Olá!
É inevitável. A curiosidade infantil sempre leva à pergunta
clássica sobre o nascimento dos bebês. Como a cegonha requereu aposentadoria e
os repolhos estão estéreis após os pesticidas, a explicação dada aos pimpolhos
tem que ser cada vez mais calcadas na realidade. Mas, como bem sabemos,
explicar todo o ciclo que leva à gravidez e ao nascimento dá um trabalho imenso
para quem ainda não tem um aporte muito significativo de conhecimentos. E então
entram em cena aquelas pantomimas que falam sobre como o-papai-começou-a-namorar-a-mamãe-e-então-eles-se-casaram-depois-o-papai-plantou-uma-sementinha-dentro-da-mamãe-que-cresceu-cresceu-cresceu-até-ficar-tão-grande-que-não-cabia-mais-na-barriga-da-mamãe-e-por-isso-precisou-sair-o-papai-levou-a-mamãe-para-o-hospital-e-então-o-médico-puxou-você-para-fora-e-você-nasceu,
ou seja, uma bela série de malabarismos didáticos.
Mas não é só isso que desperta a insaciável curiosidade dos
nossos queridos fedelhos. A própria humanidade, em sua infância, carregava
consigo o ônus de não saber de onde veio, do que eram feitas todas as coisas,
porque existiam igualdades e diferenças, entre outras aporias.
Como eu já disse em outros momentos, o homem tinha dois
focos nos quais poderiam lançar suas especulações: no universo que o rodeava ou
em forças superiores, que eram desconhecidas dele. Esta era a saída mitológica,
e a primeira era o que, mais tarde, chamaríamos de Física.
Claro que a mitologia tem mais facilidades. Sua principal
arma é a tradição oral, aquelas histórias que se contam de pais para filhos, de
patriarcas para aldeães, de sacerdotes para crentes, e assim por diante. Não há
o rigor da observação empírica, mas um acúmulo de histórias que buscam, em
última instância, uma resposta para a agonia da dúvida. Este tipo de narrativa
sobre a origem do universo é o que conhecemos em Filosofia como cosmogonia.
Mas o método mitológico tem seus problemas e dificuldades
inerentes. Para que uma explicação minimamente razoável oriunda da mitologia
pudesse ser produzida, era preciso não explicar somente a origem do cosmos, já
que esta era a parte fácil de explicar – os deuses deram origem a tudo o que
existe. Para tanto, era necessário retroceder ainda mais. Era preciso, de
alguma forma, narrar a origem dos deuses, que chamamos de Teogonias (theos=deus
+ gonos=origem). Elas eram muitas, a maioria transmitida oralmente, mas algumas
delas se tornaram especialmente célebres, como aquelas escritas por Homero e
Hesíodo, que chegaram aos nossos dias. Transcrevo abaixo um pequeno trecho da
Teogonia de Hesíodo, descrevendo como todos os deuses brotam do caos, também
este devidamente deificado.
Sim bem primeiro nasceu Caos,
depois também
Terra de amplo seio, de todos
sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do
Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do
chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses
imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e
dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a
prudente vontade.
Do Caos Érebos e Noite negra
nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia
nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos
em amor.
Terra primeiro pariu igual a si
mesma
Céu constelado, para cercá-la
toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede
irresvalável sempre.
Pariu altas Montanhas, belos
abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas
frondosas.
E pariu a infecunda planície
impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor.
Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de
fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérion e
Jápeto
e Teia e Réia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis
amorosa.
E após com ótimas armas Crono de
curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o
florescente pai.
Pariu ainda os Ciclopes de
soberbo coração:
Trovão, Relâmpago e Arges de
violento ânimo
que a Zeus deram o trovão e
forjaram o raio.
Eles no mais eram comparáveis aos
Deuses,
único olho bem no meio repousava
na fronte.
Ciclopes denominava-os o nome,
porque neles
circular olho sozinho repousava
na fronte.
Vigor, violência e engenho
possuíam na ação.
Outros ainda da Terra e do Céu
nasceram,
três filhos enormes, violentos,
não nomeáveis.
Cotos, Briareu e Giges,
assombrosos filhos.
Deles, eram cem braços que
saltavam dos ombros,
improximáveis; cabeças de cada um
cinqüenta
brotavam dos ombros, sobre os grossos
membros.
Vigor sem limite, poderoso na
enorme forma...
Podemos perceber, portanto, que a criação do mundo é
dependente da criação dos deuses. Evidentemente, as descrições dos mitos de
criação sempre contém mais poesia do que propriamente história. O mito
teogônico de Hesíodo é apenas um exemplo, assemelhado com tantos outros,
oriundos de tantas outras culturas.
Ocorre que, mesmo com tanta riqueza criativa na construção
deste mito, chegou um momento em que o grego antigo olhou para o universo que o
rodeava e percebeu que o observável não era a ação destes deuses, mas os
próprios fenômenos em si. Não havia um contato direto com as suas divindades,
apesar da atribuição de todos os acontecimentos à vontade de um dos deuses.
Mesmo não se desvinculando por completo das explicações transcendentes, o grego
começou a procurar no próprio universo a sua origem e os seus princípios
comuns. Deste modo, a Cosmogonia migrava para a Cosmologia. Não se
queria mais entender apenas a origem das coisas, mas entender as coisas em si
mesmas, e a partir de si mesmas. Em suma, querem se ver de frente ao real
palpável, e não apenas ao suposto.
Mas haveria a possibilidade de se alcançar o real palpável?
Talvez não, haja vista às limitações tecnológicas da época, mas desde então se
notou que os poucos elementos disponíveis possuíam uma harmonia e uma
regularidade que podiam ser vistos como indicativos de uma regra geral. E a
partir daí inicia-se a busca por um elemento primordial, presente em tudo o que
existe, que justificasse a origem e a composição de cada coisa que há no
universo: a arché. E isso tudo se
utilizando da melhor ferramenta disponível ao homem: o seu próprio raciocínio,
tendo a lógica por estrutura.
Como volta e meia eu volto à questão da arché, achei por bem elaborar um texto onde eu pudesse explanar
todas as teorias encontradas no período anterior a Sócrates. Em primeiro lugar,
porque é muito interessante verificar como a humanidade sempre procurou saídas
inteligentes para suas dúvidas. E depois para que todos nós possamos perceber
como o pensamento humano evolui, partindo de teses mais simples, agregando
conhecimento e tornando-as mais e mais complexas e plausíveis. Vamos nessa (com
paciência, porque o texto ficou longo).
Tales e a água
Tudo começa com Tales, mas já falei dele em duas
oportunidades, aqui e aqui, e não o farei de novo, porque senão
vão achar que sou tiete. Ou chato de galochas. Portanto, leiam os dois links em
questão. Para fins didáticos, vou apenas esclarecer que a arché, para Tales de Mileto, era a água.
De qualquer forma, pincelada rápida: Tales, pela primeira
vez registrada, olha para a natureza para investigar sua própria gênese e dá
primazia aos gregos naquilo que concebemos como Filosofia no ocidente. A
originalidade dos gregos está na eleição de um objeto a ser estudado, na
formação de um conceito e na utilização de um método, ainda que possamos chamá-los
de primitivos.
Anaximandro e o apeiron
A segunda proposta introduz pela primeira vez um elemento
que não poderia ser percebido a olhos nus. Entra em cena Anaximandro, na mesma
cidade grega (hoje turca) de Mileto onde surgiu Tales. Sua proposta supõe que a
água, elemento imaginado por Tales, já é uma derivação de algo ainda mais
primitivo. A água, por mais elástica que possa ser, e por mais que possa
navegar por diversos estados, ainda assim assume uma forma. Ou melhor, é
compelida a ter uma forma, ainda que seja a de uma etérea névoa, um
transparente e quase invisível vapor.
O princípio fundamental deveria ser outro. Algo que pudesse
permear o universo inteiro e adotar qualquer forma, com base nas condições
existentes nos diferentes ambientes por onde ele passasse. Algo que pudesse ser
encontrado além das fronteiras do nosso conhecimento, já que os elementos existentes
no planeta Terra não poderiam representar a totalidade daqueles que estão
espalhados por todo o cosmos. Algo que pudesse conter em si todas as oposições
dos estados observáveis na natureza, como o quente-frio, mole-duro, seco-úmido,
compacto-poroso.
Esse elemento não seria propriamente uma substância, mas
teria a capacidade de se transformar em qualquer uma, justamente por sua
indefinição de matéria e forma. Era a massa generativa de tudo o que existe.
Tudo surge a partir deste mesmo elemento, que – novamente – por sua
indefinição, e também por sua infinitude, pode moldar absolutamente qualquer
coisa.
Anaximandro chama esse elemento primordial de apeiron, originado da fusão das palavras
gregas a (sem) e péiron (limite). Mais tarde, alguns autores identificaram o apeiron com o éter, uma espécie de
quinto elemento imperceptível diretamente pelos sentidos, mas esta é uma outra
história.
Anaxímenes e o ar
Anaxímenes é outro filósofo da cidade de Mileto que se
debruça sobre a questão da arché. Ao
que parece, ele acha a proposta de apeiron
de Anaximandro radical demais, e até mesmo fantasiosa. Essa crítica de Anaxímenes
é compreensível, principalmente quando lembramos que o princípio primeiro da
Filosofia era se afastar do substrato mitológico, que a tese de Anaximandro
volta a se aproximar, ao atribuir à arché
um aspecto infinito e indeterminado. Para ele, já há um elemento que consegue
se espraiar para todo o universo, até mesmo onde se crê que ele não exista: é o
ar.
De fato, o ar pode se tornar tão rarefeito que acaba por se
tornar indetectável, e somos induzidos a acreditar que há vácuo, mas não; o ar
está lá presente. Além disso, o ar pode ser percebido, ainda que invisível,
pela ação dos ventos, quando se torna uma percepção táctil. Mas, e se o ar
estiver parado? É ainda assim possível percebê-lo, pelo aumento ou diminuição
da temperatura.
É no processo de rarefação e condensação que o ar forma tudo
o que existe. No pensar de Anaxímenes, ao se rarefazer, o ar se aquece e forma
o fogo; ao se condensar, esfria e forma a água; aumentando a densidade, teremos
a terra e demais elementos sólidos. Em Anaxímenes, portanto, temos pela
primeira vez uma dinâmica dos elementos para reger a formação das coisas.
Xenófanes e a terra
Depois disso, temos Xenófanes de Cólofon, que acredita que o
elemento fundamental é a terra. A
base para seu raciocínio é a inversão da conclusão de Anaxímenes. Não é o ar
que se torna mais denso, mas a terra que se torna mais dispersa. É a terra, ao
se rarefazer, que forma a água, que, por sua vez, se torna cada vez mais difusa
para formar a atmosfera.
Mas por que a rarefação da terra, e não o adensamento do ar?
Xenófanes observa que a primazia do elemento sólido se dá pelo fato de que é um
meio onde encontramos uma diversidade muito maior de substâncias. É da terra
que brotam os vegetais e para onde voltam os animais depois de mortos, e para
onde escoa a água da chuva. Mesmo os oceanos, que são muito maiores do que a
porção emersa do planeta, têm em seu fundo a mesma terra, ou seja, é o elemento
sólido que suporta o meio líquido.
Mas Xenófanes também encontrou outra base importante para sua teoria: a presença de conchas e esqueletos em escavações. Ele não enxergava a formação de seres em pleno ar, mas, ao encontrar esses vestígios de seres ao se aprofundar na terra, podia interpretar que lá eles se encontravam em formação ou em desfazimento.
Heráclito e o fogo
Como não poderia deixar de ser, haveria alguém para
determinar o fogo como arché. E esse alguém foi Heráclito, da
cidade de Éfeso.
Este cara tem bastante importância para a Filosofia, porque
foi um dos primeiros pensadores a abordar a questão da dicotomia entre
permanência e mutabilidade das coisas. Heráclito era mobilista, ou seja, sua
metafísica previa que todo o universo está em constante devir. Sua frase mais
famosa: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, significando que nem o
rio nem quem se banha é o mesmo em dois momentos distintos – a água do rio já
passou, a pessoa que nele entra já envelheceu, mesmo que só poucos instantes.
Heráclito aperfeiçoa o dinamismo elementar de Anaxímenes, já
que sua arché, o fogo, é o elemento
essencial não só corpóreo, mas também simbólico da constante transformação
universal. O fogo é real palpável quando faz o sólido derreter, o líquido
evaporar e o gás evolar pelo infinito. E é simbólico quando brota pequeno,
cresce ao ser alimentado e fica pleno até sua força ser minorada, até produzir
pouco calor e luz, e até se extinguir, deixando como marca de sua existência
apenas os rastros no ambiente por onde viveu.
Pitágoras e o número
Percebam como, pouco a pouco, os filósofos vão tornando suas
teses sobre a arché mais e mais
sofisticadas, incluindo elementos que não representavam unicamente o cosmos
material, rumando para especulações metafísicas. Isso se torna mais perceptível
em nossa próxima estação, a cidade de Samos, onde encontraremos um dos mais
seminais matemáticos de todos os tempos: Pitágoras.
Devo agora, por uma questão de honestidade intelectual,
confessar minha autêntica ojeriza por essa área tão importante do conhecimento,
basilar para qualquer ciência que se queira praticar. E reconheço nisso um
defeito meu, até mesmo porque admito plenamente o seu valor. E, com isso,
reconheço em Pitágoras um gênio. Com pouquíssimos dados à sua disposição,
formulou vários teoremas, sendo que o célebre “o quadrado da hipotenusa é igual
à soma dos quadrados dos catetos” recebeu seu nome e é um dos postulados
básicos da trigonometria. É um dos mais antigos teoremas matemáticos
conhecidos.
Pitágoras e seus discípulos tinham o hábito de observar
atentamente o mundo prosaico que os rodeava e encontrar correlações que
permitissem reduzir os fenômenos a expressões matemáticas. Observavam
trajetórias, impactos, pesos e tudo o mais que estivesse à disposição. E,
evidentemente, acabaram encontrando muitas dessas correlações. Perceberam que o
universo funcionava de maneira harmônica, e dessa harmonia emergiam os cálculos
que a explicavam. E concluíram que o número
era a essência de todas as coisas.
É óbvio que Pitágoras não achava que ao picar uma coisa
qualquer em mil pedacinhos, apareceria, luminoso, o número 1. Ou que de um belo
algarismo instalado no centro de um jardim, brotaria, perfumada e espinhuda,
uma roseira-branca. Ou ainda que, uma vez aquecido, esse mesmo algarismo purgasse
água e depois desaparecesse, transformado em ar. Pitágoras enxerga na harmonia
matemática, na articulação calculável e nas engrenagens naturais a essência de
todas as coisas, sem criar, para tanto, um elemento físico.
Essa abordagem será de grande valia para que a questão seja
vista de maneira cada vez mais científica, desembocando em uma conclusão
surpreendente que veremos mais adiante.
Empédocles e as raízes
A próxima concepção é de Empédocles, da cidade de Agrigento,
atualmente na Sicília, mas que fazia parte da Magna Grécia à época. Ele traz
duas grandes novidades. A primeira, mais evidente e menos importante (como
veremos), é a teorização de que a arché
não é composta de um único elemento, conforme imaginavam seus antecessores.
Pelo contrário, tudo era composto pelos quatro
elementos básicos conhecidos – terra, água, ar e fogo. Eles iam misturados
em todos os objetos, em diferentes proporções, e a preponderância de um deles
dava a característica geral da substância, que eram bastante óbvias: se o
elemento era mais rígido, havia uma maior quantidade de terra; se era líquido,
o maioral era a água, e via discorrendo.
Deu a esses princípios fundamentais o nome de raízes.
A segunda novidade prenunciava as leis de atração e
repulsão, muito embora Empédocles atribuísse uma espécie de “valor ético” a
seres inanimados. É que nosso profético filósofo sacou que, a partir de quatro
raízes, era possível obter infinitas composições, que possibilitariam a
obtenção de todos os materiais do universo e a constituição de novos. E o que
faria com que estas diferentes raízes se combinassem e se dissolvessem?
Bem, Empédocles propõe uma solução
inusitada. Assim como no relacionamento entre os seres vivos, havia entre as
raízes forças de atração e repulsão equivalentes ao amor (eros) e ao ódio (neikós).
O amor é a força agregadora e atrativa. Faz com que os elementos se aglutinem,
ao inverso do que ocorre com o ódio, que separa e fragmenta. Pode parecer
esquisito, mas sabemos hoje que, sem os princípios de atração e repulsa, é
impossível compreender bobagens como magnetismo, estrutura atômica e gravidade.
Anaxágoras e as homeomerias
Depois vamos visitar Anaxágoras,
da hoje turca cidade de Clazômenas, que também traz uma grande novidade. Ele
rejeita a multiplicidade de elementos preconizada por Empédocles. Para ele, a
multiplicidade existe, mas encerrada em um único elemento, que contém todos os
outros. São as homeomerias, que
vamos investigar agora.
Anaxágoras observa o seguinte: sem
que seja necessário agregar nada, uma pequena semente já contém em si a árvore
inteira. Idem com um homem. Um pequeno embrião vai se tornar um homem adulto,
talvez um forte guerreiro, talvez um gordo comerciante.
Ou seja, os seres não surgem do
nada, como mágica. Seguem um processo de divisão que torna sobejas algumas
características e inibidas outras. Isso não se aplica unicamente aos seres
vivos, mas aos brutos também. Portanto, a arché
seria alguma coisa que se assemelha a uma semente, chamada por Anaxágoras de spérmata (o termo homeomeria
consagrou-se por conta da afinidade de Aristóteles com esta tese, e significa
alguma coisa semelhante a “partes qualitativamente iguais”). O elemento seminal
conteria em si mesmo a totalidade da tipificação da matéria universal, se
diferenciando umas das outras pelas partes que seriam ativadas, divididas
daquelas que permaneceriam inertes. As frases-mote: “tudo está em tudo” e “em
cada coisa há parte de cada coisa”.
Mas havia um princípio cósmico
transcendente que explicava o que fazia uma homeomeria se transformar em uma
determinada coisa, e não em outra qualquer. Anaxágoras enxergava outro
princípio fundamental, que determinava qual de cada componente da homeomeria
prevaleceria sobre os demais. Ele não se desvencilha de atribuir a este
princípio ordenador uma certa divindade. Era o nous.
A característica divinizante do nous era que essa inteligência
ordenadora estava apartada das coisas, sendo sua integradora, mas não
integrante. É ela que fez o universo girar e que reconheceu as necessidades de
aglutinação e separação dos seus fundamentos, sendo externa a eles, para que
pudesse se dar conta da harmonia do seu funcionamento.
Demócrito e o átomo (Pobre
Lêucipo, todo mundo esquece-se dele)
E assim chegamos à nossa estação
final. Vamos falar de Lêucipo de Mileto e de seu discípulo mais ilustre,
Demócrito de Abdera. Com eles, teremos a primeira tentativa de explicar o
universo de maneira puramente mecanicista, sem nenhum tipo de intervenção de
divindades ou entidades metafísicas.
Desde muito tempo, o homem
percebeu que os objetos de seu ambiente podiam ser reduzidos a partes cada vez
menores. Uma rocha pode ser fragmentada até se transformar em areia, e que dos
seus grãos poderia ser obtida uma divisão ainda maior, o que somente não era
possível conseguir por causa de falta de meios. Mas é fato que essa redução era
possível, até o limite da percepção.
Qual era o limite desta divisão?
Até onde era possível chegar sem que a matéria se descaracterizasse? Demócrito
imaginou que, quando esse limite fosse atingido, não mais haveria como tornar a
matéria ainda menor. Este limite de divisibilidade da matéria era o átomo. Essa palavra grega é composta
pelas partículas a (sem) e tomos (divisão).
A grande modificação em relação às
raízes de Empédocles e à homeomeria de Anaxágoras era que, agora, as partículas
que compõem o universo são indiferenciáveis entre si. Um átomo de água não é
diferente de outro átomo de água, e nada há nele além do elemento que
representa. Claro que o conceito de molécula era ainda inalcançável, mas
Demócrito previu que eles teriam combinações possíveis entre si. Isso porque
nosso risonho amigo pensava que o número de tipos de átomos era bastante
pequeno, se comparado com o total de elementos perceptíveis no cosmos. O que
fazia com que suas características fossem distintas era uma descoberta ainda
mais surpreendente: os átomos tinham espaçamentos entre si, que não era
preenchido por absolutamente nada. Era o vácuo.
Como não havia nenhum princípio
ordenador nas teses de Lêucipo e Demócrito, tudo era formado ocasionalmente. É
meramente o encontro mecânico dos átomos que produzia a ordem do universo.
Então vamos ver:
1. O mundo é composto por
minúsculas partículas espalhadas por toda a parte;
2. Os átomos possuem movimento;
3. Os átomos existentes são
poucos, mas suas combinações são infinitas;
4. O espaço entre os átomos é
preenchido de vácuo;
5. Nada mais há do que átomos e
vácuo;
6. Todas as coisas se diferenciam
por conta do arranjo e disposição dos átomos que as compõem;
7. Os átomos são indivisíveis.
Claro que Demócrito não previu que o átomo era particionado, ele não tinha
nenhum recurso para isso, mas é preciso lembrar que não essencialmente erro
nessa assertiva. Um átomo somente pode ser dividido, pelo que se conhece hoje,
por fusão ou fissão, o que o destrói.
Lembrando que a construção deste
conceito nasceu unicamente pela via filosófica, dá para perceber o quanto esse
modelo estava correto. Pena que os maiores nomes da Filosofia Antiga, Platão e
Aristóteles, não compraram essa ideia. O mesmo se aplica à Filosofia Medieval,
que já dava por suficiente a explicação teológica da origem do cosmos. Por
conta disso, a ideia do átomo ficou adormecida por muitos séculos, até que os
alquimistas, atraídos pela possibilidade de transmutar um elemento em outro,
voltaram a investigar as teses que previam a unicidade dos materiais. Mas só
deslanchou mesmo com John Dalton, no século XIX. Lêucipo e Demócrito mataram a
charada.
Parmênides e o Ser
È finito? Sim, mas eu ainda gostaria de fazer uma observação sobre
Parmênides, o pai da permanência, do Ser infinito e imutável. Ele não discorreu
fundamentalmente sobre uma arché, mas
o filósofo da ciência Karl Popper percebeu que as características atribuídas ao
Ser, como a redução imutável à essência daquilo que existe, e a impossibilidade
de atribuir qualitativos àquilo que não existe, ou seja, da imutabilidade do
Ser, em clara oposição ao mobilismo de Heráclito, faz com que vejamos uma mesma
intenção, agora metafísica, de explicar a origem e a causa do universo.
O Ser é o que é, sentença
estranha. Mas isso quer dizer que, livre de todos os fenômenos e aparências,
que fazem com que ele seja colocado como algo mutável aos nossos olhos, não
teremos nada do que o Ser não é. E, com isso, atingimos sua essência e, de
certa forma, sua arché.
Não há dúvidas de que voltarei com
mais rigor a este tema em especial, mas não queria deixar passar batido. O mais importante de todo esse caminho que tracei é perceber o rumo que a Filosofia tomou, e a percepção de como o conhecimento é colaborativo. Um pensador não jogou fora o conhecimento obtido por outro apenas por não concordar com ele. Pelo contrário, o pensamento de um deu base ao outro, mesmo que por oposição. E o exemplo da arché demonstra como se transita da Filosofia para a Ciência. A primeira especula até que a segunda acha. Esse é o mundo do pensamento.
Chega!
Já tá muito longo. Obrigado pela paciência.
Recomendação de leitura:
Todo manual de Filosofia que se preze fala sobre a questão da arché. Por isso, vou preferir indicar a
versão completa do texto de Hesíodo mencionado no começo do post. É meio
pesadinho, mas não deixa de ser interessante, em especial porque é um testemunho
do sistema que buscava dar sentido ao mundo antes que partíssemos para a
aventura do conhecimento racional.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991
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