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segunda-feira, 7 de maio de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (06 – Epistemologia)

Olá!


Até o momento, falamos sobre o conhecimento de um modo geral e de como se processa a aquisição cognitiva. Mas há ainda uma pergunta muito importante a ser respondida. Sabemos que o mundo à nossa volta é repleto de informações que nos são disponibilizadas a todo momento. Nesse torvelinho incessante, há muita coisa que nossa apreensão imediata é capaz de dar conta, e é suficiente para sobrevivermos muito bem, obrigado. Mas muito do que vemos, ouvimos, cheiramos é ilusório. Nesse exato instante, por exemplo, vejo uma pessoa que se parece demais com uma determinada subcelebridade. A princípio e a distância me parece, de fato, a dita cuja, mas eu não sou muito dado a acompanhar reality shows, então não posso ter certeza. Para isso, teria que investigar um pouco melhor (o que não farei). O que minha visão me permite captar pode ou não estar de acordo com o que sei, ou, mais do que isso, com o que é real. É sobre essa possibilidade de dar valor de verdade ao conhecimento que trata a Epistemologia.


Episthéme em grego tem o mesmo significado da palavra latina scientia, e ambas são sinônimos de conhecimento. Mas, como já bem estabelecemos no vulgo, é aquele conhecimento menos genérico e mais perquirido. Quando digo que conheço a tal subcelebridade, é um conhecimento en passant: nunca vi a moça ao vivo, podemos ter uma sósia à nossa frente, uma irmã gêmea ou coisa que o valha. Conhecer, no sentido epistemológico, é outra coisa. Para isso, precisaria de uma identidade, de uma comparação por fotos, da certificação de outras pessoas, ou seja, de elementos que calcem de maneira mais sólida minha impressão.

Serei mais claro. Esse mundo que nos cerca, já citado acima, manifesta-se a consciências, e estas, por sua vez, captam-no através dos sentidos. Isso posto, já podemos definir dois grandes imbróglios: consciências dependem de conhecimento anterior, de capacidade lógica, de usos habituais, de aptidões, e isso é variável de indivíduo para indivíduo. E os sentidos enganam, como já é sobejamente sabido, além de também serem exclusivos de cada ser. A conclusão rápida é que, de nossa apreensão imediata, não podemos extrair uma certeza absoluta, mas uma opinião. É claro que não temos isso na cabeça permanentemente, até porque há muita coisa a ser resolvida rapidamente, e passamos a assumir essas opiniões como verdades sem muito critério. Afinal, se a bandeirosa e retro citada sub é mesmo ou não a sub, pouco importa, nada mudará na mecânica cosmológica nem no campeonato brasileiro. Isso fará parte da minha crença.

Crer significa dar crédito, atribuir valor. Em nossas crenças, estão atribuídas as opiniões acerca de tudo. Por exemplo: eu creio que o Corinthians é o melhor time do mundo, e, por isso, torço para tal agremiação. Como futebol é tema típico do campo opinativo, é impossível responder se isso corresponde à verdade, mas está no meu conjunto de crenças, é verdade para mim, e que podem ser falhos quando comparados com outros critérios igualmente subjetivos. Mas há coisas objetivas e indubitáveis sobre o Corinthians: seus títulos, sua tradição, sua grande torcida, capaz de promover os maiores deslocamentos humanos em tempos de paz do pobre planetinha: o recorde absoluto de 1976 para o Rio de Janeiro, e o intercontinental, para o Japão em 2012. Isso são dados que podem ou não fazer diferença em uma opinião, mas que são inescapáveis, são reais. Tudo isso para dizer que, no arcabouço de nossa intelectividade, há uma parte da crença que corresponde a conhecimentos verdadeiros.

Mas o que é essa tal de verdade que a Epistemologia tanto persegue? Já versei anteriormente sobre tal temática, mas vou resgatá-la aqui, deixando de lado os aspectos histórico-etimológicos e reforçando os estruturais. Há três maneiras para caracterizá-la que se imiscuem: a correspondência, a coerência e o consenso. As três tem suas vantagens e fragilidades, o que, desde já, permite-me dizer que não é confortável achar uma verdade sobre a verdade. Eu diria, até mesmo, ser impossível.

Dizemos que procuramos correspondência quando queremos estabelecer um vínculo entre o objeto que observamos com seu real significado. Se observo uma cadeira, intuo rapidamente seu material, sua forma, sua utilização, seu tempo de uso. Mas a correspondência exata é algo que se vai construindo aos poucos. Eu a toco, e percebo que ela imita madeira, mas é de plástico; parece ser dobrável, mas algum marceneiro inábil a fixou com uma trava; parecer ser para sentar, mas está sendo usada como prateleira, dada a sujeira em seu assento; parece ser velha, mas lhe foi aplicada pátina artificialmente. A busca pela correspondência depura os desvios dos sentidos, na tentativa de obter a verdade sobre o objeto presente, colocado à nossa consciência nesse momento, tal como ele é.

Quando buscamos coerência, estamos tentando concatenar logicamente os fatos, de maneira que a linha do tempo conduza harmonicamente o desenrolar de uma determinada história. Quando ouvimos cantilenas contadas por crianças, por exemplo, precisamos desligar um pouco nossa crítica, porque elas sempre contarão coisas estupefacientes. Se assistirmos a um filme de aventura, precisamos suspender nossa descrença, sob pena de não aproveitarmos nada do enredo. Todo relato é, a princípio, duvidoso, mas vai ganhando credibilidade à medida que se demonstra coerente. E coerente com que? Com as evidências. É isso que pensamos quando usamos a expressão “batom na cueca”. A evidência muito forte desmonta a coerência de qualquer relato que não seja a confissão de culpa, que é a única concatenação lógica possível sem malabarismos, nesse caso. Mas é óbvio que nem sempre há um guia tão escancarado, e nos vemos envoltos em relatos discrepantes, às vezes igualmente críveis. Quando queremos reconstruir um fato histórico, é preciso juntar as peças do quebra-cabeças de forma que o encaixe seja perfeito. Se eu contar que fiquei escrevendo este texto na mesa do quarto, tudo bem, é perfeitamente possível; se essa mesa não estiver no quarto, mas em um parque (como faço agora), alguém haverá de perguntar porque esse bobo não vai deitar na grama ao invés de meditar hermeticamente, mas ainda assim o relato é coerente; se eu disser que escrevi no meio do mar, já será mais difícil de crer – posso alegar uma tinta especial e um papel impermeável, mas já é preciso provar a existência de tais artefatos; se eu disser que não o escrevi, mas que me foi entregue pronto por um gnomo, surgirá amplo descrédito. A coerência emerge do encadeamento lógico dos fatos ocorridos e de sua descrição consistente. Quanto melhor o relato, maior sua conformidade com o que ocorreu. E, em geral, é a melhor ferramenta que temos para descrever fatos já ocorridos, dos quais não temos mais disponibilidade física para estabelecer correspondência.

Finalmente, fazemos busca pelo consenso quando existe mais de uma possibilidade para expressar a verdade. É o que se tem em profusão na academia para que se defina qual é a melhor corrente que explique um determinado fenômeno. Um exemplo bem simplesinho: o que é melhor para servir de almoço no próximo fim-de-semana? Há duas ideias – polenta ou feijoada. Reconhece-se que ambas são boas opções. A polenta é barata, fácil de fazer, recebe uma infinidade de molhos. A feijoada é saborosa, serve muita gente, fica melhor ainda no dia seguinte. Há também os contras: polenta é carboidrato puro, seu ponto é fácil de errar, exige algum acompanhamento; feijoada é pesada e de digestão lenta, impede vegetarianos de acompanhar a festa, demora horas para ficar pronta. A decisão final será aquela que o grupo sopesar de suas vantagens e desvantagens, no sentido epistemológico da coisa – os conhecimentos são postos em confronto e avaliados. Bem pesado e bem medido, o consenso atingido ganha estatuto de verdade, principalmente porque não é uma decisão autocrática. Os partidários exercem sua prerrogativa de indicar bons motivos para um ou outro. É uma verdade que se baseia na expectativa do resultado, que se calça na confiança nas razões expressas. É consenso, por exemplo, que o sol surgirá no horizonte amanhã. Parece algo muito semelhante à fé, e é mesmo, mas teríamos um ceticismo absoluto se não possuíssemos um mínimo de confiança naquilo que os contextos científico, histórico e social estabelecem como real.

Falemos de dificuldades. Não é tranquilo confiar unicamente nos sentidos para absorver dados, mas não temos outra via disponível. Mesmo que concordemos que o raciocínio tem tal capacidade abstrata que permita desenvolver cálculos de cair o queixo, o fato é que há um cosmos e ele está disponível para nossos parcos recursos físicos, e não para nossa racionalidade, ao menos diretamente. Obter correspondência tem esse calcanhar de Aquiles. Com relação à coerência, a coisa é pior. Histórias muito bem inventadas por mentes brilhantes são perfeitamente críveis, e os marcos que permitem aferi-las são concretos, de modo que a coerência não pode operar sozinha. E o consenso, ora bolas, pode estar errado. Ele muda no decorrer do tempo, bastando lembrar de teses científicas e deliberações sociais que persistiram por séculos, cujo aprofundamento no conhecimento ou nas disposições éticas fizeram ir para os ares, e novos consensos fazem brotar novas verdades.

Além disso, correspondência, coerência e consenso, no final das contas, são ferramentas do discurso para representar a realidade, mas não são a realidade em si mesma. Ainda que seja possível atingir um máximo de proximidade com um mínimo de erro, a interpretação da realidade sempre passará pelo filtro da pessoa, e aí há diferenças de crivo, inevitavelmente. É por isso que a Epistemologia tem buscado tratar a verdade cada vez mais como verossimilhança, e não como certeza, assumindo que é um pouco difícil desvencilhar totalmente conhecimento e crença. Por isso mesmo, a Ciência nunca é definitiva, mas falaremos melhor sobre isso em momento próprio.

Um bom exemplo de como é cheia de nuances a questão é a divergência entre Platão e Aristóteles com relação à fonte do conhecimento. Platão entende que há um mundo das ideias onde residem as formas perfeitas, que plasmam tudo o que existe concretamente. Essas formas perfeitas seriam atingíveis unicamente pela intelecção pura, através de um gradual processo dialético. Já Aristóteles entende que o puro raciocínio não é capaz de nada sem experiências que lhe proponham conteúdo. O conhecimento está nas próprias coisas, e não em um mundo à parte.

Mas isso quer dizer que cada amostra de um objeto qualquer anula completamente outra, observada outrora? Não, e é isso que faz o raciocínio humano se tornar um diferencial. Aristóteles entende que o conhecimento é indissociável da Ontologia (veja aqui para saber mais), porque conhecer é conhecer essências. Por exemplo: a camisa do Corinthians é preta e branca. A do Palmeiras, é verde. Some-se o vermelho e teremos a da Lusa. A do Juventus é grená e temos dois tricolores na cidade, o São Paulo e o Nacional. Temos até um blaugrana tupiniquim, o Barceloninha de Capela do Socorro. Todas essas cores e a existência de escudos, bem como suas golas e punhos, não definem o que é camisa. São contingências às quais Aristóteles chamava de acidentes. Mas é deles que deduzimos as essências, os verdadeiros objetos do conhecimento, e essa é a função do puro intelecto, porque é aí que realizamos as concatenações necessárias, as classificações e organizações que permitem enxergar o que define as coisas. Uma camisa não é uma camisa por ser do Corinthians ou do Palmeiras, mas por cobrir o tórax, por ser feita de tecido amoldável ao corpo, por se limitar ao pescoço e à cintura. Esse é o cerne aristotélico da essência e da verdade.

Em suma: a Epistemologia é a parte da Teoria do Conhecimento que está mais interessada em um conhecimento racionalmente embasado do que no simples ato cognitivo, tarefa esta mais afeita à Gnosiologia, já devidamente destrinchada, e lembrando ainda que essa divisão não é exatamente consensual, muitas vezes sendo uma tomada por sinônimo da outra. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Para ler, recomendo a fusão das obras aristotélicas sobre a interpretação das coisas no mundo e da análise do conhecimento.

ARISTÓTELES. Órganon. São Paulo: Edipro, 2016.

Obs: Na figurinha que ilustra este texto, tenho não só o mocho do Rush, mas a serpente do Whitesnake, do álbum Trouble, daqueles tempos em que Coverdale et caterva estavam mais preocupados em fazer bom rock'n'roll do que ostentar topetes gigantescos.

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