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segunda-feira, 28 de março de 2016

Sobre luzes de Natal e crise da meia-idade: até onde nossas angústias fazem viradas para a depressão

“Um terremoto sempre tem fim; o que não tem fim é a existência de terremotos” - Eu

Olá!

Um pouco antes do último Natal, tentei reunir minha patota para celebrar a vida, conforme era hábito nosso até bem pouco tempo atrás. A ideia era comer churros espanhóis* com coberturas diversas e chás variados, daqueles que admitem composição com frutas, especiarias e licores para transmitir certo exotismo.

Era um domingo. À hora marcada, desabou um temporal daqueles dignos de causar susto a Noé. Não havia chegado ninguém ainda, e nenhum dos meus filhos estava em casa. Estava muito escuro por causa do mau tempo, e por isso liguei as luzes do pisca-pisca da árvore de Natal. Sem ter nada para fazer, ficamos eu e a patroa sentados, olhando-a, iluminados intermitentemente pelas luzes coloridas. O silêncio era rompido constantemente pelos trovões, já que barulho de chuva não é barulho – é sonífero. Mas, a parte disso, só havia contemplação. De repente, a Mimi diz: “Daqui a pouco, nossa vida vai ser assim, só nós dois”. Senti um frio na espinha e respondi apenas com um muxoxo. Há nada de tempo, em um notório episódio onde arrebentou o vidro do meu aquário, despejando em poucos segundos os 82 litros que demoraram um tempão para preenchê-lo, estavam em casa a Jéssica, a Deborah, a Renata, a Natália, o Bruno, o Lucas (maior vítima do rompimento), a Bia Bar, o Santiago, o João Paulo, o Danillo, a Marley, a Bia Silva, a Luana, a Ana Bia, a Sabrina, a Bia Araújo, acho que a Larissa e a Raisa, não me lembro se algum dos meninos da Riachuelo... Salvar os peixes e secar a sala de 15 m² foi mais complexo com tanta gente.

Hoje estávamos só nós dois, esperando a chegada de alguém. Depois de mais uns minutinhos, levantei e fui dar uma olhada pela nesga da janela, passando ao lado da estante de livros, onde se encontram os escritos utilizados para a minha faculdade. Entre eles, uma apostila sobre Psicologia da Educação, onde despontam com vigor as teses de Piaget, Vigotski, Dewey, Bandura. Em algumas notas de rodapé, lembro-me das menções a Melanie Klein.


Lembro como aprendi, por conta própria, interessado pelo pouco citado, como essa psicanalista alemã adaptou as teses freudianas às crianças. Como se bem sabe, a linguagem não funciona nas crianças da mesma forma que em adultos, por um motivo muito simples: ela ainda não é completa. Como seria possível medir a psique infantil e verificar o quanto se assemelha à adulta?

Pois muito bem. Nossa heroína fez o que deveria ser feito: meteu a bunda no chão e passou a se sentar junto das crianças, brincando com elas e participando de seus jogos. Analisou suas fantasias com o mesmo propósito que os demais psicanalistas analisavam as associações livres dos adultos. E suas descobertas foram surpreendentes.

O fato de que a linguagem verbalizada da criança não seja completa não impede que a mesma se expresse. Até mesmo antes de produzir seus primeiros vagidos, a criança já está em plena atividade psíquica, adquirindo conhecimento em quantidades industriais, como jamais voltará a fazer em toda a sua vida. Mas o quintal onde esse conhecimento todo é recolhido passa por uma porteira praticamente instintiva, quase sem instâncias conscientes. A absorção da experiência é essencialmente dicotômica: ou é boa, ou é ruim. Traduzindo em sentimentos, a criança basicamente sente amor ou ódio.

Acontece que, como é bem fácil de prever, a cognição da criança é confusa, e, na medida em que esse processo vai se refinando, toda a sua personalidade vai sofrendo influências, para o bem e para o mal. O cerne da psique infantil é naturalmente egoísta, de forma que tudo o que não pertence ao ego (ao self, diriam os mais moderninhos) é um objeto, incluindo aí outros sujeitos. E este ego é a si mesmo uma fonte de prazer; tudo o que é de ruim vem de fora, vem dos objetos, que podem ser, inclusive, sua própria mãe. Melanie Klein usava o exemplo do seio, principal ligação entre mãe e filho no pós-nascimento, para ilustrar os paradoxos das primeiras percepções infantis com relação ao mundo que a cerca.

Funciona assim: a criança recebe leite de um seio, e isso traz a ela satisfação – sacia sua fome, dá-lhe sensação de prazer, traz-lhe felicidade. Isso faz com que a criança ame o seio que a alimente; ela ama o seio bom. Mas também há um seio que ela odeia – é aquele que lhe recusa o leite, aquele que sai da sua boca quando ela deseja ser saciada, aquele que não lhe propicia nenhum tipo de prazer e que a mantém em seu estado de desconforto, que a deixa com fome.

O que a criança não se dá conta, mas que será significativo na construção de sua maneira de ver o mundo, é o fato de que o seio bom e o seio mau são a mesmíssima coisa. O seio farto, que lhe traz satisfação, também é o seio escasso, que não supre suas carências. Quando a criança se apercebe de que isso ocorre (sempre a nível inconsciente), é colocada diante de si a angústia de que, sendo o seio bom e o seio mau a mesma coisa, seu impulso agressivo pode trazer a destruição indesejada daquilo que ela ama. A criança começa a compreender que os seus objetos não dependem somente dela, e isso lhe traz um gigantesco sentimento de culpa. Esse é o nascedouro da angústia.

Bem... Depois de tudo isso, eu me lembro de como fiz comparações das teses de Melanie Klein com o meu aprendizado, e percebi que ela aborda de modo clínico o mesmo tema com o qual os existencialistas faziam com um approach filosófico. O cerne de ambos está na angústia. A angústia se instala em nossa psique desde que nascemos, e nos acompanha por todo o sempre. E isso tem tudo a ver com os momentos de crise que passamos no decorrer de nossa existência.

Trabalhamos com processos de idealização. Idealizar significa pensar tudo perfeito. Ninguém planeja uma festa ou uma viagem para ter problemas. Claro, sempre levamos em conta alguns riscos, e nos prevenimos, mas temos a tendência de imaginar que tudo vai ser bom. E no final das contas as coisas acabam sempre ficando aquém do que idealizamos. Não veio todo mundo que a gente esperava, a cerveja não estava bem gelada, as paisagens não eram tão maravilhosas quanto mostravam os folders das empresas de viagem. Talvez seja por isso que as coisas que acontecem de improviso são tão legais – como não há a expectativa da idealização, é mais fácil fruir o momento. É como quando você vai tomar um café com os amigos e na volta decidem ir ao bar, tomar uma meia dúzia de chopps com bolinhos de abóbora e carne seca. Ou quando vai viajar com destino incerto, e descobre lugares incríveis, que não constam dos roteiros de viagem. A felicidade é simples, como um café qualquer num alpendre qualquer da casa de uma dona Maria qualquer.

Idealizamos desde crianças. E a idealização foge da realidade. Isso não é mau por definição, e é perfeitamente normal que nos frustremos quando o ideal não encaixe ao real. Só que, como já discuti neste e neste texto, a idealização vai se transformando em algo menos significativo na medida em que o tempo passa, porque o mundo que nos era importante, que nos identificou e tornou como somos vai cada vez mais distante. É a crise da meia-idade.

Há um paradoxo irresolvível na chegada da idade. Nós pensamos nas crianças como seres limitados e dependentes. Não há criança no mundo que não sonhe em chegar à maioridade, para dar rumo à sua própria vida, para sair da tutela dos adultos. Mas é como crianças que gozamos da maior liberdade possível, justamente porque não precisamos escolher. Sonhamos qualquer bobagem e não temos vergonha disso. Iludimo-nos como os maiores e melhores, e gostamos de pensar em um futuro bonito. Há poucas culpas a carregar e pouca gente a quem dar satisfação. E acontece o fenômeno que se repete em quase todos: gostaríamos de voltar a ser crianças. Isso corrobora, de certa forma, o pensamento de Klein, que diz ser a angústia nossa eterna companheira.

Quanto mais velhos, mais aprisionados somos. O trabalho começa pouco a pouco a não ser mais uma opção. De tudo o que queríamos ter realizado, pouco aconteceu. A história de que o aposentado goza de liberdade é uma triste ilusão. Os rendimentos caem, a saúde declina. No exato instante em que não conseguimos mais atravessar a rua correndo (sem pelo menos ter a sensação de que vamos cuspir o pulmão pela boca) percebemos que o tempo está encurtando, ainda que não o admitamos. Eu queria ter gravado todas as músicas que compus; hoje me limito a cantarolá-las ao andar em uma rua pouco movimentada, lembrando-me cada vez menos de suas letras e melodias. Eu queria ter escrito livros sobre o universo e os homens, e me contento agora com este pequeno espaço, em que sintetizo ideias esparsas para quem quiser lê-las. Eu queria ter mantido vínculos com amigos de infância, puberdade e juventude; agradeço aos céus por ainda ter meus parentes mais diretos e alguns afilhados, e pelo fato de poder mandar um salve via Facebook no dia do aniversário de alguém.

É que a crise da meia idade carrega consigo a angústia dupla – junto das irresoluções da vida, que não cessam até seu fim, há o temor de não existir tempo de voltar atrás. Se é fato que, ao escolher um determinado caminho, deixamos todos os outros para trás, enquanto temos vigor temos a esperança de voltar atrás e mudar a trilha. Agora não. Temos mais consciência da perda; as luzes que piscam diante de mim são um mero lenitivo da perda concreta – se a minha casa estivesse cheia como outrora, provavelmente eu nem me lembraria de ligá-las.

O que é muito importante separar aqui é que crise de meia-idade é uma crise como outras, como as indecisões da juventude, da qual já extraí um texto, que os convido a ler. Crises não são depressão, é bom não confundir. Mas podem conduzir a ela. A vida nos dá muitos golpes, pequenos e grandes. Os grandes são bem sabidos: as mortes das pessoas que amamos, e as grandes limitações físicas e psíquicas que a idade nos impõe. Uma pessoa que se vai nunca mais volta, e a diabetes, artrose e cardiopatia para sempre nos imporão um regramento, seja alimentar, seja farmacêutico, seja degenerativo do organismo. 

Mas os pequenos golpes são muito cruéis também. E com duas imensas desvantagens: são difusos e alimentadores da angústia. Lembro e repito a lição de Klein: desde que nascemos, ao identificar o seio bom com o seio ruim, vivemos em permanente angústia. Quando minha mãe ficou doente, principalmente na fase terminal, eu não conseguia mais dormir direito – havia sempre a expectativa da ligação fatal. Todos os irmãos da minha mãe morreram de madrugada, e o toque do telefone tinha o mesmo efeito da trombeta do arauto que vem anunciar o apocalipse – a desgraça chegou. Acabou que minha mãe morreu de dia; fiquei sabendo ao chegar do serviço.

E vejam só. Minha mãe morreu, e isso me trouxe uma imensa tristeza, que carregarei para sempre. Mas a sua morte levou embora a angústia. Já não tenho sustos de ouvir o telefone de madrugada. Já sei que não serão tentados tratamentos dolorosos, que não há mais risco de se perder a consciência, tudo isso acabou. O mesmo se aplica a tantas outras coisas, que quando chegam podem trazer problemas, mas que trazem também a resolução da angústia. O medo já se concretizou, não há mais o que temer.

Já nas coisas menores, é mais difícil espaventar a angústia, olhem que coisa curiosa. É que o medo da perda por vezes é muito maior que a própria perda. Imaginem um exemplo banal, como uma casa da qual gostávamos muito, mas que precisávamos abandonar. Enquanto ela existir, temos uma esperança, ainda que distante, ainda que inconsciente, de voltar a morar nela. Na medida em que essa possibilidade se distancia, aumenta nossa nostalgia, só que sem liquidar a esperança. A coisa pode ser resolvida de duas formas: ou readquirimos a casa (final feliz), ou seu atual proprietário a destrói. Em ambas temos a cessação da angústia, que pode ter se mantido por anos a fio.

Portanto, não são as perdas em si, agravadas com a chegada da idade, que são molas propulsoras de uma possível depressão, mas o estado de permanente angústia, mesmo que não se trate de uma condição inevitável. Como já escrevi aqui, a depressão é informe e espraiada, na medida em que é muito difícil compreender uma causa direta e única para a perda de identidade que a caracteriza, mas a cada vez que uma das pequenas derrotas da crise da meia-idade se instaura na vida de alguém, mais um pouco a pessoa perde de si mesma. E, sim, isso inclui coisas aparentemente pequenas, como a conclusão de que pequenas luzes natalinas iluminam a sua solidão.

Isso tudo aconteceu como num flash, em uma experiência curiosa e melancólica. Depois disso, o pessoal começou a chegar e eu fui fritar os churros.

Recomendação de leitura:

A maneira como Melanie Klein tratou de observar as fantasias inconscientes das crianças, respeitando o que elas mesmas tinham a dizer, e a sua teoria do seio são algumas das coisas mais belas que observei em psicologia, lembrando que a mesma era uma cientista leiga e autodidata. Recomendo que todos os que se interessam por educação conheçam um pouco de suas teses.

KLEIN, Melanie. Psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.


* Churros espanhóis, para quem não sabe, não têm recheio. A regra geral diz para polvilhar apenas açúcar e canela, mas é perfeitamente possível utilizar qualquer creme para incrementá-los.

Agradeço à Mimi e à Ná pela composição da foto que ilustra este post.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 21º tomo: o apelo à autoridade (argumentum ad verecundiam ou magister dixit) e alguma coisa sobre a imprensa

Olá!


De todas as falácias de dispersão e relevância que discuti neste espaço até agora, nenhuma tem o mesmo poder de causar confusões quanto aquela que será abordada no presente texto. Desde logo, vou apresentá-la, sem contar historinhas, descrever filmes ou filosofar lateralmente. É o apelo à autoridade, também conhecido pelos nomes de argumentum ad verecundiam ou magister dixit.


Nossas reverências às egrégias autoridades

O termo verecundiam não significa “autoridade”, como seria praxe pensar pelo ritmo dos demais apelos. Em latim, esta palavra quer dizer vergonha. Apelo à vergonha? Sim, e vou explicar por que. A vergonha, neste caso, tem o sentido de acanhamento, de um respeito reverencial por uma pessoa a quem se refere um determinado argumento, e não daquilo que os nossos eméritos políticos deveriam ter: aquele sentimento de culpa pelo fato de haver cometido alguma falta, a desonra pelo cometimento do ato indecoroso. A vergonha do apelo, portanto, tem a ver com o reconhecimento da incapacidade perante alguém reputado como melhor preparado.

Já o magister dixit não é só a latinização daquela velha brincadeira de criança de seguir o chefe, já que significa literalmente “o mestre falou”. É um termo que é utilizado fortemente na Idade Média, mais especificamente na corrente teológica da Escolástica, na qual São Tomás de Aquino foi craque. A Escolástica utilizou largamente os textos de Aristóteles, principalmente a partir das traduções de Avicena e Averróis, filósofos árabes que conseguiram coligir a maior parte de sua obra. Muitas das teses aristotélicas foram absorvidas e adaptadas ao Cristianismo, como o Primeiro Motor Imóvel, ato e potência, causa eficiente e final, etc. Bom, é assunto para um texto próprio, portanto não nos estendamos. Mas a locução magister dixit passou a ser interposta nos textos todas as vezes em que um argumento se baseava nas premissas estabelecidas por Aristóteles. Por extensão, os adeptos do tomismo faziam o mesmo em relação a São Tomás, e daí para frente foi sendo usado para referendar a autoridade de qualquer chefão que se situasse na hierarquia.

Há também outro termo, mais satírico, que pude ver em língua inglesa e italiana, então acho interessante fazer uma rápida remissão. É a falácia do “meu primo” (my cousin ou mio cuggino). Existe uma brincadeira que algumas poucas vezes vi sendo feita, que implica em dizer que “entre eu e meu primo, sabemos tudo sobre XYZ”, sendo XYZ qualquer assunto a que se queira referir. Diante do desafio, lança-se uma pergunta qualquer, que é respondida invariavelmente com a frase “essa não sou eu quem sabe, é meu primo”. Como todas as respostas são exatamente iguais, supõe-se que só o primo sabe das coisas. Bom, é tolo, mas como existe, queria deixar registrado.

A palavra “autoridade” vem do latim auctoritas, que, por sua vez é oriunda do grego augere, e que significa fazer subir, chegar ao auge. Quando aplicada ao conhecimento, significa aquele que faz aumentar o conhecimento. Nada a ver com termos vindo da política e da prática social. Por isso é bom diferenciar que apelar para a autoridade não significa chamar o guarda. Isso é apelo à força.

Um apelo à autoridade acontece quando baseamos um argumento em uma posição de determinada pessoa que, em tese, possui conhecimento em um assunto a tal nível que sua palavra pode ser considerada expressão da verdade – uma prova de validade do argumento.

Qual é o problema do apelo à autoridade? É que utilizar os conhecimentos e as opiniões de autoridades legítimas em um determinado assunto é algo perfeitamente normal e aceitável, e mesmo desejável. Quando queremos esclarecer um problema de Física, por exemplo, procuramos um físico, não é isso mesmo? E quanto mais titulado, melhor. Apelar para uma autoridade, portanto, muitas vezes é legítimo, e isso torna o argumento não falacioso. Portanto, é uma falácia muito manhosa. É preciso, nestes casos, prestar muita atenção às armadilhas do uso de autoridades nos argumentos. Vamos tentar cercá-las.

Primeiro: Ninguém é autoridade em toda e qualquer área. Não há nenhuma dúvida de que Albert Einstein seja um dos maiores gênios da Física que já pisou neste pobre planetinha, e utilizar seus ensinamentos sobre a relatividade é argumento plenamente legítimo. Será que uma sentença moral em que seja referenciado teria o mesmo valor? Vejamos. Leiam a seguinte frase:

“A fama é para os homens como os cabelos - cresce depois da morte, quando já lhe é de pouca serventia.”

Einstein não é uma autoridade sobre Biologia. Cabelos não crescem após a morte, com exceção de poucas horas em que algumas funções biológicas ainda são mantidas. Se alguém disser que cabelos crescem após a morte porque o grande cientista Einstein o disse, estará utilizando o apelo à autoridade. Mais ainda porque se trata de uma sentença moral, alegórica. Jamais poderia ser aplicada para corroborar uma afirmação.

Não é possível conhecer tudo. Ser um gênio em uma área do conhecimento não torna ninguém um gênio geral. É preciso estudo e aptidão para tanto, e ter consciência dos limites da cognição humana. Esse é o grande problema do argumento de autoridade – pelo fato de que a mesma não é autoridade em tudo, há uma dispersão no foco do argumento, e é irrelevante no caso acima que Einstein seja um dos grandes cérebros da humanidade.

Segundo: Uma titulação não garante que determinada pessoa seja autoridade em um assunto. Imagine que alguém seja formado em Direito, mas que tal graduação tenha ocorrido há mais de 30 anos, sem que o nosso caro exemplo tenha exercido a profissão (digamos que tenha optado por vender sapatos). Quanto mudou a legislação neste tempo todo? Quanto mudou das estruturas dos tribunais e dos escritórios de advocacia, com o uso de computadores, internet e peças virtuais? Quanto o próprio mecanismo social se transformou, fazendo com que condutas antes bem aceitas hoje não tenham respaldo nos meios jurídicos? Nosso desatualizado causídico não perdeu seu bacharelado e sua licença para atuar, mas somente poderá falar com propriedade sobre algum princípio fundamental e filosófico do Direito, mas terá condições de tratar sobre áreas novas, como o direito digital?

Terceiro: Mesmo que a autoridade referida seja de fato habilitada no tema em questão, é preciso que este tema possua algum nível de consenso entre os especialistas que o tratam. Teorias sobre ciências humanas tendem a gerar mais controvérsias e disputas que as ciências exatas, pelo simples fato destas últimas basearem-se em princípios lógico-matemáticos, o que diminui sua ambiguidade. 

Pensemos na psicologia e na psiquiatria, por exemplo. Há uma disputa intensa entre ambas sobre qual a melhor forma de tratar de transtornos psíquicos. A primeira procurará terapias baseadas na palavra, enquanto a outra tratará dos males com o uso de substâncias, preponderantemente. Se isolarmos apenas a psicologia, veremos que há inúmeras correntes para explicar os mesmos fenômenos, como o comportamento e a consciência, todas elas apoiadas em experimentos e no método científico; válidas, portanto. Basear um argumento na autoridade de um psicólogo de uma vertente sem deixar clara a dificuldade no consenso é tão falaz quanto o uso do magister dixit em qualquer outra modalidade.

Quarto: Ainda que a autoridade possua os predicados necessários, ainda que verse sobre tema de sua alçada, ainda que o assunto seja incontroverso, é preciso que a referência seja desinteressada. O que significa isso? Que seus pareceres devem ser imparciais. Cientistas e professores possuem interesses como qualquer outro ser humano, e, dependendo do grau que alguma circunstância se imiscua no seu pensamento, pode fazer com que seus conceitos sejam atravessados. Um médico que seja testemunha de Jeová certamente não será a melhor autoridade para falar sobre transfusões de sangue. Um químico que possua uma patente de determinado medicamento certamente propenderá a enaltecer suas benesses, em detrimento de outras substâncias. Vejam como a coisa vai ficando complicada.

Quinto: Passados os quatro filtros anteriores, é preciso ter em conta que a área em que se lança mão da autoridade deve possuir alguma legitimidade. Sabem aqueles programas de fim de ano, em que é consultada toda sorte de vate, adivinho, pai-de-santo, profeta, vidente, cigano, oráculo et caterva? Pois então, são todos autoridades em adivinhar o futuro. Artes divinatórias não formam um campo de conhecimento metodologicamente construído, portanto qualquer abobrinha falada por um tem o mesmo valor do legume dito por outro, ou seja, não há critério para estabelecer autoridades legítimas. Onde todo mundo é autoridade, ninguém é.

Sexto: Há uma variação do argumento ad verecundiam que consiste em atribuir anonimato à autoridade a quem se apela. São tremendamente comuns, muito perniciosos, que passam praticamente batidos pelo leitor menos atento, especialmente pelo fato de serem usados genericamente, em debates onde não se pretende aprofundar em pontos específicos. Quem nunca viu frases deste tipo?

- Cientistas asseguram que...
- Especialistas foram consultados...
- A Ciência garante...
- A literatura médica explica...
- Está registrado na História...

Cadê a autoridade? Escondida sorrateiramente não se sabe onde. A malícia desta modalidade é bem mais evidente, porque faz supor uma autoridade, mas não a identifica. E é nesse ponto em que eu enxergo um grande problema, e gostaria de discuti-lo com vocês, meus valentes e pacientes leitores. Existe uma determinada instituição, essencial para a democracia, que não só tem salvo-conduto para usar a autoridade anônima, mas até mesmo amparo legal. Essa instituição é a imprensa. Vamos ler o que está prescrito na Constituição do Brasil:

Art. 5º (...)
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

Sendo uma norma constitucional, não poderá ser proclamada uma lei que impeça um jornalista de resguardar o sigilo da fonte; também não poderá ser compelido a fazê-lo pela Administração Pública, e nem ser obrigado por cláusulas contratuais por empresas particulares e pessoas em geral. Mais ainda: fazendo parte das chamadas cláusulas pétreas da Constituição, não poderá nem ao menos ser objeto de emenda – apenas uma nova Assembleia Constituinte poderá modificar ou suprimir esta garantia.

Pois bem. A garantia de sigilo da fonte é uma das ferramentas mais importantes que a imprensa tem para exercer seu trabalho. Somente com essa garantia as fontes podem se sentir seguras para fornecer informações e, por extensão, cometer suas indiscrições. Já sabemos: força bruta é recurso de regimes ditatoriais, que moldam a imprensa aos seus interesses, mas não só. Há sempre grandes quantidades de interesses em jogo, e fazer uma denúncia é algo grave, com consequências imprevisíveis, inclusive para quem a faz. Essa liberdade é essencial para que um monte de coisas que são feitas por debaixo do pano venham a claro, ao menos na forma de indícios.

Mas o reverso da medalha é igualmente perigoso. A garantia do sigilo dá ao jornalista um poder que quase ninguém mais tem, que é o de fabricar realidades. Pode errar e mesmo mentir. As fontes podem ter um índice de confiança altíssimo – ou não. Podem ser autoridades válidas – ou não. São seres humanos, com todas as suas idiossincrasias. E o jornalista tem convicções e intenções – primeiras, segundas e terceiras. Só que é possível inserir informação falsa ou falaciosa sem que se tenham ferramentas para aferir. A fonte é uma suposta autoridade que possui informações privilegiadas. Como conferir?

Infelizmente, o jornalismo não é composto somente por virginais mocinhas. Há muitas putas velhas também, como há na política, no esporte, na filosofia e em qualquer lugar onde haja um primata com telencéfalo avantajado. Ter o direito de manter o segredo da fonte dá ao jornalista a possibilidade de distorcer, aumentar, camuflar ou até mesmo criar informação. É bem certo que ele, jornalista, tem responsabilidade pelo que publica e pode responder por isso, mas o estrago produzido pela manchete não é corrigido pela errata no rodapé da página 5.

Mas a imprensa deve então ser cerceada? Pouca gente é louca para achar que sim. No mundo inteiro, a imprensa tem um papel fiscalizador que somente a conjunção do interesse jornalístico e a necessidade de informação do povo é capaz de obter. Uma imprensa que tiver restrições na sua atuação não cumprirá o seu papel. Um jornal com um certificado de censura é um instrumento mutilado, e creio que não queiramos mais ver isso em nosso país.

Ora, se por um lado o sigilo da fonte resguarda o mau jornalista, e por outro a censura e o cerceamento da liberdade de imprensa são abominações, como poderemos resolver esta aporia?

No meu humilde entender, a solução que temos ao nosso dispor é o bom e velho ceticismo. A dúvida metódica é como se estivesse cheia de músculos: quanto mais exercício, mais robusta e difícil de bater fica. Não se trata aqui de um ceticismo burro, daqueles que somente duvida pelo gosto da implicância. Devemos partir da premissa que não existe conhecimento pronto e acabado, e que possa ser obtido confortavelmente, mas que conhecimento existe para ser interpretado. No caso das notícias, temos que estar cuidadosos com conceitos históricos, jogos de interesse, tradição ética de quem escreve, multiplicidade de pontos de vista, palavra dada às partes, a mesma notícia expedida por outro veículo, e, evidentemente, desconfiar do excesso de apelos à autoridade e de fontes anônimas. Somos também nós responsáveis pela informação que recebemos, na medida em que escolhemos acreditar ou não nela.

Mais do que português e matemática, é preciso ensinar o ceticismo às nossas crianças. Essa será nossa verdadeira revolução cultural.

Recomendação de página:

Alberto Dines é um jornalista carioca que sabe das coisas. Passou todo o período da ditadura rebolando para lá e para cá para manter a linha editorial do Jornal do Brasil, de quem foi editor-chefe. Sentiu na pele o peso da “isenção” das empresas jornalísticas, ao ser demitido por criticar as relações deste jornal com o governo do estado do Rio de Janeiro. Criou o Observatório da Imprensa, que tem por propósito ser um sentinela da mídia, fazendo uma espécie de metajornalismo. Recomendadíssimo.

Observatório da Imprensa. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br. Acesso em 17.03.2016.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Seres humanos, animais que imitam - e que se enganam

Olá!

As coisas no mundo às vezes convergem sem que nos demos conta. Alguns dão a isso o nome de destino; outros, de acaso. Não importa o que seja. O fato é que venho me interessando com tópicos da Filosofia da Mente, o que abarca, inevitavelmente, muitas discussões acerca de uma de suas aplicações, a psicologia. Acabei chegando à leitura fria (que redundou no texto deste link), e a principal interrogação que me veio foi a fragilidade que temos para cair em engodos. Pois bem. Ao cabo daquele texto, propus-me a detalhar um pouco melhor certos caminhos que levam a esses erros, sendo um deles a questão dos laços de confiança que se estabelecem de maneira quase instantânea, e que tem a capacidade de desviar a capacidade crítica de um interlocutor incauto. A par disso, pus-me a fritar uns churros em casa para alimentar minha galera, e a inevitável Renata me perguntou se eu conhecia um tal de efeito Rapport, algo bastante mencionado no serviço dela, e que seria relacionado à repetição de gestuais para melhorar a interatividade (imaginei duas velhinhas discutindo o melhor método de enrolar seus novelos de lã). Quase com vergonha, respondi que não, deixando pendente alguma pesquisa a respeito para me inteirar melhor. Como minha fila é grande e meu tempo é pouco, o assunto foi para a anotação de prioridades, esperando sua vez chegar. Ao retomar o estudo sobre influências interpessoais, com o que me deparo? Com o tal do Rapport! Ok, vamos a ele, passo a passo.



Um dos fenômenos mais intrigantes da natureza é o mimetismo. Os mecanismos da seleção natural fazem com que, após anos e anos a fio, algumas espécies se assemelhem tanto ao ambiente do qual fazem parte que acabam por se tornar indistinguíveis, como se fossem uma coisa só. Se os predadores não possuíssem suas estratégias de caça e captura, provavelmente morreriam de fome.

O mimetismo faz todo sentido biológico. Não fosse ele, milhares e milhares de espécies teriam vida curta, com poucos recursos de sobrevivência. Uma das grandes sacadas é que mimetizar demanda pouco consumo de energia, diferentemente do que ocorre nas fugas, que requerem grande esforço físico.

É claro que a sofisticação de um camaleão, que consegue alternar suas cores, ou a semelhança contundente que alguns insetos tem com flores e gravetos não são alcançadas no mesmo nível por todas as espécies. Mas é fácil compreender porque há tão poucos animais com cores berrantes onde o meio é monocromático – em uma savana, por exemplo, é vantajoso ter uma cor pardacenta ou em mesclas de marrom e preto, assim como os bichos de pelo branco costumam se dar muito bem nas regiões polares.

Mas não é só na imitação do ambiente que o mimetismo apresenta suas armas. Também existem vantagens em se imitar comportamentos. Vejam que certos animais apresentam engenhosidade em atos que visam obter alimentos, buscar abrigo, provocar acasalamento. Imitar aqueles que se saem bem é uma boa garantia de repetir o sucesso, além de constituir uma forte noção de grupo.

Nós, seres humanos, estamos hoje distantes da época em que necessitávamos utilizar estes dispositivos escancaradamente, mas o fato é que algum rabicho psicológico restou em nós. Notem como uma pessoa bocejando faz as outras bocejar; como alguém coçando induz comichão em todos ao redor, e como um contribuinte com tosse faz surgir um pequeno séquito de pigarrentos. Nada disso ocorre conscientemente. A boca que boceja está distante de ti, e só por sua percepção periférica, desligados todos os mecanismos atencionais, acionam seus alarmes miméticos. Portanto, em menor grau, somos praticantes da mimesis, como uma mariposa ou um peixe-pedra.

Mas é evidente que a coisa não é tão simples. A imitação se espraia para o interior mais profundo do nosso subconsciente. Ter similaridade no gestual, na postura, nas reações, nos rictos faciais, em tudo isso temos sinais de identificação – identificamo-nos como espécie. Daí, temos uma percepção inconsciente de que estamos em nosso lugar conforme esse conjunto de signos se repita em nossos semelhantes. Vejam só o que ocorre com os cães: eles coçam seus pescoços com as patas traseiras, chacoalham o corpo todo quando se molham, lambem certas partes do próprio baixo ventre que não nos apetecem. Podemos achar tudo isso engraçadinho, mas são ações que nos distanciam deles como espécie, porque está fora da nossa própria estrutura orgânica (imagine-se coçando o pescoço com a perna). Mas achamos fofíssimo quando eles cruzam as patinhas da frente, à moda das vizinhas que espiam a vida dos outros pela janela do quarto; achamos graça quando eles brincam com bolinhas, do mesmo modo que faz uma criança pequena, e sentimos o coração ungido de indulgências quando eles fazem aquela famosa cara de misericórdia, do mesmo modo que fazem as beatas ao cabo da missa de Ramos. Ou, mais ainda, quando surge uma daquelas historinhas típicas de Facebook contando a saga de um cão que vai dormir sobre a sepultura do dono pelo resto da vida, numa idealização do amor incondicional. Olhem só – são humanizações, são gestos identitários que se podem observar entre cães e homens. E isso faz com que cães nos sejam mais simpáticos do que ostras, que se limitam a ficar pousadas sobre as pedras.

Se há essa interação quase que emocional entre cães e homens, o que não dizer da relação intra-espécie? Quanto maior for a coincidência entre o gestual de duas pessoas, tanto maior será a empatia subjacente. Pegue duas meninas que gostam de puxar os longos cabelos para trás, cofiando-os entre os dedos para tentar obter um pouco de obediência; ou pense em dois rapazes que coçam suas barbas ralas ao encarar o indigesto exercício de Cálculo II que lhes é impingido; ou o casal que chama o garçom do mesmo jeito, levantando o indicador timidamente, um pouco abaixo da linha dos olhos. São uniões pela vaidade, pela aflição ou pela timidez – são elos. Ou ainda outra característica, mais facilmente perceptível: para fazer coisas em que há necessidade de um certo impulso, todos ficam esperando alguma cobaia ir primeiro para todo mundo seguir atrás, como acontece em um karaokê, ou para pintar o rosto e fazer micagens, como essa turma aí embaixo:




Tudo bem até aqui? Então reserve. Vou quebrar violentamente a estrutura deste texto, mas vocês vão entender.

Sou filho de costureira. Minha pobre e defunta mãe tinha talento suficiente para ser uma artista plástica de estirpe, tão hábeis eram suas mãos no manuseio de massas, pincéis e decorações outras; mas o fato é que as coisas nunca são como queremos e a ilustre genitora precisou canalizar suas habilidades para decotes, vieses, agulhas e linhas, com os dedos protegidos por dedais de alumínio. Era a época do operariado que trabalhava muito e ganhava pouco (bom, ainda é assim) e, se as mulheres quisessem ter algum luxozinho que passasse do básico, tinham que meter a mão na massa, às vezes literalmente. Isso quando seus parcos trocados não eram agregados aos do marido para fazer parte integrante do orçamento da casa. Para conseguir uma melhor produtividade, minha mãe não podia ficar saindo da máquina para cada botãozinho que se precisasse comprar. Por conta disso, virei uma espécie de estafeta dela, fazendo entregas de calças prontas, retiradas de fazendas para costurar e pequenas compras, incluindo aí linhas, zíperes, forros e os precitados botões.

Quando o sapato estava verdadeiramente apertado, ela precisava ousar e me mandava comprar tecidos. Dava-me uma amostra do pano, o dinheiro da compra e do então barato ônibus, e despachava-me para a rua 25 de Março, que na época era especialista nesse tipo de produto. Modéstia a parte, eu fazia muito bem meu ofício. Não me lembro de ter trazido material errado nunca.
Quando o tecido era de uma cor só, era muito fácil. Bastava pegar a amostra, comparar cor e textura com os grandes rolos disponíveis e pedir a metragem necessária. Se o tecido era estampado, também era fácil: se é igual, é igual; se não é, não é. O drama era quando o tecido era composto por uma padronagem, coisas como xadrez, risca de giz, quadriculado, as malditas ondulações. Nestes casos, achar o tecido exato era tarefa para horas, caçando lojas e driblando turcos que queriam te empurrar panos parecidos, mas não iguais. Afinal de contas, uma vez no corpo, tecidos levemente diferentes ficam quase que opostos.

A urdidura dos tecidos que utilizam padronagem é antecedida por um cuidadoso planejamento por parte dos tecelões, porque a trama não considera apenas mudanças de cores, mas também de texturas, densidade e mesmo de fios, dependendo da sofisticação desejada. É preciso que o conjunto forneça boa distribuição, unidade estética, amarração contínua suave e ritmo adequado. Estes elementos todos devem ser levados em conta porque esse padrão (chamado em alfaiataria de módulo) será repetido várias vezes na peça toda. Isso é chamado de rapport.



Rapport vem do francês, uma das grandes terras da moda. Como se pode deduzir pela descrição que fiz acima, quer dizer alguma coisa como repetição, embora não exista uma tradução direta para o termo. E, neste sentido, começamos a costurar os fios com a mimese que mencionei na primeira parte deste texto. Mimetizar é imitar e repetir, e o rapport nada mais é do que um termo que significa a capacidade de gerar sinergia entre as pessoas utilizando essa característica.

Mas esse termo também pode significar relação. Rapport sexuel, por exemplo, significa relação sexual. Desta forma, há dois pontos que separam e convergem o termo: a maneira como as pessoas se relacionam e como essa relação pode se constituir a partir de padrões de comportamento.

Pois então. Quando eu falei que havia algo empático entre as pessoas que assimilam seus gestuais entre si, estava me referindo a esse efeito. É como se uma pessoa enviasse às outras um sinal de sincronia, um sinal de existência de pontos de vista em comum. Voltando ao exemplo das meninas – quando ambas mexem nos cabelos, é como se afirmassem: “Ambas gostamos dos nossos penteados, ambas temos pontos de contato, ambas podemos usar essa sincronia para aprofundar nossos laços”. É claro que a coisa não acontece de forma tão escancarada, é tudo muito sutil, não existe mágica...

Não?! Pois parece que há quem pense que sim. E desta forma acabamos por desperdiçar uma bela hipótese psicológica em uma pseudociência, a Programação Neurolinguística, mais conhecida como PNL. Antes que eu receba a fúria dos defensores da PNL, devo desde já informar que não vou afirmar neste texto que ela seja mera empulhação, como é o caso do horóscopo, mas de um conjunto de procedimentos que não estão bem explicados, como é o caso da acupuntura, que parece funcionar, mas ninguém explica por quê.

A pretensão da PNL é oferecer modelos de comunicação que proporcionem uma melhora na capacidade de influenciar o pensamento de outras pessoas, através do aumento da empatia entre os polos comunicantes. É uma autêntica salada mista que mistura linguagem, Gestalt, comportamentalismo, psicanálise, pedagogia sistêmica e uma certa dose de leitura fria. Seu principal defeito se dá pela carência de evidências científicas bem construídas, já que seus mentores utilizam princípios paradoxais, como as colisões entre a primazia do ambiente e do comportamento na cognição, e pelo fato de desconsiderar pesquisas mais recentes na construção dos seus modelos. Como eu já disse, a PNL tem aquela carinha mista de autoajuda e esoterismo, em que utilizamos elementos esparsos para formar uma teoria sem fundamentações sérias. Baseia-se em uma visão pragmática, que visa, no limite, a convencer o interlocutor. E isso é muito bom nas vendas, na política, na publicidade. Não sei se é o mais desejável em uma relação pessoal sincera.

Fazer rapport, nestes casos, significa penetrar no campo de manifestações da pessoa com quem nos comunicamos e, através da repetição de alguns gestos (como a postura, o sotaque, a vivacidade do discurso), criar uma sincronização. A pessoa se sente semelhante à outra, e acaba por “amarrar” uma espécie de empatia. Vemos dúzias de vendedores fazer isso espontaneamente: é o que chamamos de “língua de veludo”. A PNL entende que é possível fazer uma espécie de programação em nossa linguagem visando alcançar essa virtude. Bem instrumental, no meu ver... Espontaneidade zero!

Isso desmerece o efeito rapport? Não inteiramente. Percebam que os fatos descritos até a parte em que comecei a falar sobre a PNL são empiricamente perceptíveis. O exemplo do bocejo é muito emblemático, mas o mecanismo que faz com que seja disparada sua imitação não é muito claro. A tese mais bem aceita hoje em dia é a de que possuímos neurônios-espelho. Que diabo é isso?

Nosso cérebro é uma maquininha cinza da qual pouco sabemos, mas que aos poucos vai se pondo desnudada à nossa frente, principalmente com a invenção de instrumentos que consegue captar os fracos sinais elétricos por ela emitidos. Utilizando recursos como eletroencefalogramas e ressonâncias magnéticas, os pesquisadores em neurologia têm observado que, ao visualizarmos uma atividade corriqueira qualquer, nós temos as mesmas áreas de nosso cérebro estimuladas das que são utilizadas pela pessoa que pratica efetivamente a ação. Em um exemplo, podemos imaginar que estamos sentados ao lado de um garoto jogando videogame. Se há uma tarefa que exige acurácia por parte do menino, uma determinada área do seu cérebro é ativada, a área da atenção; se é necessário noção espacial, outra área é requerida, e via discorrendo. Estamos apenas sentados ao lado, observando. Mas as nossas áreas cerebrais ativadas por esta simples observação são as mesmas que a do garoto em ação, cada uma de acordo com o momento da missão a ser cumprida. Notem que isso pode dar uma noção de perspectiva do outro, do sentimento que o outro tem do mundo, e, principalmente, de nos identificarmos com esse modo de ver e agir, a tal da alteridade.

Além disso, é uma tremenda ferramenta de aprendizado, o que dá guarida fisiológica a muito do que os psicólogos comportamentais haviam preconizado. É uma bela explicação dos processos cognitivos. Ao registrar a nível neurológico uma ação qualquer a ser repetida, o cérebro cria uma espécie de “roteiro” a ser utilizado quando o mesmo ato houver de ser realizado por nós mesmos.

O espelhamento foi descoberto meio que por acaso, como é comum acontecer. Fazendo testes de atividade cerebral em um macaquinho, o neurocientista italiano Giacomo Rizzolatti e equipe observaram que, ao ver um dos membros pegar uma banana em uma cesta, o pequeno símio emitia os mesmos sinais elétricos que ocorriam quando ele mesmo pegava a banana. Aprofundando a pesquisa, perceberam que o mesmo fenômeno se repetia todas as vezes que o macaquinho observava qualquer ação passível de cognição – se o cientista utilizava um brinquedinho, certas áreas do cérebro do bichinho eram ativadas; quando a brincadeira era feita pelo filhote, lá estavam as mesmíssimas áreas em funcionamento.

A mesma pesquisa estendeu-se a humanos, e obteve-se a mesmíssima conclusão – também em nós o espelhamento é uma realidade. A conclusão mais filosófica que podemos chegar é que, a nível cerebral, pensar e agir é exatamente a mesma coisa. E daí por diante muita coisa se explica na cognição, no aprendizado, na experiência pessoal e nas relações interpessoais. Mais uma vez voltando às vaidosas e cabeludas meninas, ou às mulheres que enrolam seus novelos: lá dentro da cabeça delas, observar os dedos entrando nos cabelos ou a linha de lã sendo enrolada é a mesma coisa que elas mesmas desfiarem os cabelos ou enredar os novelos. As cadeias elétricas dos neurônios espelho são ativadas da mesma forma. Dá para perceber o potencial de identificação que isso causa? E mais ainda, dá para perceber que isso é uma maneira física de obtermos a perspectiva do outro?

Para finalizar, tenho a lamentar que a PNL queira usar essa característica de modo tão pragmático, mas o pior é que o faça no estilo “o sol nasce porque o galo canta” – falácia da falsa causalidade. Os fenômenos que utilizam, incluindo o rapport, parecem funcionar, mas suas bases não são científicas – poderiam ser, ainda que não concordássemos com elas. Mas aí a contestação de suas teses poderia fazer com que acontecesse o mesmo que acontece com as teorias de terra plana – caírem no ridículo.

Recomendação de leitura:

Impossível achar literatura a respeito do espelhamento e do efeito rapport no Brasil sem estar atravessado pela modinha da PNL. Sendo assim, fui beber na fonte original, já que consigo ler em italiano (com um bom site de tradução ao lado, já se diga) e achei este livro em que o Dr. Rizzolatti, com o apoio do filósofo Corrado Sinigaglia, descreve todo o processo de pesquisas que o levou à descoberta dos neurônios-espelho e suas implicações.

RIZZOLATTI, Giacomo; SINIGAGLIA, Corrado. So quel che fai. Il cervello che agisce e i neuroni specchio*. Milão: Raffaello Cortina, 2006.

*Sei quem faz. O cérebro que age e os neurônios espelho.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Cafundó e fim do mundo - Mapas e palavras para entender a Sociologia e a Filosofia das bancas do centro

Olá!

Tem um tempinho atrás, o Danillo, leitor ocasional deste espaço (talvez um detalhe importante a relatar seja o fato de ser meu filho mais velho), mandou a seguinte sugestão via Facebook:

“sugestão de post (bem inútil): ‘Uma análise filosófica do poder que os grandes mapas de São Paulo tem de aproximar pessoas’. Sim, estou falando daqueles estilo poster de parede, que o pessoal encosta, procura sua rua e diz ‘eu moro aqui’, às vezes, ‘eu moro aqui, nesse fim-de-mundo’. Kkkkkkkkkkkkkkkk”

Não sei de onde saiu o questionamento. Há algumas bancas aqui no centro que se especializaram nesse tipo de mercadoria, então deve ser isso. E como não existe assunto inútil para a Filosofia, vamos lá!


Bom... Para falar legal sobre este tema, vamos ter que aplicar duas abordagens neste texto: uma para entender o deslocamento da função das palavras e outro sobre o nascedouro da sociabilidade através da interação direta das pessoas. Adiante.

A cena do mapa faz supor uma certa insatisfação com a distância e precariedade do local onde o segundo ator habita, já que é denominado por ele mesmo de “fim-de-mundo”. Ora, sabemos que o mundo, redondo que é, não tem fim; portanto, a linguagem é aqui utilizada em sentido figurado. Mas como falar que se mora longe não tem graça, há inúmeras outras palavras e expressões que a substituem. Em todas elas, fazendo a subversão do sentido literal.

Um deles é cafundó, uma palavra de origem controversa, mas certamente de matriz africana, que significa “fundo de vale estreito”. Corresponde a um local de difícil acesso e que os negros fugidos na época da escravidão utilizavam para formar pequenos quilombos. E acreditem: o Cafundó existe! É uma pequena comunidade de remanescentes quilombolas, situada no município de Salto de Pirapora, perto de Sorocaba e distante cerca de 120 Km da Capital. Conheço a cidade (não o Cafundó) e é bem pequena. Sabendo como o pessoal do interior calcula mentalmente suas distâncias, suponho que tal comunidade esteja realmente enfurnada no meio do matagal, meio que distante de tudo.

Também é comum escutar a expressão “Cafundó-do-Judas”, que é uma mescla à brasileira com o termo “de onde o Judas perdeu as botas”. É uma expressão de origem bem mais nebulosa, como sói acontecer nestes casos, mas a historinha é mais ou menos a seguinte: Judas Iscariotes, o apóstolo traidor, ganhou um pacotinho com trinta moedas de prata, suficientes para causar uma bela tentação*. Arrependido de seu feito, devolveu as moedas e suicidou-se com um enforcamento. Até aí, relato bíblico. O que o povo acrescentou foi a história de que os soldados que removeram seu corpo perceberam duas coisas: que ele estava sem o dinheiro e descalço. Ignorando o fato de que Judas havia arremessado as moedas no templo, vincularam uma coisa à outra e passaram a especular que o infeliz havia escondido a grana em suas botas. Óbvio que a procura pelo tesouro perdido foi vã, mas foi se estendendo para locais mais e mais longínquos. A mente da galera é fértil mesmo!

Outro termo comum para idear distância é dizer que alguém mora “prá lá de onde o vento faz a curva”. É algo um pouco difícil de nós, homo urbanus, visualizar com clareza, mas quando temos planícies amplas à nossa frente, de tempos em tempos podemos observar a aterradora formação de ciclones, que nada mais são que tubos de ventos que giram em torno de um centro a altas velocidades. Nós não percebemos os ciclones se formando – sempre os vemos  chegando de longos confins, parecendo se originar de um estranho cinturão eólico que fica além do horizonte. Um lugar onde o vento reto que nos refresca se curva e se descontrola. Longe, por conseguinte.

Já para outro termo comum, a “casa do chapéu”, não consegui encontrar uma explicação convincente, muito embora ser originada do fato de que antigamente era hábito usar chapéu e que o vento marotamente arrastava-os para longas distâncias possa ser plausível.

De qualquer forma, é fácil perceber como as funções da palavra dentro da linguagem são variáveis. Há uma mobilidade de sentido de acordo com o uso que se faz, como se as montássemos em um jogo. E quem diz isso não sou eu, mas um sujeito pouquinha coisa mais importante – Ludwig Wittgenstein.

Wittgenstein é um filósofo incomum. Produziu apenas duas obras – mas que obras! A primeira é o célebre Tractatus Logico-Philosophicus, do qual tratei neste texto, e onde ele expõe a sua teoria pictórica da frase, que diz que a lógica embutida na linguagem é rigorosamente a mesma da realidade que busca retratar, como se fosse um mapeamento. Nesse caso, somente importa a proposição, ou seja, uma construção linguística que afirma ou nega algo, podendo receber um valor de verdade ou falsidade. O restante era composto por penduricalhos linguísticos, que não tinham importância real. Concluiu que, com isso, estavam resolvidos todos os problemas da Filosofia e foi dar aulas para crianças, não se preocupando em construir carreira intelectual.

E é da revisão das teses do Tractatus que nasce sua segunda filosofia da linguagem, o que ocorreu um bom tempo depois. Eram as Investigações Filosóficas, publicadas postumamente. Aqui, ela percebia a linguagem como estrutura muito mais ampla, muito mais viva, onde aquilo que ele considerava inútil anteriormente era agora prenhe de significado, dependendo unicamente do contexto do seu uso.

Sim, o linguista muda seu enfoque e, mais uma vez, o faz de forma brilhante. Sem necessariamente invalidar as teses do Tractatus, Wittgenstein olha para fora da linguagem que traduz a lógica proposicional e descobre os jogos de linguagem. Vamos ver como funciona isso.

Nosso ilustre austríaco utiliza o jogo de xadrez para traçar uma alegoria dos jogos de linguagem em seus estudos. Como não se trata de prática muito difundida no Brasil, deixarei os reis e cavalos parados no tabuleiro e utilizarei algo mais prosaico para metaforizar.

Imaginem uma bola. Quantos esportes e brincadeiras são possíveis de praticar com uma destas? Inúmeros, sem dúvida. Futebol, basquete, vôlei, polo, beisebol, maçaneta, críquete, golfe, bocha, bilhar, pebolim, gude, queimada, handebol, pilates, tênis, ping-pong, pelota basca, squash, hóquei, até mesmo ginástica rítmica. Com um pouco de boa vontade, podemos citar os pesos usados nos arremessos de atletismo e as bolas ovais do rugby.

Olhamos para uma bola e sabemos que ela é uma bola, assim como falamos e ouvimos uma palavra e sabemos que é uma palavra. Mas a bola não subsiste por si só. Isoladamente, ela não tem sentido. A cada um dos esportes mencionados anteriormente, ela tem uma forma de uso: no futebol é chutada, no basquete é arremessada, no vôlei é tocada, na sinuca é batida com um taco, na queimada é atirada. E também há diversidade de objetivos – no futebol é o gol, no basquete é a cesta, no vôlei é o chão, na sinuca é a caçapa, na queimada é o adversário. Vejam que, sem deixar de ser bola, o objeto esférico muda de função em cada um dos jogos. Percebam que a bola, seu uso, seu objetivo e suas funções estão subordinados a regras, algo típico de jogos. E o que são as regras? Consensos, nada mais que isso.

Simplifiquei muito, porque sem esse consenso não é possível jogar. As regras existem para definir o que é válido e o que não é dentro de um jogo. Imaginem que, em um jogo de futebol, o quarto-zagueiro vire um quarterback, pegue a bola com as mãos e saia correndo pelo campo, desviando de seus atônitos adversários, até chegar ao gol, onde fará um touchdown extraordinário. O que acontecerá? Bem, o árbitro não validará o gol, marcará uma falta no local onde começou a infração e dará cartão vermelho para o louco, expulsando-o de campo. As regras estabelecidas são as do futebol, e não as do rugby.

Mesma coisa com a linguagem. Ela precisa se encaixar em um determinado contexto e obedecer a regras que são consensuais entre o falante e o ouvinte, entre o emissor e o receptor. A palavra “bravo”, por exemplo, pode ser um adjetivo que significa “valente”, ou que qualifique alguém como “severo”. Pode ser gritado como uma interjeição ao ator que nos agrada. Pode ser um sobrenome, ou uma marca de carro. Da mesma forma que faz sentido usar uma bola para jogar futebol, faz sentido usar a palavra “bravo” em seus contextos aplicáveis; assim como não faz sentido jogar futebol com halteres, não há significado em dizer: “Estarei em sua casa às bravo horas”. Tudo depende da regra comunicativa que estivermos adotando no momento. Todos são modos válidos de expressão, ao contrário do que dizia a teoria pictorial. Mas por que os jogos de linguagem não a invalidam? Porque a frase proposicional é exatamente uma das maneiras de jogar, com suas regras próprias. A proposição não é o jogo inteiro, mas uma parte dele, um modo específico do jogo. E, dentro do que ela se propõe, é plenamente válida.

Bom... Tudo muito legal e instrutivo, mas o que exatamente tem a ver com nossos mapas e locais distantes, e o quanto as pessoas gostam de expor o quão longe habitam? Caminhemos aos poucos.

A Sociologia, como qualquer ciência, possui uma série de metodologias com as quais procura formar caminhos para atingir suas conclusões. É prática comum, desde o seu nascedouro, estudar um determinado grupo como um organismo autônomo, com vida própria, sem levar muito em consideração seus componentes, os indivíduos. Desta forma, acaba-se por detectar aquilo que os membros do grupo tem de igual ou aproximado, e não de diferente ou distante. Para fazer isso, os sociólogos aplicam modelos teóricos de sociedade para analisar um determinado grupo, uma prática que nasceu da tese de tipo ideal de Max Weber (que teremos a oportunidade de analisar em outro momento).

Ocorre que tal prática tem um vício subjacente. Para formar os exemplos e modelos sociais, é preciso que um determinado grupo seja estudado, e para que um grupo seja estudado , é preciso que existam exemplos e modelos. Ou seja, temos aqui um belíssimo exemplo de circulus in demonstrando (o raciocínio circular do qual falei no Pequeno Guia das Grandes Falácias), o que é um enorme problema. Uma das soluções possíveis é a etnometodologia de Harold Garfinkel, sociólogo estadunidense que procurou deslocar o foco da análise social do grupo para os indivíduos.

Garfinkel tinha como principal crítica aos métodos sociológicos tradicionais o fato de que o homem real não existia para os mesmos, a não ser para comprovar a validade de um modelo. Estes métodos tinham mais a ver com o velho Positivismo de Comte e com o Determinismo de Taine (se você quiser saber mais sobre estes autores, leia aqui e aqui) do que com uma abordagem fenomenológica, que pretendesse investigar a realidade a partir de seus elementos constitutivos, e que estudasse como a consciência das pessoas funciona na dinâmica social. Desta forma, a Sociologia teria um método que permitiria fazer estudos não só partindo do geral para o específico, mas também no sentido inverso.

Garfinkel preconizou que a análise sociológica deveria partir da ação dos indivíduos e do significado de suas interações, ou seja, uma relação social sempre parte do quotidiano e é intersubjetiva, o que implica, de certa forma, em um acordo no que diz respeito às significações da ação social. Por exemplo: se eu cedo meu lugar para um idoso no ônibus, ambos conhecemos o código, mas nossas motivações podem ser diferentes. Posso ceder o lugar por gentileza ou medo de passar vergonha, e o velhinho pode achar que o fiz com pavor de tomar multa ou para dar exemplo aos jovens que nos veem. São componentes que se adaptam de acordo com as circunstâncias, com o jogo que se joga. A ligação com Wittgenstein já está clara, não é mesmo?

Mas não é só. As pessoas são gregárias, e com isso buscam a identificação de pontos comuns, utilizando largamente a linguagem para tanto. Da mesma forma que estamos habituados a utilizar a função fática da linguagem para estabelecer contato com uma pessoa dentro do elevador (caso clássico: falar sobre o clima), também diante do mapa temos a tendência de fechar um circuito comunicacional. E o que há de disponível em um mapa para que possamos exercer essa tendência atávica? Ruas! Milhares de ruas da intrincadíssima teia urbana paulistana, favorecida pela falta de planejamento que sempre permeou nossa urbe. O bate-papo nasce da necessidade de nos comunicar, exponencializado pelo desafio de se encontrar o logradouro de nossa casa em quebra-cabeça geometrizado que faria um Wally ficar simplesmente maluco. E o lugar onde se habita é um elemento de identificação muito forte. Além disso, a ironia aplicada ao lugar que se mora é um ponto de alívio ao próprio sofrimento que se tem ao trafegar tanto e com tanta morosidade.

Um estudo sociológico clássico não nos permitiria chegar a conclusão nenhuma a partir da cena acima. Mas a etnometodologia sim. Como se analisa a cena da banca? Todos os componentes da etnometodologia estão lá: prática e realização, indicialidade, reflexividade, relatabilidade. 

Trocando em miúdos:

1. A etnometodologia é eminentemente empírica, e, para isso, precisa assistir à ação dos atores sociais. É isso o que ocorre quando vemos as pessoas que interagem à frente do mapa. ESTE é o objeto de estudo. Não são modelos dos quais se busca uma pertinência, mas o ato da prática de uma interação que ocorre na realidade.

2. As palavras e os objetos utilizados na interação pertencem a um “índice” que os correlacionam, e esta indexação é de conhecimento de todos os agentes presentes na dinâmica do mapa. Essa característica é chamada de indicialidade, e significa que todos sabem o que são os mapas, as ruas, a banca em que são expostos, o significado de moradia, o significado de fim-do-mundo. Ou seja, conhece-se a correspondência entre palavra e objeto, que é de domínio dos participantes internos e externos.

3. As próprias práticas refletem e constituem a consciência de quem está vivendo a experiência de observar e conversar sobre os mapas. Isso significa que, ainda que não se deem conta disso, os atores sabem o que estão fazendo naquele ato. É a reflexividade, termo importado da fenomenologia.

4. As ações dos indivíduos são relatáveis, ou seja, estão expostas ao mundo que rodeia a banca de jornal e observa os “pescoções” discutindo sobre o mapa. Ser relatável significa a capacidade de transmitir sentido em suas ações sociais, à sociedade como um todo, e não apenas aos partícipes presentes.

Vejam como essa metodologia considera muito mais o ser humano em sua introspecção, em seus caracteres psicológicos e em sua individualidade. É desse veio que se extrai uma sociologia menos impessoal, menos numérica e estatística. Digamos que é uma “sociologia do varejo”, mas que não deixa de ser interessante para estudar os pequenos grupos e as relações miúdas, que, no final das contas, são exatamente aquelas que formam a tessitura social. Não há grandes mecanismos sem pequenas peças, esse é o pensamento de Garfinkel. A etnometodologia pode ser falha na análise de grandes populações, mas creio que nem é isso que a mesma pretende. Portanto, para que a cena do mapa seja minimamente analisada, é preciso considerar não somente o que as pessoas fazem, mas o que sentem e de que modo expõe essa realidade interna ao mundo.

Recomendações de leitura:

Primeiro, o segundo Wittgenstein: 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Col. Os Pensadores.

Após, as ideias de Garfinkel. Como não há uma tradução em português, recomendo seu principal comentador:

COULON, Alan. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.

* Em rápida pesquisa, o site “Mundo Estranho” especula que as trinta moedas corresponderiam a algo entre vinte mil e cinquenta mil reais. Vide http://mundoestranho.abril.com.br/materia/se-jesus-fosse-vendido-hoje-quanto-judas-teria-recebido-em-reais