(Sócrates e Jesus têm muitas semelhanças em suas trajetórias. Mas há uma questão que particularmente me fascina)
Olá!
O brasileiro é um eclético por natureza. Dois são os
motivos: a intensa mescla de imigrantes, que produziu um evidente caldeirão
cultural, e a pobreza crônica, que faz com que nos viremos com o que temos, sem
muita chance de seleção. Mas esses são temas que custam dissertações muito
extensas, e não é sobre isso que eu quero escrever hoje. A questão é que minha
filha mais nova mora de frente para um centro espírita, que andou bem quietinho
pelos tempos de pandemia, mas que vem voltando à atividade normal aos poucos.
Ao contrário das modernas igrejas, com suas paredes sonoras que dão inveja a
qualquer banda de heavy metal, aqui temos bastante tranquilidade, e somente a
quantidade maior de carros na pacata rua faz antever que há algum evento em
andamento.
Isso me faz lembrar de minha velha e desencarnada madrinha,
que andava pelas fileiras de Kardec. O que ela tem a ver com o ecletismo de
Terra Brasilis? É que ela era exatamente a maior entusiasta da regularidade
católica dos petizes da casa, eu incluso, ao mesmo tempo em que frequentava uma
casa de mesa branca lá pelos lados da Parada Inglesa, no tempo em que não havia
metrô por lá, o que dava uma bela pernada para quem morava na Vila Diva. Ela
fazia parte do corpo de médiuns da instituição, e eventualmente levava a mim e
meus primos. Havia por lá um palestrante chamado Laerte, excelente, especialista
em lidar com questões de fundamentos da doutrina, e ficávamos ouvindo suas
aulas enquanto a madrinha cumpria suas funções.
Eu comparava o que me era ensinado na catequese católica e
perguntava se não havia incoerência na prática dupla, para o que a madrinha
explicava que não, que muitas das práticas das diversas religiões encontravam
eco no Espiritismo, incluindo oriundas do próprio Catolicismo. No sentido
contrário, bastava manter o silêncio para não se criar questões.
Os livros básicos do Espiritismo são aqueles redigidos pelo
próprio Kardec, onde há inúmeras remissões a Jesus, mas não só. Lá há
ensinamentos mosaicos e de várias fontes orientais, já que a doutrina da
reencarnação já era prevista por religiões como o Budismo ou o Hinduísmo. Outra
referência bastante constante está em Sócrates, o patrono da Filosofia
ocidental, e uma espécie de jamegão da sabedoria universal. Eu tenho esses
principais livros e de vez em quando volto a lê-los, principalmente quando
quero fazer comparações doutrinárias.
Desde que me desvinculei da religião, tenho ouvido os mais
diferentes desagravos. O mais constante é que um dia vou resolver meus
conflitos interiores (?!) e voltar para o rebanho. Mas quem é espírita,
curiosamente, costuma perguntar um pouco mais sobre o caminho que tomei, e
procuro fazê-lo pacientemente. O roteiro, podem crer, já se tornou bastante
contumaz: ao mencionar os problemas na manutenção da fé em relação ao confronto
com a realidade, vem a assertiva indefectível - você devia conhecer Kardec, seu
pensamento é todo revestido de lógica, as causalidades são bem explicadas e
obedecem a melhores critérios filosóficos e científicos. Bem, o Kardecismo
é uma religião dentre outras, e mesmo que não seja propriamente apostólica,
seus praticantes a assumem como expressão da verdade e gostariam que outras
pessoas a seguissem. Nada demais, penso eu, desde que ouçam o que eu tenho a
dizer e não me façam tentar engolir suas convicções. Para dizer bem a verdade,
não acontece.
O Espiritismo kardecista se explica pelo contexto da época.
Estamos no pós Revolução Francesa e há muito entusiasmo com o progresso. De
fato, há uma preocupação muito maior em adequar a visão religiosa à Ciência, e
velhos dogmas imutáveis vão sendo questionados, principalmente o velho Fla-Flu
da salvação, que tenta decidir a fé correta e o caminho salvífico válido. Mas
aqui também aplico os meus três critérios de manutenção da crença e não
encontro eco, da mesma maneira que ocorreu com minha saída do Catolicismo.
Primeiro e principal: o confronto com a realidade. Embora o
discurso taumatúrgico seja bem mais ameno que nos cristianismos pentecostais, o
fato é que os efeitos práticos são muito semelhantes. Resolvem bem afecções
psicológicas e somáticas, mas fracassam cada vez mais na medida em que
problemas que não dependem da mente vão se afigurando. Quando uma doença não é
curada, vem o ponto onde ele é demonstrado infalseável: às vezes é momento de
partir, a missão já está cumprida. Como uma criança de um ano pode ter cumprido
alguma missão é algo que jamais eu vou conseguir entender, mas nesse caso a
questão é terceirizada - era um reencontro necessário entre os espíritos
encarnados da criança e dos pais. É uma resposta melhor que dizer se tratar da
vontade de Deus, mas, no meu entender, continua sendo mais lógico tirar deus e
metafísica da relação, bastando reconhecer que a vida é frágil e perigosa,
podendo ser perdida em qualquer momento.
Depois, temos o sentimento pessoal, as experiências que
ocorrem na vida da gente e que acabam por ser a âncora de nossa crença,
principalmente porque percebemos uma interação com o sagrado ou com o
espiritual. Eu juro que me esforcei muito nas várias sessões que participei da
mesa em perceber algum tipo de contato ou manifestação, sem nenhum sucesso. O
que me dizem é que eu dou sustentação energética para a corrente, e essa é a
minha característica mediúnica. Ah, ok. Mas continuo sem sentir nada de
diferente. Vêm os testemunhos, e logo lembro daquele que seria meu menino mais
velho, que morreu ao nascer. Eu e a patroa recebemos duas cartas psicografadas,
em um intervalo de pouco mais de dois meses. Seus estilos são tão diferentes
que não podem ter sido escritas pela mesma pessoa. A primeira é uma escrita
muito mais madura, que falava muito da necessidade de reencontro com a mãe, e
do quanto era necessário que as coisas ocorressem do modo que ocorreram. A
segunda parecia uma criança falando, revelando uma certa incompreensão e
inconformismo do espírito, mas ainda assim referindo-se e dirigindo-se à mãe. Além
disso, não vejo luzes passeando pelos quartos escuros, não pressinto presenças,
e com relação a sonhos... São sonhos, onde a liberdade de minha mente
desenlaçada da realidade está a pleno vapor. Portanto, por essas e por outras, não
tenho razões pessoais para crer.
Por fim, há a terceira e última fonte de fé, a visão
comunitária, a noção de que a irmandade dos homens é uma autêntica manifestação
divina. Tanto pelo que vivenciei por mim mesmo, quanto pelos testemunhos de
outras pessoas, essa questão de compreender o funcionamento de qualquer fundo
de altar é muito assemelhado a um bolo de casamento. Para quem chega à festa e
olha para ele, fica maravilhado com a obra de arte, mas não imagina o quanto de
calços, remendos e buracos estão recobertos e ocultos pela esplêndida cobertura
de glacê. Como em qualquer agrupamento humano, há vaidade, orgulho, inveja e
luta pelo poder, o que é broxante para aquele que procura paz e união, e isso
eu vi com meus próprios olhos também nos centros espíritas, como vi nas quatro
igrejas católicas em que fui assíduo, ou na evangélica do pai de meu padrinho,
da qual se afastou em menos de um ano após ganhar o título de ancião, enojado
por conhecer como as coisas se dão. Aqui, não se tratam de relatos acusatórios,
mas de experiências que vivi e, com isso, não me enquadrar mais a fé nenhuma.
Parece que estou repisando o meu velho
texto sobre minha "saída do armário", e é quase isso mesmo. Mas é
que eu achei necessário demonstrar como a mesma lógica de uma religião se
aplica a outras, e principalmente para deixar claro como seus pensamentos podem
ser ouvidos e racionalizados mesmo por quem não crê neles. Achei muito
interessante a coleção de referências existentes nos textos basilares dos
espíritas, ecléticos como os brasileiros a quem me referi no começo, que buscam
suas orientações mais baseadas no que é constituinte de seu corpo de
conhecimento do que em tradições orais que vão perdendo sentido com o tempo. E
é provocado pela visão espírita, que compartilha essas duas figuras em seus cânones,
que eu vou fazer uma comparação entre Sócrates e Jesus Cristo. Acompanhem o
raciocínio.
Embora ambos tenham levado vidas e propósitos bastante
distintos, é possível enxergar uma boa parte de coincidências, que vão muito além
da barba, das vestes e da aura de transcendência que costuma se aplicar às suas
figuras.
Ambos utilizavam métodos bastante específicos de realizar a transmissão de conhecimentos, que deixaram bastante marcados seus estilos de ensinar. Sócrates utilizava a maiêutica, uma especialização da dialética que incluía fazer brotar do próprio interlocutor as contradições de seu pensamento inicial. Isso pode ser visto nos diálogos sobre virtudes éticas, onde Sócrates faz com que seus dialogantes reconheçam que ignoravam o real sentido dessas abstrações. Já Jesus usava profusamente a parábola, uma espécie de exemplo que visava dar compreensão terrena a conhecimento divino, como faz com o filho pródigo ou com o semeador. Nada obriga que tais personagens tenham tido existência real, mas explicam tanto a doutrina do perdão ilimitado, quanto da aplicação prática da palavra divina, de uma maneira em que a didática não se volta ao real palpável, mas aos princípios morais de quem a ouve.
Os dois tiveram uma espécie de espírito missionário em suas
vidas. O de Sócrates foi demonstrar que a investigação do homem deveria se
pautar pelo autoconhecimento, enquanto Jesus tinha uma missão salvífica. No
final das contas, os dois tinham como pano de fundo de seu pensamento uma forte
conotação ética, uma mudança de paradigma com relação ao que se praticava em
cada uma de suas áreas.
Ambos representam uma quebra do pensamento corrente na
época. Os primeiros filósofos tinham seu foco na natureza, tentando compreender
o substrato último da própria realidade. Com a chegada do conceito grego de
democracia, essa discussão ficou obsoleta, e surgem os sofistas,
que trazem o homem ao centro da discussão. Todavia, embora muitos deles
tratassem de assuntos verdadeiramente humanos, a base de seu ensinamento era
mais voltada à retórica que à ética: em um ambiente onde as decisões eram
tomadas no grito, era mais importante vencer o discurso do que ter razão de
fato. Sócrates confronta essa posição, afirmando que o interesse dos sofistas
em vencer debates tira da filosofia sua melhor característica, que é a de
perseguir a verdade. Jesus tem um confronto semelhante com os fariseus, a quem
tinha como seus principais adversários. Segundo ele, os fariseus viviam uma
vida cujos princípios religiosos serviam unicamente para exercer uma posição de
privilégio, atribuindo a outrem toda sorte de pecado formal, enquanto eles se
valiam da lei judaica para cometer toda sorte de antiética. Hipócritas é o
qualificativo mais usado contra eles. Óbvio que os dois criaram muito
desconforto com esse modus operandi. Afinal de contas, o que caracteriza o
valor formal tanto do discurso quanto da ritualística não é o conteúdo que ele
carrega, mas o modo como se apresenta. O conteúdo, esse sim fica relegado a um
plano secundário, mas ninguém gosta de ouvir que o faz com malícia.
Que mais? Ambos são oriundos de famílias pobres, e, como
tal, estariam fora do círculo intelectual típico de cada época e cada lugar, já
que isso, desde sempre, foi privilégio das classes mais abastadas. Sócrates era
filho de um escultor e de uma parteira, e não se imiscuía na Ágora como faria
algum político clássico, enquanto Jesus era filho de carpinteiro, cuja pobreza
é comprovada pelo sacrifício mais barato que foi oferecido pelo seu nascimento.
Os judeus tinham por regra a oferta em holocausto pelo nascimento de qualquer
filho homem, independentemente de sua situação social, sendo que os mais
abastados ofereciam os caros cordeiros, enquanto a patuleia se virava com
pombos, o que foi o caso do belemita. Essa característica tirava ambos do meio
de onde se exercia o poder, e fazia com que eles vissem o mecanismo social pelo
lado de fora.
Outra característica comum muito marcante é a ausência de
obras escritas, o que lhes dá dois aspectos: suas vidas não são contadas por si
mesmos e a importância que davam para as questões práticas da vida, dando aos
seus ensinamentos a força do exemplo, para além da mera oralidade (que, no
entanto, era fortemente presente). Por esse motivo, ambos têm algumas
discussões com relação à sua historicidade, embora a crítica seja favorável à
existência física dos dois, sem grandes contestadores. Jesus teve sua vida e
filosofia descritas por seus discípulos evangelistas, além de vários outros
escritos tidos como apócrifos. Há algumas poucas referências externas ao meio
judaico, com relatos bastante distantes da questão religiosa. Quanto a
Sócrates, há autores apologéticos, principalmente Platão e Xenofonte, mas há
críticos contumazes, como Aristófanes.
De toda forma, os relatos instruem sobre semelhanças na vida
pública dos nossos epigrafados. Eles ensinavam nas ruas e nas praças, com
grande base no mundo que os rodeava. Os dois, de maneira bastante resumida,
falavam do cuidado com as virtudes, sendo que esse seria o fim último do homem:
para Jesus, seria a plena realização da lei judaica e o caminho da salvação
para o crente; para Sócrates, o cumprimento do propósito humano; sua
teleologia, como diria mais tarde Aristóteles.
O mais importante: ambos morrem pela causa que defendem, de
maneira injusta, porque foram colocados na conta de criminosos. Mais ainda, têm
a oportunidade de fugir de seu destino e dar novo caminho a si no plano do
indivíduo. Entretanto, ambos recusam a escapatória e transformam seu fim no seu
propósito mais significativo. Eles não se defendem porque negar sua morte
significa recusar a concluir de seu sentido no mundo. Jesus tem que morrer
para, segundo a doutrina cristã, tornar-se o último sacrifício expiatório, e,
com isso, oferecer um caminho salvífico em definitivo. Já Sócrates aceita sua
sina para comprovar que a sociedade é maior que o indivíduo, e a obediência às
leis é a melhor expressão do cidadão que se reconhece como tal, ainda que seja
para produzir sua própria morte.
É claro, como eu disse, que há mais diferenças do que semelhanças
entre ambos. Jesus, por exemplo, está encaixado em um conceito religioso que é
meramente lateral em Sócrates (embora tenha sido um dos motes para sua
condenação). Além disso, diz-se de Jesus que sua morte era necessária porque
ele precisava ressuscitar, o que nem de longe se vê em Sócrates. O processo de
desencarnação para o ateniense é essencial para a reaproximação com a verdade,
que se turva pelos sentidos e opiniões terrenas. Sócrates não necessitava de
uma visão libertária como Jesus, porque a Grécia de seu tempo ainda era
autossuficiente, enquanto a Palestina tinha um longo rosário de dominadores em
sua história.
Mas, se bem medidas e bem pesadas, veremos que o que existe
de mais próximo entre essas duas figuras é a estrutura das narrativas sobre
suas vidas, e daí eu vou para minha lavra, abordando uma questão que o Evangelho
de Kardec não toca. Vejam: os personagens marginais que se colocam em um meio
corrompido dão a própria vida como exemplo a ser seguido, e por conta disso são
contrapostos pelos detentores do poder, que os encaminham para a condenação.
Jesus é o inverso do que se espera do Messias prometido: ele não é o senhor da
guerra, capaz de conduzir seu povo na afirmação contra os dominadores romanos,
mas um pacifista que prega o desprendimento do mundo. Sócrates não é o político
afiado, cujo grande objetivo do discurso é ter seus propósitos acolhidos pela
Ágora, mas o homem feioso que admite a própria ignorância. O momento condenatório
de ambos é a apoteose de sua história: nem a morte é capaz de fazê-los arredar
de sua missão, porque, no final das contas, esse é o sentido de suas vidas.
Notem como esse esqueleto é frequente em qualquer história que se queira contar
sobre uma vida heroica, seja ela real ou fictícia. Não quero aqui desmentir o
que se disse sobre Sócrates ou Jesus, porque não tenho estofo histórico para
fazê-lo, mas posso perceber como é um enredo que funciona bem, a ponto de ele
derivar toda a Religião e a Filosofia ocidentais. Como essas, outras narrativas
se contaram com uma linha semelhante, e elas funcionam bem, justamente porque
agregam ao ato de heroísmo uma certa fraqueza dos protagonistas, e é daí que
vem sua força: tornam o homem comum mais próximo do ato heroico. Nietzsche
diria que é uma exaltação do fracasso, uma negação
da natureza humana, no que eu até concordo, mas não se pode negar que a
história contada com tal aspecto emocional é altamente eficiente e,
saindo do âmbito meramente pragmático, rica e bela, ainda que não creiamos
nela. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Em termos de amarração lógica, a literatura kardecista é
muito mais consistente do que os escritos religiosos em geral, seja porque está
mais próximo de nós temporalmente, seja porque já foi escrito em uma realidade
ocidental mais consolidada. Até mesmo por isso, é uma leitura aprazível e
recomendável.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo.
Brasília: Federação Espírita Brasileira, 2013.