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quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sobre a tragédia grega revisitada e sua permanente atualidade

Olá!

Todo mundo que curte Filosofia sabe a importância que a tragédia teve na formação do ethos grego, e como isso desembocou no modo de pensar ocidental.
Falo isso porque alguns dias atrás fui assistir a peça “Trágica.3” no CCBB, junto de minha esposa. O diretor, Guilherme Leme, pegou três grandes histórias da mitologia grega protagonizadas por mulheres e as juntou em um só painel, lançando mão de recursos eletrônicos para aumentar o clima de tensão em um espaço bem menor do que os dos antigos estádios gregos, onde, em geral, as tragédias eram encenadas.


A tragédia grega é importante na história da Filosofia porque foi uma espécie de propedêutica a esta. Os questionamentos eram os mesmos: Qual o sentido da vida? O que vale mais – uma vida serena e desimportante ou uma vida arriscada e gloriosa? O que nos iguala às nossas transcendências? É possível escapar do destino? A diferença estava basicamente no método. A tragédia buscava estas explicações no desenrolar dos enredos, que lançava mão dos mitos para protagonizá-los, e a Filosofia se vale do raciocínio lógico e das evidências. Evidentemente que ainda não existia o distanciamento que hoje temos entra pensamento científico e pensamento mítico, mas podemos perceber suas diferenças e aproximações.

A origem do termo “tragédia” é estranha. Em uma tradução direta, significa “coro dos bodes”, o que exige alguma explicação. É que as primeiras formas desta arte ocorreram em festas chamadas de “dionisíacas”, e eram chamadas de ditirambos. Dionísio era o deus grego da alegria, das festas, das orgias, do vinho, e, por extensão, do embriagamento, da loucura, das emoções, da inconstância. A embriaguez era o modo com o qual os gregos entendiam ser possível ao homem se fundir com as divindades. Portanto, os ditirambos se desenvolviam em uma espécie de transe, no mais das vezes através da utilização de bebidas alcoólicas e outras poções menos votadas. Na mitologia grega, Dionísio era cercado por um séquito de seres denominados sátiros, que lhe serviam e prestavam culto. Os sátiros eram seres híbridos, metade homens, metade bodes. A montagem de uma tragédia levava isso em conta – a estrutura de uma representação consistia em um ator inserido no centro de um estádio, encenado um personagem qualquer, em geral um herói grego. O ator que representava o herói colidindo com seu destino, representava o próprio deus Dionísio. Era acompanhado por um grupo de músicos reunidos em coro. Para caracterizar a homenagem a Dionísio, os membros do coro representavam sátiros, e se vestiam como bodes, e então temos o nome tragosoidé – a tragédia.

Quem nos dá a estrutura da tragédia grega clássica é Aristóteles, principalmente em sua obra A Poética. Para o mestre estagirita, a tragédia não era apenas um texto com final triste. Era necessário musicalidade – os temas deveriam ser abordados com ritmo e harmonia. Precisaria ser protagonizado por um deus ou por um herói, e deveria estar voltado para temas grandiosos. Além disso, deveriam ser tratados com extrema seriedade – a função da comédia é totalmente distinta da solenidade com que a tragédia deve trabalhar seus assuntos. E, principalmente, seu foco não era voltado para o mito em si, para o texto ou para a interpretação do ator, mas para a reação do público. Vamos destrinchar isso.
Em geral, a tragédia buscava traduzir os atos e pensamentos de um herói colocado diante de uma aporia. Os mitos são conhecidos, narrados pela tradição oral e sintetizados por grandes escritores da época, como Hesíodo (Teogonia) e Homero (Ilíada e Odisséia), e foram adaptados para a dramaturgia por mestres como Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. A descrição do mito era narrativa: aconteceu isso, aquilo e o outro. A magia da tragédia, portanto, não estava propriamente na história em si. Se eu contar as histórias da peça que estou tratando aqui (o que farei), não praticarei spoiler, porque seu encanto está na conjunção da genialidade do dramaturgo em “pensar com a cabeça” do personagem e da força da interpretação do ator. Entrever as emoções e reações destes personagens é a tarefa do dramaturgo. Seu objetivo principal era atingir a catarse: uma purificação dos sentimentos que a plateia atinge ao reconhecer nos deuses e heróis as mesmas aflições diante daquilo que transcendia seu alcance – a dor, o destino, a morte. Nesse sentido, a catarse seria pharmacon. Assim como as ervas, os óleos e os minerais, que, quando usados corretamente são remédios para o corpo, a tragédia é remédio para a alma. Assistir a uma tragédia e atingir a catarse representa uma purgação espiritual. Seu equivalente corpóreo, segundo os antigos gregos, era utilizado para livrar o organismo dos males que lhe contaminavam. Então a tragédia tinha também essa dimensão do coletivo, era a história de todo o gênero humano, não só dos protagonistas.

Mais do que em outro gênero, a representação da tragédia exigia muito dos atores. É aqui que o ator mais doa sentido ao seu personagem. As interpretações são derramadas, os gestos são intensos, as expressões são quase exageradas. Muitas delas eram longos monólogos, entremeados por cantos. Estamos nos estádios gregos, em espaço aberto, sem acústica, sem microfones, sem efeitos de luz. O ator tem que dar mais de si, há uma mensagem a ser entregue por seu corpo ao espírito dos espectadores. E assim nasce essa forma de linguagem que hoje chamamos de teatro.
A análise da tragégia atravessou os séculos, e, da filosofia contemporânea, quem mais profundamente cuidou do tema foi Nietzsche. O alemão das marteladas falava muito mal de Sócrates. Ele coloca o pai da Filosofia Clássica no papel de assassino da tragédia grega, e como o mundo não pode ser vivido fora de sua dimensão estética, o racionalismo e a dialética socrática são tidos como um imenso mal, uma desfaçatez à própria natureza humana. Neste sentido, Nietzsche concorda com Schopenhauer, que afirma ser a vida um imenso vazio fora da sensação produzida pela arte. Só que para Nietzsche isso é um bem, não é motivo para pessimismo, mas pela celebração. É nesse campo que o homem transcende a si mesmo. Sócrates, ao apostar na racionalidade, afoga toda a criatividade do homem e o impede de ir além de si mesmo, o übermacht – super-homem, a quem voltarei oportunamente, em outro texto. Como toda a Filosofia posterior à Sócrates é um reflexo e derivação deste modelo de pensamento, o método libertador trágico ficou latente.

Nietzsche percebeu que, nas entrelinhas, a grande sacada da tragédia grega era enxergar, à perfeição, não só a inconstância e o pathos dionisíaco, mas também a grandiosidade e a perfeição das formas do apolíneo. Este nome deriva do deus Apolo, que regia a racionalidade, o equilíbrio, a harmonia e a beleza, o exato oposto de Dionísio. Na tragédia residia essa permanente tensão, entre o que é possível e o que é realizado, entre criação e destruição. Essas pulsões nascem artisticamente da própria natureza, não é algo que dependa da genialidade de um artista. O mundo é um revolver dionisíaco de alternância e caos que se desenrola em um modelo apolíneo harmônico, que o limita e contém, mas que por sua vez é atravessado e remoldado pela atividade vulcânica do primeiro. Segundo ele, é justamente essa corda sempre prestes a partir que faz com que a tragédia seja reflexo da vida e, no limite, a justifique. Na tragédia, o apolíneo fala pelo caos e o dionisíaco fala pela harmonia.
Pois então. Vamos à peça em si.

Três excertos foram pinçados: os mitos de Antígona, Electra e Medeia. O escopo é relacionar estas mulheres com o destino extremo – a morte. Cada uma delas se relaciona de uma forma diferente com a senhora da capa preta.

Antígona é uma das protagonistas de uma das mais importantes sagas gregas, Édipo Rei. Torna-se relevante a partir da disputa de poder dos pretendentes ao trono de Édipo, seus irmãos Polinice e Etéocles. Édipo havia sido expulso do reino de Tebas, e Antígona foi a única filha a acompanhá-lo em seu exílio, até sua morte. A guerra entre os irmãos começa quando o acordo de revezamento no trono foi quebrado, com a recusa de Etéocles em ceder o reinado. Terminou com a morte de ambos em uma batalha fratricida. Com isso, seu tio Creonte assumiu o governo, e decidiu enterrar Etéocles com todas as honras de estadista, enquanto mandou o cadáver de Polinice ficar exposto às intempéries, para que fosse devorado pelos lobos e pelas aves de rapina. Fazia isso para servir de exemplo a todo aquele que desejasse tentar lhe tomar o poder. Antígona não admite deixar o corpo de seu irmão insepulto, e toma ela mesma a tarefa de cumprir os ritos sagrados e enterrá-lo. Tinha perfeita consciência da gravidade de sua atitude, e se lança nesta tarefa sabendo dos riscos que corria: ela própria ser sacrificada, o que acaba por ocorrer, com o ato de seu suicídio. Põe em evidência, com essa mentalidade transgressora, o valor que dava para as leis divinas, que não deveriam ser descumpridas por conta das leis humanas, além de se tornar paradigma do amor fraternal.
A peça retira o momento em que Antígona decide cometer a transgressão de enterrar seu irmão, em um longo e lamentoso monólogo, e decide levar a cabo sua tarefa até as últimas consequências. Foi interpretada pela Letícia Sabatella, atriz bem conhecida das novelas. Para mim, uma grata surpresa, já que não a conhecia fora do ambiente platinado da rede globo, onde costuma vestir muito frequentemente papéis do tipo mulher-de-meia-idade-chorona-porque-injustiçada. Defendeu sua personagem com maestria e soube transmitir os propósitos do autor.

Electra, por sua vez, é símbolo da impulsividade e seu mito serviu à psicanálise como oposição ao complexo de Édipo, onde o filho homem guarda com a mãe uma relação psicológica de atração sexual inconsciente, que acaba redundando em um sentimento de repulsa em relação ao pai. No complexo de Electra ocorre o mesmo, porém invertendo os pares – aqui, temos a filha que pulsiona em relação ao pai, e tem a mãe como rival. Esse mito foi utilizado porque Electra, filha de Agamênon e Cliemnestra, arquitetou a vingança contra o ato urdido por esta última. Sua conduta foi motivada pelo fato de que Agamênon, rei de Micenas, havia sacrificado Ifigênia, outra filha sua, e com isso tomado o poder ao lado de seu amante, Egisto. Electra passa a viver amargurada pelo desejo de vingar seu pai (este é o ponto que a peça aborda), implorando às divindades que lhe propiciassem um modo pelo qual fazê-lo. Consegue seu intento utilizando seu irmão Orestes, que consuma o ato. No entanto, o arrependimento chega depois: Ifigênia está viva! É uma sacerdotisa de Ártemis, vivendo em isolamento nos montes gregos. Electra é aquela que se vinga e se arrepende, aquela que manda matar e com isso mata seu próprio interior por sua impulsividade. A atriz que nos contou a história foi Miwa Yanagizawa, em um ambiente de tensão do princípio ao fim, desde sua postura praticamente imóvel e desconfortável (ao contrário de Antígona, que flana pelo palco). Seu rosto é impassível o tempo todo, o foco da vendeta não é perdido em momento algum. Realmente tenso.
Já com relação a Medeia, o mito é contado a partir da crueldade da protagonista. Ela era esposa de Jasão, o comandante dos Argonautas, que buscavam o velocino de ouro, um estranho objeto confeccionado a partir do pelo de ouro de um carneiro oferecido em sacrifício ao deus Ares. Medeia ajudou substancialmente Jasão a cumprir seu intento, inclusive traindo seu pai, o rei Aetes. No entanto, Jasão a trai, apaixonado que estava por Gláucia, com quem resolve passar a viver. É aqui que a peça se desenrola: nos planos de vingança de Medeia. Ela mata todos os filhos que teve com Jasão, e utilizou seus poderes para matar também a sua adversária, ao confeccionar um vestido e presenteá-la. Esse vestido se incendiou assim que Gláucia utilizou-o pela primeira vez. Também sobrou para Jasão, que se viu enlouquecido e morto pelo peso de seu próprio navio. Esse mito também é utilizado na psicanálise para demonstrar o ato de loucura cometido pelos pais que matam os filhos em acessos coléricos. Denise del Vecchio faz uma interpretação correta e segura, insensível como deve ser o prato comido frio. É a mão que mata em nome de um pretenso restabelecimento da honra.

E é isso. O desenvolvimento do trágico dá a nós, pobres mortais, toda a dimensão da inexorabilidade do destino, e nos explica o quanto a arte, através de suas representações, pode refletir sobre o que é a vida.

Recomendações:

Primeiramente, recomendo a própria peça. É bastante significativa da arte grega e das origens do teatro. Não sei se, nesta altura do campeonato, tem ingressos à disposição, mas vale a pena tentar.

LEME, Guilherme. Trágica.3. Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (SP) até 07/07/2014.
 
O livro de Aristóteles é bem interessante para compreender as regras que regem a tragédia grega.

ARISTÓTELES. A Poética. Lisboa: INCM, 1998

Já o de Nietzsche é essencial para enxergar uma versão mais complexa de como pode ser entendido esse tipo de arte.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia grega ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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