Marcadores

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – 2º episódio: Joanópolis e a superstição nossa de cada dia

Olá!


Conforme falei no texto anterior desta série, saí de forma tão corrida de casa que tudo estava recheado de incerteza, incluindo até mesmo o lugar onde dormir. Claro que este não é um problema tão complicado quando você parte da premissa que é possível passar a noite em um motel, mas já é preciso que ele exista. Também eu e a patroa temos um pacto: o de nunca encrencar entre nós nos casos de dificuldades encontradas nas viagens. Isso ajuda e muito.

Mas não foi o caso. Ficamos em uma pousadinha cuja localização era tão incerta quanto tudo o mais. Estava no contexto de nossa chegada em Piracaia, mas fica situada em uma estradinha rural que constitui a exata divisa entre esta e Joanópolis, sem ser possível saber muito claramente onde termina uma e começa a outra.


Lembro de Joanópolis por dois motivos básicos: era de onde vinham as bolachas que um vendeiro com uma velha Variant apregoava na rua em que eu morava durante a infância das crianças, e é onde meu filho mais velho conseguiu encontrar vacina contra febre amarela em 2017, em pleno surto da doença. Além disso, Joanópolis também tem a curiosa fama de ser a capital nacional do lobisomem. Vamos lá tirar a limpo essa história.


Esta cidade, como sói acontecer em terras serranas, tem uma quantidade de trilhas tentadora. No caminho que a liga com Piracaia, há uma formação rochosa conhecida como Gigante Adormecido, cuja cabeça é a Pedra do Lopo. Para o lado de lá, já estamos no estado de Minas Gerais, e a serra impera por toda a região, podendo ser visualizada de toda a cidade.


Joanópolis é bem pequena, com uns 12000 habitantes, com o relevo acidentado típico dos contrafortes da Mantiqueira, e o turismo é uma de suas principais atividades, dada sua proximidade à capital. Trekking, escalada e artesanato são algumas das coisas que chamam gente para lá.


O nome da cidade se dá em virtude de seu padroeiro, são João Batista, que, por sua vez, era o nome de um dos fundadores do antigo bairro do Curralinho, João Nogueira. Este é o antigo núcleo que deu origem à futura cidade. A igreja matriz é dedicada a este santo.


Era o local onde a pequena população local e das redondezas se reunia para brincar nas festas juninas, em especial no dia 24 de junho, quando se comemora o atual padroeiro. A cidade foi crescendo ao redor da capelinha que foi erigida para a festa anual, e seu adro era o centro da vida da pequena comunidade.


A construção inicial de Joanópolis tem mais ou menos cento e cinquenta anos, o que garante a existência esparsa de algumas construções de interesse histórico. Uma delas é a Farmácia São João, que tem aquele frontão típico das boticas do passado.


Na parte mais alta da cidade, destaque especial para um museu de garrafas antigas localizado dentro de um armazém, o Empório Cachoeira, onde se vende de tudo: doces, queijos, bebidas, panelas, brinquedos. Encontrei objetos que me despertaram reminiscências de infância, como o refrigerante Cerejinha…


… e as cachaças favoritas dos meus parentes, que eu ia buscar na padaria do seo Gaspar embrulhadas em uma inútil folha de jornal, já que todo mundo sabia o que havia lá.


Vamos para a área rural, porque eu estou a fim de terra. Joanópolis tem algumas cachoeiras bem interessantes, sendo que uma delas é a cachoeira Escondida. Apesar do nome, seu acesso não é tão complicado, precisando de uma curta trilha para acessá-la.


É uma cachoeira boa para crianças, por conta do formato da queda, que é um escorrimento pelas pedras, com um poção rasinho e de escoadouro estreito. Vi umas máquinas mexendo no curso do rio abaixo, o que me assusta um pouco. A conferir.


Foi bom para se refrescar em um dia muito quente. Depois disso, continuei a subida da serra, rumando para a divisa com Minas. No caminho, uma parada no ruralíssimo alambique São Pedro, cercada pelos inhames e taiobas do seo Sebastião, para ver umas malvadas, que ninguém é de ferro.


A cachoeira dos Pretos fica no topo da estrada asfaltada, no caminho para a pedra do Selado, e é cercada por uma infraestrutura turística mais robusta. Lá, fica as nascentes do rio Piracicaba, e em seu leito inicial podemos descer a ladeira de bóia-cross.


Na parte do rio, além disso, pode-se tomar um bom banho na água geladíssima. Alguém de São Thomé das Letras deve ter passado por aqui e dado o costume de se erguer pirâmides de pedras no seu leito.


A cachoeira em si é enorme, com 154 metros de altura, a maior do estado de São Paulo. Cercada de mata nativa e recheada de pedras em sua base, tem seu acesso rigorosamente limitado, pelo evidente risco.


Embora não seja possível tomar uma ducha na base da cachoeira, ainda assim há todo o rio para fazê-lo, bem como pode-se observar a floresta e a imensa quantidade de insetos, especialmente borboletas e besouros, muito numerosos.


Cada um tem seu jeito de apreciar o contato com a natureza. Digamos que a patroa seja mais… telúrica. Deve ser seu restinho de sangue indígena.


Como eu disse, os baixios da cachoeira dos Pretos tem um equipamento turístico que costuma bombar nos finais de semana e feriados. Tem restaurante, quiosques, artesanato e também uma casa do lobisomem, aproveitando a fama que a cidade tem.


Aliás, não só aqui, mas por todo lado estão espalhadas as referências ao tal ser, meio lobo, meio homem, formando uma iconografia que varia do bem humorado para o aterrador.


Pois bem, é aqui que vamos centrar nosso foco. A própria maneira jocosa como os joanopolitanos lidam com a fama da cidade demonstra que não há nenhum tipo de receio com a figura do lobisomem. Só que é possível encontrar dentre os moradores mais antigos aqueles que ainda se arrepiam com o uivo de um cachorro solitário em noites de lua cheia. Por que as superstições ainda persistem, ainda que não percebamos?

Eu tenho nas raízes da minha família gente do interior, bem como a patroa. Quando falamos com parentes de nossa idade, ninguém concorda com a existência de seres folclóricos, mas eu lembro de histórias de redemoinhos estranhos que limpavam paióis, de cabritos enfurecidos que desapareciam por trás das cercas, de cavalos com as costas sangrando, tudo sem muita explicação. Isso tudo era relatado por gente da geração do meu glorioso sogrão, que via molecagens do saci, vinganças da caapora, zombarias da cuca e, claro, as incríveis histórias de terror do lobisomem a cada fenômeno mal compreendido. É a Psicologia que nos vai ajudar a entender a pendenga.

Houve uma ocasião em que eu falei sobre a falácia chamada de deus das lacunas. O fundamento principal dela consiste na imensa dificuldade que o ser humano tem em lidar com buracos nos encadeamentos lógicos. Isso acontece porque estamos tão acostumados com a dicotomia causa-efeito que sempre buscamos fazer associações. Por exemplo: se eu vejo alvoroço qualquer no meio da Praça da Sé, já me pergunto o que está acontecendo – um roubo, uma briga, uma captura policial. Como eu sou prudente, não vou me enfiar no meio do parangolé para saber, mas, como sou curioso, vou nos jornais ou na internet para ver algum eventual cadáver. Se nada de tão grave ocorre, posso até mesmo perguntar para os meus vizinhos ou para os mendigos que conheço se eles sabem o que aconteceu. Se nada obtenho, vou seguir um dos dois caminhos: resignar-me e admitir que nada sei, ou especular sobre um motivador qualquer, sem nenhum tipo de precisão. Minha tendência humana será sempre fazer algum tipo de inferência que traga uma solução para a minha sede de padronização. Enquanto faltar a perna na causa, a perna do efeito permanecerá cambaia.

Mas vamos colocar o lobisomem neste angu. Ao contrário do que acontece com a maioria dos mitos mais comuns no Brasil, de origem indígena ou africana, temos aqui um mito muito antigo de origem europeia. Na mitologia grega, fala-se de Licaonte, o rei da Arcádia, que antes de se tornar regente, tinha uma origem selvagem (daí seu nome, derivado de lobo). Apesar de toda a cultura que adquiriu, um certo espírito bruto ainda habitava nele, de modo a sacrificar todos os homens que viessem de outros países. Isso contrariava a moral hospitaleira que tinha um estatuto de legislação naquela época, o que incomodou Zeus, o deus mais poderoso do panteão grego. Para puni-lo, Zeus se disfarçou de estrangeiro e foi ao seu palácio. Licaonte já se preparava para realizar o esperado holocausto quando Zeus se revelou e transformou-o em um lobo, destruindo seu palácio. Daí por diante, o rei se transformou no licantropo, a mistura de um lobo com um homem.

Essa é só a origem do mito, que foi evoluindo de acordo com as culturas por onde passou. A grande ponte de ligação entre a Europa e nossa pobre Pindorama se deu através dos portugueses, povo cristão que, como tal, trouxe elementos de sua religiosidade à antiga superstição. Embora o motivo pelo qual alguém se torna um lobisomem seja meio difuso (os pecados dos pais, o fruto de um incesto), a mecânica que se dá é algo parecido com o seguinte, com algumas variações: o sétimo filho de um casal sempre penderá a ser um lobisomem. Para evitar a maldição, é preciso que o primeiro dos filhos batize esta criança. Se isso não for feito, a cada noite de lua cheia o fenômeno se repetirá e o lobisomem partirá para a caça, aliando a astúcia humana com a ferocidade lupina.

Está aí um Deus das Lacunas e tanto. Nestes sertões perdidos do passado (ou nem tão passados assim), era relativamente comum encontrar mortes violentas ou desaparecimentos misteriosos. Sem ter meios mais esclarecedores, era bem fácil lembrar das lendas contadas pelas avós e atribuir um defunto desfigurado à ação de um lobisomem. Daí para frente, entra a parte da superstição – um desfiar sem fim de imprecações, esconjuros, rabiscos de sinais da cruz e assim por diante, com o objetivo de evitar contato com o bicho. Há um lado pretensamente pragmático no seu uso? Sim, há – controlar as crianças, justificar os males-feitos, estimular cortinas de fumaça. Mas o principal é mesmo espontâneo, com o efeito colateral de criar um certo hábito do medo, um comportamento que visa isolar os malefícios sem que tenhamos muita proteção contra suas surpresas.

As superstições trabalham com a mesma linha das religiões e muitas vezes se confundem com elas, embora até mesmo ateus guardem seus tabus. Eu lembro, por exemplo, que durante a Copa do Mundo de 1994 fiz questão de assistir todos os jogos da seleção brasileira com a mesmíssima camisa do... Corinthians!!! Para que? Para dar sorte. Imagino quantos italianos fizeram o mesmo com camisas da Juventus, do Milan, da Roma, do Napoli, do Bari, do Ascoli, do Catanzaro... Por que deu certo para mim e não para eles? A boa e velha lógica diria que não há nenhum sentido nisso, que o Brasil venceu a copa porque foi mais competente e pronto. Mas a superstição não é só um modo de lidar com a transcendência, mas de ajudarmos a influenciar os acontecimentos de alguma forma.

E agora vamos para o behaviorismo, corrente psicológica cujo maior expoente é Burrhus Skinner. Ao contrário da psicanálise freudiana, os behavioristas tinham um viés menos filosófico e mais científico, não se preocupando muito em como funcionava a mente, mas como se poderia aferir sua ação. A parte visível da psiquê está no comportamento (behavior), e os primeiros experimentos desta escola se focavam essencialmente em observar como o ambiente condicionava os seres que neles habitavam. As experiências de Pavlov com cachorros são a demonstração mais célebre de como é possível modificar o comportamento de um animal através da associação de eventos paralelos. Skinner concordava com essa visão, mas deu um passo adiante, ao teorizar sobre a maneira como buscamos interferir no meio que nos cerca, em um processo que denominou como condicionamento operante. Vamos esmiuçar mais um pouco.

Todos nós sabemos que nossa relação com o ambiente é recíproca, ou seja, tanto nós agimos no mundo como o mundo age sobre nós, isso é cediço. Em um exemplinho básico, eu olho para o céu e vejo que não vai chover. Vou na tabela de jogos e vejo que há uma boa pedida, um JuveNal na Comendador Souza. Ponho a camisa e vou para a Barra Funda, comer amendoim enquanto a partida se desdobra. Falando dessa forma, temos a sensação de que tudo foi decidido através dos preceitos do livre-arbítrio, com opções feitas através de critérios pessoais. No entanto, Skinner bateria no meu ombro e diria: “É, meu amigo... Você acha que fez tudo isso com autonomia, mas não. Você é um fantochinho de suas conjunturas. Fossem elas diferentes, e você estaria indo para o cinema, ou preferiria lavar a louça”.

Nós já falamos sobre determinismo neste espaço, que, resumidamente, representa um controle inconsciente do ambiente sobre o sujeito. Skinner concorda com essa posição, entendendo que ninguém decide nada espontaneamente, apesar da aparência contrária. Podemos pensar que eu sopesei por conta própria as vantagens de acompanhar o menor clássico da cidade de São Paulo, mas, no entendimento dos behavioristas, é o próprio mundo que, em algum momento da minha vida, instruiu a mim que meu joguinho à tarde é seguro, que é divertido, que a ausência de chuva é mais cômoda, que há estacionamento fácil, que é melhor do que ver filme ou lavar louça e assim por diante. A relação de causalidade sempre se inicia por um conjunto de informações que obtemos do mundo exterior e que nos transforma ANTES de transformarmos o mundo. Sempre agimos e somente agimos de uma única maneira possível: aquela determinada por nosso ambiente.

Mas nós sofremos influências externas que são boas ou más. De que modo, e ainda que inconscientemente, fazemos a seleção do que nos irá moldar o comportamento? Como já diziam os behavioristas anteriores a Skinner, recebemos reforços positivos ou negativos, que fazem com que determinados comportamentos sejam repetidos ou repelidos. A novidade que Skinner traz é que esta relação de estímulo e resposta não é meramente passiva, mas com um nível de interação muito grande, que foi chamado, como eu disse anteriormente, de condicionamento operante. Nesta tese, uma resposta a uma interação qualquer a estimulará a ser repetida ou reprimida. Os experimentos feitos com a “caixa de Skinner” demonstram como isso funciona. Esse aparelho consiste em uma caixa contendo um mecanismo que libera alimento (como uma alavanca), um sinalizador e uma grade elétrica. Quando um ratinho ou um pombo entende que, ao pressionar a alavanca, é-lhe liberada comida, adotarão esse comportamento direto como resposta. Se para lhe ser liberada a comida é preciso que uma luz seja acesa, ele terá este estímulo reforçado, ainda que indiretamente. Se entende que é preciso apertar a alavanca para cessar choques, também aqui haverá o reforço, só que negativo. A sessão que se tornou mais famosa de todas foi a do “pombo supersticioso”, onde se provou que o animal agitava as asas freneticamente para obter comida sem correspondência direta. Inicialmente, era dado ao pombo uma porção de ração tão logo o mesmo agitasse as asas, ou desse um determinado número de voltas para a esquerda ou direita. Isso se deu até formarem-se intervalos regulares, de modo que o pombo sentisse fome no momento certo. Com o estabelecimento desta habitualidade, o que se percebeu é que, quando se aproximava a hora da refeição, o pombo começava a repetir o comportamento reforçado, batendo as asas ou dando voltas em torno da gaiola, como se esse fosse o motivador do alimento. Dessa forma, Skinner pretendia provar que, com o passar do tempo e com os condicionamentos era possível mudar um padrão de comportamento, sem que qualquer vínculo direto fosse mantido com seu propósito.

Bem... E daí? É que o hábito mental de acreditar em explicações simplificadas obedece ao mesmo princípio de condicionamento operante. Todas as vezes em que buscamos a explicação que preenche todos os requisitos para esclarecer uma dúvida, estamos seguindo uma determinação de nossa mente. Ela simplesmente sofre com a incerteza, porque nos colocamos na situação ancestral de estar expostos a riscos, ainda que, como o pombo que não sabe porque bate suas asas, não faça sentido se sentir temeroso. Lançar mão de histórias que supram essas lacunas faz com que tenhamos a sensação de que há como controlar as situações. Se eu tenho a lenda do lobisomem ao meu dispor, sei me proteger melhor do que se eu admitir minha ignorância, porque identifico os suspeitos, conheço as rezas que lhe afastam e sei das estacas recobertas de cera que o matam, enquanto do desconhecido eu só desconheço. É menos perturbador uma fera que me ameaça do que um destino que me escapa do controle. E assim se multiplicam tantas crenças.

Ufa! Conforme já falei, em Joanópolis o lobisomem já deixou de ser um terror para virar atração. Melhor que seja assim, para o bem de nossa sanidade e de nossos pescoços. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

A obra de Skinner é muito extensa, e, por vezes, controversa. Vou deixar aqui um dos livros onde ele discute a questão da ausência do livre-arbítrio.

SKINNER, Burrhus. O Mito da Liberdade. São Paulo: Summus, 1983.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – 1º episódio: Piracaia e os pensamentos feitos sobre o sionismo na varanda

Olá!

Clique aqui para acompanhar todos os episódios desta série

Meus pacientes leitores, aqueles que são mais habituais neste espaço já sabem que todo ano faço uma pequena viagem a paragens pouco distantes desta ínclita capital do estado bandeirante, que podem ser vistas ou revistas nos links ao final deste texto, mas neste calendário tal jornada esteve sob séria ameaça. O ano foi realmente difícil, em especial por conta de problemas familiares, mais especificamente às perturbações na saúde do sogrão, que passou um belo perrengue que durou mais de seis meses, seguido por um bom tempo de depressão. Além disso, tivemos correrias com a dona Madalena, senhora octogenária que a patroa toma conta. Tudo isso gerou não só trabalheira e cansaço, mas principalmente um gasto que beirou o inabsorvível. Desta forma, a hipótese de uma viagem foi ficando cada vez mais distante no horizonte. 

Acontece que, dadas as voltas que o mundo dá, houve uma semana em que tudo acabou dando encaixe, sem médicos marcados e nem reuniões inadiáveis. Com um pouco de sorte e muita economia, entendemos que dava para encarar um rolê mais modesto, que não impossibilitasse um retorno emergencial. Concluído isto, fiz o pedido ao chefe, que concordou meio contrafeito. Mas concordância é concordância, mesmo que a meia bandeira, e juntamos as trouxas rapidamente, para sair em curto, porém reconstituinte périplo.

Mas para onde? Se houve alguma vez em que parti sem destino, foi essa. Como tudo foi muito repentino e havia restrições orçamentárias e distais, fiquei confuso para onde deveria apontar o nariz. O carro, meu velho Bedelho, já estava na porta do prédio e a patroa arrematava as últimas bagagens e eu ainda olhava pela janela, tentando definir a rota. De lá, eu observo a serra da Cantareira na direção norte, como pode fazer boa parte dos demais paulistanos. “O que fica para trás de lá?”, busquei rememorar. Tem uma porção de cidadezinhas com mato, água, comida, paz… tudo coisa que eu gosto. Pois foi assim. Cinco minutos antes de partir, comunico à filha que ficará em casa que vou para a região bragantina, e parto em direção a Piracaia, minha primeira parada.


Próxima pergunta: por que Piracaia? Além de cumprir os critérios acima mencionados, a terra do peixe assado (significado do seu nome em tupi) é bem antiguinha, com mais de duzentos anos, o que lhe fornece uma boa quantidade de edificações históricas, embora não haja um conjunto coeso como em São Luís do Paraitinga ou Areias, por exemplo.


Há alguns anos atrás, estive por estes lados para instalar relógios de ponto, uma das minhas insólitas ocupações. Achei interessante o que vi, uma cidade singela, limpa, calma, e vislumbrei a possibilidade de conhecê-la com um pouco mais de calma, a pé, parando aqui e ali para chupar um sorvete e saber mais sobre seus detalhes.


Como é bem comum em nossas cidades do interior, a religiosidade está bastante representada, especialmente na estética católica. Há, por exemplo, a minúscula Capela das Almas, na qual não cabem mais do que dez pessoas, e que fica bem na entrada da principal rua do comércio.


Outra de suas igrejas é a do Rosário, em cuja praça fica o principal ponto de encontro da modorra dominical, composta de senhores à tarde e rapaziada à noite. Mais antiga, daquelas feitas com paredes em taipa de pilão e estilo colonial, era a principal referência religiosa para os negros convertidos (em outras palavras, onde era admitida a sua presença).


A igreja principal de Piracaia é outra ainda. A matriz chama-se Santo Antônio da Cachoeira e é surpreendentemente bonita, apesar da foto infeliz não deixar transparecer, desfavorecida pela pouca luz do fim de tarde e pela habilidade ainda menor do fotógrafo.


Não é um grande problema, porque é do lado de dentro que este templo ganha o jogo. Tem um estilo barroco belíssimo, refletido em sua nave e seu altar mor...


… e por uma curiosidade quase ímpar: em seu teto estão pintados rostos de todos os papas que já regeram a Igreja Católica. Em um primeiro olhar, dá uma sensação muito concreta, com suas linhas rígidas, como se fossem gigantescos azulejos, mas o conhecimento do que se trata faz mais fascínio. Afinal de contas, é um teto que nunca será definitivo.


Há dois espaços destacados no teto. Um é para o primeiro Papa, são Pedro, representado no célebre episódio das redes cheias, para depois seguir a série com Lino, Anacleto, Clemente, Evaristo…


… até chegar ao atual, Francisco, que também tem um quadro maior, reservado para o ocupante da vez do episcopado de Roma.


Estive observando o conjunto do teto como um todo e notei que há ainda 19 reservas disponíveis para os próximos papas. Pensei em lançar uma teoria escatológica. Que tal propor que o apocalipse virá assim que o último dos quadros da igreja de Santo Antônio da Cachoeira for preenchido? Será que alguém já pensou nisso antes?


Inquisidores, não é preciso levar a sério. Há ainda outros elementos de cunho cristão para serem observados. Há o conjunto da gruta de Nossa Senhora Aparecida, em um local de mata nativa remanescente, ainda nos arredores do núcleo urbano do município.


Este pequeno centro de culto não foi erigido por uma simples vontade de algum beato, mas pelo fato de que está no pé da escadaria do Morro da Penha, que leva ao Santo Cruzeiro, que, pelo que pesquisei no site da prefeitura, é o maior crucifixo do mundo.


Para acessar a obra de arte, é preciso encarar uma escadaria de quase 600 degraus, equipada com oito pontos de parada para respirar. Como eu não estou com essa fé toda, abdiquei da subida por esta via.


Bem… havia um problema importante por resolver: onde ficar. Não há disponibilidade de vagas na pequena urbe, então o jeito foi usar a boca que leva a Roma (não necessariamente atrás do papa). As indicações mais promissoras davam conta das pousadinhas que ficam na rota de Joanópolis, ladeando a represa do rio Jaguari. É um pedaço que permite um bom banho, apesar das cachoeirinhas que lhe são adjacentes estarem quase secas, como a Cachoeira da Mãozinha. Não conseguindo encontrá-la, perguntei a duas meninas em uma moto em que diabos de lugar estava seu acesso, com a infeliz informação de que o pouco volume de água era inversamente proporcional ao de mosquitos. Meio decepcionado, procurei uma beirada mais afável, e a vista, de fato, compensou.


Nestas cercanias, consegui uma vaga em um sitiozinho, do casal Pedro e Lourdes. Por si só, a companhia de ambos já dispensa qualquer outro atrativo, mas a pousada é muito bonita. Há nas imediações um conjunto de trilhas que dá acesso a um dos braços da mesma represa citada anteriormente.


Isso garante ao Pedrão boa água para suas lavouras e seus tanques de pesca, repletos de traíras e sapos. Isso dá um inesperado controle ambiental sobre os borrachudos e pernilongos, fazendo com que seja um problema quase imperceptível.


A pequena pousada se chama Vale das Maritacas e por aqui baixamos nosso acampamento por todo o período da viagem, inclusive passando alguns dias enfurnados em seus limites, colhendo verduras e dando de comer para os bichos, em uma experiência de caipiras da cidade.


Não se iludam com a antena mostrada acima. Já não sou dado a televisão nem mesmo em casa, quanto mais em terra de repouso. Sinal de wi-fi é coisa para acrobatas digitais e, mesmo comprando um chip local, a situação serrana não facilitava a comunicação com os grandes meios digitais.


Por conta disso, você passa a observar um pouco mais o mundo que te rodeia. A quantidade de insetos e passarinhos que pude ver é impressionante. Maritacas, bem-te-vis, periquitos, tico-ticos, sanhaços, pica-paus, viuvinhas, beija-flores, juritis, andorinhas, sabiás, tesourinhas, cambacicas, canarinhos-da-terra e tantos outros que eu nunca vi formam a parte mais encantadora dos momentos de contemplação.


Não estávamos sós, apesar de tanta tranquilidade. Havia gente que parecia estar verdadeiramente embevecida com o que via e sentia naquelas paragens. Eram dois casais de israelenses que lá estavam hospedados. Longe do estereótipo dos judeus barbudos e das mulheres todas recobertas, eles mais se pareciam com uma trupe a meio caminho do hippie e do natureba, o que nos leva a crer que não eram lá muito ortodoxos.


Lugares-comuns são mesmo um problema. Imaginamos logo de cara um povo fechado, cheio de idiossincrasias, prontos para conseguir um desconto nas compras e um acréscimo nas vendas, e defender acima de tudo sua fé. Tudo errado. Em uma pesquisa Gallup, ficou demonstrado que apenas 30% da população israelense professa alguma religião, sendo um dos países com menor índice de religiosos no mundo, e é exatamente o que parece acontecer na minha frente. É um pouco angustiante conviver com pessoas com as quais você não consegue se comunicar. Nos primeiros dias, só tínhamos a informação de que eram “estrangeiros”. Confesso que fiquei por alguns momentos deitado na rede manjando os seus linguajares, sem chegar a nenhum consenso. Não parecia inglês, não parecia latino, não parecia japonês ou congêneres. Umas palavras velarizadas me davam um certo ar de Bom Retiro, então comecei a pensar em algo do tronco camito-semítico, no que acertei em cheio. Apesar dos limites muito estritos, diziam alguns bons-dias e obrigados. Verdade seja dita, são muito educados, curtindo bastante a contemplação, o compartilhamento dos espaços e a limitação de ruídos, algo que nem sempre encontramos em Terra Papagalli. Passavam o dia reunidos, cantando e tocando violão ao redor da piscina, preparando comida com base no vegetal, mesmo à noite, pouco se importando com as numerosas mariposas e grandes siriris. Aos poucos, nossa interação foi crescendo, a ponto de intercambiar alguns alimentos, de se arriscar alguns shaloms e coisas do estilo. Foram embora um dia antes da gente, e fizeram falta ao cão Valentim, que ficou acabrunhado em um canto até fazermos brinquedo com ele, usando uma rolha e um pedaço de pano.

Falando em rede, fala-se em reflexão. Logo depois da confirmação da nacionalidade de meus involuntários companheiros de hospedagem, fiquei me indagando sobre uma questão prática e outra política. São israelenses, talvez tenham uma matriz judaica muito forte na cultura, não devo tocar em certos temas, como oferecer presunto, e.g. Outra coisa é evitar confusões com assuntos relacionados com seu conflito com os árabes, muito delicado e cheio de rancores de lado a lado. Embora não parecessem estar preocupados com qualquer coisa que não fosse curtir o intervalo natural que viviam, sempre me causa preocupação errar a mão em bobagens evitáveis, feitas sem querer. Outra vez o estereótipo agindo.

É que não há como deixar de pensar no conflito árabe-israelense que se arrasta por tantos anos, de modo a ser difícil não tomar a posição de um dos lados. Nós, aqui no Brasil, temos uma tendência em ser mais simpáticos à causa dos palestinos, em especial porque compartilhamos com eles as aflições de pertencer ao Terceiro Mundo, de termos uma porção de gente vivendo abaixo da linha da miséria e de encararmos uma sociedade muito desigual, onde as diferenças são vistas quase que com normalidade. A apropriação de símbolos judaicos pelos evangélicos cada vez mais numerosos e seu apoio a temas como liberalismo e meritocracia podem exacerbar ainda mais aqueles que veem a causa econômica com poeira nos olhos. É preciso cuidado, no entanto. Isso tudo pode obnubilar a visão que temos com a outra parte, e achar que se tratam de malvadões que não querem dividir a terra. É preciso ter um pouco mais de subsídios para convalidar essa posição.

A dissensão entre os povos do Oriente Médio é muito antiga. Conta-se através de um relato bíblico que Noé, o famoso patriarca do dilúvio, teve três filhos: Cam, Sem e Jafé. Por ter visto seu pai pelado após um porre homérico, o primeiro foi expulso da sua terra, indo fundar outros povos na direção leste, a quem foram denominados camitas. A informação pode não ter muita historicidade, como denuncia a futilidade do motivo, mas já daí dá para se perceber que as narrativas convergem para uma segregação visceral, que inclui o reconhecimento da irmandade e sua insignificância para a manutenção de algum tipo de concórdia. A Bíblia ainda relata, independentemente da literalidade, como o principal patriarca dos judeus, Abraão, expulsa seu filho mais velho, Ismael. É do outro filho, Isaac, que a sua descendência deverá prosperar. Este é o relato mais antigo da divisão dos povos semitas, entre os árabes oriundos de Ismael e os hebreus que descendem de Isaac. Novamente: a historicidade das informações bíblicas são muito questionáveis, com exceção do espírito que lhe é subjacente, ou seja, de lá podemos extrair uma grande propensão aos nacionalismos dos pequenos grupos, com um sentido mais divisório do que conciliatório.

Os hebreus nunca tiveram paz naquela que chamam de “terra prometida”. Ainda que fossem bem organizados e movidos por uma causa comum, o fato é que nunca conseguiram chegar a um poderio comparável a outros impérios que lhe rodeavam. Sucessivamente (mas não necessariamente nesta ordem), babilônios, assírios, persas e romanos dominaram a área à qual pertenciam os membros da comunidade judaica, sendo que, sob os últimos, deu-se a segunda e mais definitiva diáspora, que começou por volta de 70 d. C. e que perdurou até 1948. Para que se tenha ideia de como esse evento é recente, há muita gente viva que presenciou e conta histórias do bom termo do movimento sionista, o regresso à Palestina. Vamos falar sobre isso.

O povo judeu, com a fragilidade da sua própria soberania, sempre teve dificuldades para sua própria existência. Ele espera a vinda da intervenção divina para retomar um lugar que reputa como seu. Esse messianismo trazia a ideia de um senhor dos exércitos poderoso, imbatível, temido. Um desses promitentes salvadores era Jesus, o fundador do Cristianismo. Entretanto, segundo ele, o resgate dos judeus não se daria pela via da guerra, mas, pelo contrário, por uma mudança de atitude baseada no desprendimento do mundo, o que incluía uma lógica do outro como nunca havia se visto igual no Oriente Médio. Foi crucificado como tantos outros revoltosos, mas criou um discipulado que, por conta de sua fundamentação pacifista, conseguiu ir se mantendo vivo, mesmo sob o domínio do poderoso Império Romano. Acontece que, embora existisse a homologação e execução de seu martírio pelos dominadores romanos, o fato é que sua morte foi tramada pelos altos sacerdotes judeus, a quem incomodava de fato. A partir do momento em que o Cristianismo cresceu a ponto de se tornar a religião oficial de Roma, as perseguições aos judeus, justificadas pela acusação de deicídio, tornaram-se mais e mais frequentes. Essa é a raiz do antissemitismo, que se propagou persistentemente desde então, e que existe até hoje.

As populações judaicas, como eu disse, nunca foram integradas comodamente às sociedades em que estavam inseridas. Em um mundo perfeito, uma determinada etnia deveria marcar sua presença na vida de uma cultura aos poucos, de modo a haver um intercâmbio, na forma do dar e receber: na medida em que o meio que circunda a comunidade étnica influencia em seus hábitos, também esta doa influências para a sociedade maior. Um bom exemplo que temos às nossas vistas é a comunidade japonesa da cidade de São Paulo. Por muitos anos seu raio de influência era restrito a poucos nichos, como o bairro da Liberdade. Lá possuía rádio própria, jornais próprios, arquitetura própria, religiosidade própria. Hoje em dia, não se passa um quilômetro em Pauliceia Desvairada sem que haja uma casa de sushi, uma temakeria, uma Daiso© da vida. Da mesma forma, os sanseis e congêneres escutam pagode, descolorem o cabelo, fazem tatuagem, gingam capoeira, comem baião-de-dois. Mas, diferentemente do que ocorria com outras etnias, os judeus continuavam a encarar restrições, o que tornava suas comunidades mais e mais fechadas, muitas vezes tendo que utilizar dissimulações para sobreviver.

Foi verificando a impossibilidade deste processo de assimilação que o movimento denominado Sionismo nasceu, impulsionado através da baliza de seu principal pensador, Theodor Herzl. O termo é oriundo de um dos montes que circundam a cidade de Jerusalém, o monte Sião. Provavelmente pelo fato de que a primeira coisa que se via para quem chegava a Jerusalém era a fortaleza que ficava no alto deste morro, os israelitas passaram a se denominar como filhos de Sião. Herzl detectou que a sensação de inserção dos judeus nas cidades da Europa ocidental era falsa, usando como exemplo o caso Dreyfus, onde um oficial judeu foi condenado pela justiça francesa com o uso de um processo forjado, utilizando o fato de sua origem.

Diante de casos como esse, Herzl constatou que o antissemitismo estava interiorizado nas sociedades, de modo a cristalizá-lo até nos países onde a presença judaica já era tradicional, e cujo resquício cultural próprio estava circunscrito à religiosidade. Não é possível a assimilação num painel como este. 

A única opção que restava, segundo Herzl, era a via da reconstrução de uma nação própria, um espaço físico para onde pudessem convergir os judeus do mundo inteiro. Neste local, e apenas nele, a comunidade judaica teria o direito de ser como é, com suas leis e costumes próprios. Era uma época de recrudescimento dos nacionalismos, não só um motivador para a formação do estado judaico, mas para evitar que os demais povos, impulsionados por esse mesmo nacionalismo, tornasse impossível o convívio com um povo sem pátria.

Herzl entendia que não era necessário em absoluto um regresso à Palestina, embora não descartasse essa possibilidade. A terra dos judeus seria aquela onde eles fossem admitidos e lá pudessem viver livres, independentemente de raízes históricas. Duas das hipóteses que ele mais levou à sério foram a África e a Argentina, onde a grande disponibilidade de terras e a necessidade de mão de obra poderiam permitir a aquisição do espaço vital. Sua militância nesse sentido foi aguerrida, a ponto de organizar um congresso sionista, mas a empreitada demorou a tomar corpo, e só foi levada a efeito após a Segunda Guerra Mundial, quando as atrocidades do holocausto comprovaram, de certa forma, sua razão. Somente um estado próprio, para onde pudessem convergir todos os judeus do mundo, seria uma solução plausível.

Herzl não viu sua demanda realizada. O processo de reformulação de Israel iniciou-se em 1948, quarenta e quatro anos após sua morte, com a reserva feita pelo Império Britânico na Palestina, dividida em parte para os israelitas, em parte para os povos de origem árabe. Tão logo terminou o mandato inglês na área, Israel proclamou a inauguração de seu Estado e o conflito com as nações árabes vem se arrastando desde então, até os dias de hoje. Não vou me aprofundar, porque senão este texto, já longo, tenderá ao infinito. Basta dizer que a simpatia que muitos de nós temos pela causa dos palestinos se deve ao fato de que Israel tem sérias dificuldades em partilhar a terra, e de fazer com os árabes o que era feito com eles próprios no mundo inteiro. Inexplicavelmente apoiados incondicionalmente pelos poderosos Estados Unidos, vários governos israelenses se opõem ao consenso e atuam como opressores, e tudo isso pode ser discutido livremente. Eu mesmo sou da opinião de que há muitos abusos, e que não deveria ser negada a existência de um estado palestino. Mas pensem bem. Se defendemos isso para os palestinos e outros povos sem terra, como os curdos, devemos convir que a causa da área própria para os israelenses é mais do que justa. Os meios para isso é que são discutíveis.

Chega que tá bom. Então esse é o começo de minha nova semana de viagem. Uma paragem tão brasileira e, justamente nela (ou exatamente por isso), fui ter um encontro com um assunto que tanto interessa ao mundo inteiro. Faz parte, tem que ser assim mesmo. Até a próxima e bons ventos a todos!!!

PS: Fiquei sabendo da morte do rabino Henry Sobel na data de hoje, o que só tenho a lamentar. Era uma figura tremendamente importante na luta pelos direitos humanos no Brasil. Não tenho nada para falar, só para lamentar.

Recomendação de leitura:

É um livro eminentemente político e partidário de uma causa. Não dá para esperar isenção, certo?

HERZL, Theodor. O Estado Judeu. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.

Seguem os links mencionados lááááááááááááááá no começo:

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (31 - Matemática)

Olá!


Vou contar dois episódios rápidos da minha pouco emocionante história, só para criar clima e dar conta da minha relação para com determinada disciplina. Acompanhem, não vai doer.

1980, quinta série. Já naquela época existiam as Olimpíadas de Matemática, e a seletiva em cada turma era uma escolha pessoal do professor, que chamava cinco alunos de cada sala de acordo com os critérios que achasse justos. Eu não era um dos escolhidos, em boa parte porque era da turma do fundão, emeritamente excluída sempre que o assunto fosse representação. Não que fosse bagunceiro, mas eu ao menos me concentrava nas aulas e era meio que admoestado a lá ficar para dar apoio aos malandros autênticos, às vezes com rispidez. Com isso, meu acúmulo de pontos negativos se dava pela participação naquela malquista coletividade, o que dava um certo bode no corpo docente. Acontece que, no dia marcado para a prova, dois dos alunos escolhidos para a atividade arrumaram jeito de ficar doentes, e o velho professor Katian, que se parecia muito com o Sr. Miyagi, teve que ir na regra 3 e buscar substitutos. Mas quem? O sindicato do fundão me elegeu por aclamação, e, deixando os braços caídos em gesto de desânimo, o didata nipônico assentiu: "vamos, vai você mesmo". Estando lá, recebi um papel com muitas questões, acho que vinte. Descompromissado e sem pressão alguma, fui respondendo cada uma delas. Lembro muito bem que não eram testes de múltipla escolha, mas exercícios a serem desenvolvidos. Tudo feito, entreguei a prova e fui para casa mais cedo, o prêmio de participação.

Não sei quanto tempo passou, imagino que mais de um mês. Belo dia e o diretor, seo Toninho, entra na sala, ao lado do professor de matemática, citando-me nominalmente. “Fodeu, né?”, foi meu pensamento imediato. Mas a chamada foi para me parabenizar pela nota mais alta da Olimpíada, e ao mestre pelo preparo de excelência do aluno. É incrível… meu primeiro lugar não foi só das quintas séries: foi o melhor desempenho da escola inteira, manhã, tarde e noite. Classifiquei-me para a fase municipal e ganhei um diploma de participação, que procurei enfiado em meus livros, mas não achei para postar aqui. Passons. O professor Katian teve toda humildade do mundo para me pedir desculpas por não ter reconhecido meu talento com os números, ofuscado que estava pela caterva que me ladeava. Será que sofri alguma espécie de preconceito? Talvez. Reconheço que as meninas que gazetearam naquele dia tinham de fato notas melhores que as minhas. Mas vamos adiantar a história para…

2003, quinto módulo do superior em Processamento de Dados, na até então conceituada Fatec. Já era a terceira vez que eu arrastava aquela maldita dependência em Cálculo II. Passando a custo pelo tema limites e a fórceps pelas derivadas, emperrei de tal modo nas integrais que acabei ficando totalmente descompassado com o restante das matérias. Naquele ano, eu estava proposto a finalmente me livrar da professora Silvia, com sua capacidade de abstração admirável e assassina. Fui passando pelas aulas de maneira mais dedicada do que nunca, desprezando as demais disciplinas, em atenção máxima, anotando passo a passo os exemplos, mesmo que não os compreendesse por completo. Sua didática era imutável – propor um exercício para resolução no abrigo indevassável do cidadão, e depois desenvolvê-lo por completo em sala. Em certa vez, após anotar o exercício proposto, sentei no sofá de casa e fui desenvolvendo a integral, desenvolvendo, desenvolvendo… até chegar em um determinado resultado. Quem conhece integrais sabe que não há muito como tirar provas da conclusão a que se chega, como se fosse uma equação ordinária, mas como era um feito inédito para mim, cheguei a ficar com uma insinuação de sorriso na cara.

No dia seguinte, a conferência. Passo a passo, o quadro negro ia demonstrando meus acertos. A professora Silvia falava blá-blá-blá e batia, demonstrava blá-blá-blá e batia, rabiscava blá-blá-blá e batia, até que bateu certinho com meu resultado final. “Peguei a mão”, pensei inocentemente, muito mais infantil do que na proclamação de vitória na Olimpíada, vinte e três anos antes. Ledo engano, triste ilusão. O que diz a mestra? “Chegamos ao fim? Parece que sim, mas vejam vocês. O resultado que temos não é idêntico ao ponto de partida? (N. do A: Era verdade). Pois é, não resolvemos nada, e esse método não serve. vamos partir para outro”. Como assim, partir para outro? “Ora, ora, não existe uma só maneira de integrar, e nem todas funcionam em qualquer caso. Neste tipo de cálculo, precisamos inserir os componentes em uma matriz e blá-blá-blá” ... Sério. Eu fechei meu caderno, pedi licença e fui embora. Eu me sentia como o arqueiro que leva o gol contra depois segurar o ataque inimigo como nunca fizera antes. Aproveitei para desistir do semestre também. Ainda não era daquela vez que eu iria subjugar as integrais.

Falei tudo isso para demonstrar uma relação de amor e ódio. A Matemática tanto pode ser motivo de regozijo quanto de estertor, porque ela tem o duplo condão de demonstrar o funcionamento do universo e de carregar nossas mentes aos níveis mais elevados possíveis de abstração. Causa, desta forma, doses proporcionais de fascínio e terror. Afinal de contas, o que é essa tal de Matemática?



Matemática é um termo que, para variar, vem do grego, e significa alguma coisa como “arte do conhecimento”. Nos seus começos, tinha um objetivo bem intuitivo, que era o de contar. Note-se que era muito mais fácil rabiscar uma tabuinha por tantas vezes quanto houvesse de ovelhas em um redil do que fazê-lo visualmente, toda santa vez que se quisesse saber quantas estavam lá. Pode parecer pouco sofisticado que se substituísse ovelhas por pauzinhos, mas na primeira vez em que se fez algo do gênero, tivemos diante de nós uma revolução: a redução simbólica. As quantidades não são mais expressas pela amplitude que se apresenta aos nossos olhos, mas por um negocinho mágico chamado número, o átomo da Matemática. Desta forma, ela não nasce apenas como uma contagem, mas como uma maneira de representar grandezas através de elementos abstratos. A Matemática é operação intelectual que retira a substância concreta de um ser qualquer, para que interaja com os conceitos lógicos embutidos em uma mente. Não é legal isso?

Mais ou menos. Para além da mera contagem, a Matemática atinge a própria estrutura da realidade, o que permite pensar em regras universais que podem se destacar a qualquer momento do mundo concrescível. Pensem, por exemplo, nas pobres ovelhinhas de nosso minúsculo rebanho. Olho para ele e vejo que lá há cinco delas. Da mesma forma, na cesta de frutas vejo cinco laranjas, enquanto na porteira há cinco travessas de cada lado. O número cinco, por si só, não significa nada, mas traduz uma quantidade que pode ser replicada a qualquer outro objeto: ovelhas, laranjas, travessas, bois, árvores, folhas, casas, pessoas. Mas a percepção de quantidades não se limita apenas a objetos que podem ser colocados fisicamente à nossa frente. Na medida em que o patrimônio intelectual da humanidade foi se ampliando, começou-se a aplicar abstração sobre abstração, e passou-se a contar coisas intangíveis, como os temporais dias, meses e anos. E mais ainda: intuitivamente, foi possível descobrir que era viável operar estas quantidades. Em outras palavras, dava para somar as cinco laranjas que estavam na cesta com as oito que estavam na laranjeira, e tínhamos uma quantidade total de laranjas; ou podia-se somar estas treze laranjas com as sete mexericas sobre a mesa para saber que havia vinte frutas. Ou, mais ainda, somar a estas as quatro abobrinhas na geladeira para saber quantos vegetais tínhamos em casa. Notem como os gêneros vão se abrindo, e coisas diferentes sendo acrescidas à operação. Cinco mais oito mais sete mais quatro era uma estrutura que não precisava ser aplicada apenas à realidade que me circundava, mas a qualquer outra situação plausível. Essa articulação que permite adicionar, subtrair, dividir ou multiplicar consiste na Aritmética, a área mais elementar da Matemática. Já dá para ver que não é tão simplesinho assim.

Na medida em que se percebia que na natureza existia não só o caos, mas uma grande quantidade de repetições, também se notava que não é só a contagem e as operações que a mesma permite que induzem o pensamento matemático. Vejam as teias de aranha, a perfeição da sua construção concêntrica, sua proporção geométrica e a precisão dos entrelaçamentos. Vejam os favos das colmeias, como são apostos de maneira coerente de forma a estabelecer uma estrutura muito maior que uma unidade faz transparecer. Vejam as cascas dos moluscos e percebam como funciona a média de ouro, com seu número mágico, o 1,618… Veja a força que um simples ovo pode suportar, com um material tão frágil, simplesmente pela estrutura em arco que o mesmo possui. Agora transponha tudo isso para aplicações práticas, como respectivamente temos as tramas dos tecidos mais resistentes, as paredes de nossas casas, o design de monumentos ou as pontes em arco de metal ou concreto. A partir do momento em que foi possível traduzir matematicamente cada um desses fenômenos ocorridos na natureza, foi possível trasladá-los para constructos humanos.

Esse modo matemático de pensar interessou muito aos filósofos da primeira leva, os pré-socráticos, de modo que praticamente todos eles eram também geômetras, os matemáticos cuja preocupação essencial estava na maneira com a qual as formas e os sólidos podiam ser reduzidos a formulações. Já em Tales, o patrono dos pensadores, encontramos o pensamento matemático, que chegou ao paroxismo com Pitágoras, que elevou o número à condição de arché, o elemento constituinte fundamental de tudo o que existe. Seu feito mais famoso, o teorema que leva seu nome, nada mais é do que uma demonstração geométrica: o quadrado da hipotenusa (o lado mais longo de um triângulo retângulo) é igual à soma do quadrado dos catetos. Essa é uma asserção tão basilar que praticamente fundamentou toda a trigonometria, o estudo do triângulo, pelo simples fato de que medidas, distâncias e angulaturas podem ser traduzidos e transpostos através da utilização desta forma. Diz-se que, assombrado com o poder dos números, Pitágoras, ainda mais longe do que os considerar a arché, chegou mesmo a divinizá-los, tornando seu ideário uma espécie de seita.

A evolução das Ciências comprovou como a Matemática viria a ser essencial nas suas construções. Não haveria Astronomia, Mecânica, Ótica, Balística, Aerodinâmica, Cinemática, Resistência de Materiais, Ondulatória e suas inúmeras aplicações caso não houvesse uma ferramenta para discriminar seus funcionamentos e possibilitar a verificação e a predição, princípios que estão na raiz da medula científica. A própria Matemática é recursiva, sendo criadas constantemente novas formulações para ajudar a compreender e resolver outras. O próprio exemplo que está na figura da corujinha é um desses: o polinômio de Taylor, que permite chegar à primitiva de uma função derivada. Não vou entrar em detalhes, porque me é muito doloroso o tema, como já pude descrever nas minhas desavenças com as integrais, mas, se eu a conhecesse bem, talvez não tivesse me evadido tão pusilânime da aula da professora Silvia.

Eu reluto um pouco em reconhecer uma Filosofia da Matemática. Prefiro pensar que ambas são tão estruturantes do pensamento humano que acabam por caminhar em paralelo, muito embora possa-se considerar que haja um laço a uni-las: a Lógica. Todas as vezes que eu perguntava o porquê do uso intenso da Matemática nas grades curriculares, a resposta vinha sempre nesse sentido: pensamento matemático é pensamento lógico, da mesma forma que o pensamento filosófico. A Matemática está para as Ciências Exatas assim como a Filosofia está para as Ciências Humanas, e ambas são reconhecíveis na arte, na linguagem, em tantas partes, além de se imbricarem mutuamente. Portanto, prefiro não os colocar em um grau de subordinação, mas de coordenação entre si. Há sempre um pouco de Filosofia na descoberta de uma nova fórmula matemática, que nasceu da curiosidade de se conhecer o universo, assim como há um pouco de Matemática em cada nova especulação filosófica, ao se aplicar um encadeamento racional em uma proposição. Se me perguntam se gosto de Matemática, sou sincero em dizer que não, mas se me perguntam se isso é motivo para não a respeitar, digo que isso é uma loucura. São primas-irmãs nessa causa perdida chamada conhecimento.

Recomendação de canal:

É uma pena, porque a jovem Inês Guimarães não posta mais vídeos em seu canal do YouTube, mas o material que está lá é daqueles que provam como a Matemática pode ser insinuante. Ela é portuguesa de uma cidade homônima ao seu sobrenome, e o seu sotaque é único. Seu apelido é Mathgurl, já escreveu um livro sobre problemas matemáticos (que não vou recomendar porque ainda não o li) e espero que logo resolva seus perrengues para voltar a publicar vídeos.