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segunda-feira, 29 de março de 2021

O pensamento por oposição e o Pequeno guia das grandes falácias – 58º tomo: o argumentum ad temperantiam (falácia do meio-termo)

Olá!

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Nós vivemos tempos difíceis, não só por conta do interminável coronavírus, mas também pela profunda divisão que encontramos em nossa sociedade. Aqui, não cabe pensar apenas nas famosas classes em luta de Karl Marx, nem nas divisões causadas pela horrorosa distribuição de renda, mas no plano do debate político mesmo. Nos últimos tempos, exacerbados pelas recentes decisões do STF, a coisa começou a se figurar como guerra aberta para a eleição do ano que vem.

Ao lado disso tudo, temos uma confusão dos diabos na condução da pandemia, e também aqui as coisas ficam na base do Fla vs Flu. Pouca gente pondera de verdade na questão. De um lado, defende-se o SUS porque os manda-chuvas o elogiam. De outro, ora, porque os manda-chuvas o depreciam. Do meu lado, procuro entender o que ele é e como funciona, e percebo que há muito mais coisas favoráveis do que contrárias, sem que me gritem o porquê. Então eu deveria simplesmente acionar a verve armênia e deixar que os cães ladrem, à direita e à esquerda. Só que quando se faz campanha contra a vacinação, não é atingida somente ela em si, mas toda uma cadeia complexa e exemplar do sistema de saúde do Brasil, e que somente não decolou de vez até hoje por conta da falta de dinheiro.

Só que eu não ando com saco para comentar política, e chamei o assunto apenas para dar base ao tema que quero abordar. As polarizações políticas são tão comuns porque isso é uma predisposição de nossas dicotômicas mentes.

O ser humano pensa por oposições, já dizia a filósofa argelina Hélène Cixous, da escola pós-estruturalista francesa. Para que consigamos estabelecer o que é bom, logo pensamos em algo que é mau; no que é lento, pensamos naquilo que imaginamos ser rápido; no que é antigo, tentamos estabelecer mentalmente o que é recente, e assim sucessivamente. Ou seja, para que consigamos raciocinar, procuramos sempre um referencial, e a maneira mais simples que nosso cérebro encontra é a guinada de 180 graus, olhar lá para o outro lado e estabelecer quão distante está uma posição da outra. O binarismo destes princípios mentais vai desembocar diretamente na linguagem, o que gera nela uma espécie de hierarquia, onde um dos termos sempre vai encontrar prevalência sobre o outro.

Talvez seja muito difícil lutar contra essa espécie de predisposição à estrutura binária do pensamento, e o grande problema não está em se reconhecer os extremos, mas se fixar muito próximos a eles gera um desequilíbrio que mexe na forma como valorizamos tudo aquilo que está na outra ponta. Tudo tende a se aglomerar em torno dos polos, como se houvesse uma força de atração nesses extremos, uma espécie de imantação cognitiva. E isso vai fazer com que julguemos o lado de lá como estranho à relação, como se fossem desviante, como se estivesse não só do lado oposto, mas do lado de fora. E isso não é verdade.

Peguemos como exemplo algo que me é caro: futebol, claro... Corinthians e Flamengo costumam condividir as mesmas atribuições, cada um em sua terra. Time do povo, torcida apaixonada, que lotam estádios por onde passam. Estão em um polo bem específico no espectro da popularidade, que não guarda relação apenas com atributos de volume, mas de oposição à elite. Por isso, são também times de molambos, de desdentados, de analfabetos. São times de massa, e o povo é relacionado, por oposição à camada mais rica, à pobreza, à falta de cultura, às doenças da miséria. Tudo errado. Nem o povo é inculto, nem é interdito a ricos e intelectuais de gostarem destas equipes.

Cixous aprofunda esse debate no sentido do gênero. Ela percebe que, além da desproporção do pensamento binário, há uma tendência em se atribuir características femininas ao polo inferior na relação linguística. Os pares dicotômicos guardam uma posição hierárquica entre si, e aqueles atribuídos ao gênero feminino sempre estão na parte baixa. Forte e frágil, claro e enigmática, ativo e passiva e, especialmente, racional e emocional são as formas em que não há trânsito, apenas saltos. Ser emotivo não é particularmente um problema, mas está hierarquicamente inferior ao racional, que é designativo da espécie. O homem emocional é mariquinhas, é um defeito, percebem?

Só que não há diferença entre a forma de pensar entre homens e mulheres.  O riso da Medusa é exatamente o reconhecer que a petrificação é só um efeito de um pensamento embotado, e a górgona não é monstruosa, mas linda e sorridente. Estas são tão capazes quanto aqueles de realizar coisas emocionais e racionais, fortes e frágeis, ativas e passivas.

A busca racional, neste caso, não está em considerar tudo o que é emocional como bom e migrar automaticamente para o outro polo, o mesmo valendo com relação à racionalidade. Elas são boas e preciosas em seus momentos específicos, e não é possível nem necessário que se abra mão delas. É preciso alguma solução, e ela vem de muito tempo atrás, mais especificamente do velho Aristóteles. O estagirita tinha uma concepção de homem como animal político que o fazia julgar impossível a existência de humanidade fora das relações sociais (para saber  mais, leia este texto). Isso fazia com que se acreditasse  que o melhor homem é aquele virtuoso, que soubesse o que era melhor para si e para a polis: a eudaimonia, no jargão  filosófico. No vernáculo,  nada mais é do que a felicidade,  a teleologia do ser humano e de suas construções,  a saber, as cidades. Não só  os homens  têm como propósito serem felizes, mas, a priori, a polis também  tinha esse objetivo.

Entretanto, temos aqui um paradoxo. É muito comum que as decisões  coletivas adotadas em uma comunidade não agradem a todos, e de uma cidade feliz extrairemos cidadãos infelizes. Ações extremadas de indivíduos tendem a ser egoístas,  e isso é um grande problema na vida em comum. Como isso pode ser solucionado?

Aristóteles nos fala sobre o meio-termo como virtude. Em uma relação onde podemos nos situar em extremos, qualquer aproximação radical a eles recebe o nome de vício, que é exatamente oposto à virtude almejada. Por exemplo: amar demais a nação é ufanismo; amar de menos é desapreço. Ambos são defeitos, porque o patriota excessivo deixa de enxergar as limitações de seu país, e o antipatriota maximiza o que há de ruim e não se dispõe a se dedicar a ela. Ambas as atitudes não trazem coisas boas. Outro: como um governante deve agir diante de um crime? Deve ser punitivo ou liberalizante? No primeiro caso, estará propenso a cometer excessos em nome de uma política do exemplo, enquanto no segundo poderá tornar a administração do convívio caótica. O que esperamos então? A virtude que vai pelo meio desses dois extremos, a justiça. Ser justo, no caso, é aplicar uma dosimetria ideal para a correção do erro, sem que haja desproporcionalidade, nem que se cultive a impunidade.

É no caminho do meio (conceito explorado concomitantemente pelo Budismo) que se encontram as qualidades essenciais do bom homem e do bom cidadão, na medida em que este vive da melhor maneira possível para si mesmo e para a pólis. Ou seja, a mediania é o caminho para a eudaimonia.

Acontece  que mesmo o ponderadíssimo meio-termo tem problemas,  e ele vem em forma de falácia. Nem sempre encontrar o caminho do meio literal é a melhor solução  para um problema.

É que o pessoal faz uma confusão que se aproxima da comparação entre meio-termo e média aritmética. Basta somar os dois valores extremos e dividi-los por dois para se obter o meio-termo. Não é isso, é óbvio. Mesmo uma das mais elegantes demonstrações da matemática, o número de ouro, mostra que nem sempre a metade geométrica corresponde a um ponto ideal. Vejam sua aplicação na divisão em média e extrema razão, conhecida também pelo charmoso nome de divisão áurea:

Quando os segmentos de reta são cortados no ponto certo, teremos entre a reta total e os dois segmentos uma progressão geométrica, em uma razão correspondente ao número irracional 1,618... O número de ouro é uma constante matemática que aparece em inúmeras ocorrências na natureza, e por esse motivo é considerado uma dádiva divina. Para obter a constante, é possível fazer um exercício. Divida-se na vertical um retângulo que tenha como proporção entre altura e largura o número áureo. Uma dica para facilitar é usar altura 10 e largura 16,18 meio na vertical; em seguida, pegue-se a seção menor  e divida-se ela na proporção áurea, desta vez na horizontal. Ao se repetir o processo, é possível perceber que a linha de tendência imaginária descreverá uma espiral, e o número que dá a razão para o seu estreitamento é exatamente o número de ouro, ou proporção áurea. Se constituísse uma média perfeita, teríamos círculos concêntricos, e não a espiral que é traduzida como perfeição desde a arquitetura clássica grega, e que também pode ser achada com frequência na natureza.

Disponível em https://www.researchgate.net/figure/Golden-rectangle-and-golden-spiral_fig1_333224083

Sendo assim, a simples afirmação de que a média entre dois opostos é um meio-termo, faz com que tenhamos uma falácia, a falácia do meio-termo, ou argumentum ad temperantiam. Esse nome vem da qualidade de ser comedido, de ser moderado, de dosar adequadamente uma coisa qualquer, o que pode parecer muito justo, mas nem sempre é. É a história que vivemos atualmente: se temos dez milhões de doses disponíveis, então poderemos imunizar cinco milhões de pessoas. Não adianta usar de temperança para chegar a um meio-termo. Se eu der uma dose só para dez milhões de pessoas, será a mesma coisa que não ter vacinado ninguém. Se a prescrição são duas doses, são duas doses e pronto. É melhor ter cinco milhões de efetivos imunes do que dez milhões de imunes de mentira. Aqui, o meio-termo não cabe, e é falacioso.

É mais que óbvio que há momentos em que o meio-termo é uma divisão simples por dois, e nesse caso não há falácia. Se eu tenho um console para duas crianças, é uma hora para cada um e acabou, sem dores na consciência nem desproporção.

Também é mais do que óbvio que moderação não é um mal em si mesmo, muito pelo contrário. Sempre que eu falo em temperança, é inevitável de pesar na gula. Ontem mesmo eu fiz uma petiscaria com a galera aqui em casa, e sempre parece que cabe algum petisco a mais. Já está todo mundo de barriga cheia, mas a mesa ainda oferece os exageros preparados a mais, e entre o papo e a cerveja vai indo tudo goela abaixo. A noite vai cobrar o preço e a gente sabe disso, mas o comedimento não chega.

E esse é o pulo do gato dessa falácia. O meio-termo sempre parece mais ponderado, mais justo e infalível. Diga a alguém que há uma dose certa para fazer exercícios e você estará correto: exercício demais é perigoso, e de menos é inócuo. Ou seja, o meio-termo é o ponto que fica entre o escasso e o excessivo, sem, no entanto, que se prenda uma definição fixa entre dois pontos. Esse é o erro.

É isso. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Hélène Cixous ainda vive, e é uma das mais importantes vozes do feminismo de nosso tempo, mas, infelizmente, é muito pouco divulgada no Brasil. Segue uma indicação em espanhol.

CIXOUS, Hélène. La risa de la Medusa. Ensayos sobre la escritura. Barcelona: Anthropos, 1995.

O livro de Aristóteles escrito a Eudemo é muito menos famoso que aquele escrito a Nicômaco, seu filho, inclusive tendo muitas partes repetidas entre ambos. Mas é no material próprio desse livro que ele fala com mais propriedade com relação à mediania.

Aristóteles. Ética a Eudemo. São Paulo: Edipro, 2015.

terça-feira, 23 de março de 2021

O café filosófico do quotidiano – quando a verdade não é um mero substantivo

Olá!

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Têm vezes em que o tempo pede um pouco mais de calor. Nesta inconstante cidade onde Ricardo Soares diz não chover mais poesia, a temperatura varia da mesma forma que os humores. Eis que nestes dias, onde mesmo o verão amanhece frio, é melhor optar por métodos que garantam um café mais quente. Sendo assim, vou à prateleira superior e pego minha cafeteira italiana, também conhecida pelo simpático nome de Moka.

Simpático porque lembra a Mooca? Claro que sim. Mas é preciso deixar claro que uma é palavra de origem árabe, e a outra é indígena. Uma faz referência ao porto iemenita de onde saía a maior parte da produção cafeeira do século XV, e a outra à construção de casas aproveitando a argila do rio Tamanduateí, segundo se diz. Explicações à parte, o aparelho oportuniza um café saindo muito quente, porque ele não precisa passar por um coador externo, nem pousar por algum tempo para infundir. É do fogo para a xícara. O café passa por um processo de expansão ao ser banhado pela água fervente de uma câmara onde se forma vapor.

De lá, sobe por uma coluna até ser despejado no recipiente de cima, onde fica até terminar o processo, tudo isso sem apagar o fogo em nenhum momento.

Há uma boa quota de ritual nesse processo, embora haja junto dele uma aura de modernidade. Isso porque o encaixe a rosca e seu material metalizado contrasta um pouco com o jeitão campestre que um café costuma ter.

Nome do utensílio: Cafeteira italiana (moka)

Tipo de técnica: pressurização

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: o café é colocado (sem apertar) em um porta-pó em forma de funil no interior de uma câmara de vaporização. Ao atingir a fervura, o vapor pressiona a água a subir pela cânula do funil, onde o pó é atingido. Sua expansão natural faz com que a pressão aumente ainda mais, melhorando a qualidade da extração. Retido por um filtro metálico, o pó fica acumulado na campânula do funil, enquanto o líquido sobe para o recipiente superior do conjunto, de onde poderá ser servido.

Resíduos: baixo-médio.

Temperatura de saída: muito alta

Nível de ritual: médio-alto

O processo todo tem uma cara de mágica, embora seja tudo pura física, e isso dá a tal cara de ritual. A água que se insurge contra a temperatura à qual é submetida, seu irromper como se fosse uma erupção vulcânica, até mesmo a água preexiste no recipiente superior que evita o gosto de queimado, tudo isso dá ar místico ao processo, o que dá um pouco mais de expectativa ao resultado final. Ainda coloquei um pouco de água quente nas xícaras para dar uma temperada e fui levar para a consorte, como faço de hábito.

Tolo dos tolos... Distraído no papo com a patroa, virei o café na boca como se não houvesse amanhã, e levei uma bela sapecada na língua, não conjuminando que a moka faz um café mais quente que outros métodos.

Fui colocar água fria na boca, até parar de arder, e, a partir de então, fui bebericando o que restava de golinho em golinho, com o prazer cortado pela metade, pela perda momentânea da capacidade gustativa. Toda magia foi para o vinagre: a insurgência da água, a erupção vulcânica, a salvação do sabor, tudo apagado na forma de uma bolha na língua. Aquietei-me no ardor e comecei a refletir: como as coisas enganam a gente fácil, fácil. Um segundo de descuido é o suficiente para que a vida gire no sentido oposto, e a tostada na língua é uma metáfora disso. A transitoriedade é uma verdade incontestável. Verdade?

Já falei sobre a verdade mais de uma vez neste espaço, vez que ela é das principais matérias-primas da filosofia, e, se você for bem atento, perceberá que existem diferentes linhas de pensamento sobre a questão. Quando isso acontece, bem, podemos dizer que não chegamos a conclusão alguma. Vou dar uma rápida pincelada nas quatro correntes mais usuais, para logo em seguida dar outro rumo a esta prosa.

Vamos lá. A verdade pode ser correspondência. Se eu digo que a camisa do Juventus é grená, você vai à loja da Javari e confere: é grená de fato. Se não for, ou não temos verdade, ou há uma explicação mais sofisticada, uma correção da tese (segunda camisa, edição comemorativa).

Ela também pode ser coerência. Como exemplo, menciono o golaço do Pelé feito ali mesmo, no velho campo do Cotonifício Crespi. É um gol feito com quatro chapéus, sem que a bola pingasse no chão uma única vez. Não há nenhuma prova concreta da feitura da obra de arte, somente os testemunhos, que sabemos ser a mais frágil de todas as provas, as evidências anedóticas. Mas os elementos da descrição são plenamente coerentes: o gol incrível foi feito por um dos atletas mais hábeis de todos os tempos, contra um time que, mesmo sendo muito querido, nunca foi uma potência inconteste, e os depoimentos são todos coincidentes. Toda essa coerência dá estatuto de verdade à palavra dada. 

A verdade ainda pode ser consenso. Diante de uma multiplicidade de opções, a mais verdadeira é aquela que atinge uma melhor concordância entre aqueles que têm algo a dizer sobre o assunto. Na rua Javari, por exemplo, há uma estátua do zagueiro Clóvis Nori, considerado o maior ídolo da história juventina. Poderia ser o goleiro Mão de Onça, os irmãos Brida e Brecha ou o folclórico atacante Ataliba, mas é consenso que o melhor representante do espírito alvigrená é o esguio e estiloso beque, e isso dá estatuto de verdade ao que está na concordância geral.

Por fim, a verdade pode ser utilidade. Alguém poderia afirmar que o Juventus é o melhor time do mundo enquanto não entra em campo. Quando isso acontece, há uma conjunção de fatores que o impede de exercer sua excelência. Para o pragmático, o que isso importa? Vale o que é percebido na realidade e ponto final, um time da segunda divisão de um campeonato regional. Aqui, verdadeiro é aquilo que tem utilidade prática.

Mas vejam bem. Tudo isso que eu falei até agora é da ordem do discurso. Se você foi até a lojinha do Juventus para conferir a cor do fardamento, é porque alguém afirmou isso, ou, no mínimo, porque uma ideia toda composta de signos e linguagem se formou em sua cabeça. Se julgamos coerente a história do golaço do Pelé, é porque ela foi contada por alguém e achada conforme. Se temos consenso com a idolatria de Clóvis, é porque a narrativa de seu heroísmo é concorde no meio. O pragmatismo escapa um pouco da lógica metafísica da verdade, mas ainda assim não se desfaz do tacão da palavra. Será que a verdade é inerente às próprias coisas e fatos ou é só um elemento narrativo, uma característica linguística? Para isso, vou deixar o futebol de lado e partir para mais uma passagem da minha vida. Dá-lhe autobiografia.

A história toda é a seguinte: Morávamos em nove pessoas no mesmo quintal, cada célula familiar em seu compartimento, mas era como se fosse tudo fosse uma casa só, já que as portas estavam sempre abertas e licenciadas mutuamente. Na ocasião do fato, eu devia ter uns sete ou oito anos, mas era o mais emérito capeta de toda casa, com vantagem muito larga para todos os demais habitantes, cachorro e gato inclusos.

A cena do crime não era de maior complexidade. Em um banheiro que servia a duas das casas, foi encontrado, dentro de um lixinho, um grande amarfanhado de papel higiênico repleto de sangue. Minha madrinha viu aquilo e ficou desesperada, achando que alguém tinha se machucado feio, mas não quis contar para ninguém. Começou a pesquisa no seu próprio pedaço, pela veteraníssima tia Antônia e meus dois primos. Meu padrinho, no entanto, estranhou um sangue tão vivaz em tempo que já deveria ter escurecido. Aproximou seu nariz dos papeis e decretou: não é sangue, é Colubiazol©. Esse medicamento era um spray para garganta, de uma tintura vermelha muito viva, realmente semelhante a sangue, e que eu adorava, principalmente para fazer-de-conta de vampiro. A constatação tirou a dúvida de todo mundo – foi o Decinho. Ele deve ter pegado o remédio para brincar, derramou um bom tanto no chão e tentou fazer um montoeiro de papel para ocultar a arte. Só que não foi, e a acusação me causou uma revolta incomum. Quando me imputavam uma atentação qualquer, eu geralmente fazia uma cara confirmatória que tornava meu dolo inequívoco, mas, pela primeira vez, a culpa de fato não era minha, tanto que a história ficou presa na minha memória para sempre. De nada adiantaram meus protestos. A coça e a carraspana vieram como sempre. E nunca se descobriu quem foi o autor da obra.

Vejamos. Há correspondência: um monte de papel sujo em um lixo de privada e o esvaziamento do frasco. Há coerência: uma arte aprontada por uma criança fazendo uso indevido de um medicamento, tentando ocultar as consequências inesperadas. Há consenso: todos da casa sabiam que o mais capaz da presepada era eu e estavam assentes com relação à autoria, menos eu mesmo, é óbvio, e o dono real da ursada, que se manteve bem quietinho. E, por fim, há sempre a utilidade de se descobrir um culpado e gestaltianamente dar desfecho a uma narrativa. A cada ponto de todo o conjunto, havia uma modalidade da verdade para dar guarida à conclusão. Isso tudo foi alguma garantia da verdade? Parece que não.

Mas há algo que vai além da estrutura discursiva destas propostas da verdade, que é uma espécie de instância metafísica. É como se tudo no universo carregasse em sua essência uma propriedade de ser verdadeiro ou não, assim como ser existente, ou ser imaginário. Neste escopo, a tela de computador que vejo em minha frente é verdadeira porque eu a percebo, e que os led’s que acendem, apagam e variam na cor são verdadeiros porque a Ciência os explica como tal, ou como se houvesse uma “alma” que identificasse as coisas como são de fato. Mesmo a verdade pragmática tem essa característica, já que a verdade como utilidade é tão inerente quanto nas três outras teorias.

Mas há teóricos que colocam a verdade no campo semântico, retirando toda espécie de metafísica da verdade. São os chamados deflacionários. A verdade, para o deflacionista, é um fenômeno de linguagem.

Como funciona isso? E o que é essa tal de deflação? Bem, estes filósofos entendem que a questão da verdade nada mais é do que a concessão de uma substância à realidade que nos cerca que, no final, não existe. Não faz parte da essência de nada ser verdadeiro ou falso, e entender o contrário simplesmente significa dar uma importância maior do que merece à questão, por isso ela fica “inflacionada”, ganha uma importância que não tem. Deflacionista é, portanto, alguém que minimaliza a visão sobre a verdade como parte da substância de um objeto. Ele murcha a verdade como se fosse uma bexiga.

Mas o que é a verdade para o deflacionista? Vamos pegar um dos mais originais pensadores do tema, o matemático Frank Ramsey. Para ele, afirmar que algo é verdadeiro ou falso é uma mera redundância, daí sua tese ser chamada de teoria da redundância da verdade. Segundo ele, há fatores mentais que tornam necessária uma adequação entre o que é o fato em si e a maneira como o observamos. Por isso, afirmamos coisas do tipo: “É verdade que a camisa do Juventus é grená”. Entretanto, não há diferença alguma em afirmar isso ou que “a camisa do Juventus é grená”, sem nenhum tipo de qualificador. Se ele não for, basta dizer “a camisa do Juventus não é grená” e pronto. Não há nenhum ganho lógico em se acrescentar um designativo de verdade ou falsidade à afirmação original.

E por que raios fazemos isso? Porque temos a necessidade de dar ênfases na linguagem. Fazemos isso o tempo todo. Quando dizemos “o Decinho é que derramou o remédio”, podemos notar que o termo sublinhado é meramente enfático, sem nenhuma outra função linguística que melhorar a comunicação da frase. Isso é super válido no coloquial, quando precisamos do colorido dos recursos discursivos para dar mais clareza no que queremos dizer, e quando afirmamos que algum objeto ou fato são verdadeiros, fazemos a mesma coisa. Temos habitualidades psicológicas que nos impelem a afirmar que algo é ou não verdadeiro, como uma espécie de certificado linguístico. É mais fácil de se crer em uma frase que diga que “é verdade que a camisa do Juventus é grená” do que simplesmente afirmar que “a camisa do Juventus é grená”, mas não há diferença lógica alguma entre ambas as frases.

E isso pode crescer. Há uma espécie de escala em que as afirmações da verdade crescem, sem que, no entanto, seu valor lógico se altere em nada. O conjunto de frases abaixo demonstra essa escala ascendente, sendo que todas tem exatamente o mesmo valor lógico:

  1. A camisa do Juventus é grená
  2. É verdade que a camisa do Juventus é grená
  3. Não existe como contestar que a camisa do Juventus é grená
  4. Não há dúvidas e todos no mundo inteiro deveriam concordar que a camisa do Juventus é grená.

Em resumo, a afirmação de verdade ou falsidade não são propriedades inerentes aos objetos, não são coisas que podem ganhar valor de substantivos, nem são qualidades que possam ter valor adjetivo. Isso significa que os deflacionistas acham a verdade impossível? Não, apenas que não há instâncias metafísicas por trás da realidade das coisas.

Vou parar por aqui, porque senão vai ficar maçante. Há outros filósofos deflacionários, e talvez eu os aborde em momento adequado. Mas é um bom exemplo para demonstrar como a questão da verdade não é pacífica, como gostaria que fosse aquele Decinho do passado, que levou rebordosas mesmo nas poucas vezes em que ele tinha razão. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não é muito fácil de achar textos de Ramsey em português, mas consegui achar um na revista abaixo:

RAMSEY, Frank. MOORE, George Edward. Simpósio: Fatos e Proposições. In: Revista Philósophos. Goiânia, v. 24, n. 1, p. 349-372, Jun. 2019.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Sobre o ego e o vírus, e o Pequeno guia das grandes falácias - 57º tomo: a poça d'água

 Narciso acha feio o que não é espelho

Caetano Veloso

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#UseMascara #FiqueEmCasa #ObrigadoProfissionaisDeSaude

Recrudesceu a pandemia, e daqui da janela vejo que, de fato, o movimento está bem menor nesta rua do centro de SP. Entretanto, há uma pequena aglomeração na esquina com a Tabatinguera. Como o Sindicato dos Bancários tem oferecido almoço para o pessoal de rua, imagino se tratar de um de seus debates, e me recolho novamente à ascese do meu apartamento, para prosseguir com meu comportamento exemplar de esquerdista-comunista-globalista-do-islamismo-internacional. Acontece que, por mais que minha consciência clame pelo eremitismo involuntário, há remédios para tomar, e espero o movimento do sábado diminuir ainda mais para dar aquela corridinha à farmácia, onde metforminas e gliclazidas me aguardam para fazer as vezes de insulina. E lá vou eu para a rua com uma máscara na cara e uma ideia  na cabeça.

Pois bem, e não é que a mesma patota continua ocupando a esquina? Ah, conheço-os… é o pessoal da loja de vidros que ocupou o antigo hotelzinho de viração que funcionava no começo da rua. Eram uns vinte, todos sem máscara e enchendo o balde de cervejas de má qualidade, já há horas do lado de fora do bar, no riso alto dos bêbados que ainda se suportam em pé.

Passo o mais ao largo possível para uma dessas estreitas ruas da metrópole cinzenta, e sigo meu caminho pensando na cena. Se um único desses ébrios for portador do tal coronavírus, agora temos vinte, cada qual o levando para um bairro diferente, em seu ônibus ou vagão, para uma casa que certamente terá mais gente, alguns idosos, e assim uma desgraça se estende mais e mais e mais. Se o cretino federal só atrapalha, o oportunista estadual já está em campanha e o confuso municipal perdeu o rumo, é bem verdade que o próprio povo não ajuda. Ora (direis), e você não estava na rua também? Quem me dera que, num momento desses, todos os que estivessem nas ruas o fizessem por necessidade. Mas perdemos muito da nossa consciência social, e subo a rua pensando exatamente nisso.

Já desde o tempo das ideias liberais francesas que a noção de indivíduo começou a preponderar sobre o organismo social, provavelmente porque antes o indivíduo por excelência era o rei, enquanto os demais componentes da teia social constituíam uma grande massa informe, destinada a lhe proporcionar subsídios para o exercício do poder. Por conta disso, o individualismo tem seu lado bom, porque não só pulveriza os interesses sem uma cabeça, mas também faz com que cada um tenha uma quota de responsabilidade no todo que nos rodeia. Entretanto, a exacerbação do individualismo desmonta exatamente a rede social, na medida em que o que importa não é mais o outro ao meu lado, mas prioritariamente a mim mesmo. Se eu não tenho medo do vírus, ou se eu já tive e não passei mal é o suficiente para que eu não ligue para o colega que enche a cara comigo. Meu interesse é tão mais relevante que o do conjunto social que é como se o mesmo não existisse, e eu possa cometer qualquer tipo de leviandade para satisfazer minhas próprias vontades, pasmem, com as bênçãos da estrutura econômica de uma sociedade baseada na posse. O novo rei é o indivíduo, muito mais egoísta.

Egoísta? Será certo dizer que o novo cidadão ocidental é um egoísta? Ou seria egocêntrico, narcisista? Não é tudo isso um emaranhado de sinônimos? Não sei, vamos estudar.

Já vou informar que aqui farei uma leitura de características, e não juízos críticos sobre correntes boas ou ruins. Certos sistemas políticos e sociais são mais dados a uma perspectiva coletivista, onde o interesse comum suplanta, sem muitas contestações, as prerrogativas individuais. Dessa forma, o que acontece com o todo é mais importante do que às partes isoladas, e isso é característica ideal de regimes socialistas, marxistas ou não, de comunitarismo hippie, de tribalismo indígena e das comunidades cristãs originais, que, como se diz, “tinham tudo em comum”*. Entretanto, o sistema que tirou o mundo do Absolutismo e que o conduziu de forma razoavelmente bem sucedida (em termos econômicos e de progresso técnico) foi o Capitalismo, que se pauta pela lícita propriedade privada e na liberdade de mercado e concorrência, tudo isso bem grosso modo. Embora seja plenamente possível se falar em grupos econômicos, cada uma de suas partes se volta para seus próprios interesses, e o lucro obtido nos negócios se destina aos bolsos de pessoas, que adquirem bens e juntam recursos para si mesmos. Mesmo quando investem em suas empresas, o fazem para multiplicar resultados, que, por sua vez, majoram seus ganhos.

Esses ganhos todos não são voltados à coletividade, mas a indivíduos. O Capitalismo carrega consigo o sonho de cada pessoa de ser livre e independente, de se fazer por si só, de se destacar na multidão. Auferir rendas é o único meio eficaz de se fazer isso em um sistema onde tudo se compra e se vende, e mesmo cidadãos que não possuem meios como os maiores próceres almejam esse mesmo objetivo. Ainda que eu seja pobre, eu sei que o que é bom em nosso meio é obtido por quem está nos andares mais altos do prédio, e isso passa a ser uma meta de vida, mesmo que eu saiba que chegarei, no máximo, à sobreloja. Só que levo apenas a mim mesmo à sobreloja, e não um grupo inteiro, como minha rua, meu bairro, minha classe social. Então a estrutura do Capitalismo tende a desenvolver uma dose importante de individualismo nas pessoas. Como eu disse, esse primado do indivíduo não é ruim por si só: induz responsabilidade na construção de uma ocupação e um tipo de ambição que, no limite certo, pode ser positivo.

Ocorre que a coisa se espalha, e, al di là de uma liberdade de ação, temos a perda da noção de limite. A responsabilidade que deveria ser uma correlação de respeito mútuo se perde e o cidadão se acha absolutamente senhor de suas ações, incluindo as de ter o direito de se embebedar no meio da rua, cuspindo vírus para todos os lados. O nome disso não é individualismo. É egoísmo, mas... só?

Quando falamos na questão do ego, encontramos um pouco de dificuldades, porque há vários termos que são aparentados, mas que não são sinônimos. E corremos o risco de achar que estamos falando sobre alguma coisa quando, na verdade, estamos falando sobre outra. Egoísta, egocêntrico, ególatra, egótico, narcisista... Isso é tudo sinônimo?

Não é. Vamos ter que navegar pelos mares revoltos do ego para tentar definir nosso atual momento social. É meio chato ficar fazendo enumerações, mas não vejo outro meio de tratar do assunto sem dar escorregões nas palavras. Não é exatamente sobre isso que tratamos nos dois últimos textos (aqui e aqui)?

Vamos lá. Todo mundo convive com outras pessoas no mundo, estabelecendo uma série de relações necessárias ao convívio e à sobrevivência. Evidentemente, há um grau com o qual estabelecemos a hierarquia desses relacionamentos: a quem é dada a prioridade nessas relações, que flutua entre o eu e o outro? Seria desejável que sempre houvesse equilíbrio, porque mesmo o mais altruísta dos seres humanos precisa sobreviver, caso contrário estará cometendo alguma espécie de suicídio. Ou seja, mesmo quando reserva para si alguns miolos de pão, esse suposto santo está pensando na sua continuidade no tão judiado planetinha azul.

Se há problemas em ser altruísta, tanto pior naqueles que deslocam o foco de sua relação com o outro para muito perto de si. Esse é exatamente o estado de natureza do todos contra todos preconizado por Thomas Hobbes, como já mencionei neste texto. Ou seja, a ênfase exclusiva no ego tornaria bem mais difícil a nossa sobrevida, porque teríamos uma guerra permanente entre interesses. É por isso que existe o contrato social implícito em nossas sociedades – para que concordemos em abrir mão de algumas vantagens em prol do convívio minimamente garantido entre todos.

Mas é nesses momentos de displicência com a vida alheia que observamos essa propensão em se descartar o cuidado mútuo, o que demonstra a tendência em se pensar em si para além do ponto de equilíbrio. Quando não há alteridade na conduta humana, ou melhor dizendo, quando apresentamos uma deficiência em reconhecer que não somos isolados nem prioritários, começamos a encontrar ferrugens nas engrenagens, que podem receber diversos nomes.

Egoísmo acontece quando uma pessoa quer tudo para si, com zero de empatia pelo destino alheio, a não ser quando este sirva aos seus próprios interesses. Suas necessidades estão sempre em primeiro lugar, denotando um comportamento de certa forma infantil, até mesmo porque a atitude egoísta geralmente nasce quando damos demais ou recusamos em vão o que a criança nos pede. São os seguidores da famosa Lei de Gérson, aqueles que só querem levar vantagem em tudo.

Egocentrismo, como o próprio nome diz, é a colocação de si mesmo no centro das atenções. Não é necessário que lhe falte empatia, como acontece com o egoísta, reconhecendo a necessidade e os direitos dos outros, desde que haja prioridade para si mesmo como uma espécie de divindade, cujos conhecimentos são os maiores e as opiniões são as melhores. O egocêntrico é blindado às opiniões alheias, tão senhor que é de sua superioridade. Mas, até mesmo por uma pretensa alteridade, pode ser concessivo com o restante dos mortais, por se tratar de mais um item do seu monopólio de virtudes.

Egolatria é a adoração por si mesmo, como o próprio nome induz a pensar. O ególatra funde a necessidade de possuir do egoísta com a necessidade de liderança do egocêntrico, fundindo todos os direitos em si próprio, e muitas vezes modificando seu próprio modo de ser para se adequar à condição de “divindade”. A condição de presença nos altares é inescapável ao ególatra – do contrário, sua vida perde o sentido.

Egotismo é um termo bem mais moderno, e representa uma condição psicológica em que um sujeito tem dificuldade em alinhar motivos internos e externos para atribuir causas a seus sucessos e derrotas. A pessoa egótica, por exemplo, pensa que tudo o que acontece de bom na sua vida se dá por seus próprios méritos, enquanto as dores e fracassos ocorrem por azar, por interferência dos outros, por condições que não dependem de sua ação ou vontade. Essa assimetria ator/observador é um dos erros fundamentais de atribuição mais comuns de todos, e já tratei dele neste texto. O que há de diferente com relação ao egoísmo e ao egocentrismo é que o egótico nem sempre quer colher todos os louros sozinho, ou quer tudo para si, mas não suporta receber culpas e assumir responsabilidades pelas suas próprias ações.

Por fim, narcisismo é um fenômeno da vaidade. O narcisista coloca-se como possuidor por excelência das virtudes, como faz o egocêntrico. Entretanto, ao contrário dos demais, o narcisista convive com um peso: conseguir a aprovação de quem lhe rodeia. Ou seja, o outro é relevante para o narcísico, na medida em que ele se alimenta da aprovação desse meio. São os famosos “biscoiteiros” das redes sociais, que ficam doentes quando alguém não lhe comenta as fotos ou curte os comentários.

Então... Nossa sociedade seria individualista, egoísta, egocêntrica, ególatra, egotista ou narcisista? No meu entender, infelizmente, todas essas coisas. Não preciso nem perder muito tempo explicando e dando exemplos, mas vamos lá. O cidadão no Capitalismo tem que se fazer por si mesmo e suportar adversários que concorrem pelo mesmo espaço, gerando egoísmo. Um dos meios pelos quais se demarcam os territórios por onde um homem prepondera é a intensa publicidade, gerando egocentrismo. Os modos de ser precisam ser adaptados ao que reza o sistema, de modo a criar um primado do vencedor, gerando egolatria. Não há espaço para falhas e o fracasso é insuportável, gerando egotismo. E o termômetro do sucesso nesse meio é a aprovação e a admiração de outrem, gerando narcisismo.

Isso tudo é tão interiorizado em nossas próprias cabeças que mesmo a nossa lógica acaba sendo sensivelmente torcida, gerando linhas de pensamento altamente individualizantes. Um dos bons exemplos é a recente falácia da poça d’água, uma demonstração de que achamos que o mundo foi construído especialmente para nós, sem dimensionar o quanto de caótico é o universo, o quanto de cruel é a natureza e o quanto de imprevisível é o destino.


Mas como funciona o argumento da poça d’água? E de onde vem esse nome estranho?

Vem da mente do escritor inglês Douglas Adams, o criador da série Guia do Mochileiro das Galáxias, que mistura humor e ficção científica, adorada pelos nerds de todo o mundo. Em um dos pontos de seu último livro, O Salmão da Dúvida, ele tenta explicar como pode ter sido o surgimentos dos deuses na cultura humana. Em um momento, entende ele, passamos a ter uma perspectiva egoísta de nossa existência, como se esta fosse perfeitamente moldada para nós mesmos, e, para dar uma visão melhor do que quer dizer, cria a alegoria da poça d’água, que translitero abaixo:

“Isso é o mesmo que imaginar uma poça acordando uma bela manhã e pensando: ‘Que mundo interessante este em que eu vivo – que buraco interessante este em que eu vivo – estou muito bem-acomodada nele, não? Na verdade, me encaixo tão incrivelmente bem aqui que ele só pode ter sido feito para mim!’ Esta é uma ideia tão poderosa que, mesmo enquanto o sol vai subindo no céu e o ar ficando cada vez mais quente, e mesmo enquanto a poça vai ficando menor e menor, ela ainda se agarra desesperadamente à noção de que tudo vai ficar bem, porque este mundo foi feito para que ela existisse, foi criado com esse propósito; e então acaba sendo pega de surpresa pelo momento em que enfim desaparece”.

De fato, somente um ato de extremo egocentrismo pode nos fazer pensar que um universo de extensão imensurável, que nem sabemos se é único, e colocados em meio a uma natureza selvagem, com nosso corpo pouco apropriado ao combate, onde sobrevivemos mais porque tivemos a sorte que nosso vizinho não teve em ser devorado pelas feras, ou em que somos corroídos por vírus ou cânceres, é feito em exata medida para nós.

A falácia da poça d’água consiste exatamente em atribuir predestinação ou planejamento de entidades exteriores a eventos que derivam da natureza e do acaso. A poça d’água tem o formato que tem porque ela se adequou ao meio onde vive, porque se moldou, e não porque alguém criou um encaixe perfeito. Retirada de lá, ela se adaptará de forma diferente ao novo meio em que se encontrar: no subsolo para onde vazará, no céu para onde evaporará, ou em outra cavidade onde tomará outra forma.

Assim são também os homens. Embora queiramos forçar uma teleologia, um propósito para nossas vidas, o fato é que nada comprova que tenhamos lugares especiais no universo. E, se as coisas são como são, nada nos indica que é porque alguém do lado de fora as fez assim. São, de fato, os mecanismos adaptativos que nos desenharam ao decorrer de longos e longos anos, e mesmo que não tenha sido isso, não torna automaticamente verdadeiro outro motivo, com menos lógica e provas ainda. Nesse sentido, a poça d’água é uma espécie de apelo à ignorância, onde atribuímos obrigatoriamente a outrem (um deus, um ET, uma energia) uma causa que não tem uma explicação. Não se trata da negação da existência de deus, mas da simples argumentação de que pretensas complexidades são uma prova inequívoca de que tudo foi construído por um artífice. E mais ainda. Pode ser mais uma ferida ferida narcísica, mas não somos tão importantes quanto gostaríamos de ser. Tem um vírus aí para nos provar.

Portanto, é preciso que não sejamos egoístas, egocêntricos ou seja lá o que for. Nós temos pouco a aproveitar nessa combalida Terra de Santa Cruz, e não podemos nos colocar nos altares de nosso ego, sempre lembrando que todos aqueles que estão ao redor têm o direito de manter a saúde muito maior que o direito particular de se encher a cara. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Os nerds vão me odiar, mas eu não curti muito a série Guia do Mochileiro das Galáxias. Compreendo completamente as intenções o autor, mas talvez seu humor seja muito britânico para que eu o compreenda corretamente. Isso não quer dizer que eu o ache ruim, apenas não bateu comigo. Entretanto, segue sua indicação, naturalmente, principalmente por conta de sua referência direta.

ADAMS, Douglas. O Salmão da Dúvida. São Paulo: Arqueiro, 2014.

 * “Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham. Com grande poder os apóstolos continuavam a testemunhar da ressurreição do Senhor Jesus, e grandiosa graça estava sobre todos eles. Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um” At 4, 32-35.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Pequeno guia das grandes falácias - 56º tomo: a redução ao absurdo (argumento apagógico), e os paradoxos de Zenon como exemplo

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#UseMascara #FiqueEmCasa #ObrigadoProfissionaisDeSaude

Conforme havia dito no meu texto anterior, a maneira como Samuel Johnson tratou da questão do imaterialismo de Berkeley não podia pura e simplesmente ser tratada como uma falácia do argumentum ad lapidem. Rapidíssimo resumo para quem não estiver com saco de ler (embora fosse bom): Berkeley, filósofo irlandês, dizia que tudo o que existe no mundo é fruto de nossas percepções, e que toma materialidade à medida que exista alguém observando sua existência. Johnson contra-argumenta com um chute numa pedra, para comprovar que a existência é concreta e pode ser sentida, até mesmo com dor. Embora toda essa ceninha tenha dado origem ao nome da falácia, ela está mais para uma redução ao absurdo, e nós vamos tentar entender o que é isso agora.


A reductio ad absurdum, ou argumento apagógico, é um tipo de argumento que, como o próprio nome diz, procura levar uma afirmação ao limite da impossibilidade para valorá-la como verdadeira ou falsa. Dessa forma, por uma via indireta, é possível dar valor de verdade a uma determinada asserção. Conforme nós formos continuando, essa maçaroca de definição vai ficar mais clara.

Vamos sempre ter que tomar cuidado ao afirmar que uma redução ao absurdo é uma falácia. Não é. Aliás, em Lógica e em Matemática, a redução ao absurdo é um meio de prova que pode ser aplicado quando não é possível realizá-la por técnicas construtivas e diretas, por isso, nesse meio, recebe também o nome de prova por contradição. Vou colocar aqui um exemplo que pincei no YouTube: é possível que exista algum número inteiro que seja par e ímpar ao mesmo tempo? Não vale responder que o zero se encaixa nessa condição, já que ele representa nenhum elemento. Há duas maneiras de se tratar o zero: ou ele é par, porque qualquer número encerrado com ele é par; ou não é nem par, nem ímpar, e não as duas coisas ao mesmo tempo. Mas como responder de maneira direta à pergunta inicial? Afinal de contas, os números são infinitos… não poderia existir pra acolá do horizonte alguma condição em que esse fenômeno ocorresse? Como não temos como fazer prova direta, a ideia é provar que a hipótese é absurda. 

Então vamos lá. Como garantir que um número X é par? Multiplicando-o por 2. Não existe multiplicação por 2 que não resulte em número par, bastando lembrar das boas e velhas tabuadas. Vamos chamar esse suposto número de A. E para garantir que é ímpar? Basta somar 1 à mesma operação anterior, ou seja, multiplicar por 2 e somar 1. O apelido desse número será B. Para que seja par e ímpar ao mesmo tempo, o primeiro número deverá ser igual ao segundo, ok? Em síntese:


Portanto, sendo x=x (princípio da identidade), teremos a seguinte equação:

Agora, é possível fazer aquelas clássicas continhas de equação, começando por isolar os elementos sem variáveis. No caso, o 1:

Vamos fazer um processo de minimação, dividindo tudo por 2, para remover os multiplicadores da conta e obtermos as variáveis isoladas. Teremos:

Acontece que estamos falando de números inteiros, e a subtração de um pelo outro pode até dar um número negativo, mas não um número fracionário, como é ½. Lembram da propriedade do fechamento da adição? De dois números de uma classe menor*, não obtemos resultados de uma classe maior, como são os números racionais em relação aos números inteiros. O resultado acima não pode ser obtido. É uma redução ao absurdo, e, por um caminho indireto, comprova que a tese inicial é inconsistente.

A Lógica usa a mesma ferramenta para resolver suas questões, e isso vem desde antes da Antiguidade Clássica, quando tivemos os registros de Zenon de Eleia**, tido como criador do método dialético de argumentação. Conterrâneo de Parmênides, fez causa comum com o fundador da escola eleática, que foi um dos polos da discussão ontológica do século V aC. Afinal, o que é o Ser? Uma constante mudança ou uma permanência absoluta?

A questão de Zenon era defender as teses do imobilismo de Parmênides. Reciclando rapidamente: o principal embate que se deu na filosofia pré-socrática foi entre Heráclito e Parmênides. Para o primeiro, o mundo era um constante devir, ou seja, todo ser tinha embutido em si um vir-a-ser. O que significa isso? Que nada no mundo tem constância. Nada  é igual de um segundo para outro, nada é igual de um metro para o outro, nada é igual em si mesmo, nada tem uma essência imutável. Ou melhor, a essência do Ser é exatamente a mudança.

Já para Parmênides a mudança é ilusão. Apesar de reconhecer a variação e o movimento, ele pensa que nada disso modifica a essência do Ser, que permanece sempre igual, sob pena de se tornar um não-ser, o oposto de si mesmo, o que não pode ser possível. A variação é, portanto, um engano dos sentidos.

Acontece que a visão de Heráclito é duzentas vezes mais intuitiva e próxima ao senso comum do que a de Parmênides. Afinal de contas, nós vemos as coisas se moverem, vemos as pessoas envelhecerem, as frutas apodrecerem, os mares se revoltarem e tantas outras comparações possíveis. As teses de Parmênides precisam de explicações muito mais minuciosas e um nível de abstração muito mais sofisticado. É com esse painel que Zenon tem que lidar.

Sua estratégia consiste em comprovar de maneira matemática a ilusão do movimento. E é aí que ele elabora seus famosos paradoxos, de maneira a reduzir ao absurdo a afirmação de que os seres se movem. Ele elaborou quatro deles, que vou pincelar com velocidade não-parmenidiana:

Paradoxo da dicotomia – imagine que uma pessoa, ou um objeto, ou qualquer coisa que se mova tenha que se deslocar até um ponto distante 100 metros de onde se encontra. Pensando dicotomicamente, para chegar ao seu destino final, ele terá que percorrer primeiramente metade do caminho. Da metade restante, terá que cobrir novamente a metade, e depois de novo, e de novo, e de novo, sempre repetindo o mesmo rito. Como é possível fazer essa divisão infinitamente, por menor que seja o espaço remanescente a ser dividido, a conclusão de Zenon é que nunca se chegará ao destino final, e que a movimentação é ilusória.

Paradoxo de Aquiles e a tartaruga – o herói grego Aquiles era famoso na Grécia antiga por causa de seus feitos incríveis, mas, segundo Zenon, ele seria incapaz de ultrapassar uma tartaruga em uma corrida. É um paradoxo semelhante ao da dicotomia, mas aqui parte-se do suposto que há dois elementos móveis envolvidos. Digamos que, por ser reconhecidamente mais rápido, Aquiles dê uma vantagem à tartaruga. Ele partiria de uma posição A, e a tartaruga, mais adiante, da posição B. Quando Aquiles chegasse à posição B, a tartaruga já estaria na posição C, por menor que tenha sido a distância. Ao chegar em C, Aquiles veria a casca-dura na posição D, e assim sucessiva e infinitamente.  Por isso, conclui-se que o movimento continua sendo ilusório, mesmo que os dois referenciais sejam móveis.

Paradoxo da flecha imóvel – vamos pensar em um arqueiro disparando uma flecha na direção de um castelo qualquer. Partindo da premissa de que a trajetória que a flecha desenha é composta por um lapso temporal que tem vários instantes, é possível deduzir que a flecha ocupa, em cada um desses instantes, um mesmo espaço, que corresponde exatamente ao seu tamanho. Ou seja, durante todo o voo, a flecha ocupa sempre um espaço igual. Se o espaço é sempre igual, ora, a flecha está em repouso em cada um dos momentos, e a soma dos repousos não pode ser considerada movimento.

Paradoxo do estádio – os estádios gregos não eram usados para futebol, mas para esportes atléticos, como o lançamento de dardos. Imaginemos que dois lançadores arremessem seus dardos em sentidos opostos, em perfeito paralelo e com a mesma velocidade. Imaginemos também que há um torcedor exatamente na faixa central da arquibancada, observando o desenrolar dos embates. Vamos agora imaginar dois momentos: no primeiro, as pontas dos dardos estão cruzando exatamente a linha central, de onde observa tudo o torcedor. No segundo momento, é o meio dos dardos que estão perfeitamente alinhados com nosso amigo, de modo que os dardos estejam ocupando exatamente o mesmo espaço horizontal. Com isso, a ponta de cada dardo estará paralela à pena do outro. Assim, em relação ao torcedor, a ponta de cada dardo percorreu metade do comprimento total do dardo, enquanto em relação à ponta da cada dardo, a outra ponta percorreu o dobro do mesmo segmento, tudo isso ao mesmo tempo. Sendo assim, a metade do tempo (perspectiva do torcedor) seria igual ao dobro do tempo (perspectiva da ponta dos dardos), o que claramente é um absurdo.

E essas reduções ao absurdo de Zenon são falaciosas? Bem… são, sim. Isso acontece, como podemos ver, até mesmo nas melhores famílias. A explicação zenoniana de que se trata de ilusões são tremendos ad hoc, do tipo desígnios divinos misteriosos ou do teorema de Chicó: não sei, só sei que foi assim. Mas, mais ainda, Zenon desconsidera que esses cálculos infinitos estão dentro de um contexto finito, que é o espaço entre os pontos tantas vezes discutidos. Por mais que este espaço seja repartido infinitas vezes, o fato é que ele é finito, e tem um escopo bem fechado. Afinal de contas, a flecha alcança o outro lado, Aquiles certamente ultrapassaria a tartaruga e assim por diante. Diz-se que Diógenes, o cão, com seu estilo peculiar de praticar filosofia, refutava as teses de Zenon simplesmente se levantando e andando de lá para cá, com alguns relatos de que ele até mesmo se chocava contra as paredes para demonstrar o ridículo dos paradoxos. Se isso é lenda, não sei. Mas um cara que empurra de lado o imperador mais poderoso da época pra não atrapalhar seu solzinho, que sai correndo com um frango pelado na mão*** e que procura por um homem nos mercados da vida com uma lanterna em plena luz do dia não é muito incapaz de ter feito isso mesmo.

Já pudemos observar então que a reductio ad absurdum só é falaciosa quando se desvia de seu propósito de provar ou refutar uma hipótese qualquer através de um erro em suas premissas. Por essa razão, seu uso é plenamente válido quando não há meios diretos de se construir uma comprovação. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Há pouquíssima coisa preservada da obra de Zenon, e as melhores descrições dos paradoxos estão no seguinte livro de Aristóteles:

ARISTÓTELES. Física. Madrid: Gredos, 1998

*Lembram das aulinhas de matemática do ginasial? O conjunto dos números naturais N está contido no conjunto dos números inteiros Z, que está contido no conjunto de números racionais Q, que está contido no conjunto de números reais R, sendo que este também contém o conjunto dos números irracionais I, mais ou menos assim:


** Não confundir com Zenon de Cítio, fundador da escola estoica.

*** Conta-se que os discípulos de Platão tentavam fechar uma definição precisa sobre o que seria um homem. Chegaram à conclusão de que se tratava de um bípede implume. Ao se encontrar com esses alunos, Diógenes saiu correndo com um frango despenado e gritando: “Vejam, este é o homem de Platão”. Novamente reunidos, os discípulos ajustaram a definição para “bípede implume de unhas largas”.

terça-feira, 9 de março de 2021

Os paradoxos circulares são pedras de tropeço da linguagem – Pequeno guia das grandes falácias – 55º tomo: o argumentum ad lapidem (apelo à pedra)

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Não tem no mundo pessoas que já não encararam problemas com a aplicação da linguagem. Eu mesmo já tropecei muitas vezes em minha própria língua, como quem tropeça em uma pedra, de modo a conseguir problemas que eu nem desconfiava que teria. E testemunhei muitos outros também. Para ilustrar essa afirmação, vou contar uma pequena história.

Nos tempos em que eu pleiteava carreira artística, sonho de muitos jovens, os recursos eram muito mais escassos do que hoje em dia, mesmo para quem tinha grana (não era o caso). A banda na qual eu toquei mais tempo foi um comboio chamado Exílio, e obviamente já falei sobre ele neste blog. As oportunidades que surgiam para mostrar ao mundo nosso rock básico e distorcido eram pequenos festivais, já que showzinhos em bares exigiam músicas de terceiros, o que não era nosso objetivo. Queríamos tocar músicas próprias, com letras principalmente deste que vos fala e do Moacir, o membro mais velho da banda e que já tinha um pequeno acervo de letras que ficavam escrituradas em um velho caderno universitário. Vez por outra, lançávamos mão de algumas delas para popular uma música e trabalhar bons arranjos.

O Moacir já era casado com a Sandra, numa época em que gravidezes ainda representavam enlaces matrimoniais. Ela era professora, e às vezes fazia revisão das nossas letras, para ver se a liberdade poética não causava nenhum assassinato gramatical. Houve uma ocasião em que a banca de um festival qualquer exigia que se entregassem as letras escritas para os jurados, e me apressei em digitar as nossas no computador. Para não fazer feio, obviamente mandei à revisora Sandra antes de imprimir em definitivo (na furtiva impressora matricial da empresa em que trabalhava). Uma das músicas, escritas pelo Moacir, trazia o seguinte verso:

Você pode até achar que minha vontade é só

De me apoiar nos outros que me veem

Neste refrãozinho veio o único rabisco vermelho: não é “que me veem”, mas “que me vêm”. “Ah, é?”, disse eu. Sempre achei que fosse veem, as pessoas que estão olhando, como se o eu-lírico levasse em conta o julgamento alheio para apoiar as suas decisões.  Ela, professoral, disse que fazia mais sentido se fosse vêm, como se o gajo se aproveitasse daqueles que se aproximam de sua vida. Para desempatar o jogo, o melhor árbitro é o pai da criança, e fomos ao Moacir para lhe descobrir a intenção, e não tentar adivinhá-la.

O veredito me favoreceu. Só que deu DR no casal, por incrível que pareça. Começou um tal de “você não me conhece mesmo”, “claro que não conheço, você é uma coisa na escrita e outra na vida” e blá-blá-blá, deixando um clima daqueles. É coisa que vai passando e hoje eles continuam juntos, depois de trinta e tantos anos, sempre com uma dose de arranca-rabos. Mas vejam como uma simples questão de linguagem afeta a vida das pessoas de uma forma imprevisível.

Como já contei neste texto, impulsionada pela necessidade que a Ciência tem de obter meios seguros de expressão, a atenção sobre a linguagem ganhou tal atenção que acabou virando uma área específica de estudos filosóficos. Os filósofos ditos analíticos teorizavam que somente articulamos raciocínio através da linguagem, e que a mesma traz um mapeamento do mundo, incluindo aí não só o contexto físico, mas especialmente a abstração. Dessa forma, para desvendar os princípios filosóficos fundamentais, o caminho mais seguro era a análise da linguagem, de sua construção, funcionamento e articulação com os sentidos mais abstratos. Talvez haja exagero na dose, mas a Filosofia Analítica colocou na mesa, de uma vez por todas, o quanto devemos olhar para o componente linguístico para solucionar vários problemas que surgem à nossa frente. Entretanto, as armadilhas que a linguagem nos traz são detectadas há milênios, porque sempre trabalhamos com a dubiedade de quem emite uma mensagem e com a incerteza de quem a recebe, como já esmiucei aqui.

Alguns dos melhores exemplos das dificuldades da linguagem estão nos paradoxos. Estes são aquelas frases que bugam nossa cabeça, especialmente pelo fato de que contrastam com uma lógica canônica. Por exemplo, é paradoxal que uma religião pacifista defenda o uso de armas, mas não quero descambar para a política. Então vou ficar adstrito à questão do paradoxo na linguagem.

A linguagem é a ferramenta que dispomos para nos expressar. Isso significa que não somente as palavras são usadas nessa tarefa, mas qualquer meio que sirva para construir uma mensagem. Ocorre que são poucos os meios concretos com os quais nós nos servimos para codificá-las, e fazemos amplo uso de símbolos. Notem que entre um objeto e o símbolo que o representa pode existir um desvão, e aí surge a contradição. Isso porque estabelecemos convenções sobre a linguagem que podem causar muitas confusões, seja porque o fazemos de maneira contraditória ou porque o símbolo é polissêmico. No primeiro caso, podemos pensar nos episódios do Chaves, que chacoalha a cabeça para cima e para baixo, símbolo convencional do "sim", e que com as palavras faladas expressa "não", causando uma ambiguidade. No segundo, há nas inúmeras palavras que possuem mais de um significado, como as raparigas que são mocinhas em Portugal, e outra coisa no Nordeste.

Mas as ambivalências podem ser visuais também, como ocorre nas ilusões de ótica, ou nas incríveis ilustrações de Maurits Escher, que fez da dubiedade permitida pela linguagem a matéria prima de sua arte.


Notem que a construção acima é impossível. Só podemos colocá-la no papel porque ela é uma representação em um meio inadequado, ou melhor dizendo, a mídia utilizada permite mais do que é obtido no plano concreto.

A mesma coisa acontece com a palavra. A linguagem só é precisa quando mapeia de modo adequado o mundo, e tudo o que foge dessa correspondência pode ser ambíguo. A melhor amostra vem com os paradoxos circulares, ou antinomias, brincadeiras linguísticas que servem, fundamentalmente, para demonstrar as falhas da linguagem.

Vamos mencionar alguns exemplos. Creio que o mais clássico de todos é o paradoxo do mentiroso, que se resume no seguinte enunciado:

"Estou mentindo". Essa frase é verdadeira ou falsa? Se for verdadeira, significa que estou mentindo, e, portanto, não posso estar dizendo a verdade. Se for falsa, indica que estou dizendo a verdade, e portando não posso estar mentindo, o que contradiz a afirmação reputada por verdadeira, e assim ficamos dando voltas, ad nauseam.

Outro paradoxo bastante conhecido é o paradoxo do catálogo. Imagine um catálogo que conteria todos os catálogos do mundo. Ele deveria conter a si mesmo? Se a resposta for sim, deveria existir outro catálogo onde ele próprio está catalogado, externo a si mesmo, e se não for estiver catalogado, ele não contém todos os catálogos do mundo.

Outro. Em uma cidade qualquer perdida nesse mundo, há uma estranha lei. Todos os homens devem se barbear, e só há duas formas possíveis de fazê-lo: ou o caboclo se arranja e se barbeia sozinho, ou recorre ao único barbeiro da cidade, que faz a barba de todos os homens que não se barbeiam por si próprios. Quem deverá barbear esse barbeiro? Não pode ser ele mesmo, porque ele barbeia apenas as pessoas que não se barbeiam a si, e não pode ser outra pessoa, porque há apenas ele como barbeiro na cidade.

Mais um, só para fechar. Todos conhecem o boneco Pinóquio, cujo nariz cresce todas as vezes em que ele mente. Se ele disser “meu nariz vai crescer agora”, o que acontecerá? Se o nariz dele de fato crescer, ele terá dito a verdade, e não haveria motivo para o crescimento, já que ele não mentiu. Entretanto, se o nariz não crescer, significa que ele teria dito a verdade. Só que a verdade que ele disse é que o nariz cresceria. Dessa forma, teríamos uma mentira.

A melhor resposta para um paradoxo autorreferencial é que, apesar de possuir a forma lógica de uma proposição, ele não é uma proposição de fato. Notem que os paradoxos ferem um dos principais mais basilares da lógica, que é o da não-contradição, que enuncia que qualquer coisa não tem como ser e não ser ela mesma em uma mesma relação. Em uma perspectiva dicotômica, nenhuma declaração pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou seja, os paradoxos não são proposições de fato, apesar de assumirem uma forma lógica aparentemente válida. É a mesma coisa que afirmar: às três da tarde de hoje, vou estar no Rio de Janeiro e em São Paulo. A não ser que coloquemos o ad hoc da ubiquidade, o resultado da tabela verdade derivante sempre vai ser falso. É isso o que acontece com os paradoxos do mentiroso, do catálogo e os outros.

Mas eu ainda queria aproveitar o tema para falar de outro paradoxo e remeter ao pequeno guia das grandes falácias. Trata-se de uma suposta discussão entre os escritores James Boswell e Samuel Johnson, no que diz respeito ao tema do imaterialismo, defendido pelo bispo George Berkeley. Como já escrevi sobre este assunto, recomendo sua leitura a quem se interessar, mas segue aqui uma rápida sinopse. Em um momento onde havia bastante debate entre empiristas e racionalistas sobre a primazia da razão ou da experiência na aquisição de conhecimento, Berkeley propôs uma abordagem inovadora e insólita: os objetos do mundo só existiam enquanto pudessem ser percebidos por alguém, ou seja, eram sempre frutos de uma mente, ideia sintetizada na frase “ser é ser percebido”. No debate, Johnson afirmava a situação paradoxal, dado ao fato de que as coisas estão ali. Entretanto, Boswell, apesar de concordar com o amigo, entendia que era uma tese impossível de refutar*, já que não havia como provar verdadeira ou falsa uma afirmação que só residia na subjetividade de quem a profere. Johnson, meio irritado, achega-se a uma pedra e senta-lhe uma bica digna de zagueiro uruguaio, dizendo “eu a refuto assim”.

Isso dá origem a uma falácia de dispersão conhecida como apelo à pedra, ou argumentum ad lapidem, que usamos a torto e a direito, no mais das vezes sem nem perceber.

É o tipo do argumento peremptório, que encerra o assunto utilizando uma pretensa autoridade ou ridicularização de uma ideia proposta. No caso mencionado acima, Johnson não se preocupa em desmentir ou contra-argumentar a tese do imaterialismo de Berkeley. Poderia dizer que ela vai contra qualquer intuição que se possa ter, que objetos escondidos podem ser comprovados como existentes por outro meio que não a percepção ou sei lá o que mais, mas ele prefere chutar a pedra, o que não invalida a hipótese berkeleyana, apenas a leva para o lado do risível.

Outra maneira muito comum de usar o ad lapidem é o famoso argumento contra o Zequinha, o curioso personagem do Castelo Rá-tim-bum. Há quem não conheça o menino, então vou defini-lo. É a típica criança de seus cinco ou seis anos de idade, que vive aquela fase das perguntas infinitas, encadeadas entre si. Quando seu ciclo se estendia para além da conveniência, recebia a resposta altíssona e conjunta: “Porque sim, Zequinha”! E o próprio Telekid, personagem de Marcelo Tas, dava a resposta mais justa e rápida ao apelo à pedra: “porque sim não é resposta”.

O apelo à pedra é, portanto, daqueles argumentos que nem podem receber esse nome, e que são proferidos única e exclusivamente para encerrar um assunto qualquer, para colocar uma pedra sobre um tema geralmente incômodo, ou onde não se queira demonstrar o desconhecimento.

É óbvio que a bicuda na pedra de Johnson não pode ser colocada de maneira tão evidente no campo das falácias, porque ela carrega consigo algum significado que vai além do ato. Não deixa de ser uma forma de redução ao absurdo, mas, sobre isso, nós vamos falar no nosso próximo texto. Aguardem.

No mais, e voltando ao começo, quis demonstrar aqui como a linguagem, embora seja impossível de descolá-la dos fenômenos humanos, um dos mais significativos de todos, pode receber usos duvidosos, que, in extremis, faz mais mal do que bem. Para além de inocentes jogos de palavras, a linguagem mal utilizada fica a serviço de quem não sabe usá-la, ou, pelo contrário, usa-a para o engodo.

A linguagem por si mesma não é o busílis. É como as redes sociais, que não são um mal em si, mas que permitem todo tipo de abuso. As redes deixam reencontrar amigos antigos e distantes, dar comunicados rápidos e abrangentes, mas também serve para espalhar notícias falsas, ser palco de tretas insuportáveis, retomar conspirações e destruir reputações. Elas são extensões da linguagem, e temos notado o quanto precisamos cuidar delas como cuidamos da rua em que moramos. Bons ventos a todos!

 Recomendação de leitura:

Vamos à citada biografia de Samuel Johnson, um cara polêmico e interessante, que criou uma das frases mais dignas de reflexão: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.

BOSWELL, James. A Vida de Samuel Johnson. Edição independente para Kindle, 2019.

* Embora Boswell não estivesse ciente, estava antecipando a doutrina da falseabilidade como critério de cientificidade.

quarta-feira, 3 de março de 2021

O café filosófico do quotidiano – A alegoria da caverna e os enganos dos sentidos

Olá!

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As aparências enganam, já dizia um cônjuge que confiou no outro. Na primeira vez que eu coei um café em um filtro japonês, achei que a água ia passar de passagem, dado o tamanho do seu escoadouro, muito maior do que um filtro comum, mas não. Segundo seu fabricante, tudo ali é calculado para extrair aroma e sabor da melhor forma possível. Vamos ver o que eles dizem desse método, muito conhecido pelo seu nome de batismo, V60.

O segredo não é grande, apesar de ser todo cientificamente construído. O aparelho é fabricado pela japonesa Hario, e o termo V60 significa que o filtro é injetado em uma arquitetura em “V” com uma angulatura das paredes de 60 graus, o que faz com que a água seja conduzida ao centro do filtro. As espirais em relevo do interior da peça e o formato cônico fazem com que o líquido extraído escorra de maneira uniforme para o recipiente, e sem formar os acúmulos típicos de um porta-filtro oblongo, como o Melitta.

O ideal é molhar primeiramente o filtro, para aquecer o sistema e remover resíduos. Colocado o pó, e dependendo de sua quantidade, eu faço o blooming (pré-infusão) por trinta segundos e depois despejo a água em três ataques (para meus habituais 300 ml em 30g de pó). Para perceber diferenças no resultado, é preciso uma percepção bem treinada. De fato, os níveis de dulçor e acidez parecem mais nítidos na sua extração.

Nome do utensílio: Filtro Hario V60

Tipo de técnica: coador cônico espiral (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um coador de papel cônico é introduzido em um porta-filtros de fundo denteado e guias espirais, que retém as partículas enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um recipiente de vidro refratário por ação da gravidade.

Resíduos: Mínimos.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: médio

Com a xícara já na mão, fico com essa coisa da aparência na cabeça. Vou bebericando o café e percebo, lá no fundinho, as tais das notas. De fato, com o grão catuaí que utilizei, dá para notar uma insinuação de chocolate e de rapadura, mas nem de perto o café em questão fez simbiose com cacau ou cana, então a explicação está também nas aparências: a um sabor que se parece com chocolate sem ser. Poxa... qual será o percentual de aparências em tudo o que acontece em nossa vida?

E com isso me lembro da alegoria da caverna de Platão, um dos mais festejados e reproduzidos dos desenvolvimentos filosóficos de todos os tempos, leitura obrigatória em qualquer manual introdutório. Horrorizado, dou-me conta que, em mais de trezentos textos e quase dez anos de blog, nunca me debrucei sobre esse tema. Passou da hora, mas nunca é tarde enquanto estamos vivos. Vamos a ele.

A alegoria da caverna nada mais é do que um grande exercício mental, em que Platão usa os personagens Sócrates e Glauco para elaborar um dos clássicos diálogos maiêuticos*, e nós vamos fazer nossa tentativa de reproduzi-lo aqui. Em uma caverna localizada em um local qualquer, vivem homens aprisionados em seus pescoços e suas pernas, de modo que não consigam se locomover, nem olhar para qualquer direção que não seja o fundo do salão. A entrada da caverna não está exatamente ao nível do chão: há uma mureta de pedras da altura de um homem, e apenas acima desta mureta há um vão que permite passagem de luz. Isso faz com que toda a movimentação que ocorre fora da caverna somente possa ser percebida pelo fato de que os homens livres carregam acima dos ombros, do lado de fora –  estátuas de todo material e forma. São as sombras dessas estátuas, projetadas no fundo do salão, toda a percepção que os prisioneiros da caverna têm do mundo exterior, adicionada aos ecos típicos desta formação rochosa, que fazem os sons chegar em murmúrios pouco definíveis aos seus ouvidos.

Como não conheciam outra apreensão, para aqueles escravos as sombras e os ecos não eram projeções vindas de fora, mas a própria realidade em si mesma. Não existiriam nem homens, nem estátuas, nem vozes, nem mesmo sol, apenas as sombras e os ecos, que não eram reconhecidos como tal, ou seja, como projeções de um mundo exterior. O que havia naquele mundo era isso, sombras e ressonâncias, como nós reconhecemos pedras, flores ou pessoas como objetos do mundo. Eles não têm outra coisa que possam julgar como reais.

Sem se saber como, um dos cativos consegue se libertar de seus grilhões. Apesar da posição incômoda em que vivia, ao alongar seus membros chega a sentir dor. Ao voltar seu olhar para a entrada da caverna, percebe as estátuas colocadas nos ombros dos homens, mas não consegue vinculá-las de bate-pronto às sombras que projetam nos fundos.

Ao fitar mais fixamente a luz que vem da entrada, este homem terá seus olhos doloridos, e levado até lá fora, terá como primeira reação um grande embaçamento, contra o qual apertará seus olhos e os recobrirá com as mãos. Só muito aos poucos sua visão se desanuviará, e começará a reconhecer as formas e as cores do mundo exterior, até concluir que vem do Sol toda a luz que existe no mundo, e que este era a causa das sombras que ele e seus companheiros enxergavam no interior da caverna.

Esse homem agora quer voltar para o interior da caverna. Não para retomar seu lugar de acorrentado, mas para anunciar aos seus antigos companheiros que conseguiu compreender a verdade sobre as sombras e ecos, que não eram a realidade em si, muito diferente do que eles pensavam. Ao adentrar novamente o recinto, terá suas vistas escurecidas, e, tentando falar sobre verdade, será ridicularizado pelos remanescentes, mais acostumados com a penumbra.

Pois bem. Para entender direitinho o sentido do mito da caverna, é preciso colocar alguns pontos da metafísica e da epistemologia de Platão. E vamos fazê-lo começando com exemplos. Houve um determinado Natal em que combinamos de reunir a família na casa de um dos primos pela primeira vez. Como sempre fazíamos, as tarefas eram divididas entre todos. A mim, cabia levar um fardinho de cervejas e alguma guloseima, não lembro qual. Além disso, também fiquei incumbido de comprar flores para enfeitar a mesa. É natural que nem eu, nem a patroa tenhamos lembrado disso, por conta da correria ou da falta de anotações. Como sempre estávamos atrasados, minha ainda viva mãe ficava ligando de quinze em quinze minutos. Em todas elas, dizia: “não esquece das flores”. Eu já estava meio irritado, então nem me dava conta direito da pergunta. Numa delas, atinei com a admoestação e lancei para a patroa: que diabo é esse de flor que minha mãe tanto pergunta? A esposa deu uma gelada no olhar, depois levou a mão na boca e falou um sonoro “esqueci!!!!”, com todas essas exclamações. Em uma véspera de Natal, onde a gente iria achar flores? O menino mais velho sugeriu o cemitério, em tom jocoso. Afinal, morre gente todo dia... Por que cargas d’água não morreria no Natal? Como não deixava de ser uma saída, passamos na porta de um desses e bingo! Lá estava a loja salvadora de minha reputação.

Devia ser já umas dez da noite. Eu mesmo saí correndo do carro e fui adentrar a floricultura modorrenta como um guerreiro zulu, sem perceber que sua porta de vidro estava fechada. Chapei o coco com tal gosto que cheguei a cair sentado. O pessoal no carro caiu na risada, enquanto eu tentava me recompor, mas a coisa foi mais séria do que uma simples cena de cinema pastelão. Com o impacto, travei a arcada com tal força que um pedaço de um dos sisos se partiu, e, além do galo, ganhei uma bela dor de dente, que ficou me perturbando a noite toda, mesmo com remédio. Foi, de longe, o meu pior Natal de todos**.

Mas por que eu meti a cabeça na porta de vidro? Ora (direis), porque o vidro é invisível. E isso significa um defeito em nossa sensibilidade: há um objeto concreto no caminho que não conseguimos perceber. Tantos outros sentidos nos são ilusórios - ouvimos um assobio que pensamos ser um passarinho, saboreamos um gosto de sabão e é coentro (blé), tocamos uma taturana e achamos que é fogo… nós apreendemos o mundo através dos sentidos e eles nos enganam. Como podemos saber o que é verdadeiro e o que não é? O que é conhecimento autêntico?

Platão tinha uma perspectiva dualista da realidade. Para ele, todas as coisas tinham um modelo perfeito, ou uma essência, que estavam no plano das ideias, e a realidade física existente nada mais era do que cópias dessas ideias. E aí nós temos o busílis. Pegue um objeto qualquer e tente copiá-lo. Por mais magnífico que seja o artista, sempre haverá algo na cópia que diferirá do original. Um risquinho, um grama no peso, uma graduaçãozinha de cor… mesmo que muito próxima, uma cópia nunca é absoluta. Por isso, o conhecimento autêntico não pode vir da mera observação do mundo, mas de um processo intelectual. É através do intelecto puro que podemos nos aproximar das formas perfeitas que residem no mundo das ideias. E não é necessário que procuremos esse lugar fora de nós mesmos. Segundo Platão, todos já nascemos com o conhecimento de todas as coisas plasmado em nossas mentes, bastando ativá-las por intermédio do exercício intelectual. E como funciona essa coisa de existir um lugar onde existem as formas perfeitas e a nossa possibilidade de conhecê-las?

Anima mundi é uma espécie de princípio cosmológico onde se considera a existência de um espírito compartilhado espalhado por toda a matéria e por todas as almas individuais. Esta anima carrega consigo todo o conhecimento suprassensível às almas individuais, o que faz com que elas tenham a capacidade de conhecer. O eidos residente no Hiperurânio entra em contato com cada indivíduo através dessa espécie de alma compartilhada. Ocorre que esse conhecimento fica latente em cada espírito, e é através da escalada dialética que um intelecto pode acessar esse conhecimento que já existe em si mesmo.

Ocorre que o que temos ao nosso alcance sensório é o cosmos, mas a natureza e o universo não são a totalidade de tudo o que existe; ao invés, são a totalidade de tudo o que pode ser percebido aos sentidos. O que vai além disso é o tal de eidos, a matriz da palavra ideia, e compreende tudo aquilo que é suprassensível. As ideias não existem senão apenas por si, o que as tiram do turbilhão do devir. Elas mesmas não sofrem mudanças e, por isso, são as razões últimas e supremas, ou seja, o crème de la crème de cada coisa e fato no universo.

Nosso caro ateniense descreve o conhecimento, portanto, como um processo de despertar. Todo conhecimento já está embutido em nossas mentes, bastando que seja ativado por uma escalada intelectiva, que procura remover os enganos dos sentidos para se chegar às tais essências suprassensiveis.

Vejamos agora a alegoria. Os homens da caverna são aqueles que se banham no senso comum. Tomam a realidade como resultado do que seus sentidos podem captar e se conformam com isso. As sombras projetadas na parede e as reverberações das vozes são um subproduto da realidade em si mesma. Trazem consigo uma parte desta realidade, mas que são extremamente distorcidas, levando a eles um estado de ignorância conformada. O escravo que se liberta é o inconformista, que não aceita acriticamente a realidade como a mesma se apresenta, e isso representa seu primeiro ato de liberdade. Voltar a cabeça para a luz, antes de mais nada, é a concretização desse ato de transgressão. A subida rumo à entrada da caverna é o esforço intelectual para depurar as distorções da realidade vista fora de sua fonte autêntica. Os homens e as estátuas são as coisas em si mesmas, e o sol que ilumina tudo e trás luz é a fonte primária de todo o conhecimento. Platão deixa para nós a interpretação de que há duas formas de conhecimento: uma sensível, composta principalmente pelo senso comum, pelas opiniões infundadas e pelas superstições; e outra intelectual, filosófica, que é traduzida pelo conhecimento das coisas reais, intelectualmente puras e racionalmente adquiridas.

A lição é que há uma discrepância entre o que extraímos do mundo em que vivemos e o que ele é de fato, sendo tendemos muito mais a nos sentar no conforto das apreensões imediatas e das opiniões prontas do que do desafio e do risco de compreender o que há por trás dos véus.

Em um mundo onde vivemos bombardeados pelas tais das narrativas, podemos sentir a validade dos argumentos de Platão ainda mais atual. Os recursos tecnológicos, que poderiam muito bem reforçar nosso conhecimento efetivo, acabam na verdade sendo ferramentas das sombras e dos ecos, porque ainda mantemos as mesmas superstições e crendices da época clássica grega, para quem este texto foi dirigido. Ao menos naquele tempo havia um luminar. E agora?

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O livro onde a Alegoria da Caverna é descrito é A República. Como já o recomendei neste texto, vou indicar o livro onde Platão fala mais especificamente sobre o processo de conhecimento e a anima mundi.

PLATÃO. As Leis. São Paulo: Edipro, 2010.

* Não se sabe ao certo quando os relatos a respeito de Sócrates são verdadeiros e quando são usados para construir uma cena onde se quer personificar o sábio. A alegoria em questão parece o caso clássico da segunda intenção.

** E sim, comprei as malditas flores.