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segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Sobre as conexões entre os quadros de nossos ambientes

(Caras e bocas traduzem uma cena como um todo? É possível ter uma expressão como componente de uma verdade local?)

Olá!

Tal qual a patroa, eu fiz minha primeira tatuagem em uma idade meio avançada para o padrão. Os motivos foram quase os mesmos: quando eu podia voltar o foco dos meus parcos tostões para fazer uma, tínhamos toda uma ojeriza social aos tatuados, trabalho incluso. Depois, a questão foi se tornando menos empregatícia e mais orçamentária mesmo, porque não se trata de serviço exatamente barato. Talvez a grande diferença entre nós foi o momento em que a vontade surgiu. Eu queria fazer uma ainda menor de idade, cuja aceitação nem passou em sonhos pela cabeça dos meus pais; já no caso dela a coisa veio bem mais tarde, já bem adulta, com os filhos já feitos.

Aconteceu de esses últimos tomarem seus rumos, e, embora ainda surja algum perrengue episódico, o fato é que eles vão se ajeitando e, com isso, algumas contas ficaram menos salgadas, permitindo projetar gastos dantes infactíveis. Além disso, a correlação entre tatuagem e mau-caratismo não faz mais o mesmo sentido, eu tenho emprego fixo e não sujeito a inspeções corporais e a ampla oferta fez com que os preços dessem uma razoável arrefecida. Taubaté, aliás, por trás da cara conservadora, tem uma proporção per capita de estúdios que aparenta a mim (sem nenhum critério estatístico) ser maior que a de São Paulo. É por lá que fiz os meus rabiscos.

Quando eu fiz minha tatuagem, a patroa estava lá, perguntando sarcasticamente se eu queria “dar a mãozinha”. Devo confessar que havia momentos que dava vontade mesmo. Eu fazia caras e bocas de colocar medo até em um lobo faminto, sempre segundo a consorte. Eu sei que eu sou meio careteiro mesmo, até porque as agulhadas atingem uns pontinhos de fato mais nevrálgicos, e aí o esgar é de rigor. Mas também não foi para tanto, a ponto de já ter feito uma segunda e estar a caminho da terceira. E acho que aí chega. Ou não.

Mas não é sempre que minhas expressões são exacerbadas. No próprio dia-a-dia, nós costumamos mudar de cara de acordo com as circunstâncias, até mesmo porque essa é uma forma involuntária (às vezes) de expressão. Acontece eventualmente de que tanto a patroa quanto a patroinha (o moleque mais velho nunca) olhem para minha cara e digam que algo não vai bem. Tem momentos em que é verdade. Como eu já disse por aqui, meu trabalho fundamentalmente consiste em tomar pressão no lombo, e, por vezes, isso é incômodo, ou aflitivo, ou provoca raiva, tédio, medo. Então é natural que a expressão mude. Mas tem vezes que não. Eu estou simplesmente na minha e vem a inquirição repentina. Segue um diálogo comum nessas ocasiões:

Patroa: “Você tá com a cara esquisita”

Eu: “Eu?”

Patroa: “É. Aconteceu alguma coisa?”

Eu: “Não… Eu tô com a cara esquisita?”

Patroinha: “Tá sim, eu também percebi”

Eu (começando a me incomodar): “Não. É coisa da cabeça de vocês”

Patroa: “Tá vendo?”

Patroinha: “É. O que aconteceu?”

Eu (já irritado): “Nada, gente. Tá tudo como sempre”

Patroa: “Bom, se você não quer falar, não tenho como ajudar”

(e assim por diante)

Mais do que irritado, eu fico bolado. Por que minha cara de judeu de todo santo dia causa espécie quando não há nenhum motivo para tanto? O que acontece para que as pessoas achem que você está calmo em plena borrasca ou nervoso quando está deitado na nuvem?

Eu reflito nessas coisas e, de repente, me pego olhando para a mesma patroa, que está cabisbaixa na poltrona da sala, e consigo vê-la daqui de minha bancada. Parece entristecida, como se estivesse nostálgica ou frustrada. Fico remexendo nos meus fantasmas e perguntando a mim mesmo se tenho cuidado bem dela, como me comprometi ao lhe tirar da casa do pai. Fico me questionando se tenho realmente sido um bom companheiro, se não sou mais estúpido do que o tolerável, se ela não tem frustrações com o amanhã sem perspectivas, se não se recorda dos bons tempos de juventude e não vê motivos para se alegrar com o que o futuro a reservou. Vou ficando meio depressivo, e estou a ponto de ir lá, conversar com ela, quase para pedir desculpas. No que me impulsiono, ela solta a gargalhada da piada que acabara de ler no celular, compenetrada. Sinto-me um pouco constrangido comigo mesmo, porque, mesmo que tenha tido um sentimento de compaixão, meu equívoco foi flagrante.  Ou seja, a brincadeira não acontece somente quando eu sou objeto contemplado, mas quando eu observo os outros também. E aprendo que o fenômeno não só ocorre comigo no polo passivo, mas também como uma pessoa que tem sua sensibilidade adulterada por um contexto que, muitas vezes, é somente imaginado.

Imaginado ou induzido? Essa é a grande questão. As coisas, como bem sabemos, não se encontram isoladas em um ambiente, como se estivessem enfiadas em um quartinho de cor neutra. São várias as interações que acontecem entre os objetos e o meio que os cercam, mesmo que todos os componentes estejam estáticos. Ora, vejam: nós somos objetos também, e, sendo assim, qualquer um que nos observe o fará com a influência das nossas cercanias. Uma expressão pode passar de serena a entediada pelo simples fundo em que está inserido – um campo florido ou um quarto semiescuro. Há um efeito teórico aplicado em cinematografia que explora muito desse conceito, o efeito Kuleshov.

O efeito Kuleshov foi sistematizado por Lev Kuleshov, um teórico de cinema e cineasta russo, que, fundamentalmente, dizia que a percepção das pessoas é influenciada pela sequência de imagens que lhe é apresentada em tela, o que pode mudar o sentido original do que é exibido anteriormente em função daquilo que é apresentado a posteriori. Em miúdos: eu só fecho um contexto quando tenho um conjunto de impressões maior do que uma imagem simples.

Tendo essa tese em mente, Kuleshov promoveu um experimento que se tornaria influente no cinema a partir de então. Como as imagens originais do experimento se perderam, há algumas versões correntes, todas com o mesmo suposto resultado, mas a mais clássica é a que segue: Kuleshov montou três sequências de três fotogramas, sendo que a sequência seria o close no rosto impassível de um ator, seguido por uma cena variável e pelo retorno ao close no ator. Na primeira sequência, o ator observa um prato de sopa; na segunda, um caixão com uma criança morta e, na terceira, uma mulher lúbrica. É importante reforçar que a expressão do close é sempre igual, nas três sequências. Perguntando a entrevistados que sentimentos eles achavam que o personagem tinha diante de cada uma das cenas, para a primeira falou-se em fome, para a segunda em luto e, para a terceira, em excitação.

Isso demonstra, segundo Kuleshov, a importância da montagem no universo do cinema. A maneira como as cenas se sequenciam são de vital importância para que o espectador construa mentalmente a narrativa, e o diretor precisa levar isso em conta se quiser participar desta formação ativamente. É possível brincar com o efeito. O que eu quero fazer com a faca que tenho em mãos? Cortar uma carne, ferir uma pobre transeunte ou colher um mamão?

A grande pergunta é: a expressão é sempre a mesma; como ela ganha o sentido que lhe é atribuído? Como ela faz “adivinhar” o que o protagonista pensa? Eu não sou da área de psicologia, mas sou curioso, e vou tentar uma resposta através de duas correntes. Quem quiser divergir e me ensinar alguma coisa, fique à vontade nos comentários.

A primeira é que fazemos associações por conta de estímulos que recebemos durante toda a nossa vida. Embora nossas reações imediatas sejam instintivas, o fato é que elas não são unívocas. Basta que se pense nas pessoas que caem na gargalhada nas situações mais dramáticas possíveis. É algo absolutamente inesperado, mas possível – o famoso rir de nervoso. Sendo assim, a expressão impassível fica dentro do escopo das possibilidades de reações. Afinal de contas, temos a sensação de que o ator está "travado" diante de qualquer uma das situações. Mas nós não fazemos essa associação porque a temos em nós espontaneamente, e sim porque as observamos nos outros. Então, a cada vez que vemos uma pessoa reagindo à fome, à morte ou à libido, registramos sua reação e a colocamos na nossa coletânea de possibilidades. Cada observação de reações é um estímulo para que reforcemos a maneira com a qual enxergamos o mundo. Como a impassividade está nesse rol, fazemos facilmente a associação do contexto, mesmo que seja a mera junção de recortes. Esse é o caminho que vem do behaviorismo.

O resumo então é muito simples. Julgamos as expressões das pessoas porque temos uma habitualidade que lhe dá base. Acostumamo-nos a ver as pessoas fazendo caras e bocas para determinadas situações, e, com isso, emprestamos esse sentido que temos guardados em nós para situações que, talvez, não sejam exatamente o que pensamos. Isso acontece porque podemos tentar prever comportamentos com base naquilo que constantemente observamos no mundo.

Por outro lado, temos que a realidade é toda constituída por um continuum. Os retratos são pinçados da realidade como quadros que fazem parte de uma cadeia de causas e consequências, um antes e um depois, em sucessão infinita. As fitas de cinema são um exemplo perfeito dessa continuidade - uma longa cadeia de fotogramas que se sucedem logicamente. Essa montagem lógica da realidade é esperada pelo cérebro, e, mais do que isso, é procurada por ele. Por isso, furos da realidade posta são desesperadamente supridos pela cabecinha oca para acomodá-los ao que ela aguarda. Isso possibilita que sejam vistas coisas que não existem de fato, como no desenho abaixo:

Quem bate o olho percebe que um ramo de grão está sobreposto por um banner. Só que, se você retirar este último, não verá a continuidade do galho, mas uma faixa de tinta amarela. Essa complementaridade mental que damos às coisas permitem fenômenos como as ilusões de ótica, a pareidolia e outros mais. Situacionalmente, temos o mesmo princípio. Em uma sucessão de imagens, procuramos formar um nexo causal entre elas, de modo a ter posta a tal continuidade. A expressão do ator pode ter sido extraída de qualquer uma das três situações, ou até de nenhuma, mas o fato é que pode ser associada a qualquer uma delas. Se estivesse fazendo uma pernacchia*, por exemplo, teríamos um alerta de estranheza ligado, justamente pelo desencaixe do contexto (o que exigiria de nós novas informações), mas sendo uma expressão neutra, facilmente dá continuidade às circunstâncias que lhe seguem, justamente por lhe dar sentido lógico. Esse engodo à mente através das percepções sensoriais, que traduzem um sentido que isoladamente não existiria é de estudo da psicologia da gestalt.

Novamente resumindo, temos que nosso cérebro procura fazer um link abstrato entre diferentes cenas e situações para estabelecer conexões causais entre elas, da mesma forma que tenta estender imaginariamente as imagens para conectá-las.

A conclusão é que, seja por uma via ou outra, ou até por ambas e até outras, é inevitável que haja um componente subjetivo na realidade. Há uma mente que faz as costuras entre os diferentes componentes que constroem um ambiente, e cada uma delas doa sentido próprio, formado pelo que há em seu interior. É por isso que o velho Kant ensinava que não há como se ter acesso à coisa-em-si: somos exclusivos no universo, e nós, somente nós, vemos a realidade da forma como vemos.

Como eu disse anteriormente, em matéria de psicologia sou um mero curioso, mas, como adepto da filosofia, gosto de especular, e estou aberto a explicações melhores sobre um fenômeno que é possível de perceber empiricamente, mesmo que não haja comprovações científicas definitivas sobre o mesmo. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Livro português que trata do efeito Kuleshov:

BERTHOLO, Joanna et al. Efeito Kuleshov. Lisboa: Dois Dias, 2014.

É muito fácil encontrar na internet exemplos do efeito Kuleshov. Segue um para quem quiser ver:

https://www.youtube.com/watch?v=_gGl3LJ7vHc&pp=ygUIa3VsZXNob3Y%3D

* é aquela brincadeira tipicamente italiana de imitar um flato colocando a língua entre os lábios e soprando fortemente.