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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O café filosófico do quotidiano – o que a ciência deve buscar para seguir seu progresso?

(Passar apertos faz com que cresçamos, é o que se diz por aí. E com a ciência, é a mesma coisa?)

Olá!

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Os paulistanos já estão acostumados há tempos com as novidades orientais. Primeiro, os pastéis, seguidos pelos sushis e depois por toda sorte de quinquilharia, como aquelas em que encontramos em lojas como a renomada Daiso. Não se trata de propaganda (até porque não ganho um centavo com isso), mas do reconhecimento de um comércio que se tornou um sinônimo do que, há poucos anos, chamávamos de 1,99. Como nem bala se compra mais a esse preço, mudou o apelido. Mas há coisas realmente interessantes por lá, e vou incluir dois métodos de extração que encontrei, um de cada vez. O de agora será o Konos, que se parece muito com um porta-filtro Melitta, mas que tem uma particularidade que lhe torna único.

O grande problema do porta-filtro trapezoidal é que ele tem um fundo plano, o que faz com que parte da água tenda a se acumular em seus cantos. Isso pode dificultar o percurso do líquido e realizar a tão temida superextração pelos gostadores de café, resultado em um sabor menos agradável. O Konos soluciona a questão de maneira simples: multiplicando o número de furos.


Quando se dá o despejo, a água e os solutos extraídos do pó passam pelos difíceis meandros do meio sólido que será a futura borra, e isso tem um tempo certo para acontecer, sob pena de não se conseguir o melhor sabor, embora não haja o consenso estabelecido de que isso seja ruim (sempre haverá quem prefira um café mais amargo). Para quem gosta de café sem açúcar, é mandatório que não seja necessário nenhum aditivo além da própria água.


Nome do utensílio: porta-filtro trapezoidal Konos

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: introduz-se um filtro de papel de tamanho apropriado no porta-filtro, com dobra cruzada nas costuras, para depois realizar-se um escaldamento no mesmo. Deposita-se café moído em ponto médio no filtro. Despeja-se água suficiente apenas para umedecer todo o pó (blooming). Após cerca de trinta segundos, realizam-se ataques de modo a não ultrapassar o limite do filtro.

Resíduos: nenhum

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio/baixo

Isso mostra como nós, seres humanos, queremos ser gênios, e às vezes somos. Em momentos, com constructos complexos como foguetes ou computadores; em outros com a adição de alguns furos em um porta-filtros de café. Mas as coisas, por vezes, precisam passar espremidas pelos veios onde forem possíveis.

Isso me faz puxar pela memória uma história de juventude inusitada. Eu estudava no Colégio Anchieta, que tinha um certo renome entre aqueles da ZL paulistana, e o pessoal do Diretório Acadêmico promovia anualmente um festival de música. Com minha banda no auge do período criativo, inscrevi três canções próprias, e, chegado o dia, lá fomos atrás da logística para conseguir fazer as coisas darem certo. Eu saí direto do meu emprego, porque seria muito mais rápido de chegar, e levei meu baixo comigo, chacoalhando no trem da Santos-Jundiaí. O guitarrista Moacir, que vinha de longe, deu um pelé no trabalho, detentor de horas que era, enquanto o outro guitarrista, o Maurão, foi de carro mesmo. O Edson, baterista, estava na confortável posição de não precisar carregar seu instrumento, embora passasse pela desconfortável missão de tocar em bateria alheia, mas, no quesito transporte, a vida dele estava mais fácil. Era pegar o busão e desembarcar na Vila Prudente, meia hora de viagem. 

Eu achava que seria evento para poucos gatos pingados, com a turma que iria tocar compondo a maior parte do público. Ao contrário, o pátio da escola estava fervilhando de gente, com camisetas e faixas, parecendo uma miniatura dos FICO’s da vida. No setlist, éramos a penúltima banda a tocar, o que significava que tínhamos um bom tempo para repassar afinação, arrumar cabelo (o que não fazíamos), essas coisas, e, naturalmente, passar angústia. Isso permitia também dar umas voltas, tomar uma cerveja, levar a namorada no ponto de ônibus. Foi exatamente isso o que nosso emérito batera resolveu fazer, mas quase em cima da hora da nossa entrada, lá pelas dez.

Fomos chamados e cadê ele? Subimos enrolando, cumprimentando o público, falando umas merdas políticas que eu nem lembro mais, já que as eleições eram no fim de semana que se seguia, e já começávamos a nos preparar a tocar assim mesmo quando o gajo aparece ao longe, como se tentasse atravessar o metrô às seis, seja da tarde ou da manhã. Ele se esforçava vindo de trás, e ninguém sabia que se tratava do baterista que deveria estar lá em cima do palco, atrasando uma apresentação e dando princípios de enfarte nos seus três companheiros.

Bom, ele chegou e ganhamos o festival, esse foi o final feliz de filme da Sessão da Tarde. Modéstia à parte, a música vencedora era realmente boa, um hardão clássico, pesado e envolvente, e estávamos em plena forma, e, portanto, foi merecido. Mas o mote para este texto foi a aflição do baterista, tentando passar pela apertada plateia que não o via, que não sabia porque aquele maluco estava com tanta pressa e, assim, não lhe facilitava a vida, como se fosse a água passando pelo filtro trapezoidal.

Da mesma forma que meu namorador e distraído amigo, a água que escoa para o fundo de um porta-filtros pode passar com maior ou menor dificuldade. Quando passa rápido demais, extrai pouco do pó, e o que temos é um café chocho. Quando passa mui lentamente, ocorre o contrário, e temos chance de ter um desagradável amargor. Os entraves no caminho rumo ao decanter dizem muito do que o produto final será, e isso faz toda a diferença.

Se pararmos para pensar, tudo é assim na vida, não só no prosaico cafezinho, mas até mesmo na mais intrincada das teorias científicas. É preciso se desvencilhar das dificuldades que se apresentam no caminho, passar pelos buracos espremidos, procurar pela passagem mais justa, que se justifique mais, e desconfiar de que nem sempre se está certo.

Só que os apertos do caminho são simbolizados pelas nossas discussões. Mesmo em uma mesa de bar, os assuntos rendem porque o consenso nunca é fácil. A Ciência não está livre disso, e todas as vezes em que temos discussões sobre seu real alcance, ou sobre o que é ou não científico, estamos passando pelos meandros apertados da conformidade. E os primeiros ombros que precisam ser vencidos na multidão são os próprios critérios da metodologia.

É óbvio que mesmo os métodos científicos devem passar por evoluções, em uma espécie de metateoria. Temos bem consolidado hoje que a falseabilidade de Karl Popper é o principal ponto metodológico para fazer a delimitação da Ciência, mas isso não significa que o mesmo seja imune a críticas e, mais ainda, que não deva sofrer correções. Houve contestadores, como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, houve complementadores, como Imre Lakatos, houve quem procurasse extensões do contexto científico, como Sven Hansson e há quem busque um ciência mais pragmática, como é o caso de Larry Laudan, a quem direcionaremos nosso foco hoje.

Antes, porém, é preciso dar uma passadinha rápida sobre o conceito de pragmatismo. Esta é uma escola filosófica que surgiu nos fins do século XIX, mas que se espraiou por toda a filosofia ianque subsequente, de modo que quase a totalidade dos pensadores estadunidenses passam pelo seu crivo: John Dewey, John Rawls, Richard Rorty e tantos outros pelo menos tangenciaram com a escola, e na Filosofia da Ciência não seria diferente. Seu princípio geral está ligado à utilidade. Pouco importa para o pragmático o que está nas camadas mais subjacentes da realidade se nada trará ao resultado palpável. Ou seja, o pragmático não é muito dado a aspectos metafísicos, mas em como a realidade se dá praticamente. É mais ou menos assim: pouco importam os processos químicos que se dão para que a banana seja doce, mas sim o fato de ela ser doce, entenderam? Nesse sentido, toda a metafísica é secundária para o pragmático, valendo muito mais aquilo que se tem às mãos.

O melhor exemplo que ouvi perdeu sua autoria na minha memória, mas vamos lá assim mesmo. Hoje é consenso que o diamante é uma das mais duras de todas as substâncias. Digamos, no entanto, que se descubra que ele só atinge esse grau de rigidez quando ele é tocado. Enquanto está lá, inerte, é molinho como um travesseiro de plumas. Basta que se toque um dedo ou um instrumento, o estranho efeito se dá e ele se torna referência dos graus de dureza. Pode parecer um fenômeno tremendamente interessante para qualquer pessoa, mas o pragmático raciocina da seguinte forma: se é impossível aferir esta característica, ela simplesmente não importa. Nada vale, é inútil e eu não me preocuparei com ela.

É com esse espírito que surge a Filosofia da Ciência de Laudan. Enquanto outros pensadores estavam preocupados com um progresso da ciência baseado em sua capacidade de se comparar entre si, ou seja, de produzir mecanismos que se permitam fazer métricas, Laudan partia para a noção de que uma teoria precisa, antes de qualquer coisa, solucionar problemas, e quanto mais eles forem, melhor será. De acordo com esse modelo de pensamento, os popperianos trabalham em um campo que beira o idealismo, porque, à semelhança do exemplo do diamante, nunca atinge a verdade. Ainda que a ideia de verossimilhança seja uma grande conquista para o progresso da ciência, é fato de que, uma vez não existindo um efetivo critério para a verdade, é possível que todas as teorias existentes sobre uma determinada matéria estejam erradas. Essa é a indução pessimista, a conclusão de que, se todas as teorias consagradas no passado foram provadas falsas, não há nenhum motivo para se crer que o corpus atual de teorias seja verdadeiro.

A questão de Laudan é que as metodologias têm uma preocupação muito grande com verdades aproximadas, enquanto a ênfase deveria ser na resolução de problemas empíricos. Quer algo mais pragmático que isso? Se você pensar nas teses de Popper, verá que cada ponto falseado de uma teoria é uma anomalia, que, por fim, pode invalidá-la inteira. Laudan não gosta dessa maneira de encarar o progresso científico, porque faz com que teorias muito específicas invalidem grandes feixes de teorias mais gerais. Não é, portanto, uma anomalia que fará com que se descarte toda uma tradição de pesquisas, porque aquilo que está vacante em uma, poderá ser explicado em outra, e esse é o principal ponto de dissonância com as ideias de Lakatos: embora os conceitos de tradição de pesquisas laudanianos e de programas de pesquisas lakatosianos sejam próximos, há uma diferença vital entre ambos: enquanto Lakatos foca na predição, Laudan mira na explicação. Isso significa que Lakatos é mais rigoroso com o aspecto formal, de se ter um caminho estabelecido a ser seguido passo a passo, enquanto Laudan olha lá para o fim da estrada: as respostas que a teoria traz.

A rigidez proposta como os paradigmas de Kuhn ou os programas de pesquisa de Lakatos não permitem evoluções nas teorias científicas, e esse é o principal ponto de Laudan. Os paradigmas kuhnianos preveem uma inflexibilidade das teorias que não são de fato encontradas na história da ciência. Como exemplo, ainda que não sendo a teoria principal acerca da dinâmica celestial, já havia cientistas que propugnavam o sol no centro de seu sistema muito antes de Copérnico derrubar as ideias de Ptolomeu. Com relação a Lakatos, que tem bastante semelhança com a questão das tradições laudanianas, a crítica se relaciona ao fato de que o acúmulo de anomalias em um programa de pesquisas não deveria ser o suficiente para torná-lo inválido.

Sendo assim, como poderemos estabelecer qual linha de pesquisas deveríamos seguir? Qual critério utilizar para investir nossos esforços? Laudan entende que, pragmaticamente, é aquele de se perseguir as que trazem mais respostas sobre um determinado problema. Isso é dado não por teorias únicas, mas por tradições de pesquisas que, ainda que com diversas discrepâncias entre si, possuam pressupostos comuns que lhe são essenciais. Não se tratam de pontos de tangência, mas do eixo em torno do qual gira uma teoria. Citando alguns exemplos, as teorias evolutivas partem do princípio de que existe uma ascendência comum entre as diferentes espécies. Isso pode passar pelo distante persa Al Tusi, pela lei do uso de Lamarck, pela seleção natural darwiniana ou pela teoria sintética da evolução. Se retirado o núcleo da descendência com modificações, nenhuma dessas teorias subsiste. Isso é a substância que amarra um feixe de tradições. E percebam: os mecanismos evolutivos propostos por Darwin e Wallace tinham anomalias que somente foram resolvidas pela teoria sintética, através da compreensão do funcionamento genético. Não se compreendia como era transmitida entre as gerações os caracteres modificados, e somente os genes, que foram conhecidos através de outra tradição de pesquisas, vieram trazer clareza sobre o assunto. Isso demonstra porque anomalias não podem invalidar teorias de plano. O próprio Laudan dá outro exemplo: a tradição da teoria atômica sempre parte da premissa de que a matéria é descontínua. Desde os velhos Leucipo e Demócrito, passando pela partícula indivisível de Dalton, o pudim de passas de Thomson, o modelo planetário de Rutherford e os saltos quânticos de Bohr, todos dependem da ideia de composição entre partículas e vazios. Retirando-se este eixo, todas essas teorias perdem seu sentido. Esse conceito de tradição faz com que diversas teorias sejam enfeixadas em um mesmo grande componente, de modo que elas se fortaleçam mutuamente, pelo motivo de que uma tradição traz mais respostas em seu conjunto do que cada uma das teorias específicas isoladas.

Agora vou trazer um exemplo mais concreto de como funciona a hipótese das tradições de pesquisa em Laudan. É sabido que a psicanálise, pelo ponto de vista da metodologia popperiana, tem sérios problemas, especialmente no quesito falseabilidade. Isso faz com que seus adeptos a tratem como uma espécie de ciência à parte, enquanto seus detratores a tratam como uma pseudociência. Se levarmos em consideração as linhas de raciocínio de Laudan, não teremos problemas de levar em consideração as teorias da psicanálise, primeiro porque constituem uma tradição de pesquisa, depois porque trazem muitas respostas.

Vejamos. Todo o corpus da psicanálise parte da premissa de que a razão não é o todo da psiquê, e que boa parte das nossas ações são inconscientes. Sendo assim, a teoria psicanalítica de Freud, o inconsciente coletivo e os arquétipos de Jung, o inconsciente social de Fromm, o complexo de inferioridade de Adler, o self de Horney, a posição depressiva de Melanie Klein e outras teorias correlatas formam toda uma tradição de pesquisa que se complementam em torno da resposta ao questionamento "como funciona a mente". E, independentemente de serem ou não refutáveis, o fato é que são construídas para trazerem essas respostas. Nesse quesito, fazem-no muito bem. Enquanto outras escolas da psicologia respondem apenas parcialmente os fenômenos psíquicos, a psicanálise tem praticamente respostas para tudo. Isso é correto? No parecer de Laudan, não há problemas. Segundo ele, as anomalias das teorias não podem ser o fator único que vai invalidar toda uma tradição. E aqui seus métodos casam perfeitamente com os programas de Lakatos - haverá um ponto em que as conclusões de cada tradição trará mais perguntas do que respostas, e é aí que ela deixará de ser levada em consideração. Mas enquanto trouxer boas respostas, terá o motor que fará com que a ciência evolua.

Percebem como os caminhos de uma hipótese trazem mais apertos do que aqueles que meu amigo teve para chegar ao palco, ou como faz a água para virar café? Ela precisa ser falseável para Popper, paradigma para Kuhn, programa para Lakatos e tradição para Laudan, além de passar por alguns outros obstáculos que não estão citados aqui. É por essas e por outras que o conhecimento científico deve ser levado mais a sério - porque tem os músculos de quem precisou pular barreiras. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

LAUDAN, Larry. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria do crescimento científico. São Paulo: Unesp, 2011.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 70º tomo: o non causae ut causae (falsa causa)

(Sequências que fazem sentido nem sempre são expressão da verdade)

Olá!

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Eu falo muito sobre café, e tenho até mesmo uma série que fala sobre o tema, mas aqui não teremos o saboroso líquido como foco. Na verdade, eu quero usá-lo apenas como mote para desenvolver assunto de outra série. Vocês entenderão.

Há um confronto de baixo impacto entre os bebedores de café, sintetizado pela discussão “com ou sem açúcar”. Isso se dá de poucos anos para cá, quando uma camada da população resolveu pagar mais caro para ter café de melhor qualidade. Explica-se. O Brasil é o maior produtor mundial deste produto, mas o que havia de melhor sempre seguia para a Gringolândia. Quer dizer… ainda segue, mas o pessoal resolveu tentar entender o que estávamos perdendo, mesmo que com custo pouco convidativo, e desviou alguns pacotes para o mercado interno. E começou-se, com isso, a falar de termos que não se usavam nas padarias, como café especial, pontuação, grão X, grão Y, BSCA, número de moagem. E daí vem um universo novo, que fala sobre os cafés que não bebíamos, seus linguajares e cuidados: blooming, baristas, tempo de escoamento, bouquet, cupping, terroir, retrogosto, notas, notas e mais notas.

Aí vem o embate. Para aqueles que gostam do café tradicional, os novos apreciadores são arrogantes que gostam de “chafé”, um liquidozinho insípido que disfarça o alto custo nas pequenas quantidades. Que os “bons tempos” marcaram sua vida com um aroma forte, presente, que se espalhava pelas casas e pelos comércios, e o cafezinho de madame só é caro e fraco. Para os rivais, os cafezeiros da antiga se assemelham a porcos que pisam sobre pérolas. Extraem uma zurrapa cujo gosto amargo somente é resolvido com colheradas industriais de açúcar ou jatos ciclópicos de adoçante. E daí o que temos é uma espécie de melaço borrento, que já faz arder o estômago só de pensar. Deem um pincel a um macaco e ele produzirá macaquices, ainda que se usem pelos de marta e tintas renomadas, é o parecer dos esnobes.

Quando as coisas chegam neste ponto, a ninguém assiste razão. Eu me coloco no lugar neutro de quem observa da arquibancada, principalmente porque nunca deixei de tomar o café tradicional, eis que a sociabilidade exige, e radicalismos são para fanáticos. Mas, sim, sou entusiasta dos cafés especiais e acho que há uma torrente de argumentos para preferi-lo. A primeira razão vem de uma alegoria dos churrascos: a melhor picanha é indistinguível da mais ordinária pelanca quando ambas estão calcinadas. O mesmo vale para o grão de café. Excessivamente torrados, não se diferenciam uns dos outros, e tudo cai na mesma vala comum do sabor de carbono. Entre os cafés especiais, é possível perceber aquilo que se costuma chamar de "notas" - compostos orgânicos que sugerem certos sabores e que dão colorido único a um grão específico: sabores puxados para frutos, flores, castanhas, especiarias, chocolates, o que torna cada café bebido uma experiência única*. Preparar um café em prensa, infusão ou filtro faz com que se sintam nuances distintas de um mesmo grão. Nada disso se consegue com os cafés tradicionais, cuja variação só se dá na intensidade do amargor, o que fará exigir mais ou menos edulcorantes, seja açúcar ou adoçante. Aliás, neste ponto, vem o muro de Berlim dos bebedores de café, e dele brota um dos principais argumentos para que os apreciadores de café especial pisem na turma tradicional: café é um fruto, que não precisa de açúcar porque, sendo um fruto, já é doce. Aí, não é verdade. Aí, é falácia.

Vamos lá justificar por quê. O que é um fruto? Tecnicamente, é o desenvolvimento do ovário de uma flor, uma estrutura algo semelhante ao que temos em mamíferos, com a diferença de que, nas fêmeas, o ovário permanece, enquanto nas plantas o mesmo acaba virando uma proteção para as sementes, e se vai junto com elas para a terra, de onde brotarão novos exemplares. Aquilo que chamamos de frutos nem sempre os são, na real. Maçãs são um exemplo clássico - o verdadeiro fruto da macieira é aquela parte cascuda próxima das sementes. A parte polpuda que comemos, na verdade, é a expansão do receptáculo da flor, e não do ovário.

Já “fruta” é um nome genérico para aquilo que vemos nas bancas das feiras. Não faz diferença para Dona Maria e seo Zeca se abacaxis são infrutescências, se morangos são acessórios agregados ou se pêssegos são drupas, ou até mesmo se cocos são sementes. Ali, tudo é fruta, uma coisa muito mais coloquial. Entretanto, para o que queremos aqui, vamos tratar frutas e frutos como sinônimos. Isso porque o café, aquele coquinho vermelho ou amarelo, é uma fruta. Vem de uma florzinha branca muito bonita, que deriva para uma pequena esfera que contém uma semente normalmente bipartida. Se você pegar uma dessas madura, verá que realmente é doce, sem nenhuma remissão ao sabor ao qual estamos acostumados.

Dito tudo isso, vamos ponderar. O fato de ser um fruto não faz com que o tal se torne automaticamente doce. Um limão já é exemplo bastante - não há que se falar em doçura neste caso. Jiló é fruto, e é amargo; berinjela é fruto, e seu teor de doçura é baixo. Portanto, o primeiro aspecto desta conversa já fica vencido: ser fruto não é significado de dulçor.

Mas ainda podemos parecer perniciosos, alegando que o café é, sim, uma fruta doce, desde que esteja madura e etc. Sim, meu amigo, é verdade. Há até o costume de se preparar chás com sua cáscara, que, aliás, são bem gostosos. Só que o que é torrado e moído não é a polpa do fruto, a parte doce, mas a semente, e esta, se formos prosseguir com a analogia, costuma puxar para o amargo, vide caroços de maçã, laranja ou limão.

Então de onde vem o alegado dulçor do café? Ocorre que o sabor da semente crua do café é bastante adstringente, com aquela sensação de apertoso da cica do caju ou da banana verde. Isso não significa, entretanto, que não haja nenhum açúcar lá. Quando se faz o processo da torra, entra em ação um fenômeno químico conhecido como “reação de Maillard”. Esta foi descrita pelo químico francês Louis Camille Maillard, e se trata, muito superficialmente, do escurecimento de alimentos contendo açúcares e proteínas submetidos a uma elevação de temperatura. Deriva de complexas interações químicas que não competem ser esmiuçadas aqui, bastando que se saiba que produz aquela casquinha amarronzada do pão já assado, ou da superfície de um belo bife, ou ainda do doce de leite, para citar três exemplos. O grão de café também sofre a reação de Maillard, e, aplicada até uma certa faixa de temperatura, faz a condensação dos açúcares existentes no grão, e é daí que vem o sabor adocicado da bebida, o que a permite ser ingerida sem a adição de açúcar ou adoçantes.

Só que há um limite para que a reação de Maillard deixe de funcionar. Após uma determinada temperatura, os açúcares despertados pela reação passam por uma pirólise que resulta na separação de um composto carbônico, que significa, em nome mais acessível, uma carbonização. Em uma tradução para lá de livre, isso é “transformar em carvão”. Quem já foi criança e colocou um pedaço de carvão na boca sabe o quanto seu gosto é desagradável. Os açúcares carbonizados são intensamente amargos, e é exatamente isso que acontece com o pão que vira torrão, com a carne que vira sola, o doce de leite que vira bolacha e com o café de torra escura. Ele não é amargo por uma natureza do grão, mas porque foi torrado em excesso, e carbonizado. Junte-se a isso o fato de que a cafeína é, de fato, um composto amargo, mas uma torra feita no ponto certo supera esse “defeito”. Portanto, o ponto certo da torra é essencial para extrair de um café todo o seu potencial; nem tão claro que não interrompa sua adstringência, nem tão escuro que faça destacar o amargor. 

Os cafés ditos tradicionais são torrados em um ponto que já se atingiu a carbonização, e isso tem um motivo: qualquer café pode entrar lá, porque a carbonização é democrática, fazendo tudo ficar amargo, desde o grão nobre, até as patifarias das palhas e gravetos. O fato é que, no sabor, pouca diferença faz. Passamos anos e mais anos nos conformando com isso, como se fosse uma verdade absoluta, um destino inevitável. Isso tudo já são motivos suficientes para ao menos experimentarmos o que há no café que está nas xícaras dos estrangeiros, mas, voltando ao tema em si, não nos autoriza a usar argumentos errôneos. A historinha de que o café é doce porque é fruto, já devidamente desmistificada, é uma falácia de garboso nome em latim, non causae ut causae, que significa “tomar como causa o que não é causa”. Mais facilmente, é a falácia da falsa causa.

A falsa causa é uma falácia informal onde é atribuída uma origem errônea para um fenômeno qualquer. É super comum de acontecer e tem a ver com aquela velha necessidade de explicar tudo, ou de se levar vantagem em um discurso. No primeiro caso, pode ser feita sem malícia, apenas pela força das intenções. Já no segundo, a atribuição da falsa causa torna-se uma técnica para direcionar o debate de acordo com o interesse da parte que a profere.

É muito semelhante à falácia da correlação de coincidência, com a vital diferença de que o fator temporal não é significativo na primeira. Reputa-se uma fruta como doce independentemente de que fenômeno acontece primeiro, enquanto na correlação é necessário que exista uma sequência.

Os exemplos são inúmeros, porque se trata de falácia comum, como se pode perceber de sua dinâmica, que é muito maleável. Vou dar mais uma história, para ficar bem claro. Cemitérios eram locais tão sagrados quanto as igrejas, pelo menos até a década de 80, e profanar o corpo de um morto equivalia a cometer uma heresia do tipo blasfêmia medieval. Acontece que, de lá para cá, os cemitérios viraram locais perigosos, propícios a roubos não só dos mortos, mas dos vivos também. Já motivos para isso. São lugares ermos, principalmente aqueles de capelinhas, com muitos objetos de algum valor (alguns de bastante). Os mortos podem carregar joias, peças de estimação que custam uns bons cobres, alianças, e até dentes de ouro, coisa que só os mais velhos ainda têm. Fiscalizar toda a área de grandes necrópoles é uma questão complicada, porque a área é extensa e os esconderijos são muitos. Então o negócio de furto aos defuntos tem suas vantagens, adicionando-se outros negócios paralelos que foram se juntando, como o tráfico de drogas, novamente favorecido pela estrutura própria de um cemitério. Além disso, virou também uma moradia semelhante à que temos nas ruas, com a vantagem de se colocar em proteção contra intempéries. O principal ingrediente é o sangue frio de se viver à noite no campo dos mortos e o estômago de invadir suas covas.

Bem, os motivos. Por que os cemitérios chegaram nesse estado de coisas? Em toda reportagem que leio/ouço/assisto, há uma variedade de causas, e sempre tem uma que aponta para a "falta de Deus no coração". Como as pessoas não tem mais, passam a desrespeitar tudo, até os mortos.

Não consegui achar nenhuma estatística que fale da religiosidade dos meliantes de cemitérios, então dei uma comparada entre os religiosos nos presídios e na população em geral, e a discrepância não é tão destacada entre ambas a ponto de justificar a hipótese. A quantidade de ocorrência zero até a década de 80 para os boletins quase diários de hoje em dia não pode ser explicada por essa causa. No caso, a queda no nível de religiosidade das pessoas seria um componente ínfimo de um conjunto complexo de causas, que inclui impunidade, insensibilidade à miséria, queda de investimentos públicos, aumento global da criminalidade, deficiência no sistema de moradias e um pacote completo de outras coisas mais. Sempre que se tenta dar uma causa única a problemas complexos, recair-se-á na falácia da falsa causa. Por isso é bom ter cuidado com respostas fáceis. Isso inclui os sabores complexos do café especial. Bons ventos a todos!

Recomendações de cafés!

Vou por um caminho alternativo hoje, sem nenhuma verba de patrocínio (que seriam bem vindas). Vou indicar marcas de café que eu adquiro no meu dia-a-dia, e que podem ser compradas pela internet. Das duas primeiras, eu inclusive tenho assinatura, que consiste no envio mensal já programado de determinada quantidade de grãos. Todas elas eu assino embaixo:

Unique: https://uniquecafes.com.br/clube-u/

Crio: https://www.crio.cafe/assinatura-crio

Veroo: https://veroo.com.br/#assine

Kawá/Jotacê: https://www.cafekawa.com.br/cadastro

Casa 134 cafés: https://www.casa134cafes.com.br/nossos-cafezoes

Seleção do Mário: https://cafeselecaodomario.com.br/collections/all

Netcafés: https://loja.netcafes.com.br/

Aceito sugestões nos comentários.

* Não confundir notas com sabores. Notas são muito sutis, que não provém de nenhuma adição ao café, e não é possível dizer que há um gosto de maracujá, por exemplo, mas algumas características que lembram maracujá, como acidez cítrica e presente, além de um corpo levemente espesso. Existe no mercado cafés saborizados, e aí sim, temos adições de elementos para dar algum sabor. São bem comuns a associação com essência de baunilha ou uísque.  

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Sobre a torre de marfim e porque ela deveria se dar a entender

(A torre de marfim está aí para ser decifrada, e para se dar a compreender) 

Como são graciosos teus pés nas tuas sandálias, filha de príncipe. A curva de teus quadris assemelha-se a um colar, obra de mãos de artistas. Teu umbigo é uma taça redonda, cheio de vinho perfumado. Teu corpo é um monte de trigo cercado de lírios. Teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela. Teu pescoço é uma torre de marfim. Teus olhos são a fonte de Hesebon junto à porta de Bat-Rabin…

Olá!

O trechinho acima, com o qual abro mais este texto, é um excerto de um dos livros bíblicos de mais difícil encaixe no contexto teológico que domina toda a sua escrita, embora haja uma multiplicidade reconhecida de ingredientes em sua composição, de cunho profético, histórico, sapiencial, social e político. O próprio trechinho nos fala em fonte de Hesebon e porta de Bat-Rabin, referências geográficas sobre o Oriente Médio dos tempos da era do Bronze.

São os versículos que vão de 1 a 4 do capítulo 7 do Cântico dos Cânticos, livro poético do antigo testamento bíblico. As descrições do Cântico dos Cânticos, todas cheias de referências fortemente sexualizadas (embora os religiosos mais reacionários neguem e reneguem), são estranhas dentre as exigências de pureza irrestrita no universo bíblico. Fosse a simples composição poética de um amante apaixonado, não teríamos a extravagância necessária para fornecer explicações. Nós até poderíamos tratar do tema, mas vai ficar para outro momento. Agora, quero chamar atenção para um designativo perdido no meio de tantos elogios dados a tão formosa guria: torre de marfim.

Este é um termo que está em voga hoje em dia, mas por motivos desvinculados da religião. Entretanto, em seu nascedouro, ainda antes de Cristo, nota-se que seu uso era elogioso e consagrado, já que a mocinha do texto do cântico certamente aplicaria uma bolacha no mandrião se o aplique não fosse encomiástico, laudatório, panegírico, benquerente, lisonjeiro, apologético, elegíaco. Uma torre já era um símbolo, então, de um lugar fortificado, apartado do mundo comum. Feita de material raro, conseguido aos poucos à custa do sacrifício de inúmeros elefantes, de um branco perolado e bastante resistente, é um símbolo de pureza e resiliência, com sua dignidade guardada pelo material precioso. Ser considerada uma torre de marfim representava o ideal da castidade tão almejado em tempos pretéritos. Esta imagem foi transposta pelos católicos para uma das representações de Nossa Senhora, dentre tantas outras na coleção de designativos de suas ladainhas, identificada com a amada do Cântico como fortaleza da igreja.

Mas se colocado de lado o aspecto religioso, modifica-se a ideia da torre de marfim, embora seja mantida a concepção de fortaleza e isolamento. Com o passar do tempo, começa -se a construir a alegoria de um lugar que está desprendido do mundo, alijado dos interesses palpáveis em nome de uma pretensa esfera própria. Lembram-se da expressão "sexo dos anjos"? Ela vem de uma polêmica medieval referente à existência ou não de uma sexualidade das entidades espirituais. Isso tudo acontecia enquanto o pau torava feio, no linguajar dos dias de hoje. Era o momento em que os turcos invadiam Constantinopla, pondo fim definitivo ao Império Romano, e os teólogos se mantinham reunidos discutindo se podia-se falar em anjos masculinos ou femininos. Ou seja, uma total desvinculação com a realidade circunstante. Embora essas reuniões não se dessem em torres de marfim, elas dão a exata ideia do que ela representa nos dias de hoje. Passa a ser o local onde se busca um exílio confortável, reservado para aqueles que detém uma espécie de chave dos portões do conhecimento, que somente aos seus portadores é dado o direito de adentrá-lo. Um lugar afastado, desvinculado dos acontecimentos mundanos e colocado em privilégio, ainda que isso não signifique fama e fortuna, necessariamente, mas um lugar especial e para poucos, uma espécie de elite bastante em si mesma, cuja palavra tanto é autoridade quanto autoritarismo. Isso é altamente aderente à academia científica. Para o povo, os cientistas se recolhem em um ambiente altamente hermético, cujo método e palavrório é incompreensível, de modo a impossibilitar a quem é de fora ter a menor noção do que se faz e do que se diz lá dentro. Tanto é verdade que o estereótipo do cientista inclui uma imagem esquisitona, de malucos que vivem encerrados em laboratórios e que escrevem poemas com símbolos matemáticos, divertem-se com cálculos e criam monstrinhos em balões de ensaio. Nada mais longe de um cientista real, muitas vezes envoltos em burocracias e busca de verbas, tendo que administrar egos de concorrentes e subordinados, mas isso já nos dá uma dimensão imagética, que, na verdade, não foi construída do nada.


É certo que o âmbito científico tem credibilidade, mesmo que acompanhado da incômoda pecha, haja vista a quantidade de atividades que tentam ter seu respaldo sem o ser, mas o distanciamento não ajuda em nada. Às vezes, passa a impressão de que há uma certa semelhança com os políticos em geral. Seja de direita ou de esquerda, há uma dependência em cima de um núcleo duro que chamamos, no Brasil, de Centrão. Esse é um grupo de políticos banhado de pragmatismo, e seus componentes estão essencialmente preocupados em manter-se como tutores do governante de plantão. Então a sensação final é a de que não adianta votar em Lula ou Bolsonaro, porque sempre haverá uma massa a ser satisfeita, que tem nas mãos os instrumentos para manter o estado de coisas, independente da tendência política que se busca instaurar. É uma forma de afastamento com o real interesse popular, que sempre se sente afastado da classe política. É uma comparação cruel e meio forçada, mas a falta de interlocução é o ponto de intersecção entre a torre de marfim acadêmica e a camarilha política, e um impulsionador da falta de se sentir representado.

A diferença maior da comparação que acabo de fazer está na linguagem. O que está escrito nos artigos é de suma importância, mas não pode ser compreendido pela população em geral, especialmente em um país de baixa escolaridade. Sendo assim, a recomendação para a sua leitura, que deveria ser o melhor a ser feito, é inócua. Diante daquele monte de números e falar hermético, sentimo-nos desguarnecidos. Eu mesmo confesso que já fiz por todo lado para entender um exercício mental como o gato de Schrödinger, mas não consigo alcançá-lo como devia. Isso não é burrice ou falta de instrução, é só o reconhecimento de que as coisas da ciência não são simples de compreender. Por isso, é plenamente louvável o aconselhamento por pesquisas em artigos, mas é preciso ponderar o quanto eles são compreensíveis.

O que os professores fazem quando um aluno não entende a lição? Dá um passo atrás e tenta explicar de novo, fazer paralelos, dar exemplos. Essa é a grande deficiência da academia. Justifica-se: se a cada pesquisa um cientista precisar trocar em miúdos para os mais diferentes tamanhos de compreensão, ele não fará outra coisa na vida, e seu próprio trabalho não andará. Mas é preciso um mínimo de comunicação entre as pontas.

Eu exemplifico com o que acontece no consultório dos médicos. O ortopedista olha para a chapa das minhas costas e diz que tenho uma protrusão discal. Eu olho para ele com cara de susto, quase perguntando quanto tempo me resta de vida. Antevendo tal cataclisma, ele pega o simulacro de coluna vertebral que tem em sua mesa e me explica, em rápidas palavras, que um dos discos entre minhas vértebras está fora do seu lugar correto, o que faz pressionar as terminações nervosas e causa dor. Uma explicação tão rápida já desfaz o abismo que existe entre o termo técnico e o conhecimento insipiente.

Ocorre que é difícil alguém fazer esse trabalho, porque o contato não é tão próximo quanto o que temos entre médico e paciente. Há uma noção melhor com o que acontece aos nossos corpos, por motivos simples: convivemos com eles todos os dias, e temos interesse por nossas saúdes. Mas a torre de marfim, aquela que detém o conhecimento, é autenticamente longínqua, e mesmo o tal médico já é um aplicador prático daquilo que se pensa e se pesquisa nas universidades. E há um problema adicional: ele atua no campo individual, no interesse que surge em uma pessoa específica que passa por um problema bem determinado. Não podemos falar em público amplo, nesse caso, como é o caso dos alunos de uma escola, ou as pessoas que tentam reagir a alguém que diz que as vacinas fazem mal. Explicar o processo de imunização é muito mais complicado do que dizer que são injetados milhares de chips na corrente sanguínea. A explicação é estapafúrdia? Sim, mas É uma explicação, e, na ausência de coisa melhor, adotada como boa e preciosa. E vai grassando pelos campos e pelas cidades. Isso precisa ser combatido, porque queremos explicações.

Mas por que essa necessidade peremptória de uma resposta para tudo? É uma boa pergunta, e que já partimos com uma má notícia: a ciência não dá resposta para tudo. Aliás, no limite, não dá resposta para nada, porque, como já expliquei neste texto, não faz parte do escopo ou do método dar respostas definitivas e inquestionáveis, o que é irritante para um ser cujas certezas melhoram suas chances de sobrevivência. O homem sempre quis saber como funcionam as coisas por uma questão de proteção. Saber se uma cobra é ou não venenosa sempre fez a diferença. Isso nos dá a nossa eterna característica da curiosidade, porque mesmo que um determinado conhecimento não sirva para agora, poderá servir depois.

O desenrolar da aventura humana fez com que houvesse confrontos entre versões. Por mais que as experiências pessoais e os relatos alheios pudessem fazer sentido muitas vezes, o fato é que as melhores versões sempre foram aquelas que derivavam de registros, de acúmulos empíricos e de correlações coincidentes. Essa é a base do que se convencionou chamar de Ciência. Curiosidade, portanto, não é só uma marca dos fofoqueiros, mas da espécie como um todo. Mas não se satisfaz uma curiosidade com palavras que não podem ser entendidas, e aqui nós temos o grande problema da torre de marfim. Embora não possa ser algo tão apressadamente generalizado, o fato é que se criou essa espécie de elite do conhecimento que torna as coisas tão difíceis. É preciso que exista uma ponte, mas ela é de mão única: precisa partir dos moradores da torre, porque do lado contrário estamos nós, população que não é burra, mas que não entende o maremoto de termos e de raciocínios sofisticados. Nós temos nossas ocupações: somos programadores, sapateiros, funcionários públicos, costureiros, metalúrgicos, advogados, cozinheiros e tantas outras ocupações que podem ser desenvolvidas com maestria, mas que tem seu linguajar próprio com poucos pontos de contato com a realidade dos laboratórios e observatórios, e, com isso, temos dificuldades em compreender fenômenos que fogem ao puro empirismo.

Os divulgadores científicos são imprescindíveis nessa tarefa, só que temos duas grandes forças em oposição ao trabalho bem-feito - os teóricos da conspiração e os pseudocientistas. Uns trabalham na linha de que a torre de marfim existe para obter vantagens para si, sem partilhar com mais ninguém. Essas vantagens podem ser institucionais - a indústria farmacêutica não apresenta medicamentos que curem o câncer porque este é lucrativo - ou governamentais - a tal história do chip. Já os outros querem porque querem ser inseridos na torre, mas não o são por não seguirem os critérios efetivamente científicos. Dizem, então, as mesmas coisas que os conspiracionistas: quem estipula o que é científico o faz na força de interesses. O grande problema está exatamente em fazer as devidas distinções, e isso é verdadeiramente difícil. Por esta razão, é preciso duas coisas dos divulgadores: persistência e a consciência de uma missão. Da primeira, porque devem saber que vão tomar porrada mesmo, à vera, e demora até pegar credibilidade. Da segunda, uma questão quase missionária, de dichavar as principais confusões que se fazem, de demonstrar onde as coisas estão erradas, de ter a sensibilidade para detectar quais assuntos podem ser os mais relevantes e os que mais podem ser mistificados. É um trabalho que mistura Hércules e formiga, mas é aquela velha história da entropia… fazer o suco de manga é fácil, se comparado a lavar a camiseta suja por ele.

É preciso lembrar ainda que a pesquisa científica no Brasil é praticamente inteira feita nas universidades públicas. Com isso, a participação governamental é indissociável dos financiamentos de pesquisa, e uma ideia seria fazer algum tipo de regulamentação para a liberação de verbas com a inclusão de um trabalho de tradução ao grande público sobre o que está escrito lá dentro. Não sei, pode ser que desse certo.

Mas completando. Se falamos de uma torre de marfim científica, poderíamos falar de uma torre de marfim filosófica? É claro que sim, e o interesse em divulgadores como Leandro Karnal, Clóvis de Barros e Mário Cortella explicam que existe interesse popular em filosofia. O grande problema é que progressivamente eles vão se rendendo a assuntos monotemáticos, muito ligados à ética e com forte sabor de autoajuda, e perdendo a chance de soltar aquilo que está aprisionado na torre. Poderiam aproveitar do gabarito e da credibilidade que conquistaram para conseguir aprofundar não somente sobre assuntos da ética, mas do que é a própria ética, suas diferenças e semelhanças com a moral e deixar que seus audientes reflitam por si mesmos sobre o que é a vida que vale a pena. Falar em frônesis, em ataraxia, em deontologia, em eidos, em solipsismo, em noema, em aporia é afastar a filosofia do povo, se estes termos forem usados indistintamente, com a suposição de que quem os ouve tem que se coçar para entender do que se está falando. Mas eles precisam operar com a lógica de mercado, já que vendem a bons valores suas palestras, e uma empresa que os contrate não está preocupada com designadores rígidos ou mônadas, sejamos francos.

Caras como Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari e outros não só tratam de temas complicados, o que por si só já é um desafio, mas escrevem de forma complicada, o que piora muito as coisas. Eu lembro bem quando comecei a ler Kant. Pensei: que tradução ruim! Melhor caçar outra. Vejo outra e penso: ruim igual. E aí algum professor me fala: não é a tradução que é ruim, é o texto que é mal escrito. Não no sentido de usar alemão de quinta, mas de ser muito enrolado, mesmo. São ideias já muito difíceis por si só; se não são apoiadas por uma expressão muito clara, então lascou. Vira coisa de iniciados. E aí eu fico pensando: se eu, que fiquei todo o tempo que fiquei na faculdade, e já possuo um espaço de filosofia há doze anos, tenho tremenda dificuldade em entender algumas teses e raciocínios, que fará com quem nunca tangenciou com o tema nem de perto?

Eu tento, dentro das limitações que eu tenho, traduzir aquilo que consigo para vocês, meus rarefeitos leitores, mas eu não estou dentro da academia. Alguns divulgadores fazem, e bem, esse trabalho mais massivamente, mas a sensação que temos é sempre uma só: quem os busca está mais interessado em passar no ENEM do que aprender novidades das discussões da ágora filosófica. O que está sendo discutido neste momento em termos de metafísica, de epistemologia, de estética, até mesmo de ética, algo um pouco mais próximo do quotidiano das pessoas. A uma primeira vista, parece que é eternamente a mesma coisa, o que não é verdade. As ideias filosóficas provocam teses científicas, e estas, uma vez desenvolvidas, retornam novamente à filosofia, que vai começar a tatear novamente a realidade, para desafiá-la e repropô-la, fazendo com que a própria existência ganhe novas valorações. Se o mundo é hoje um lugar um tantinho melhor para viver, foi porque um dia algum filósofo se perguntou sobre o que era um mundo melhor. Mais ainda: perguntou o que era mundo e o que era melhor. Por isso, não podemos nos colocar nos confortáveis assentos da torre de marfim para um dia mais tarde ficar reclamando que as pessoas acham que a terra é redonda. Não é verdade?

Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Comecei a acompanhar este canal a pouco tempo. Apesar do uso extensivo de click baits, seu conteúdo me parece bom e vale a pena ser acompanhado para se atualizar sobre as novidades no mundo científico.

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