Nossos caros socráticos ainda vivem, e o fazem plenamente
nas aulas de Filosofia do ensino médio. Digo isso constatando o que vi em meu
estágio e nas dúvidas que os alunos desta fase costumam ter, em especial minha
costumeira afilhada Renata, cliente preferencial deste espaço. Há coisa de uns
dois meses atrás, ela me trouxe dois questionamentos sobre nosso caríssimo
estagirita Aristóteles, no que diz respeito à sua filosofia política e ao seu
fundamental estudo sobre o Ser. Lembro que fiz um injusto comentário: por que
os professores ainda insistem em se debater tanto em um filósofo ultrapassado?
Bem, tenho direito a ter meus momentos de fraqueza, ser humano que sou, mas o
fato é que minha pergunta é de uma besteira sem tamanho. É absolutamente
essencial conhecer (e bem) o pensamento do dono do Liceu, bem como de seus
ilustres conterrâneos Sócrates e Platão. Sem eles, não há como compreender o
nascimento do pensamento ocidental.
Talvez meu amargor tenha se baseado em uma concordância com
o que dizia Kant, ou com uma tendência em querer procurar novos caminhos para a
Filosofia, mas vou tentar trocar um pouco em miúdos para ser mais bem
compreendido, e logo em seguida fazer o devido voto de desagravo aos nossos
heróis do Peloponeso.
Aristóteles tratou da questão do Ser em livros que foram
denominados “Metafísica”, ou, numa tradução meio cambaia, “Os livros que estão
além da física”. Isso porque, ao compilar as obras aristotélicas, um cidadão
chamado Andrônico de Rhodes colocou os livros em questão logo em seguida
àqueles que tratavam de questões cosmológicas e físicas, daí o nome. Mas se
pensarmos no sentido de Metafísica como o estudo das coisas que estão além da
visão humana, perceberemos que o termo é também apropriado, talvez até mais. Resumidamente,
Aristóteles queria chegar à essência de todas as coisas, descrevendo seus
aspectos mais abrangentes e universais, descobrir o que estava por trás do que
os sentidos permitiam alcançar. Fazia suas elucubrações baseado em rigorosos
procedimentos mentais, e chegou a conclusões brilhantes, como os conceitos de
ato e potência, de substância, das causas, das categorias, do motor imóvel,
etc, pá e bola.
Acontece que, a partir daí, a Metafísica tornou-se cada vez
mais especulativa e distante do mundo observável. Discutia-se por décadas sobre
o sexo dos anjos e esquecia-se de olhar para o mundo, gerando intermináveis
punhetações intelectivas. Até que o nefando (para os metafísicos, bem
entendido) Immanuel Kant resolveu botar ponto final na frase. Ele sacou que de
nada adiantava ficar dando voltas e mais voltas em torno de temas ligados à
essência ou ao Ser-em-si (que ele chamou de noumeno)
se tudo o que temos ao nosso dispor são fenômenos, ou seja, manifestações reais
e palpáveis e observáveis e mensuráveis e experienciáveis. Esse era o sono que
ele chamou de dogmático, e do qual foi desperto pelo empirista e quase-cético
David Hume. Se o que temos é aquilo que existe no tempo e no espaço, não
adianta tentar fugir deste espectro. Dessa forma, a Metafísica toma uma porrada
que a deixa tonta, pelo menos da forma como vinha sendo desenvolvida até
aqueles tempos.
Mas há uma ocorrência importante de se destacar. Com todo esse caráter de inobservabilidade que lhe foi atribuída, a Metafísica, a partir de sua pressuposta
destruição, ganhou um estatuto indesejável: é algo que mui se assemelha à Religião.
Nada disso.
Esta confusão se dá porque tanto Metafísica quanto Religião
tratam de temáticas intangíveis, inalcançáveis pelo empirismo tão caro às Ciências
em geral. Afinal, sem a experimentação não há Ciência. No entanto, a Metafísica
está na raiz de todo o conhecimento, porque antes de ser algo concrescível, a Ciência
foi teoria, ou seja, percorreu lépida e faceira os neurônios dos egrégios
cientistas.
Ora, direis, mas as teorias científicas se baseiam em
experiências anteriores e em conhecimento acumulado. Onde entra a Metafísica
nesse caso? Bem, direi, no passo adiante, na abstração que o pesquisador
necessita para fazer a suposição seguinte. Essas “viajadas” ainda podem ser
observadas nas conjecturas modernas, da mesma forma que já ocorria nas priscas
eras da Filosofia pré-socrática, que nada mais era do que uma física,
preocupada que era em decifrar os constituintes fundamentais do universo.
Quando a Ciência busca o mais ínfimo, o mais distante ou o mais antigo, nada
mais faz do que adotar os mesmos princípios, ou seja, alcançar o que vai para
além da phisys. Vou colocar um
exemplinho na pedra para podermos continuar.
Uma das teorias mais difundidas na cosmologia contemporânea
para tentar dar explicações e consequências aos buracos negros chama-se “buraco
de minhoca”. Vamos tentar entender como funcionaria um bicho desses.
As estrelas são como os seres vivos: nascem, passam por
inúmeras transformações e morrem. Basicamente, elas duram enquanto houver
combustível para queimar em seu interior. Não vou aqui descrever em minudentes
pormenores o intrincado processo que leva ao fim o ciclo de vida de uma dessas,
mas a astronomia já sabe que este depende da massa do astro em questão. Se a
estrela for pequena, queimará todo o combustível em seu interior, até se apagar
lentamente. A força da gravidade compactará sua massa até o limite de
compressibilidade dos átomos, e teremos um objeto sideral semelhante a um
planeta, sem luz própria, e è finito.
Sendo a estrela original um pouco maior, a gravidade faz com quem os átomos
fiquem tão comprimidos que os elétrons não conseguem mais se manter em suas
órbitas, e o que temos é um pesadíssimo porém estável caldo chamado “gás de
Fermi”. Uma colherinha de açúcar deste composto contém toda a massa do Pão de
Açúcar, por exemplo. Se a massa da estrela for maior ainda, o limite de
compressão será novamente rompido, fazendo com que prótons e elétrons se fundam
e anulem suas cargas elétricas, formando o que é conhecido por Estrela de
Nêutrons, ainda mais pesada, mas novamente estável. No caso das estrelas
gigantes, este último limite de compressibilidade é novamente transposto,
gerando um dos mais intrigantes objetos do universo, o buraco negro. Dele, nada
pode sair, nem mesmo a luz. Ele é observável meramente pelo seu horizonte de
eventos, uma região onde é possível captar desvios de radiação e a aceleração dos astros
que são por ele literalmente engolidos. Toda a física perde o sentido no
interior destes impressionantes portentos cósmicos, e tudo o que pode ser
pensado de sua mecânica e funcionamento são especulações.
O que será um buraco negro? Um portal de passagem? Talvez. Muito
se diz que, caso o universo seja curvo, os buracos negros podem constituir em
túneis de atravessamento de um ponto do espaço para outro, da mesma forma que ocorre
quando um bichinho de maçã perfura a fruta e a atravessa em linha reta, sem a
necessidade de percorrer toda a sua parte externa. A Ciência especula que não
seria de estranhar se estes buracos fizessem com que o contribuinte voltasse ao
passado ou avançasse ao futuro ao ser tolhido por um desses estranhos objetos.
Não é muito louco?Outro exemplo bacana de citar é a Teoria do Caos, cujo aforismo mais célebre é aquele que diz que o bater das asas de uma borboleta em Tóquio pode causar um furacão em Nova Iorque. Na verdade, esta é uma metáfora para ilustrar a dificuldade que existe para se estabelecer um sistema que objetive fazer previsões, como é o caso da meteorologia. É que os estudiosos somente conseguem precisão em sistemas lineares e sob condições ideais. O diabo é que a realidade é um todo muito mais complexo, com fatores de influência inimaginável. Vejam só: os cientistas podem medir a temperatura do sol incidindo por uma vasta porém metrificável área do oceano, calculando o tempo necessário para a formação de nuvens. Podem medir a pressão do ar e a influência das marés, para prever a espessura destas nuvens, bem como podem calcular no que a curvatura do planeta e a densidade e umidade atmosférica serão obstáculos ou benesses para a precipitação vindoura. Só não podem calcular ou prever o que o maroto ruflar de asas de uma diáfana borboleta pode causar de torvelinhos em todo esse majestoso ciclo. O que essa teoria nos diz não é somente que é absolutamente impossível prever todas as variáveis que influenciam os diferentes eventos, mas que talvez nem conheçamos todas. Se, no caso de nossa borboleta danadinha, todos os nossos movimentos são passíveis de previsibilidade, temos uma estrutura determinista da realidade. Se, por outro lado, temos a livre escolha do inseto em questão, nada é possível de vislumbrar. E essa é uma questão da Metafísica.
E aí podemos voltar ao problema que coloquei no começo deste
texto. Quando falamos em Metafísica nos dias de hoje, logo nos vem à mente a
figura de um profeta errando pelo deserto, de um guru indiano sentado em uma
cama de pregos, de um monge que ora voltado para o sol no cume de uma montanha,
de uma entidade toda vestida de branco e de cujas mãos emana uma luminosidade
que varia de um diáfano púrpura a um etéreo azul. Isso porque se vincula
automaticamente o sobrenatural à esfera do esotérico, o que não é verdade, mas
que também não é necessariamente falso, já que o fato de estar se tratando de Religião
não é excludente do campo da Filosofia.
Se a especulação se basear em princípios racionais, tentando
usar a lógica para fundear suas teorias, teremos Metafísica; se for baseada em
princípios esotéricos, utilizando-se de explicações místicas, o produto é Religião.
Nada contra uma nem contra a outra, absolutamente nada; só que “uma coisa é uma
coisa e outra coisa é outra coisa”, na sábia assertiva do poeta. A Metafísica
lança mão das leis gerais do raciocínio lógico, como a universalidade e a
necessidade; a religiosidade prescinde delas. O que não é justo, nem para uma,
nem para a outra, é jogá-las na mesma panela. Isso porque, se ao equiparar a
Metafísica à Religião comete-se o erro de considerá-la imprecisa e desatrelada
do racional, ao comparar-se a Religião à Metafísica arranca-se-lhe toda a carga
de subjetividade inerente à ela, limitando-a drasticamente. Mas eu também disse
que o simples fato de um argumento estar inserido na esfera da Teologia não o
remove da Filosofia. Quer ver só?
Santo Agostinho foi um dos mais famosos filósofos da
religião cristã, ao fazer uma releitura de Platão sob o olhar teológico. Já
falei algo sobre ele neste texto. Observem a maneira (simplificada) de
como ele desenvolve um raciocínio sobre relação entre a presença do mal no
mundo e a percepção de que Deus é bom, conhecido como Teodicéia. O bom velhinho
parte da premissa de que o homem é um ser racional, capaz de se defrontar com
problemas e propor soluções para eles. Se o homem é capaz de fazer essas
ilações, tem a liberdade de fazer escolhas, porque pode deduzir o que é bom e o
que é ruim, o que é belo e o que é feio, o que é justo e o que é injusto. Tendo
essa liberdade de escolha, tem também o homem a liberdade de ação, o que
configura plenamente o livre-arbítrio. Ao ser titular desta característica, é
possível ao homem praticar o bem ou o mal. Dessa forma, Santo Agostinho conclui
que o mal não parte de Deus, mas do próprio homem, e não poderia ser diferente
em um ser dotado de livre-arbítrio. Perceba-se que o desenvolvimento desta tese
se faz no âmbito da Teologia, pois descreve o modo como transcendência (Deus) e
imanência (ser humano) são colocadas à frente de uma questão moral fundamental,
mas que não deixa de ser filosófica, porque não recorre a definições dogmáticas
(do tipo “está escrito na Bíblia que Deus não é responsável pelo mal no mundo”),
mas a raciocínios lógicos bem construídos, com características de
universalidade e necessidade. Neste sentido, metafísica e religião podem
conviver confortavelmente, porque estão uma a serviço da outra.
Titulei este texto prometendo apontar novos caminhos para a Metafísica,
mas no final das contas não fiz isso, porque entendi que é desnecessário. Bergson
já o fez em seu estudo sobre o tempo (leia aqui). Scheler também, ao
tentar situar o homem no cosmos (veja este texto), assim como Heidegger,
que nos manda voltar os olhos para nós mesmos se quisermos encontrar o Ser, o
que ele chama de Dasein (deste, eu
ainda vou falar). Onde houver a necessidade de se transcender o visível para
abrir um caminho novo, ali ela estará.
Recomendações de leitura:
Existem inúmeros manuais de Filosofia que podem trazer boa
base para se compreender um dos mais importantes tópicos filosóficos, mas o
ideal é beber diretamente das fontes. Portanto, menciono as obras fundamentais
dos dois pensadores que mencionei neste texto.
ARISTÓTELES. Metafísica.
São Paulo: Edipro, 2012.
KANT, Immanuel. Crítica
da razão pura. São Paulo: Vozes, 2012.
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