Marcadores

terça-feira, 21 de julho de 2015

Sobre nossos elementos primordiais e a evolução do pensamento filosófico rumo à Ciência

Olá!

É inevitável. A curiosidade infantil sempre leva à pergunta clássica sobre o nascimento dos bebês. Como a cegonha requereu aposentadoria e os repolhos estão estéreis após os pesticidas, a explicação dada aos pimpolhos tem que ser cada vez mais calcadas na realidade. Mas, como bem sabemos, explicar todo o ciclo que leva à gravidez e ao nascimento dá um trabalho imenso para quem ainda não tem um aporte muito significativo de conhecimentos. E então entram em cena aquelas pantomimas que falam sobre como o-papai-começou-a-namorar-a-mamãe-e-então-eles-se-casaram-depois-o-papai-plantou-uma-sementinha-dentro-da-mamãe-que-cresceu-cresceu-cresceu-até-ficar-tão-grande-que-não-cabia-mais-na-barriga-da-mamãe-e-por-isso-precisou-sair-o-papai-levou-a-mamãe-para-o-hospital-e-então-o-médico-puxou-você-para-fora-e-você-nasceu, ou seja, uma bela série de malabarismos didáticos.

Mas não é só isso que desperta a insaciável curiosidade dos nossos queridos fedelhos. A própria humanidade, em sua infância, carregava consigo o ônus de não saber de onde veio, do que eram feitas todas as coisas, porque existiam igualdades e diferenças, entre outras aporias.

Como eu já disse em outros momentos, o homem tinha dois focos nos quais poderiam lançar suas especulações: no universo que o rodeava ou em forças superiores, que eram desconhecidas dele. Esta era a saída mitológica, e a primeira era o que, mais tarde, chamaríamos de Física.

Claro que a mitologia tem mais facilidades. Sua principal arma é a tradição oral, aquelas histórias que se contam de pais para filhos, de patriarcas para aldeães, de sacerdotes para crentes, e assim por diante. Não há o rigor da observação empírica, mas um acúmulo de histórias que buscam, em última instância, uma resposta para a agonia da dúvida. Este tipo de narrativa sobre a origem do universo é o que conhecemos em Filosofia como cosmogonia.

Mas o método mitológico tem seus problemas e dificuldades inerentes. Para que uma explicação minimamente razoável oriunda da mitologia pudesse ser produzida, era preciso não explicar somente a origem do cosmos, já que esta era a parte fácil de explicar – os deuses deram origem a tudo o que existe. Para tanto, era necessário retroceder ainda mais. Era preciso, de alguma forma, narrar a origem dos deuses, que chamamos de Teogonias (theos=deus + gonos=origem). Elas eram muitas, a maioria transmitida oralmente, mas algumas delas se tornaram especialmente célebres, como aquelas escritas por Homero e Hesíodo, que chegaram aos nossos dias. Transcrevo abaixo um pequeno trecho da Teogonia de Hesíodo, descrevendo como todos os deuses brotam do caos, também este devidamente deificado.

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.

Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto
e Teia e Réia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.

E após com ótimas armas Crono de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai.
Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração:
Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo
que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio.

Eles no mais eram comparáveis aos Deuses,
único olho bem no meio repousava na fronte.
Ciclopes denominava-os o nome, porque neles
circular olho sozinho repousava na fronte.

Vigor, violência e engenho possuíam na ação.
Outros ainda da Terra e do Céu nasceram,
três filhos enormes, violentos, não nomeáveis.
Cotos, Briareu e Giges, assombrosos filhos.

Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros,
improximáveis; cabeças de cada um cinqüenta
brotavam dos ombros, sobre os grossos membros.
Vigor sem limite, poderoso na enorme forma...

Podemos perceber, portanto, que a criação do mundo é dependente da criação dos deuses. Evidentemente, as descrições dos mitos de criação sempre contém mais poesia do que propriamente história. O mito teogônico de Hesíodo é apenas um exemplo, assemelhado com tantos outros, oriundos de tantas outras culturas.

Ocorre que, mesmo com tanta riqueza criativa na construção deste mito, chegou um momento em que o grego antigo olhou para o universo que o rodeava e percebeu que o observável não era a ação destes deuses, mas os próprios fenômenos em si. Não havia um contato direto com as suas divindades, apesar da atribuição de todos os acontecimentos à vontade de um dos deuses. Mesmo não se desvinculando por completo das explicações transcendentes, o grego começou a procurar no próprio universo a sua origem e os seus princípios comuns. Deste modo, a Cosmogonia migrava para a Cosmologia. Não se queria mais entender apenas a origem das coisas, mas entender as coisas em si mesmas, e a partir de si mesmas. Em suma, querem se ver de frente ao real palpável, e não apenas ao suposto.

Mas haveria a possibilidade de se alcançar o real palpável? Talvez não, haja vista às limitações tecnológicas da época, mas desde então se notou que os poucos elementos disponíveis possuíam uma harmonia e uma regularidade que podiam ser vistos como indicativos de uma regra geral. E a partir daí inicia-se a busca por um elemento primordial, presente em tudo o que existe, que justificasse a origem e a composição de cada coisa que há no universo: a arché. E isso tudo se utilizando da melhor ferramenta disponível ao homem: o seu próprio raciocínio, tendo a lógica por estrutura.



Como volta e meia eu volto à questão da arché, achei por bem elaborar um texto onde eu pudesse explanar todas as teorias encontradas no período anterior a Sócrates. Em primeiro lugar, porque é muito interessante verificar como a humanidade sempre procurou saídas inteligentes para suas dúvidas. E depois para que todos nós possamos perceber como o pensamento humano evolui, partindo de teses mais simples, agregando conhecimento e tornando-as mais e mais complexas e plausíveis. Vamos nessa (com paciência, porque o texto ficou longo).

Tales e a água

Tudo começa com Tales, mas já falei dele em duas oportunidades, aqui e aqui, e não o farei de novo, porque senão vão achar que sou tiete. Ou chato de galochas. Portanto, leiam os dois links em questão. Para fins didáticos, vou apenas esclarecer que a arché, para Tales de Mileto, era a água.

De qualquer forma, pincelada rápida: Tales, pela primeira vez registrada, olha para a natureza  para investigar sua própria gênese e dá primazia aos gregos naquilo que concebemos como Filosofia no ocidente. A originalidade dos gregos está na eleição de um objeto a ser estudado, na formação de um conceito e na utilização de um método, ainda que possamos chamá-los de primitivos.

Anaximandro e o apeiron

A segunda proposta introduz pela primeira vez um elemento que não poderia ser percebido a olhos nus. Entra em cena Anaximandro, na mesma cidade grega (hoje turca) de Mileto onde surgiu Tales. Sua proposta supõe que a água, elemento imaginado por Tales, já é uma derivação de algo ainda mais primitivo. A água, por mais elástica que possa ser, e por mais que possa navegar por diversos estados, ainda assim assume uma forma. Ou melhor, é compelida a ter uma forma, ainda que seja a de uma etérea névoa, um transparente e quase invisível vapor.

O princípio fundamental deveria ser outro. Algo que pudesse permear o universo inteiro e adotar qualquer forma, com base nas condições existentes nos diferentes ambientes por onde ele passasse. Algo que pudesse ser encontrado além das fronteiras do nosso conhecimento, já que os elementos existentes no planeta Terra não poderiam representar a totalidade daqueles que estão espalhados por todo o cosmos. Algo que pudesse conter em si todas as oposições dos estados observáveis na natureza, como o quente-frio, mole-duro, seco-úmido, compacto-poroso.

Esse elemento não seria propriamente uma substância, mas teria a capacidade de se transformar em qualquer uma, justamente por sua indefinição de matéria e forma. Era a massa generativa de tudo o que existe. Tudo surge a partir deste mesmo elemento, que – novamente – por sua indefinição, e também por sua infinitude, pode moldar absolutamente qualquer coisa.

Anaximandro chama esse elemento primordial de apeiron, originado da fusão das palavras gregas a (sem) e péiron (limite). Mais tarde, alguns autores identificaram o apeiron com o éter, uma espécie de quinto elemento imperceptível diretamente pelos sentidos, mas esta é uma outra história.

Anaxímenes e o ar

Anaxímenes é outro filósofo da cidade de Mileto que se debruça sobre a questão da arché. Ao que parece, ele acha a proposta de apeiron de Anaximandro radical demais, e até mesmo fantasiosa. Essa crítica de Anaxímenes é compreensível, principalmente quando lembramos que o princípio primeiro da Filosofia era se afastar do substrato mitológico, que a tese de Anaximandro volta a se aproximar, ao atribuir à arché um aspecto infinito e indeterminado. Para ele, já há um elemento que consegue se espraiar para todo o universo, até mesmo onde se crê que ele não exista: é o ar.

De fato, o ar pode se tornar tão rarefeito que acaba por se tornar indetectável, e somos induzidos a acreditar que há vácuo, mas não; o ar está lá presente. Além disso, o ar pode ser percebido, ainda que invisível, pela ação dos ventos, quando se torna uma percepção táctil. Mas, e se o ar estiver parado? É ainda assim possível percebê-lo, pelo aumento ou diminuição da temperatura.

É no processo de rarefação e condensação que o ar forma tudo o que existe. No pensar de Anaxímenes, ao se rarefazer, o ar se aquece e forma o fogo; ao se condensar, esfria e forma a água; aumentando a densidade, teremos a terra e demais elementos sólidos. Em Anaxímenes, portanto, temos pela primeira vez uma dinâmica dos elementos para reger a formação das coisas.

Xenófanes e a terra

Depois disso, temos Xenófanes de Cólofon, que acredita que o elemento fundamental é a terra. A base para seu raciocínio é a inversão da conclusão de Anaxímenes. Não é o ar que se torna mais denso, mas a terra que se torna mais dispersa. É a terra, ao se rarefazer, que forma a água, que, por sua vez, se torna cada vez mais difusa para formar a atmosfera.

Mas por que a rarefação da terra, e não o adensamento do ar? Xenófanes observa que a primazia do elemento sólido se dá pelo fato de que é um meio onde encontramos uma diversidade muito maior de substâncias. É da terra que brotam os vegetais e para onde voltam os animais depois de mortos, e para onde escoa a água da chuva. Mesmo os oceanos, que são muito maiores do que a porção emersa do planeta, têm em seu fundo a mesma terra, ou seja, é o elemento sólido que suporta o meio líquido.

Mas Xenófanes também encontrou outra base importante para sua teoria: a presença de conchas e esqueletos em escavações. Ele não enxergava a formação de seres em pleno ar, mas, ao encontrar esses vestígios de seres ao se aprofundar na terra, podia interpretar que lá eles se encontravam em formação ou em desfazimento.

Heráclito e o fogo

Como não poderia deixar de ser, haveria alguém para determinar o fogo como arché. E esse alguém foi Heráclito, da cidade de Éfeso.

Este cara tem bastante importância para a Filosofia, porque foi um dos primeiros pensadores a abordar a questão da dicotomia entre permanência e mutabilidade das coisas. Heráclito era mobilista, ou seja, sua metafísica previa que todo o universo está em constante devir. Sua frase mais famosa: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, significando que nem o rio nem quem se banha é o mesmo em dois momentos distintos – a água do rio já passou, a pessoa que nele entra já envelheceu, mesmo que só poucos instantes.

Heráclito aperfeiçoa o dinamismo elementar de Anaxímenes, já que sua arché, o fogo, é o elemento essencial não só corpóreo, mas também simbólico da constante transformação universal. O fogo é real palpável quando faz o sólido derreter, o líquido evaporar e o gás evolar pelo infinito. E é simbólico quando brota pequeno, cresce ao ser alimentado e fica pleno até sua força ser minorada, até produzir pouco calor e luz, e até se extinguir, deixando como marca de sua existência apenas os rastros no ambiente por onde viveu.

Pitágoras e o número

Percebam como, pouco a pouco, os filósofos vão tornando suas teses sobre a arché mais e mais sofisticadas, incluindo elementos que não representavam unicamente o cosmos material, rumando para especulações metafísicas. Isso se torna mais perceptível em nossa próxima estação, a cidade de Samos, onde encontraremos um dos mais seminais matemáticos de todos os tempos: Pitágoras.

Devo agora, por uma questão de honestidade intelectual, confessar minha autêntica ojeriza por essa área tão importante do conhecimento, basilar para qualquer ciência que se queira praticar. E reconheço nisso um defeito meu, até mesmo porque admito plenamente o seu valor. E, com isso, reconheço em Pitágoras um gênio. Com pouquíssimos dados à sua disposição, formulou vários teoremas, sendo que o célebre “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos” recebeu seu nome e é um dos postulados básicos da trigonometria. É um dos mais antigos teoremas matemáticos conhecidos.

Pitágoras e seus discípulos tinham o hábito de observar atentamente o mundo prosaico que os rodeava e encontrar correlações que permitissem reduzir os fenômenos a expressões matemáticas. Observavam trajetórias, impactos, pesos e tudo o mais que estivesse à disposição. E, evidentemente, acabaram encontrando muitas dessas correlações. Perceberam que o universo funcionava de maneira harmônica, e dessa harmonia emergiam os cálculos que a explicavam. E concluíram que o número era a essência de todas as coisas.

É óbvio que Pitágoras não achava que ao picar uma coisa qualquer em mil pedacinhos, apareceria, luminoso, o número 1. Ou que de um belo algarismo instalado no centro de um jardim, brotaria, perfumada e espinhuda, uma roseira-branca. Ou ainda que, uma vez aquecido, esse mesmo algarismo purgasse água e depois desaparecesse, transformado em ar. Pitágoras enxerga na harmonia matemática, na articulação calculável e nas engrenagens naturais a essência de todas as coisas, sem criar, para tanto, um elemento físico.

Essa abordagem será de grande valia para que a questão seja vista de maneira cada vez mais científica, desembocando em uma conclusão surpreendente que veremos mais adiante.

Empédocles e as raízes

A próxima concepção é de Empédocles, da cidade de Agrigento, atualmente na Sicília, mas que fazia parte da Magna Grécia à época. Ele traz duas grandes novidades. A primeira, mais evidente e menos importante (como veremos), é a teorização de que a arché não é composta de um único elemento, conforme imaginavam seus antecessores. Pelo contrário, tudo era composto pelos quatro elementos básicos conhecidos – terra, água, ar e fogo. Eles iam misturados em todos os objetos, em diferentes proporções, e a preponderância de um deles dava a característica geral da substância, que eram bastante óbvias: se o elemento era mais rígido, havia uma maior quantidade de terra; se era líquido, o maioral era a água, e via discorrendo. Deu a esses princípios fundamentais o nome de raízes.

A segunda novidade prenunciava as leis de atração e repulsão, muito embora Empédocles atribuísse uma espécie de “valor ético” a seres inanimados. É que nosso profético filósofo sacou que, a partir de quatro raízes, era possível obter infinitas composições, que possibilitariam a obtenção de todos os materiais do universo e a constituição de novos. E o que faria com que estas diferentes raízes se combinassem e se dissolvessem?
Bem, Empédocles propõe uma solução inusitada. Assim como no relacionamento entre os seres vivos, havia entre as raízes forças de atração e repulsão equivalentes ao amor (eros) e ao ódio (neikós). O amor é a força agregadora e atrativa. Faz com que os elementos se aglutinem, ao inverso do que ocorre com o ódio, que separa e fragmenta. Pode parecer esquisito, mas sabemos hoje que, sem os princípios de atração e repulsa, é impossível compreender bobagens como magnetismo, estrutura atômica e gravidade.
Anaxágoras e as homeomerias
Depois vamos visitar Anaxágoras, da hoje turca cidade de Clazômenas, que também traz uma grande novidade. Ele rejeita a multiplicidade de elementos preconizada por Empédocles. Para ele, a multiplicidade existe, mas encerrada em um único elemento, que contém todos os outros. São as homeomerias, que vamos investigar agora.
Anaxágoras observa o seguinte: sem que seja necessário agregar nada, uma pequena semente já contém em si a árvore inteira. Idem com um homem. Um pequeno embrião vai se tornar um homem adulto, talvez um forte guerreiro, talvez um gordo comerciante.
Ou seja, os seres não surgem do nada, como mágica. Seguem um processo de divisão que torna sobejas algumas características e inibidas outras. Isso não se aplica unicamente aos seres vivos, mas aos brutos também. Portanto, a arché seria alguma coisa que se assemelha a uma semente, chamada por Anaxágoras de spérmata (o termo homeomeria consagrou-se por conta da afinidade de Aristóteles com esta tese, e significa alguma coisa semelhante a “partes qualitativamente iguais”). O elemento seminal conteria em si mesmo a totalidade da tipificação da matéria universal, se diferenciando umas das outras pelas partes que seriam ativadas, divididas daquelas que permaneceriam inertes. As frases-mote: “tudo está em tudo” e “em cada coisa há parte de cada coisa”.
Mas havia um princípio cósmico transcendente que explicava o que fazia uma homeomeria se transformar em uma determinada coisa, e não em outra qualquer. Anaxágoras enxergava outro princípio fundamental, que determinava qual de cada componente da homeomeria prevaleceria sobre os demais. Ele não se desvencilha de atribuir a este princípio ordenador uma certa divindade. Era o nous.
A característica divinizante do nous era que essa inteligência ordenadora estava apartada das coisas, sendo sua integradora, mas não integrante. É ela que fez o universo girar e que reconheceu as necessidades de aglutinação e separação dos seus fundamentos, sendo externa a eles, para que pudesse se dar conta da harmonia do seu funcionamento.
Demócrito e o átomo (Pobre Lêucipo, todo mundo esquece-se dele)
E assim chegamos à nossa estação final. Vamos falar de Lêucipo de Mileto e de seu discípulo mais ilustre, Demócrito de Abdera. Com eles, teremos a primeira tentativa de explicar o universo de maneira puramente mecanicista, sem nenhum tipo de intervenção de divindades ou entidades metafísicas.
Desde muito tempo, o homem percebeu que os objetos de seu ambiente podiam ser reduzidos a partes cada vez menores. Uma rocha pode ser fragmentada até se transformar em areia, e que dos seus grãos poderia ser obtida uma divisão ainda maior, o que somente não era possível conseguir por causa de falta de meios. Mas é fato que essa redução era possível, até o limite da percepção.
Qual era o limite desta divisão? Até onde era possível chegar sem que a matéria se descaracterizasse? Demócrito imaginou que, quando esse limite fosse atingido, não mais haveria como tornar a matéria ainda menor. Este limite de divisibilidade da matéria era o átomo. Essa palavra grega é composta pelas partículas a (sem) e tomos (divisão).
A grande modificação em relação às raízes de Empédocles e à homeomeria de Anaxágoras era que, agora, as partículas que compõem o universo são indiferenciáveis entre si. Um átomo de água não é diferente de outro átomo de água, e nada há nele além do elemento que representa. Claro que o conceito de molécula era ainda inalcançável, mas Demócrito previu que eles teriam combinações possíveis entre si. Isso porque nosso risonho amigo pensava que o número de tipos de átomos era bastante pequeno, se comparado com o total de elementos perceptíveis no cosmos. O que fazia com que suas características fossem distintas era uma descoberta ainda mais surpreendente: os átomos tinham espaçamentos entre si, que não era preenchido por absolutamente nada. Era o vácuo.
Como não havia nenhum princípio ordenador nas teses de Lêucipo e Demócrito, tudo era formado ocasionalmente. É meramente o encontro mecânico dos átomos que produzia a ordem do universo.
Então vamos ver:
1. O mundo é composto por minúsculas partículas espalhadas por toda a parte;
2. Os átomos possuem movimento;
3. Os átomos existentes são poucos, mas suas combinações são infinitas;
4. O espaço entre os átomos é preenchido de vácuo;
5. Nada mais há do que átomos e vácuo;
6. Todas as coisas se diferenciam por conta do arranjo e disposição dos átomos que as compõem;
7. Os átomos são indivisíveis. Claro que Demócrito não previu que o átomo era particionado, ele não tinha nenhum recurso para isso, mas é preciso lembrar que não essencialmente erro nessa assertiva. Um átomo somente pode ser dividido, pelo que se conhece hoje, por fusão ou fissão, o que o destrói.
Lembrando que a construção deste conceito nasceu unicamente pela via filosófica, dá para perceber o quanto esse modelo estava correto. Pena que os maiores nomes da Filosofia Antiga, Platão e Aristóteles, não compraram essa ideia. O mesmo se aplica à Filosofia Medieval, que já dava por suficiente a explicação teológica da origem do cosmos. Por conta disso, a ideia do átomo ficou adormecida por muitos séculos, até que os alquimistas, atraídos pela possibilidade de transmutar um elemento em outro, voltaram a investigar as teses que previam a unicidade dos materiais. Mas só deslanchou mesmo com John Dalton, no século XIX. Lêucipo e Demócrito mataram a charada.
Parmênides e o Ser
È finito? Sim, mas eu ainda gostaria de fazer uma observação sobre Parmênides, o pai da permanência, do Ser infinito e imutável. Ele não discorreu fundamentalmente sobre uma arché, mas o filósofo da ciência Karl Popper percebeu que as características atribuídas ao Ser, como a redução imutável à essência daquilo que existe, e a impossibilidade de atribuir qualitativos àquilo que não existe, ou seja, da imutabilidade do Ser, em clara oposição ao mobilismo de Heráclito, faz com que vejamos uma mesma intenção, agora metafísica, de explicar a origem e a causa do universo.
O Ser é o que é, sentença estranha. Mas isso quer dizer que, livre de todos os fenômenos e aparências, que fazem com que ele seja colocado como algo mutável aos nossos olhos, não teremos nada do que o Ser não é. E, com isso, atingimos sua essência e, de certa forma, sua arché.
Não há dúvidas de que voltarei com mais rigor a este tema em especial, mas não queria deixar passar batido. O mais importante de todo esse caminho que tracei é perceber o rumo que a Filosofia tomou, e a percepção de como o conhecimento é colaborativo. Um pensador não jogou fora o conhecimento obtido por outro apenas por não concordar com ele. Pelo contrário, o pensamento de um deu base ao outro, mesmo que por oposição. E o exemplo da arché demonstra como se transita da Filosofia para a Ciência. A primeira especula até que a segunda acha. Esse é o mundo do pensamento.
Chega! Já tá muito longo. Obrigado pela paciência.

Recomendação de leitura:

Todo manual de Filosofia que se preze fala sobre a questão da arché. Por isso, vou preferir indicar a versão completa do texto de Hesíodo mencionado no começo do post. É meio pesadinho, mas não deixa de ser interessante, em especial porque é um testemunho do sistema que buscava dar sentido ao mundo antes que partíssemos para a aventura do conhecimento racional.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991

Nenhum comentário:

Postar um comentário