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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Luzes ou trevas, ou nem isso e nem aquilo – A Filosofia Medieval como um conjunto de ideias semelhantes a qualquer outro

Olá!

Um feliz 2014 para todos os leitores deste espaço. Recentemente, tivemos a virada de ano (oh!), e com ela, todo o ritual que lhe cabe, com a explosão dos fogos, com os saltos de ondas, as roupas brancas e os axés vários. Neste momento, a palavra de ordem é desejar tudo de bom, e esquecer os maus fluidos, as intrigas, as brigas, a gordura acumulada, os fracassos futebolísticos e tudo o mais. É tempo de filosofar também.
Esse assunto das boas energias me fez lembrar algo um tanto insólito (a lembrança, não o tema): a Filosofia da Idade Média. Como toda pessoa que se aprofunda na história dos movimentos filosóficos bem sabe, esse período é conhecido como “Idade das Trevas”, por conta do declínio do Império Romano e do domínio da Igreja Católica no pensamento preponderante, o que fez com que o centro das especulações filosóficas se deslocasse do homem para Deus. É fato que o núcleo do ideário medieval se concentrou na teologia, mas é injusto pensar que tal período tenha sido tão pobre assim. Até mesmo pelo contrário, já que essa era uma nova via para tentar explicar toda a complexidade da constituição do mundo, com sua física e sua humanidade. Compensa conhecer um pouco melhor das ideias nascidas na era medieval para julgá-las com um pouco mais de critério.
Essa foi a tônica da Filosofia de Étienne Gilson, pensador francês do início do século XX, que observava na retomada do pensamento escolástico uma rara oportunidade de desenvolver uma importante escola metafísica.

Segundo nosso caro professor, a Idade Média não pode ser encarada como um período de mil anos em que nada de importante foi produzido no pensamento humano. Aliás, ele chegou a essa conclusão primordialmente através do estudo da História, para depois chegar às sendas filosóficas. Ele percebeu que muitas das proposituras medievais têm pleno valor nos dias de hoje, e elenca várias interessantes conclusões atingidas por filósofos daquela era.
Sua principal preocupação é restabelecer o tomismo como interpretação válida dos caminhos para atingir a transcendência. Para pincelar bem rapidamente, o tomismo é a escola teológico-filosófica inaugurada por São Tomás de Aquino, também chamada de Escolástica, e que tinha como principal propósito a conciliação entre a razão e a fé. Para levar a cabo tal tarefa, São Tomás utilizou as traduções árabes dos escritos de Aristóteles, o que, de cara, dá a dimensão do caráter metafísico deste trabalho. No entender de Gilson, o padre espanhol desvenda, com vantagens, uma das maiores dificuldades da especulação aristotélica, ao distinguir com uma clareza inalcançada os conceitos de “essência” e “existência”. Aristóteles tratou com maestria de elementos como o ato e potência, mas não chegou a distinguir o modo como algo que existe em uma forma (um dos principais componentes da substância – cerne na metafísica aristotélica) se corporifica, ou seja, como deixa de ser algo essencial para efetivamente existir.

Gilson vê que Aquino consegue perceber que a essência é uma ideia real daquilo que pode existir, é algo que está presente em todos os seres que existem. Ela é uma descrição da natureza do Ser, e como tal, uma essência está sempre à espera de se tornar tangível, ela não depende da massa ou do corpo para existir, mas somente completa seu sentido no momento em que se torna concreta, em que existe de fato. A existência é a complementação da essência, e, se cremos em um Deus essencial, também a ele deve ser atribuída a existência, já que a perfeição só pode ser atingida quando o ser está completo, em essência e existência.
Tomás de Aquino, além dessa ponderação existencial, elaborou cinco provas da existência de Deus, todas tomadas com base nos princípios aristotélicos. Não mencionarei todas, para que o assunto não se estenda ao nível da caceteação, mas um dos itens mais célebres diz respeito ao Primeiro Motor Imóvel. Esta tese é o amálgama das leis de causa e efeito, e diz que tudo o que se move é movido por alguma coisa: uma rede é movida pela bola, que é movida pelo chute, que é dado pelo jogador, que é movido pela queima de nutrientes em seu corpo, etc. e ao infinito. Há um momento tal, regredido ao ponto mais remoto desta cadeia, que é o ponto em que, digamos, o mundo começa a girar. Não há nenhuma causa anterior para esse efeito? Para Aristóteles, há. É o primeiro motor, que é imóvel porque senão teria que existir uma anterioridade que o moveu. E Tomás de Aquino identifica esse primeiro motor com Deus, que é causa sem ser causado.

Mas há muito mais na Filosofia Medieval. Há um filósofo chamado Pedro Abelardo, que é mais conhecido por sua vida trágica (retratada nas suas correspondências com sua amada, Heloísa), que abordou uma questão bastante polêmica à época: a disputa entre realistas e nominalistas.
Vamos entender um pouco melhor a questão. Os realistas entendiam que os universais (aquilo que caracteriza um ser independentemente de suas contingências e acidentes) tinham uma existência metafísica real, e que serviam para moldar os seres particulares. É algo que se assemelha ao mundo das ideias de Platão, ou seja, existe uma instância intelectiva onde habita o pensamento puro, e lá os universais são reais – existe o modelo perfeito de homem, de animal, das coisas todas. Já para os nominalistas, as designações dos universais nada mais eram que nomes, construídos e atribuídos aos seres pelos homens. Nessa solução, os universais não tem nenhum tipo de relação direta com os seres que designa, a não ser na linguagem. Não há um mundo onde morem, álacres e trigueiros, os modelitos de tudo o que existe.

Parece que essa questão é fácil de resolver. Que grande besteira é essa, de dizer que existe um mundinho místico, onde os universais servem de modelo para tudo o que há no universo? Essa é a tendência de pensamento em um mundo regido pela lógica. Mas isso é um engano, pelo menos a princípio. Querem ver um exemplo do nosso quotidiano?
Já ouviram a frase “a palavra tem força”? Acho que algumas centenas de vezes, confere? Pois bem, há alguns nítidos casos onde isso é aplicável. Um deles é a questão do medo que algumas palavras nos impõem. Muitas pessoas, principalmente as mais antigas, evitavam a todo custo falar a palavra “câncer”, porque era sinônimo de morte certa e dolorosa. Tratavam este mal como “doença ruim”. Por que faziam isso? Porque há a crença de que as palavras tem um perfil mágico, e pronunciar estes nomes pode atrair a concreção do que representam. A palavra “câncer” dá câncer. O mesmo se diz para a palavra “morte”, repleta de eufemismos: as poéticas “ir-se”, “passar desta para melhor”, “prestar contas a São Pedro”; as irônicas “bater com as dez”, “comer capim pela raiz”, “abotoar o paletó de madeira”, “dar o laço no pacote”, “dar com o rabo na cerca”; e até mesmo a tenebrosa “bater com as costas no inferno”. E, por falar no diabo, esse é um nome de muitos esconjuros, que ninguém gosta de falar – coisa-ruim, tinhoso, cramonhão, capeta, anjo caído, cão danado, capiroto... deve ter uns 666 eufemismos para o príncipe das trevas. São palavras faladas com temor, em voz baixa, e que por isso mesmo excita a criatividade humana para expressá-las sem dizê-las.

Pois é... Se é possível acreditar que a palavra pode atrair sorte ou azar, presença ou ausência, ventura ou desgraça, não é cabível dizer que os nomes são simplesmente isso. Então verificamos que a tese realista não é tão absurda assim, ainda que filosoficamente possa parecer pobre. Não podemos desalinhar nosso pensamento de nossa conduta.
Pedro Abelardo elabora uma tese nova, chamada de conceitualismo. Para ele, o realismo erra ao tentar vincular nomes aos universais como coisas reais. Eles não existem na natureza, mas em nossas mentes, como elementos lógico-linguísticos. Estes, por sua vez, não são meros nomes: são a representação obtida a partir da constatação da semelhança entre os elementos comuns que procura agrupar. Eles existem, porque podem ter sua presença verificada nos seres que descrevem, mas sem que habitem um espaço à parte no mundo tangível ou metafísico. Portanto, nem tanto a Deus, nem tanto ao diabo (epa!). O universal existe, mas como conceito, não como coisa real, nem como mero nome.

Também lembro de Santo Agostinho. Já citei o padroeiro em algumas postagens (como essa e essa), onde menciono suas observações sobre o tempo e sobre o livre arbítrio. Mas ele também discorreu sobre inúmeros outros assuntos, como a constituição humana, que reflete a trindade de Deus. De fato, Deus Pai tem a atividade criadora que a mente humana possui; Deus Filho tem a corporeidade, a concretude da existência física; e o Deus Espírito Santo tem o sopro da vida e a ação que o espírito do homem também denota. Dessa forma, explica-se a frase bíblica que diz que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança.
Vou falar também de Guilherme de Ockham, e sua famosa navalha. Este frade franciscano afirmava que, quando no exercício da atividade de pesquisa, devemos eliminar todo penduricalho desnecessário. Isso o tornou um pouco reconhecido precursor do método científico, porque os desvios causados ao escapar do cerne da especulação faz com que, inevitavelmente, caiamos no vazio da discussão infrutífera. Ele dizia que era necessário economizar na criação de uma tese da mesma forma que a natureza economiza em sua ação no universo. Sempre que o caminho mais simples puder ser adotado, deve-se fazê-lo.

Há muitos outros filósofos relevantes e menosprezados na Idade Média. Vou citá-los aqui en passant, apenas para que possamos ter uma dimensão mais clara de suas contribuições:
Filon de Alexandria: tentou fundir, pela primeira vez que se tem notícia, fundir a filosofia grega e a teologia judaica, com a utilização da alegorese, um sistema que transforma as figuras alegóricas literais da Bíblia em conceitos simbólicos e verdades morais;

São Justino Mártir: conciliou o Cristianismo com o platonismo e com o estoicismo, sendo precursor de Santo Agostinho;
Dionísio Areopagita: discorreu sobre a estrutura hierárquica do paraíso, servindo, inclusive, de influência para a construção da obra de Dante Alighieri;

Boécio: criou o quadrado lógico das proposições, uma esquematização gráfica dos silogismos aristotélicos. Pesquei um exemplo na internet. Quem já estudou lógica, com certeza enfrentou um desses;


Santo Isidoro de Sevilha: grande estudioso e escritor, que reputava a etimologia como chave principal para o conhecimento, ou seja, para conhecer, é preciso estudar as origens das coisas e das palavras;
Escoto Erígena: refutou o dogma da predestinação, no qual os homens já nascem determinados e com destino marcado, sendo, portanto, mais um defensor do livre-arbítrio;

Pseudo-Dionísio: pensou a Filosofia e principalmente a Teologia por dois caminhos distintos: o positivo e o negativo, sendo este último aquele cujo intelecto humano não consegue atingir;
Santo Anselmo: elaborou uma famosa prova ontológica da existência de Deus, a partir da premissa que não há nada maior que possa ser pensado;

João de Salisbury: estabeleceu que a lei somente pode ser considerada eficaz se pautada na equidade e na justiça;
Nicolau de Cusa: Pré-renascentista, este frade estabeleceu a Ciência como a arte de lidar com conjecturas, já que há um desnível entre o objeto passível de conhecimento em seu todo e a parte que nossa intelectualidade consegue absorver dele;

Avicena: filósofo árabe, exibiu as distinções entre o ser possível e o ser necessário;
Averróis: outro árabe, que traduziu Aristóteles e dá nova sistematização à sua obra. É partir de seus escritos que São Tomás de Aquino desenvolve suas teses;

Moisés Maimônides: filósofo judeu que afirmou serem meramente aparentes as incompatibilidades entre fé e razão;
Santo Alberto Magno: estabeleceu as cinco diferenças primordiais entre a Filosofia e a Teologia;

São Boaventura: discutiu sobre a autonomia da Filosofia em relação à Teologia;

Roberto Grossatesta: criou uma filosofia da luz, retomando a antiga ideia de arché dos filósofos da phisys, porém com a utilização de elemento místico;
Roger Bacon: precursor da metodologia científica, dizia que a Ciência é um fruto da humanidade como um todo, e não de indivíduos, colocando-a sob uma perspectiva ética;

São Beda, o venerável: discorreu sobre arte, geografia, gramática, ciência, história e, evidentemente, teologia. Introduziu o conceito de importância da geografia no desenvolvimento filosófico;
João Duns Escoto: precursor de Descartes, voltava sua filosofia para o desmembramento das causas complexas em argumentos simples, de fácil análise e constatação;

Mestre Eckhart: discorreu sobre a unidade entre Deus e o homem;
Ramon Llull: Pela primeira vez, estabelece uma lógica baseada em uma linguagem formal.

Deixei de mencionar aqui filósofos que trataram da teologia fora de uma perspectiva abrangente, como são os casos de Lutero e Wycliff, que se encerram em si mesmos. Mas são também dignos de serem chamados de filósofos medievais, o que só prova que tal período é ainda mais rico do que aquilo que estou discorrendo.
Pois é, pessoas. Entendo que é o suficiente para que possamos levar um pouquinho mais a sério a filosofia realizada na era medieval. Uma das principais constatações de Gilson é que os historiadores da Filosofia muitas vezes se fazem seduzir pelo pensamento de que o uso da razão deixou de existir com os gregos antigos e saltou diretamente para a Renascença, e que tudo o que aconteceu nesse meio tempo foi apenas um domínio acrítico do Cristianismo, o que não é verdade. Gilson demonstrou fartamente que a filosofia do Renascimento tem toda uma ligação com a Idade Média, da qual é subsequente direta, e não há uma mera retomada da época clássica. Alguns pensadores fizeram isso para se colocar em oposição ao primado do teocentrismo, mas é preciso lembrar (já escrevi isso em algum lugar, não lembro onde) que esta é uma visão tão válida quanto as outras, é um caminho a mais para que o intelecto possa seguir. Desprezar a era medieval é um tiro pela culatra, porque quer libertar ao se impor limites.

Recomendação de leitura:
Para aqueles que se interessarem no assunto, há um brinde. Além de historiador dos mais talentosos, Étienne Gilson tem uma escrita ótima de ler, o que facilita muito a tarefa.

GILSON, Étienne. O espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

A imagem do quadrado lógico de oposição foi obtida do seguinte endereço:
Http://www.notapositiva.com/apntestbs/filosofia/10_logica.htm