais-doce-que-o-doce-de-batata-doce do que uma bala de morango? Justo ele, uma fruta cítrica, que às vezes precisa de um pouco de açúcar e creme para ser comido com mais prazer?

E assim segue com outros exemplos: a manga real é fibrosa, o abacaxi real urtica a língua, o tamarindo real é azedo de fazer chorar (e solta o intestino que é uma beleza). Suas essências não têm nenhuma dessas desvantagens. E mais ainda: as frutas reais não tem padrão de sabor, cada uma é uma surpresa. Quem já não teve a oportunidade de pegar um melão amargoso, uma melancia aguada, uma laranja insossa? No mundo dos simulacros, isso não ocorre, e o sabor é padronizado: sempre docinho, sempre equilibrado, sempre perfeito, sempre o mesmo. Desta forma, é o simulacro que se torna real, é com ele que produzimos uma referência, e não a realidade em si mesma. Interiorizamos que o sabor real da fruta é o da essência, e achamos que a pera comprada na feira não tem gosto de pera de verdade. E só desejamos o simulacro.

O problema é que o mesmo se aplica a inúmeros outros casos, incluindo o modo de vida das pessoas, o que vai se tornando perigoso. Reality shows são um caso extremo de simulacro, mas as próprias novelas reproduzem a mesma lógica, como eu já havia escrito há algum tempo atrás. Comparado com o amor quente, eterno e perfeito das tramas, temos uma vida sem sal, com relações tediosas, rotineiras, marcadas por discordâncias. Esquecemos que a vida é assim mesmo; as pessoas – todas – têm manias, têm defeitos, têm idiossincrasias, têm preferências, têm gases. O simulacro apenas nos dá a impressão de que vivemos errado, somos culpados pela vida de merda que levamos, por não nos adaptarmos a um modus vivendi que, no final das contas, não existe.

E no que isso tem relação com a vida nos estádios? Baudrillard é absolutamente radical em suas ideias. Para ele, viver uma não-realidade não é uma perspectiva, é um fato já consumado, totalmente arraigado em nosso dia-a-dia. Se observarmos a recente construção de arenas em nosso país, podemos sentir, sim, um pouco dessa profecia se cumprindo. Quando vemos o interior de um campo como a Allianz Arena, do Bayern de Munique, vemos um mundo maravilhoso, todo bem construído, confortável e desejável. Quando saímos, esta mesma realidade continua, estende-se através de uma cidade bem organizada, com transporte público eficiente a ponto de tornar quase desnecessário o uso de carros. Além disso, a cidade preserva seus traços históricos e não renega a modernidade. Estamos falando de um país como a Alemanha, plenamente desenvolvido. Se falarmos de seu xará brasileiro, o Allianz Parque, ou de seu concorrente, a Arena de Itaquera, teremos a mesma sensação de realidade nababesca ao olhar para o seu interior. Mas, ao meter o nariz para fora, temos uma realidade que diverge integralmente do que acontece lá dentro. Um entorno sem desenvolvimento ou sem possibilidade de expansão, trânsito difícil e transporte deficitário. Não adianta simular a realidade alemã – estamos no Brasil. Essa sensação de “ilha”, produzida a partir do ingresso em uma arena, faz com que o torcedor perca uma boa parte da noção do que ele está fazendo ali. As arenas maravilhosas sempre serão uma exceção dentro da cidade de São Paulo, ao contrário do que acontece em Munique. Esse recorte entre o mundo de sonho das arenas do Palmeiras ou do Corinthians, dissonante com tudo o que vemos nos trajetos que nos levam a elas, se incute em nossa cabeça na forma de uma contradição: o registro da nossa presença na arena é mais importante do que a própria presença em si. Se eu não fizer selfies e mandar para todos os contatos dos zape-zapes da vida, é a mesma coisa de não ter ido ao jogo. É mais importante o simulacro de realidade do campo luxuoso do que o próprio jogo real. Esse é o jogo que vale a pena ver, dizem aqueles que não entendem como eu posso gostar de assistir um jogo da segunda ou terceira divisão.

Mas ainda temos algo real para ver?

Notem como, ao contar um pequeno pedaço da minha vida, perpassa-se a narrativa com elementos dos clubes pequenos, e como eles dizem coisas a respeito de mim, muito mais até mesmo que os grandes clubes. E, se os times pequenos dizem a respeito de um único contribuinte, quanto mais não farão pela história da própria cidade, homens de pouca fé? Em especial daqueles menos recordados de sempre – os operários, os suburbanos, os pretos, os pobres, as putas, apesar das exceções. Preservar a história destes clubes menores é preservar a memória de uma camada pobre da população, o que é muito raro. É de se esperar que aqueles que pouco podiam fazer em termos de lazer não teriam lá muito o que preservar de fotos e memorabilia. Mas é deles que ainda podemos extrair informações que os clubes maiores já se afastaram muito e não deixam mais transparecer.

Comecemos pelo Nacional AC, clube da tradicional Barra Funda que é o primo pobre do assim chamado “triângulo do futebol”, junto aos CT’s de Palmeiras e São Paulo. O Nacional é descendente direto do primeiro time de futebol do Brasil, o São Paulo Railway, fundado não menos do que pelo próprio Charles Muller, que trouxe da Inglaterra as regras e os materiais do esporte. É um clube que mantém até hoje sua raiz ferroviária, exemplificada no seu mascote, um personagem típico das gares, com seu quepe redondo e seu apito. É alusivo a um tempo em que as ferrovias eram muito mais significativas do que são hoje. Se olharmos para o Corinthians, não possuímos nenhuma referência, nem no nome, nem no distintivo, nem no hino, nem no mascote, que ele tem a mesmíssima origem do Nacional: os grupos de operários das estradas de ferro, aos quais se juntaram outros trabalhadores das várzeas do Tietê para fundar o clube que é o que é hoje. Quase ninguém sabe disso, nem mesmo os corinthianos. Já pensou? Sport Club Ferroviária Paulista? Rá, rá, rá... Lembrem-se que sou corinthiano, evitem me matar.

A patroinha na Comendador Souza
No caso da até a pouco tempo atrás grande Portuguesa, ainda resta o modo com os quais uma colônia se construiu e manteve sua identificação. Há no Canindé um time cujo nome já diz tudo sobre sua origem, há o bolinho de bacalhau no bar do estádio, há a dança folclórica e há a festa típica. A torcida acompanha as cobranças de falta com palmas em ritmo de vira, canta fado como grito de guerra. É, em suma, mais do que um time, é uma instituição cultural e pedagógica. É um time de uma determinada imigração constituinte da composição de São Paulo. Um clube muito maior, que também nasceu de uma colônia, que também ostentava o nome de uma imigração, como o Palmeiras, diminuiu muito os traços dessa origem. Tudo bem, seu nome foi uma mudança forçada, mas foi só o início, passando por suas cores, até chegar no próprio nome de seu estádio, outrora com o sonoríssimo nome de Palestra Itália. Os nomes dos campos agora se compram, o que os tornam insossos, como é o molho de tomate de latinha diante do da mamma. Ok, o Palmeiras transcendeu sua própria origem e virou um clube de expressão nacional. Mas é só uma identificação que faz isso? O Vasco da Gama não é igualmente grande? A Portuguesa não poderia continuar a ser?

Talvez o exemplo melhor solucionado seja o do Juventus, da minha gloriosa Mooca, cujo campo minúsculo vive infestado dos alegres grenás, que cantam a Aquarela do Brasil à moda portenha: “Ôôôôô, e dá-lhe, dá-lhe, Juventoooooooos; e dá-lhe, dá-lhe, Juventoooos”... Em todo fim de semana, seja no sábado à tarde ou no domingo de manhã, o estádio Comendador Rodolfo Crespi está cheio. A explicação vem do quase inexplicável bairrismo dos mooquenses. O Juventus não é só pequeno; ele nunca foi grande. Mas, parafraseando Fernando Pessoa na pessoa de Alberto Caeiro, o Juventus é o melhor time do mundo porque é o time do meu bairro, ao menos para os nascidos na Mooca, como eu. Não há lá ninguém que tenha o Juventus como time número 1, mas também não há ninguém para quem o Juventus não seja o time número 2, o time da minha vila, que joga no meu quintal.

Se o Juventus servisse de exemplo, com o campo colado na antiga fábrica têxtil que lhe deu origem, teríamos muita sensação de pertença e conservação da história, o que poderia reverter os efeitos pensados por Boudrillard, já que manteríamos os pés na realidade justamente por nos orgulhar dela. Se o pessoal da Barra Funda e região aderisse da mesma forma ao Nacional, um dos campos mais acolhedores para assistir jogos se tornaria mais conhecido da cidade inteira, e se saberia que é lá que nasceu o tal do país do futebol; pelo menos um dos seus filhos mais antigos. Se a Portuguesa conseguisse chamar de volta o pessoal dos bairros tipicamente portugueses, como a Vila Maria e a Vila Guilherme; se conseguisse a adesão dos moradores do Brás e adjacências; se conseguisse transmitir pertença a todas as outras colônias pelo elo que as uniu em nossa terra, a nossa língua, talvez conseguisse atrair até mesmo os novíssimos imigrantes que estão profusamente ao seu redor, e se tornasse um prazer assistir seus jogos em estádio de tão fácil acesso. E talvez fosse mais rápido desfazer o mal da rapina lograda aos seus cofres.

Mas o Brasil não é o país do futebol, essa é a conclusão. No país do futebol, uma cidade com doze milhões de habitantes não deixaria de preencher os vinte mil lugares do Canindé, no que seria uma boa fonte de renda para que um time por onde desfilaram craques como Filó, Djalma Santos, Pinga, Brandãozinho, Ivair, Julinho Botelho, Jair, Servílio, Félix, Ditão, Marinho Perez, Enéas, Leivinha, Wilsinho, Zé Maria, Basílio, Ratinho, Jorginho, Toninho, Edu Marangon, Bentinho, Dener, Tico, Zé Roberto, Rodrigo Fabri, Leandro Amaral, Capitão, Guilherme, Bruno Henrique e muitos outros. Casa cheia seria uma boa fonte de renda mesmo com os ingressos mais em conta, para que a roda de visibilidade e patrocínios começasse a girar. Apenas pela motivação histórica, no país do futebol um clube como a Portuguesa já haveria sido socorrido. Mas não. O país de futebol, para sê-lo, precisaria contar com o orgulho da população em ter um time local, e no fato deste time enfrentar os clubes das cidades próximas com o mesmo nível de apoio com que recebe um time grande. Ainda que sentados em montinhos de barro, como eu fazia quando criança, porque essa é a realidade que vivemos no país, fora das grandes arenas. Nosso país não é uma arena. É pobre. Nosso povo é pobre, infelizmente.

Recomendações:

A principal obra de Baudrillard voltada ao assunto aqui tratado é a seguinte, muito interessante:

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

Um canal de futebol do Youtube bastante interessante é o do Esporte Interativo. Gosto, principalmente, do quadro “Polêmicas Vazias”, conduzido pelo Bruno Formiga. Aliás, de vazias, as polêmicas não têm nada. Mesmo que não concorde com todas as suas opiniões, aprecio muito a maneira como ele as coloca, principalmente pelo científico fato de que ele procura embasá-las, evitando meros achismos. Segue um exemplo de vídeo bem interessante:

terça-feira, 4 de abril de 2017

Sobre tradições arraigadas e onde elas podem por pedras no caminho da modernidade [Pequeno guia das grandes falácias - 36º tomo: o apelo à tradição (argumentum ad antiquitatem)]

Olá!

Uma agulha finíssima, uma seringa plena de glicose com mais alguma substância, uma mão habilidosa e o milagre acontece: picada a picada, os pequenos vasos da patroa vão sumindo à frente dos meus olhos, substituídos temporariamente por uma leve irritação e um subsequente esparadrapo. É o tratamento chamado escleroterapia, destinado a dar fim nas telangiectasias, os pequenos vasos sanguíneos capilares que arrepiam os cabelos de nossas consortes. Um dos métodos mais comuns é este que descrevo: o angiologista (mais conhecido como “vascular”) inutiliza o vasinho já dilatado e pouco funcional, fazendo-o desaparecer, já que é o fluxo do sangue que o torna vivaz. Fechado o caminho, o sangue vai procurar outras rotas para seguir seu curso, da mesma forma que faz a vida a caminho da morte.

Líquidos que são utilizados para suprimir os fluxos de outros líquidos... Não é à toa que a Filosofia nasceu especulando que a água era o elemento primordial de tudo. Hoje, com todo o aporte científico que temos, sabemos que as coisas não são assim, mas não foi sem dor que chegamos a esse tipo de conclusão. Penso nisso porque, ainda hoje, escuto no consultório do angiologista, meio que lateralmente, alguns comentários sobre o já distante acidente fatal com a cantora Clara Nunes, que morreu em 1983 por complicações alérgicas em reação à anestesia que tomou para uma cirurgia de remoção de varizes. Sim! As pessoas têm tanto medo de morrer que desenterram uma história de mais de 30 anos, cheia de teorias da conspiração, com tecnologia anestésica totalmente superada. Pode-se morrer de choque anafilático ainda hoje? Sim, é claro. Mas essa bolachinha que você está comendo enquanto me lê pode conter uma bactéria que vai te levar para a cova. Como diz o senso comum (desta vez com sabedoria), para morrer basta estar vivo. Por isso mesmo, é bom não ficar queimando muito a chapa com esse tipo de coisa. Vai arrancar essas varizes que te fazem sofrer. Faça uma boa macarronada com elas.
Falando em bactérias e líquidos, penso em Cláudio Galeno, médico e filósofo romano do século II, brilhante em suas teorias fisiológicas, que perduraram por muitos séculos. Foi dele que as práticas de dissecação e vivissecção se voltaram para objetivos medicinais e profiláticos. Portanto, embora suas teses estejam hoje superadas, é importante que sejam conhecidas para que se compreenda como se constrói uma Ciência.

Vejamos. Quando uma pessoa ficava doente, nem sempre era possível determinar uma correlação direta com uma causa. Óbvio: comer carne podre dava uma bela diarreia (voltarei a isso), mas havia outras moléstias que pareciam surgir do nada. Acordava-se indisposto, febril, dolorido; pensava-se no que se havia feito de errado no dia anterior – um dia a mais enfileirado no caminho, sem nada de especial. O princípio do Deus das Lacunas fazia pensar na insatisfação de alguma divindade especialmente suscetível, mas as coisas permanecem incertas, mesmo assim.
Pois bem. Galeno, estudante de Hipócrates, com sua faquinha ligeira e seu espírito desbravador, gostava de dissecar macacos, animais com fisiologia bastante próxima à do ser humano. Além dos costumeiros órgãos e vísceras, o que mais via no interior dos organismos eram líquidos – sangue, linfa, secreções, sucos gástricos, urina, às vezes pus, às vezes esperma e assim sucessivamente. O indicativo era intuitivamente claro – os líquidos do corpo possuíam um equilíbrio tal que, movidos seus respectivos níveis, havia influência direta na saúde e – mais ainda - na personalidade das pessoas. E aqui já vamos deixar registrado que, ainda que as teses de Galeno já não sejam válidas, uma coisa ele sacou com precisão: disposições físicas podem determinar comportamentos psíquicos, como a moderna neurologia já detectou. Deficiências em certos neurotransmissores e hormônios são causas comuns de depressão e outros acometimentos mentais.

Mas vamos detalhar um pouquinho a teoria dos humores. De todos os fluidos do corpo, Galeno isolou quatro – o sangue, a fleuma, a bílis negra e a bílis amarela. Estes líquidos eram os componentes que se misturavam em diferentes proporções no organismo e que, além de determinar sua saúde, davam à personalidade do contribuinte algumas características.
Esses quatro termos são mais conhecidos como humores. A palavra “humor” não nasce de alguma indicação de temperamento. Essa associação será feira posteriormente justo por causa da teoria dos quatro humores (cuidado com a inversão de causa e efeito), que diz que é a quantidade de um dos humores que dá a linha de comportamento de um indivíduo. O vocábulo surge do latim humore, que significa líquido. Até hoje, há alguns líquidos do organismo que são chamados tecnicamente de humores, como é o caso dos humores vítreo e aquoso, que representam as partes gelatinosas do olho em contato direto com a retina e o que preenche as câmaras oculares, respectivamente.

Bem, o que são cada um desses líquidos? A fleuma é a substância gelatinosa que recobre a superfície das vias aéreas, o famoso muco. A bile amarela é um líquido secretado pelo fígado e que serve para emulsionar as gorduras. A bile negra seria excretada pelo baço (o que não é um fato) e o sangue... O sangue é sangue. Cada um desses líquidos seria capaz de carregar consigo um pacote de características físicas que dariam por resultado um certo comportamento. Assim, a fleuma traz a frieza; a bile amarela, a ira; a bile negra, a tristeza, e o sangue, o ardor. Todos os indivíduos possuem os quatro humores, sendo que a sua combinação dá um determinado modo de ser para cada um. Assim, os indivíduos sanguíneos, com excesso de sangue, seriam afetuosos, hiperativos, fortemente emotivos. Os fleumáticos são calmos, ponderados, até mesmo indiferentes. Os coléricos (do grego kholé, bile) são raivosos, vingativos, impacientes, e os melancólicos (de melas kholé, bile negra) são tristes, pessimistas, dados à passividade. Os comportamentos transitórios são explicados por uma perturbação eventual do equilíbrio dos humores. Isso explicaria nossos estados de comportamento: quando estou com raiva, há uma maior proporção da bile amarela na composição dos líquidos do meu corpo. Se estou em “estado de repouso”, os humores voltam ao seu estágio natural, e aquele de maior teor dará minha característica geral, o meu humor típico.
A teoria dos humores persistiu por anos a fio, e sua base se dava nas ferramentas que se dispunham à época: observação direta, dedução e especulação. Nada mais do que isso. Só foi sendo paulatinamente derrubada por provas e mais provas de seus enganos (embora houvesse algum sentido lógico e algum acerto fisiológico, como já mencionei anteriormente), até ser totalmente superada. Mas houve tanta resistência que até hoje há quem continue atribuindo veracidade à teoria dos quatro humores, de maneira espiritualizada.

É que as tradições são difíceis de ser transformadas. Quando passamos um conhecimento de um para o outro (a origem da palavra tradição – traditio - significa a passagem de alguma coisa para outra pessoa, mas não uma coisa qualquer; é coisa de valor, importante, que queremos que seja mantida pela pessoa que a recebe) é transmitida também uma relação de confiança. Em cada valor que transmitimos temos a esperança de que esse valor seja mantido e retransmitido para todo o sempre. Pense bem: você não gostaria, de fato, de que tudo o que é importante para você seja importante para o universo inteiro, em todos os tempos? É esse o caso. As tradições nascem de coisas importantes, ainda que esse significado seja dissipado pelo tempo. O grande problema é que uma tradição tem um valor efetivo enquanto ela carrega um significado. A partir do momento em que a tradição se dissocia do seu tempo e passa a ser um mero ritual, é preciso repensá-la ou abandoná-la. Hoje em dia, retomando nosso tema, é incompreensível que se atribua uma doença ao desequilíbrio de humores. Quando a tese surgiu, não havia instrumental para saber que existiam bactérias, vírus, protozoários e outros buliçosos microorganismos. A diarreia pela carne podre se explica pelas bactérias que ela contém, e não pela ingestão pura e simples. Galeno não tinha como saber disso, então usava a lógica possível, que era engenhosa e se consagrou, mas não era correta.
Podemos dizer que a tradição é, portanto, irracional? Vamos com calma. Como a tradição exige um certo fluxo (não há tradição aferrolhada em uma única pessoa, senão não é tradição, ora bolas), ela sempre é social. Um cara que falou sobre esse tema foi Max Weber.

Maximilian Weber faz parte da tríade sagrada da Sociologia, ao lado de Émile Durkheim e Karl Marx. Porém, ao contrário de ambos, que entendiam ser a própria sociedade que moldava os seus componentes, Weber apontava seu telescópio para o indivíduo, célula social sem a qual não é possível interpretar o funcionamento de todo o organismo. Eles são os atores que encenam as ações sociais, uma de suas principais teses. E o que é essa coisa?
Ação social é qualquer atitude consciente, seja ativa ou reativa, em que é dado algum sentido a quem a executa, e em que haja outros indivíduos envolvidos. Não existe ação social que não envolva pelo menos duas pessoas. Logo de cara, devemos diferenciá-las dos comportamentos passivos, porque nestes existe uma habitualidade que faz com que se aja com o piloto automático ligado, como fazem as pessoas que se benzem inconscientemente ao passar na frente de um cemitério.

Max Weber, após seus estudos, chegou à conclusão de que quatro eram os tipos de ação social realizados pelos indivíduos, sendo dois deles instrumentalizados pela razão, e dois que prescindem do componente racional. Para tentar entendê-los, vamos nos colocar de pé no domingo pela manhã e nos encaminhar à feira mais próxima. No meu caso, é a da Baixada do Glicério.
Ir à feira é uma autêntica ação social. Tenho consciência de que cometo alguns sacrifícios, como levantar cedo em dia livre, para obter alguns benefícios, que é o de comprar frutas e legumes. Também não estarei apenas eu envolvido. Os feirantes que me venderão, patroa e filhos que consumirão, pedintes que mendigarão, todos estão envolvidos, direta ou indiretamente, na ação social “ir à feira”. Mas há diferenças nos possíveis motivos que levam a ela.

1. Posso ir à feira porque quero comprar frutas, legumes e verduras;
2. Posso ir à feira porque acho que os supermercados são grandes centros capitalistas que querem tirar as oportunidades dos pequenos vendeiros e concentrar renda, atitude da qual discordo verticalmente;

3. Posso ir à feira porque tenho muitos amigos e velhos companheiros nas bancas e nos estreitos corredores;

4. Posso ir à feira porque minha família sempre foi à feira, desde meu avô que veio da Itália, passando pelos meus pais e chegando a mim, que já me encarrego de levar meus filhos junto, para que também eles o façam a seu tempo.

Agora vamos analisar as motivações, uma a uma. No primeiro caso, minha ida à feira deriva de uma necessidade que preciso suprir. Raciocino sobre essas necessidades e concluo que devo me encaminhar à feira, pois lá encontrarei os suprimentos desejados. Percebam que a ação social, neste caso, é motivada racionalmente por um objetivo certo e bem delineado. Há uma finalidade – é o que Weber chama de ação racional relacionada a fins.
Na segunda opção, também tenho um dispositivo racional a me mover. Só que, neste caso, o que me motiva não é a finalidade em si – comprar bananas e acelgas – mas um valor. Posso achar ético que mais pessoas tenham uma oportunidade de trabalho, e por isso deixo de aproveitar os melhores preços do mercado para procurar pela distribuição de minhas parcas moedas para um maior número de pessoas. É uma ação racional relacionada a valores.

Vamos à terceira hipótese. Neste caso, não estou preocupado com frutas ou legumes, nem com o valor de uma compra para um pequeno comerciante, mas estou a fim de bater papo, rever amigos, contar um pouco de mentiras e vantagens, comer um pastel e reclamar de seu pouco recheio. O componente racional é abandonado para ser substituído por algo que me toca os sentimentos, um componente emocional. É a ação afetiva.
Por fim, na quarta hipótese não há racionalismo aplicado, nem mesmo um laço afetivo. Vou porque sempre fui, porque meu pai ia, porque meu avô ia, sem me preocupar com objetivos, valores ou afetos, sem levantar questionamentos. É um mero uso, um costume. Esta é a ação tradicional.

Isso significa que a ação social tradicional é um mal em si e que deveríamos eliminar as tradições? Não, mil vezes; não é isso que estamos falando. Em primeiro lugar, não vivemos racionalmente cem por cento do tempo, ninguém consegue fazer isso. Muito pelo contrário. Desde cedo, aprendemos a adotar séries de ações “decoradas” justamente para liberar a cabeça para pensar. Imaginem se a cada passo rumo à feira eu precisar fazer uma análise completa sobre os proveitos e deméritos do meu ato. Em segundo lugar, acostumamos a pensar nas tradições como componentes formadores de nossas próprias histórias, e que é importante mantê-las. Não há nenhuma dúvida quanto a isso, mas percebam a mancada. Quando me preocupo em conservar um tipo de música, um jeito de dançar, uma indumentária, uma certa técnica arquitetônica, em suma, em contar a história e os costumes da minha família ou da minha cidade – em preservar uma tradição – minha ação ganha um objetivo, que nasceu de uma ponderação. Nesse sentido, manter as tradições não é uma ação tradicional, mas uma ação racional voltada a fins. Entenderam a diferença?
Sinopse: a ação tradicional não é um problema em si mesmo. Ela só se torna um problema quando obstaculiza uma ação racional. Não faz sentido, por exemplo, continuar a tomar beberagens tendo medicamentos comprovadamente eficazes. Mas também é preciso pensar sobre o que nos amarra às tradições irracionalmente. Um dos motivos é o conforto, uma tendência à imobilidade. Se estamos vivos, bem ou mal adotamos uma estratégia de sobrevivência certa. É isso que nos insere nos mecanismos de evolução, animais que somos. Por isso temos a tendência a ser conservadores: mais do que manter situações de privilégio, a tendência atávica é de fugir de riscos. Mas também somos humanos, e não estamos aqui apenas para sobreviver. O mundo ao nosso redor evolui e precisamos continuar caminhando sobre ele. As tradições precisam ser continuamente reavaliadas para serem utilizadas da maneira correta – como um valor plenamente válido, como uma instância favorável de uso ou como um retrato na parede, de doce memória. O importante é que a tradição tenha sentido e que não seja um atravanco em nossas vidas.

Vamos dar um exemplo bem cabal da perda de sentido de uma tradição. Os dogmas católicos indicam que há alguns dias do ano destinados à contrição e à penitência, em especial nos períodos chamados de Quaresma e Semana Santa, tempos preparatórios para a principal solenidade desta religião, a Páscoa. Em tese, são dias em que o fiel deveria passar em recolhimento e oração, evitando abusos de prazeres mundanos. O cume deste estado seria a Sexta-feira da Paixão, que inclui a restrição de alimentos como carne vermelha, fortemente vinculada à luxúria e à vida desregrada. O peixe, ordinário, não entrava nesta conta, porque era considerado comida de pobre. A tradição persiste até hoje, e durante estes dias restritivos, onde se prega a humildade e simplicidade de atitudes, onde se é exercitado o desprendimento das coisas terrenas, onde se busca desvencilhar dos prazeres, substitui-se o pecaminoso bife por um modesto e bem comportado... bacalhau!!!
Sim, é verdade. A tradição da Sexta-feira da Paixão desembocou, aliada à tradição culinária portuguesa, na orgia consumista do caríssimo peixe, muito mais oneroso que um ostentativo filé mignon. Ocorre que, em Portugal, o bacalhau é abundante e barato, no exato contrário do que acontece em nossas plagas tropicais. O dito bacalhau é um verdadeiro devorador de cartões de crédito, porque não basta ser caro, é preciso ser muito. Que dê, ao menos, para o almoço e a janta. Imaginemos uma oração fictícia a ser realizada no prólogo da refeição de uma igualmente fictícia família na Sexta-feira Santa:

“Ó, Senhor! Tu, que passaste 40 dias no deserto em jejum para viver livre das tentações, que viveste com pouco e partilhaste com pobres e desfavorecidos de todo tipo, receba nossa oração neste dia de sua morte, onde descemos à máxima humilhação de nos mal alimentar com uma insignificante bacalhoada à Gomes de Sá, guarnecida por uma caponata com alcaparras e regada por um vinho Madeira, em celebração ao teu santo sangue, e trancamos nossas tendências ao pecado sorvendo pasteis de Santa Clara, padroeira da parcimônia. Pedimos penhoradamente que nos dê força para suportar esta privação em sua honra e glória. Amém!”.
Para onde se encaminhou o sentido da tradição da Sexta-feira Santa? Percebem como é uma tradição vazia? A ação social da bacalhoada na Sexta-feira da Paixão não é nada mais do que isso: uma ação oca de racionalidade. É um problema a ser resolvido pelos católicos: ou se arregimenta suas massas, lembrando-as dos significados da sua tradição, ou se abandona a mesma. Do jeito que está, há só cinismo.

Mas sabemos o quanto é difícil mudar hábitos arraigados. Pela própria pressão psicológica de estabilidade e conservadorismo que já citei, há uma tendência quase natural a se selecionar argumentos para justificar uma tradição. Só que nem sempre isso representa uma boa lógica. E, nestes casos, vemos brotar um tipo de falácia informal de dispersão e relevância conhecida como apelo à tradição (argumentum ad antiquitatem).
O apelo à tradição tenta nos impingir o convencimento de que algo é melhor porque é tradicional, porque é muito antigo, porque é repetido por muitos e muitos anos, e que deve preponderar sobre o novo apenas e tão somente por isso. O seu principal mote é atribuir uma espécie de crivo temporal pelo qual a tradição não teria sobrevivido se não fosse valiosa. Mais ou menos como um livro, que, por ser antigo, contenha melhores informações do que um novo.


Antigo não significa antiquado, mas é preciso ter cuidado para achar que as coisas novas não podem ser melhores por não ser tradicionais

É claro que essa linha de pensamento é inválida, como pudemos perceber pelas teses de Galeno. Do mesmo modo que algo não é bom pelo simples fato de ser moderno (vejam meu texto sobre o apelo à novidade), também a idade não é argumento suficiente para dar suporte e consistência a uma tese. Nem vou dar exemplos porque os mesmos já restam abundantes neste post.

Mas apelar à tradição nem sempre é falacioso. Como premissa básica, podemos afirmar que antigo não é sinônimo de antiquado. Por isso mesmo, um livro de um autor antigo não é, obrigatoriamente, um livro defasado por completo. É necessário, por conseguinte, que se contextualize adequadamente onde a tradição tem relevo. Galeno mesmo tem importância real na história da medicina pela sua tradição de pesquisa e filosofia, isso ninguém pode tirar dele. O que se precisa evitar é achar que trepanações e sangrias são melhores do que o uso de medicações exaustivamente testadas em laboratório. É isso o que fere a lógica.
Recomendações de leitura:

Weber é basilar na Sociologia. Qualquer um que se interessar no assunto tem que passar por ele, obrigatoriamente. O livro abaixo é aquele onde melhor se discorre sobre suas teses de ação social.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Unb, 2000.

Não consegui achar nada de Galeno em português. Para quem se interessar muito, há esta edição em língua inglesa de um de seus livros mais expressivos.
GALENO, Cláudio. On the therapeutic method. Gloucestershire: Clarendon, 1991.