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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A teoria do gomo da mexerica

Olá!

Já perceberam que as pessoas costumam se estapear por motivos banais? Quando vemos uma briga de bar, daquelas que podem terminar em morte, quase sempre o estopim foi alguma discussão do tipo futebol, infidelidade, adjetivos maternos pouco recomendáveis e outros motivos irrelevantes. Quando os envolvidos são do sexo feminino, o problema é o mesmo, porém deslocado para motivos conjugais (extra, para ser mais preciso), pequenos desencontros informacionais alheios, e via discorrendo. Mas há motivos ainda menores, como, por exemplo, um pedaço pequeno, já inútil, mas muito cobiçado, de plástico-bolha...

Sim, já vi brigas por causa de um pedaço de plástico-bolha usado. Que tipo de fascínio um detrito desta ordem pode exercer nos seres humanos para que eles se voltem as costas mutuamente, apenas e tão somente porque 51% das bolhas ficaram disponíveis para um, e apenas 49% para o outro?

O encanto diante do plástico-bolha é tanto que encontrei, em uma rápida pesquisa na internet, dois artefatos curiosos: um aparelho chamado “ploc-ploc” (olhem neste endereço) que se auto-proclama um plástico-bolha infinito, pois as bolhinhas se enchem novamente após os estouros, e há o plástico-bolha digital (experimentem aqui), que expõe um quadrado de suculentas bexigas disponíveis para explodir com o ponteiro do mouse. Sem dúvida, há gente com tempo no mundo...

Meu plástico-bolha é outro. Sou capaz de passar muuuuuuuuuito tempo tornando absolutamente limpos... gomos de mexerica! Tiro fiapo por fiapo, dos mais longos aos mais curtos, até desprover completamente cada um dos gomos da fruta, buscando pela peça perfeita. Começo pela parte baixa do gomo, a mais trabalhosa. Supervisiono as laterais e retiro as eventuais fibras lá existentes. Removo a junção do alto e, em seguida, os caroços inevitáveis (há exceções, é verdade). Aí sim, com a peça totalmente isenta de “penugens”, mando a infeliz para a garganta, descartando eventualmente as peles laterais, mas sorvendo a inferior. Às vezes limpo umas quatro ou cinco de uma vez, outras vezes vou deglutindo os gomos na medida em que os limpo. Prefiro as ponkans, altissimamente fibrosas. Também gosto das recentes dekopons, uma laranja com forma de mexerica (ou uma mexerica com gosto de laranja, tanto faz). As pequenas cravo são diversão para poucos minutos, e as murcotts... Bem, não considero as murcotts mexericas.


Tangerinas, bergamotas, mexericas... Por que, hein?

Bom, há duas maneiras para ver a coisa: uma é nossa propensão a desvendar as coisas, mas com a impossibilidade de ficar com as mãos paradas. Meu falecido compadre Plínio, por exemplo, ficava extremamente feliz quando, ainda criança, ganhava de presente algo que tivesse um mecanismo, como um relógio ou carrinho de corda, não porque lhe seria útil, mas porque poderia desmontá-lo, e compreender seu funcionamento interno.

Outra coisa é que provavelmente temos diante de nós uma questão de possessividade com um objeto sem dono. O plástico já utilizado não serve para mais nada, apenas para ser estourado. Nunca vi, nem tenho notícia, de alguém comprar um metro de bolhas para estourar com o sagrado e constitucionalmente garantido direito de propriedade, somente o plástico que já cumpriu sua missão pode ser utilizado. Com a mexerica é a mesma coisa, mas aí temos a questão da reminiscência infantil. Isso porque nós pagamos (e caro) pela dúzia da precitada fruta, mas temos inscrito em nossa memória o tempo em que elas estavam disponíveis nas árvores da vizinhança (bem como goiabas, pitangas, abacates, etc.). A fruta está lá, pendurada na árvore, desprotegida e oferecida ao primeiro guloso que se dispusesse e catá-la. Essa sensação de pertença ainda permanece, mesmo que tenhamos comprado a fruta, porque o sentido do prazer em sorver o que foi conquistado a custo é maior do que o sentimento de segurança jurídica de haver adquirido legalmente o produto.

Mas há outros motivos, ao menos aparentemente. Estourar bolhas assemelha-se a técnicas de yoga. Como os esforços táteis são repetitivos e dispensam grandes demandas mentais e foco estrito, proporcionam um agradável isolamento do mundo exterior, favorecendo a meditação. Também é comum transmitir uma sensação de proteção – quando não estamos em vigília contra o perigo, algo que nasceu com nossos ancestrais. Afinal, é difícil ver alguém estourando bolhas andando nas ruas (plástico-bolha não é celular). Fazê-mo-lo sentados, em ambiente fechado, e temos com isso uma sessão de descarga de stress. Damos uma desligada nos sentidos e com isso vem a sensação de prazer. Também tem mais um fator. Um pedaço de plástico-bolha representa um objetivo, e queremos levá-lo até o fim, não deixar uma obra inacabada, ainda mais tão simples que é. Pode ser que aí entrem as brigas. Um quadradinho destes tem começo, meio e fim, mas ele é MEU, só MEU. Dividir o derivado do petróleo, no caso, atiça os instintos primevos do contribuinte, como um pedaço de carne mal repartido. Sei lá, acho que é isso, tudo junto ou separado.

Tudo isso pode ser aplicado ao desnude de meus gominhos. Também ali tenho uma sensação de relaxamento, também ali tenho uma tarefa a levar a cabo até o fim, também ali tenho o sentimento de proteção, também ali tenho a insatisfação quando alguém vem serrar minhas pequenas partículas (Ok, não nego gomos a quem me pede – basta não ser folgado). E enquanto executo a dissecação do precioso alimento, aproveito para filosofar.

E neste vai e vem de fiapos, de retirada de caroços, de gomos de mexerica levados à perfeição gastronômica, em todo esse esmero na dissecação do objeto, o cuidado para desnudar a proposição que se quer estudar, enxergo as lições do mestre francês René Descartes, um dos maiores filósofos da Idade Moderna, o pai do Racionalismo, e percebo que, de certa forma, aplico as regras de seu famoso método para dissecar o “problema” da limpeza das minhas partículas frutíferas favoritas.

Descartes vive em um tempo em que vemos a aposentadoria de um paradigma filosófico e ressurgimento de outro. Era a época do esgotamento do modelo teocêntrico da Idade Média e da nova antropologia suscitada pelo Renascimento. Tal como na era socrática, o homem volta para o centro da especulação filosófica, mas com uma roupagem diferente – a Ciência já não é mais uma possibilidade distante. Os métodos de observação e experimentação propiciam possibilidades que ficavam antes restritas à imaginação dos pensadores. Apesar disso, Descartes coloca o homem ainda mais ao centro. Para ele, não é apenas o homem o objeto a ser analisado – ele mesmo é a usina que produz esse conhecimento.

A principal percepção de Descartes é a ausência de um método que desse guia para a razão em suas especulações. Esse método é o que ele mesmo chamou de dúvida metódica, um grande clássico da Filosofia, especialmente da Filosofia da Ciência.

A frase mais conhecida de Descartes é o famosíssimo “cogito, ergo sum”, o penso, logo existo. Seu desenvolvimento derivou da implantação da dúvida como método científico e foi mais ou menos assim: apaixonado pela matemática, e incomodado com os desvios dos sentidos e com o poder das opiniões, que obscurecem o verdadeiro saber, Descartes iniciou sua investigação em busca de uma certeza perfeita. Para tanto, extremou a dúvida ao máximo, colocando entre parênteses até mesmo sua própria existência. Para matar a charada, lança mão da hipótese do gênio maligno. Esta entidade teria o poder de enevoar qualquer tipo de conhecimento, capaz de iludir o intelecto sobre a existência de toda percepção, como a visão, a audição, a memória, todas as coisas exteriores, a noção cosmológica, tudo; até mesmo o próprio corpo. Descartes passou a supor a existência de tudo isso como meras ilusões produzidas por esse gênio maligno.

Acontece que, mesmo imerso em um universo de ilusões, é preciso que se admita a existência de algo para ser iludido. Quando somos objeto da ilusão, pensamos; quando erramos em nossas opiniões, pensamos; quando fazemos um julgamento qualquer, pensamos; até mesmo quando duvidamos, estamos pensando. Há sempre algo necessário para qualquer atividade mental, e esse algo é o pensamento. Desta forma, o pensamento é prova inequívoca de existência. Existimos enquanto pensadores.

Com essa premissa de que é possível atingir alguma certeza, Descartes abandona a possibilidade de um ceticismo absoluto, que, em seu limiar, impediria a Ciência. O conhecimento deveria se apresentar a razão passando pelo crivo da dúvida cartesiana. E esses filtros são clareza, distinção e evidência. Por clareza, devemos entender, na concepção cartesiana, como aquilo que se apresenta ao espírito de maneira direta, ou melhor dizendo, sem necessidade de intermediários. Isso significa que o conhecimento não pode ser intuído como real por se “ouvir falar”, é preciso tê-lo à sua frente desnudado e sem nenhuma espécie de opinião para distorcê-lo. Por distinção, temos que pensar na ideia que se insere descolada de qualquer outra, ou seja, é preciso ser possível que todos os elementos que compõe um determinado objeto da razão sejam individuais, que sejam únicos. E por evidência, temos uma consequência direta das anteriores, da clareza e da distinção, aquilo que é inequívoco para nossas representações mentais, e com isso temos a base para nossas construções racionais.O cogito tem todas essas características, e passa a ser um paradigma para todas as demais elucubrações.

Tendo em conta essas regras para aceitar o que deve ser considerado em nossas pesquisas racionais, Descartes constrói seu método. Não vou fazer longas assertivas, até mesmo porque este método é, no final das contas, facilmente resumível. Sua composição básica é a seguinte:

1) Evidência: como disse há pouco, é preciso estabelecer se nosso objeto de estudo é claro e distinto, ou seja, se temos diante de nós um alicerce seguro para a ideia a desenvolver;

2) Análise: o fato de existir evidência não significa que a representação que temos seja simples. Se há dificuldade na compreensão direta de uma ideia é preciso que se faça a sua divisão em partes cada vez mais simples, o que permite uma melhor organização, já que a ideia dividida em “módulos” permite a elaboração de um rearranjo cada vez mais vasto e, por conseguinte, com melhores possibilidades de entendimento;

3) Síntese: uma vez dividida a representação, em tantas partes quantas forem necessárias para sua compreensão, temos elementos que nos permitem reorganizá-la adequadamente. A síntese é a reconstrução do objeto do pensamento já devidamente ordenado. Esse processo deve ser considerado levando em conta a utilização de suas partes mais simples, agregando seus significados em conjuntos cada vez mais complexos, até a abranger a totalidade do seu significado.

4) Enumeração: trata-se de uma revisão de todos os processos anteriores, com a reanálise de todo o raciocínio aplicado a casos que possam levar a desvios do resultado geral. Perceba-se que o método, de certa forma, é circular, porque a enumeração pode levar a novos resultados inconclusivos, que deverão novamente ser injetados nos critérios de verificação.

E com isso temos um método que deixa seus rastros nas Ciências até os dias de hoje. Aplicado às mexericas (agora em tom de brincadeira), tenho por evidente o objetivo de descascar e deixar perfeitos os gomos da fruta, verificando as possibilidades de trazer máximo prazer ao meu paladar. Para tanto, faço um processo de análise, que inclui retirar a casca, isolar os gomos, descartando os menos saudáveis, de extrair as fibras uma a uma e de ter todos os aproveitáveis diante de mim. Após isso, reúno todos em meu prato, já agora com o nome de sobremesa (sua síntese). E, por fim e por perfeccionismo, reviso todos, para ver se não escapou nenhum fiapo, se as películas laterais estão soltas e se todas as sementes estão devidamente removidas. E lá vão meus cartesianos frutos carnosos do tipo baga goela abaixo...

Poxa, tudo isso num gomo de mexerica? Pois é, a Filosofia é assim...

Recomendações de leituras:

Renê Descartes discorre sobre seu método nos seguintes livros;

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
________________. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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