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terça-feira, 26 de abril de 2022

As proximidades de Sócrates e Jesus vão além das coincidências

(Sócrates e Jesus têm muitas semelhanças em suas trajetórias. Mas há uma questão que particularmente me fascina)

Olá!

O brasileiro é um eclético por natureza. Dois são os motivos: a intensa mescla de imigrantes, que produziu um evidente caldeirão cultural, e a pobreza crônica, que faz com que nos viremos com o que temos, sem muita chance de seleção. Mas esses são temas que custam dissertações muito extensas, e não é sobre isso que eu quero escrever hoje. A questão é que minha filha mais nova mora de frente para um centro espírita, que andou bem quietinho pelos tempos de pandemia, mas que vem voltando à atividade normal aos poucos. Ao contrário das modernas igrejas, com suas paredes sonoras que dão inveja a qualquer banda de heavy metal, aqui temos bastante tranquilidade, e somente a quantidade maior de carros na pacata rua faz antever que há algum evento em andamento.

Isso me faz lembrar de minha velha e desencarnada madrinha, que andava pelas fileiras de Kardec. O que ela tem a ver com o ecletismo de Terra Brasilis? É que ela era exatamente a maior entusiasta da regularidade católica dos petizes da casa, eu incluso, ao mesmo tempo em que frequentava uma casa de mesa branca lá pelos lados da Parada Inglesa, no tempo em que não havia metrô por lá, o que dava uma bela pernada para quem morava na Vila Diva. Ela fazia parte do corpo de médiuns da instituição, e eventualmente levava a mim e meus primos. Havia por lá um palestrante chamado Laerte, excelente, especialista em lidar com questões de fundamentos da doutrina, e ficávamos ouvindo suas aulas enquanto a madrinha cumpria suas funções.

Eu comparava o que me era ensinado na catequese católica e perguntava se não havia incoerência na prática dupla, para o que a madrinha explicava que não, que muitas das práticas das diversas religiões encontravam eco no Espiritismo, incluindo oriundas do próprio Catolicismo. No sentido contrário, bastava manter o silêncio para não se criar questões.

Os livros básicos do Espiritismo são aqueles redigidos pelo próprio Kardec, onde há inúmeras remissões a Jesus, mas não só. Lá há ensinamentos mosaicos e de várias fontes orientais, já que a doutrina da reencarnação já era prevista por religiões como o Budismo ou o Hinduísmo. Outra referência bastante constante está em Sócrates, o patrono da Filosofia ocidental, e uma espécie de jamegão da sabedoria universal. Eu tenho esses principais livros e de vez em quando volto a lê-los, principalmente quando quero fazer comparações doutrinárias. 

Desde que me desvinculei da religião, tenho ouvido os mais diferentes desagravos. O mais constante é que um dia vou resolver meus conflitos interiores (?!) e voltar para o rebanho. Mas quem é espírita, curiosamente, costuma perguntar um pouco mais sobre o caminho que tomei, e procuro fazê-lo pacientemente. O roteiro, podem crer, já se tornou bastante contumaz: ao mencionar os problemas na manutenção da fé em relação ao confronto com a realidade, vem a assertiva indefectível - você devia conhecer Kardec, seu pensamento é todo revestido de lógica, as causalidades são bem explicadas e obedecem a melhores critérios filosóficos e científicos. Bem, o Kardecismo é uma religião dentre outras, e mesmo que não seja propriamente apostólica, seus praticantes a assumem como expressão da verdade e gostariam que outras pessoas a seguissem. Nada demais, penso eu, desde que ouçam o que eu tenho a dizer e não me façam tentar engolir suas convicções. Para dizer bem a verdade, não acontece.

O Espiritismo kardecista se explica pelo contexto da época. Estamos no pós Revolução Francesa e há muito entusiasmo com o progresso. De fato, há uma preocupação muito maior em adequar a visão religiosa à Ciência, e velhos dogmas imutáveis vão sendo questionados, principalmente o velho Fla-Flu da salvação, que tenta decidir a fé correta e o caminho salvífico válido. Mas aqui também aplico os meus três critérios de manutenção da crença e não encontro eco, da mesma maneira que ocorreu com minha saída do Catolicismo.

Primeiro e principal: o confronto com a realidade. Embora o discurso taumatúrgico seja bem mais ameno que nos cristianismos pentecostais, o fato é que os efeitos práticos são muito semelhantes. Resolvem bem afecções psicológicas e somáticas, mas fracassam cada vez mais na medida em que problemas que não dependem da mente vão se afigurando. Quando uma doença não é curada, vem o ponto onde ele é demonstrado infalseável: às vezes é momento de partir, a missão já está cumprida. Como uma criança de um ano pode ter cumprido alguma missão é algo que jamais eu vou conseguir entender, mas nesse caso a questão é terceirizada - era um reencontro necessário entre os espíritos encarnados da criança e dos pais. É uma resposta melhor que dizer se tratar da vontade de Deus, mas, no meu entender, continua sendo mais lógico tirar deus e metafísica da relação, bastando reconhecer que a vida é frágil e perigosa, podendo ser perdida em qualquer momento.

Depois, temos o sentimento pessoal, as experiências que ocorrem na vida da gente e que acabam por ser a âncora de nossa crença, principalmente porque percebemos uma interação com o sagrado ou com o espiritual. Eu juro que me esforcei muito nas várias sessões que participei da mesa em perceber algum tipo de contato ou manifestação, sem nenhum sucesso. O que me dizem é que eu dou sustentação energética para a corrente, e essa é a minha característica mediúnica. Ah, ok. Mas continuo sem sentir nada de diferente. Vêm os testemunhos, e logo lembro daquele que seria meu menino mais velho, que morreu ao nascer. Eu e a patroa recebemos duas cartas psicografadas, em um intervalo de pouco mais de dois meses. Seus estilos são tão diferentes que não podem ter sido escritas pela mesma pessoa. A primeira é uma escrita muito mais madura, que falava muito da necessidade de reencontro com a mãe, e do quanto era necessário que as coisas ocorressem do modo que ocorreram. A segunda parecia uma criança falando, revelando uma certa incompreensão e inconformismo do espírito, mas ainda assim referindo-se e dirigindo-se à mãe. Além disso, não vejo luzes passeando pelos quartos escuros, não pressinto presenças, e com relação a sonhos... São sonhos, onde a liberdade de minha mente desenlaçada da realidade está a pleno vapor. Portanto, por essas e por outras, não tenho razões pessoais para crer.

Por fim, há a terceira e última fonte de fé, a visão comunitária, a noção de que a irmandade dos homens é uma autêntica manifestação divina. Tanto pelo que vivenciei por mim mesmo, quanto pelos testemunhos de outras pessoas, essa questão de compreender o funcionamento de qualquer fundo de altar é muito assemelhado a um bolo de casamento. Para quem chega à festa e olha para ele, fica maravilhado com a obra de arte, mas não imagina o quanto de calços, remendos e buracos estão recobertos e ocultos pela esplêndida cobertura de glacê. Como em qualquer agrupamento humano, há vaidade, orgulho, inveja e luta pelo poder, o que é broxante para aquele que procura paz e união, e isso eu vi com meus próprios olhos também nos centros espíritas, como vi nas quatro igrejas católicas em que fui assíduo, ou na evangélica do pai de meu padrinho, da qual se afastou em menos de um ano após ganhar o título de ancião, enojado por conhecer como as coisas se dão. Aqui, não se tratam de relatos acusatórios, mas de experiências que vivi e, com isso, não me enquadrar mais a fé nenhuma.

Parece que estou repisando o meu velho texto sobre minha "saída do armário", e é quase isso mesmo. Mas é que eu achei necessário demonstrar como a mesma lógica de uma religião se aplica a outras, e principalmente para deixar claro como seus pensamentos podem ser ouvidos e racionalizados mesmo por quem não crê neles. Achei muito interessante a coleção de referências existentes nos textos basilares dos espíritas, ecléticos como os brasileiros a quem me referi no começo, que buscam suas orientações mais baseadas no que é constituinte de seu corpo de conhecimento do que em tradições orais que vão perdendo sentido com o tempo. E é provocado pela visão espírita, que compartilha essas duas figuras em seus cânones, que eu vou fazer uma comparação entre Sócrates e Jesus Cristo. Acompanhem o raciocínio.

Embora ambos tenham levado vidas e propósitos bastante distintos, é possível enxergar uma boa parte de coincidências, que vão muito além da barba, das vestes e da aura de transcendência que costuma se aplicar às suas figuras.


Ambos utilizavam métodos bastante específicos de realizar a transmissão de conhecimentos, que deixaram bastante marcados seus estilos de ensinar. Sócrates utilizava a maiêutica, uma especialização da dialética que incluía fazer brotar do próprio interlocutor as contradições de seu pensamento inicial. Isso pode ser visto nos diálogos sobre virtudes éticas, onde Sócrates faz com que seus dialogantes reconheçam que ignoravam o real sentido dessas abstrações. Já Jesus usava profusamente a parábola, uma espécie de exemplo que visava dar compreensão terrena a conhecimento divino, como faz com o filho pródigo ou com o semeador. Nada obriga que tais personagens tenham tido existência real, mas explicam tanto a doutrina do perdão ilimitado, quanto da aplicação prática da palavra divina, de uma maneira em que a didática não se volta ao real palpável, mas aos princípios morais de quem a ouve.

Os dois tiveram uma espécie de espírito missionário em suas vidas. O de Sócrates foi demonstrar que a investigação do homem deveria se pautar pelo autoconhecimento, enquanto Jesus tinha uma missão salvífica. No final das contas, os dois tinham como pano de fundo de seu pensamento uma forte conotação ética, uma mudança de paradigma com relação ao que se praticava em cada uma de suas áreas.

Ambos representam uma quebra do pensamento corrente na época. Os primeiros filósofos tinham seu foco na natureza, tentando compreender o substrato último da própria realidade. Com a chegada do conceito grego de democracia, essa discussão ficou obsoleta, e surgem os sofistas, que trazem o homem ao centro da discussão. Todavia, embora muitos deles tratassem de assuntos verdadeiramente humanos, a base de seu ensinamento era mais voltada à retórica que à ética: em um ambiente onde as decisões eram tomadas no grito, era mais importante vencer o discurso do que ter razão de fato. Sócrates confronta essa posição, afirmando que o interesse dos sofistas em vencer debates tira da filosofia sua melhor característica, que é a de perseguir a verdade. Jesus tem um confronto semelhante com os fariseus, a quem tinha como seus principais adversários. Segundo ele, os fariseus viviam uma vida cujos princípios religiosos serviam unicamente para exercer uma posição de privilégio, atribuindo a outrem toda sorte de pecado formal, enquanto eles se valiam da lei judaica para cometer toda sorte de antiética. Hipócritas é o qualificativo mais usado contra eles. Óbvio que os dois criaram muito desconforto com esse modus operandi. Afinal de contas, o que caracteriza o valor formal tanto do discurso quanto da ritualística não é o conteúdo que ele carrega, mas o modo como se apresenta. O conteúdo, esse sim fica relegado a um plano secundário, mas ninguém gosta de ouvir que o faz com malícia.

Que mais? Ambos são oriundos de famílias pobres, e, como tal, estariam fora do círculo intelectual típico de cada época e cada lugar, já que isso, desde sempre, foi privilégio das classes mais abastadas. Sócrates era filho de um escultor e de uma parteira, e não se imiscuía na Ágora como faria algum político clássico, enquanto Jesus era filho de carpinteiro, cuja pobreza é comprovada pelo sacrifício mais barato que foi oferecido pelo seu nascimento. Os judeus tinham por regra a oferta em holocausto pelo nascimento de qualquer filho homem, independentemente de sua situação social, sendo que os mais abastados ofereciam os caros cordeiros, enquanto a patuleia se virava com pombos, o que foi o caso do belemita. Essa característica tirava ambos do meio de onde se exercia o poder, e fazia com que eles vissem o mecanismo social pelo lado de fora.

Outra característica comum muito marcante é a ausência de obras escritas, o que lhes dá dois aspectos: suas vidas não são contadas por si mesmos e a importância que davam para as questões práticas da vida, dando aos seus ensinamentos a força do exemplo, para além da mera oralidade (que, no entanto, era fortemente presente). Por esse motivo, ambos têm algumas discussões com relação à sua historicidade, embora a crítica seja favorável à existência física dos dois, sem grandes contestadores. Jesus teve sua vida e filosofia descritas por seus discípulos evangelistas, além de vários outros escritos tidos como apócrifos. Há algumas poucas referências externas ao meio judaico, com relatos bastante distantes da questão religiosa. Quanto a Sócrates, há autores apologéticos, principalmente Platão e Xenofonte, mas há críticos contumazes, como Aristófanes

De toda forma, os relatos instruem sobre semelhanças na vida pública dos nossos epigrafados. Eles ensinavam nas ruas e nas praças, com grande base no mundo que os rodeava. Os dois, de maneira bastante resumida, falavam do cuidado com as virtudes, sendo que esse seria o fim último do homem: para Jesus, seria a plena realização da lei judaica e o caminho da salvação para o crente; para Sócrates, o cumprimento do propósito humano; sua teleologia, como diria mais tarde Aristóteles.

O mais importante: ambos morrem pela causa que defendem, de maneira injusta, porque foram colocados na conta de criminosos. Mais ainda, têm a oportunidade de fugir de seu destino e dar novo caminho a si no plano do indivíduo. Entretanto, ambos recusam a escapatória e transformam seu fim no seu propósito mais significativo. Eles não se defendem porque negar sua morte significa recusar a concluir de seu sentido no mundo. Jesus tem que morrer para, segundo a doutrina cristã, tornar-se o último sacrifício expiatório, e, com isso, oferecer um caminho salvífico em definitivo. Já Sócrates aceita sua sina para comprovar que a sociedade é maior que o indivíduo, e a obediência às leis é a melhor expressão do cidadão que se reconhece como tal, ainda que seja para produzir sua própria morte.

É claro, como eu disse, que há mais diferenças do que semelhanças entre ambos. Jesus, por exemplo, está encaixado em um conceito religioso que é meramente lateral em Sócrates (embora tenha sido um dos motes para sua condenação). Além disso, diz-se de Jesus que sua morte era necessária porque ele precisava ressuscitar, o que nem de longe se vê em Sócrates. O processo de desencarnação para o ateniense é essencial para a reaproximação com a verdade, que se turva pelos sentidos e opiniões terrenas. Sócrates não necessitava de uma visão libertária como Jesus, porque a Grécia de seu tempo ainda era autossuficiente, enquanto a Palestina tinha um longo rosário de dominadores em sua história.

Mas, se bem medidas e bem pesadas, veremos que o que existe de mais próximo entre essas duas figuras é a estrutura das narrativas sobre suas vidas, e daí eu vou para minha lavra, abordando uma questão que o Evangelho de Kardec não toca. Vejam: os personagens marginais que se colocam em um meio corrompido dão a própria vida como exemplo a ser seguido, e por conta disso são contrapostos pelos detentores do poder, que os encaminham para a condenação. Jesus é o inverso do que se espera do Messias prometido: ele não é o senhor da guerra, capaz de conduzir seu povo na afirmação contra os dominadores romanos, mas um pacifista que prega o desprendimento do mundo. Sócrates não é o político afiado, cujo grande objetivo do discurso é ter seus propósitos acolhidos pela Ágora, mas o homem feioso que admite a própria ignorância. O momento condenatório de ambos é a apoteose de sua história: nem a morte é capaz de fazê-los arredar de sua missão, porque, no final das contas, esse é o sentido de suas vidas. Notem como esse esqueleto é frequente em qualquer história que se queira contar sobre uma vida heroica, seja ela real ou fictícia. Não quero aqui desmentir o que se disse sobre Sócrates ou Jesus, porque não tenho estofo histórico para fazê-lo, mas posso perceber como é um enredo que funciona bem, a ponto de ele derivar toda a Religião e a Filosofia ocidentais. Como essas, outras narrativas se contaram com uma linha semelhante, e elas funcionam bem, justamente porque agregam ao ato de heroísmo uma certa fraqueza dos protagonistas, e é daí que vem sua força: tornam o homem comum mais próximo do ato heroico. Nietzsche diria que é uma exaltação do fracasso, uma negação da natureza humana, no que eu até concordo, mas não se pode negar que a história contada com tal aspecto emocional  é altamente eficiente e, saindo do âmbito meramente pragmático, rica e bela, ainda que não creiamos nela. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Em termos de amarração lógica, a literatura kardecista é muito mais consistente do que os escritos religiosos em geral, seja porque está mais próximo de nós temporalmente, seja porque já foi escrito em uma realidade ocidental mais consolidada. Até mesmo por isso, é uma leitura aprazível e recomendável.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 2013.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

As sementes de todas as coisas e as tintas que as inspiram - uma viagem pelo mundo de Anaxágoras

(A procura pelo elemento primordial que constitui todas as coisas foi o primeiro motivador do pensamento filosófico. Hoje vamos falar sobre um dos mais originais)

Olá!

Estou em Curitiba mais uma vez. Não a passeio, nem a visita, mas a trabalho. E um trabalho pouco convencional, ao menos para um escriba informata, como é meu caso. Estou fazendo as vezes de pintor, carregador, faxineiro e até içador de móveis, dado que camas-boxes tem pouca flexibilidade e dimensões pouco amigáveis com escadas estreitas. Sim, estou fazendo uma mudança, mas não é para mim; também não é serviço pago, é para o meu filho mais velho, que está saindo de um apartamento para uma casa, uma velha intenção que o garoto nutria, saudoso dos tempos de criança no célebre Jardim Elba, no arrabalde paulistano. Eu não sei recusar as coisas quando estão ao meu alcance, então enforquei dois dias para ajudá-lo a cumprir as cláusulas contratuais: paredes pintadas, chão limpo, essas coisas necessárias à entrega do imóvel. No final das contas, entregamos o apartamento melhor do que foi pego. Isso porque certos escorridos e determinadas manchas que foram consignados ao filho-inquilino foram devidamente corrigidos nessa nova versão que repassamos à imobiliária. São coisas da herança materna: minha mãe reviraria na cova caso visse um serviço porco. Em tempo: ela tinha baixíssima tolerância a imperfeições, e parecia falar no meu ouvido a cada risquinho que eu deixava passar batido.


Mesmo com a dedicação empregada, a incorruptível iniciativa privada ainda achou defeitos imperceptíveis, como manchas de rolo invisíveis a olho nu, com a oferta de serviços parceiros a baixo custo. Sorte ser o primogênito formado em Direito, e imobiliárias não gostam de tirar farinha com advogados.

No final das contas, ficou o dito pelo não dito. Foi uma trabalheira imensa, incluindo tudo aquilo que consta do checklist de uma entrega: pintar paredes, teto, portas e detalhes, inúmeros detalhes. Fiquei longas horas sentado de indiozinho, cuidando da junção dos rodapés, ou de ponta-cabeça fazendo sancas e luminárias, tudo com pinceizinhos de ponta finíssima, lutando contra minha falta de coordenação motora, enquanto a patroa mandava brasa nas partes grandes. Nos momentos em que ficava sozinho, sem plano de dados nem wi-fi disponível, restava a mim filosofar, observando como dos grandes rolos de lã às pequenas cerdas de cerdas eu espalhava a mesma substância, em menor ou maior quantidade, conforme a conveniência da tarefa. E lá vou eu para a Grécia antiga. 

Conforme eu já falei um monte de vezes neste espaço, os filósofos pré-socráticos se dividiam essencialmente em duas correntes: os discípulos de Heráclito, que viam no dinamismo das transformações a própria essência das coisas, um eterno devir que faz passar de um estado para o seu contrário; e os eleatas, seguidores de Parmênides, que viam o universo como um todo imutável, cujas transformações são meras ilusões das opiniões e desvios dos sentidos. 

As teses de Heráclito tinham a seu favor a intuição, já que, de fato, vemos o mundo em impermanência. “Não se toma banho duas vezes no mesmo rio”, dizia o sábio que entendia ser tanto o homem quanto o rio seres em constante transformação, e é isso que o universo tem de permanente: a mudança. A favor de Parmênides, pesa o olhar profundo da ontologia, que vê o Ser para além dos sentidos e da apreensão imediata. Era uma tese com uma lógica tão bem construída que foi a partir dela que começaram a brotar as regras fundamentais do pensamento bem construído, especialmente o princípio da não-contradição (para saber mais, leiam este texto). Mas tudo o que havia de intuitivo em Heráclito ia ao seu oposto em Parmênides. Imutabilidade e imobilismo, as principais característica do Ser, contrapunham completamente a nossa apreensão direta da realidade. Era muito difícil explicar a fixidez para olhos que só viam a alternância de estados universais: dia e noite, calor e frio, vida e morte. Era como o antagonismo entre as teses acadêmicas e o senso comum, onde somente um pequeno grupo de iniciados se põe em confronto com a percepção popular - embora o pensamento de Heráclito em nada estava no âmbito do acriticismo. Por isso, era essencial obter explicações para as mudanças e o devir.

Aliado a tudo isso, havia uma questão ainda mais antiga: a arché. Essa ideia, que já mencionei muitas vezes por aqui e já fiz uma espécie de texto consolidado, foi a primeira temática verdadeiramente filosófica, e buscava saber o que está no substrato da realidade sem o auxílio de divindades e atividades demiúrgicas. Os filósofos posteriores a Parmênides e Heráclito começaram a vincular este elemento primordial com a questão do Ser, buscando elucidar ambas as problemáticas de um só turno.

Várias foram as tentativas, cada uma mais engenhosa do que a outra. Uma das que mais fez sucesso foi a de Empédocles de Agrigento, a quem apresentei aqui. Em apertadíssima síntese, sua tese falava das rizomatas, as raízes compostas pelos quatro elementos, que, misturados nas devidas proporções, davam origem a todas as coisas.

Embora possuísse sua lógica, o pensamento de Empédocles não alcançou unanimidade, como se pode supor. Um dos que achava essa explicação insuficiente era Anaxágoras de Clazômenas, cidade grega que hoje pertence à Turquia, cuja principal crítica estava na ampla variedade de elementos existentes no universo, que dificultavam a visão de que somente a mistura de terra, fogo, água e ar eram o bastante para constituir todo e qualquer elemento. Para ele, deveria existir uma substância que antecede os quatro elementos e os compõe. Já vamos chegar nisso.

Mesmo que com contraposições, o princípio geral estava dado. Se não era na visão macro que conseguiríamos perceber a imutabilidade das essências, de algum outro modo seria possível explicar a aparente transitoriedade e a permanência eterna do Ser. As tentativas mais simples, como a água de Tales ou o ar de Anaxímenes eram ainda mais difíceis de aceitar que a rizomata de Empédocles. A antiga visão do ápeiron de Anaximandro era insuficiente, porque o todo imaginado, sempre preenchido pela substância etérea, não dava espaço para o não-Ser. Anaxágoras pensa então na redução da possibilidade do Ser a tamanhos infinitesimais. A coisa tem mais ou menos o seguinte sentido: nascer e morrer são ilusórios, já que ambos pressupõem que algo exista a partir do nada ou que deixe de existir - o não-Ser, o que é impossível. Estes termos devem, em um sentido mais estrito, ser substituídos por “compor” e “decompor”, na medida em que o agrupar e desagrupar não representam o surgimento e a extinção de uma determinada existência, mas um mero rearranjo de algo que já existe.

E o que seria essa coisa que já existe?

Segundo Anaxágoras, os elementos constituintes da realidade podem ser reduzidos a tamanhos minúsculos, porque esse formato explica tanto o universo em seu menor tamanho imaginável, quanto em seu tamanho macro, pela agregação das pequenas partículas. Esses componentes mínimos de todas as coisas tem o nome de spermata, que podemos traduzir como “sementes”.

E como seriam essas sementes? Bem, vamos com calma nessa hora. Anaxágoras utiliza esse nome por uma alegoria ao se observar como funciona a semeadura em um campo. A cada pequenina semente que for, brotará uma planta completa, que poderá ser um pequeno musgo ou um gigantesco baobá. Nesta semente está contida toda a informação necessária para o desenvolvimento da planta, e daí vemos neste campo como cada semente específica desenvolve uma planta igualmente específica, sem que cada uma vá para um canto. Assim é com o fogo, cuja labareda é composta por inúmeras sementes de fogo, ou com a terra, ou com qualquer elemento. Ou seja, cada substância existente no universo deriva de uma semente específica, que lhe caracteriza e já carrega consigo não somente seu estado atual, mas o todo que virá a constituir. Não se trata de misturas de elementos agregados através de uma espécie de "sentimento", como diria Empédocles, mas por qualidades infinitas de sementes: para cada substância localizada no cosmos, há uma semente determinada que a compõe. Por mais que o mundo seja grande e a diversidade de elementos seria finita, o fato é que todo o cosmos, na visão de Anaxágoras, é infinito. Sendo assim, as sementes como originadoras de substâncias também são infinitas. A mesma coisa se aplica à quantidade de sementes. Não basta que suas qualidades sejam infinitas, é preciso que infinita também seja sua quantidade, partindo da premissa fundamental de que o universo todo é composto por elas.

A spermata de Anaxágoras ajusta-se bem ao eleatismo porque ele aposta em outra categoria que lhe seria particular. As sementes não são apenas infinitas e eternas, mas também são imutáveis. Se é fato que o mundo se notabiliza pela imobilidade travestida de devir pelas ilusões dos sentidos e pela ignorância de como tudo funciona, só há sentido nas sementes se elas forem eternamente iguais.

Mas como isso seria possível se basta que cortemos uma árvore para que ela passe a ser um sarrafo de madeira? Aqui nós vamos ver como Anaxágoras prefigurou a moderna biologia. Ele entende que a divisão quantitativa de qualquer substância não lhe tira a identidade qualitativa. Ou seja, por menor que seja o pedaço da árvore, ele conterá em si a árvore inteira. Essa assertiva pode parecer estranha, mas as atuais descobertas no ramo da genética demonstram que muito do que está em nosso organismo como um todo fica descrito em cada uma das partes. Ou seja, Anaxágoras dizia que tudo o que existe é constituído por partes qualitativamente iguais, o que mais tarde foi nominado como homeomeria.

A grande sacada da homeomeria está no seguinte fato, novamente exemplificando com a vida real: todo o capim que está em um pasto nasceu de um tipo específico de spermata. Esse capim serve para que os bois e as vacas se alimentem, e é dele que se constituem seus corpos, seu crescimento e desenvolvimento. Não há, na semente do capim, nenhum osso, nenhuma carne, nenhum pelo, nenhum chifre. Entretanto, sem o capim nada disso subsiste no bovino. Mais ainda: o que o gado expele no campo durante sua vida (ou com seu próprio corpo após a morte) vai alimentar o mesmo capim que o alimenta. Anaxágoras conclui, portanto, que embora cada semente seja de um determinado modelo, em qualquer uma delas há informações sobre tudo o que existe no universo, e dessa forma o mundo se transforma, como quereria Heráclito, mas sem que deixe de ser uma única substância, como concordaria Parmênides. Tudo está em tudo, e tudo contém tudo. Esse é o grande fundamento da homeomeria.

Resta entender, por fim, qual seria o mecanismo que faria com que as homeomerias se organizam no espaço para dar origem a tudo o que existe, especialmente no que diz respeito ao “saber” se moldar a cada realidade.

A coisa é mais ou menos assim. Quando deitamos os olhos no mundo que nos circunda, vemos que, embora haja um quê de incerteza para confundir as coisas, existem certas regularidades que conduzem a previsibilidades. Mantendo a alegoria da semente, sabemos que, se colocamos uma na terra, ela encontrará nutrientes e brotará, aflorando no solo e crescendo cada vez mais, até frutificar certa quantidade de vezes e espalhar novas sementes pelo mundo, até declinar e morrer. Isso se repete por inúmeros outros fenômenos, como o surgir e o pôr do sol, as estações do ano e até mesmo as relações humanas. Como seria fácil intuir, esses scripts não parecem frutos do mero acaso, mas de uma certa forma de organizar o universo que parte de uma inteligência, porque tudo está no lugar certo e na hora certa, colocado como deve para funcionar da devida forma universal, mesmo que no varejo pareça por certas vezes não dar certo: uma semente pode não brotar, mas ainda servirá como composto orgânico. Anaxágoras se refere a este princípio como nous, palavra de difícil tradução para o português. Seria uma espécie de princípio universal ordenador que age pela pura racionalidade, algo como um espírito universal não necessariamente vinculado a uma divindade, mas ainda metafísico, na medida em que é puramente racional e prescinde da matéria, a quem tem a capacidade de ordenar. Para ter um exemplo levemente aproximado, seria como aqueles momentos em que nos concentramos em uma linha de pensamentos e que nos desvinculamos da realidade circunstante, como se desligássemos o botãozinho que nos conecta ao mundo exterior. Sendo que tudo isso tem como substrato material as homeomerias, é ele, o nous, que faz com que tudo seja do jeito que é.

Mas se o nous é um princípio ordenador do universo, ele também está nas coisas criadas? Sim, conforme pensa Anaxágoras. A cada vez que algo se materializa, uma parte do princípio inteligente se mantém agregada a ele, e essa " quantidade" de nous que permanece em um ente determina sua capacidade de percepção cósmica. O ser humano é o que de máximo existe em termos de nous "acumulado", por isso dizemos que somos animais racionais. Esse teor vai se reduzindo na medida em que se percebe o embrutecimento da matéria, mas mesmo assim ainda há a presença da inteligência universal mesmo nos minúsculos fragmentos de areia.

Por tudo isso, é possível notar como o pluralismo de Anaxágoras já aponta para algo muito próximo ao que vieram predizer Lêucipo e Demócrito de Abdera, com a diferença que estes últimos eram um pouco mais rígidos com a plasticidade do átomo em relação à homeomeria e não colocavam nenhuma instância metafísica na forma como as substâncias se agregavam e desuniam, de maneira muito mais materialista, no que veio desembocar, séculos depois, na moderna química que impera até os dias atuais.

Toda essa sofisticação de pensamento foi refletir muito séculos depois na monadologia de Leibniz, que, grosso modo, retoma uma grande parte dos princípios das homeomerias e do nous para explicar as semelhanças de características entre elementos muito distintos entre si. Isso é prova de que a ideia em si é bastante poderosa e contém elementos que enriquecem a intelectualidade.

Sendo assim, despeço-me cordialmente da antiga morada do piá mais velho e também de vocês, convidando-os a seguir acompanhando este pequeno espaço. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai em italiano. Uma boa coletânea dos fragmentos que chegaram até nós da obra de natura de Anaxágoras.

D’IPPOLITO, Armando (Org.). Anassagora, Il Miscuglio Originario. Milão: Albo Versorio, 2015.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Ambientalismo: o que ele é e o que ele não é

(Nesses tempos de polarização, nada passa batido à sanha das dicotomias. Por isso, sempre é bom procurar ficar a par do que defendemos ou combatemos)

Olá!

Clique aqui para ver mais itens desta série…

“Porque haverá guerras e rumores de guerras, mas não se assustem, porque tudo isso deve acontecer, mas ainda não é o fim”. Essa é a assustadora profecia de São Marcos, transcrevendo as supostas palavras saídas da boca do Jesus dos cristãos, prevendo os fins dos tempos. Há tempos não nos víamos em meio a grandes chacoalhões políticos e bélicos, e os acontecimentos na Europa Oriental tem nos trazido de volta àquele desanimador clima da Guerra Fria. Mas fria é a guerra: há outras sombras se projetando nesta esferinha azul que tantos pretendem lisa como uma mesa de bilhar. Muito mais quentes.

É que recorrentemente temos ouvido falar de temas que, se por um lado carregam o mesmo peso da ameaça do parágrafo anterior, por outro têm se tornado tabus, como o aquecimento global ou o buraco na camada de ozônio. E isso tem feito com que o mundo se divida em dois, como tem sido comum nestes dias de dicotomia permanentes. De um lado temos a defesa arraigada do meio ambiente, e do outro os que entendem ser os indicadores de mudanças climáticas meros fenômenos de passagem, como os circos que erram aqui e ali nesses rincões do Brasil profundo. No meio disso tudo, nós, mortais como Sócrates.

Essa situação de guerra psicológica deflagrada faz com que muita coisa seja dita de lado a lado sem que haja sempre base na realidade. E isso leva a confusões. Quando falamos de ambientalismo, por exemplo, temos pouca nitidez consensual. Tem gente que o julga prenhe de atitudes de heroísmo, tem gente que o ache empulhação de catastrofistas. O grande problema é que o fazem sem ter um panorama mais efetivo do que ele realmente é, e, com isso, sentimo-nos na obrigação de lançar as luzes possíveis à causa, para que ao menos nos lembremos de que uma das funções do cérebro é questionar. Então vamos lá.

O que é ambientalismo?

Ambientalismo é um amplo leque de pensamentos que têm em comum algum grau de defesa da conservação do meio natural e de seus componentes. Sim, é um termo guarda-chuva que abrange desde o reaproveitamento de latinhas e potinhos para colocar plantinhas até a defesa de enormes projetos de reflorestamento e corredores ecológicos, o que dificulta uma definição clara e favorece posições antagônicas. Mas podemos dizer que é preciso existir uma intenção para se colocar alguma atitude no âmbito do ambientalismo. Minha sogra, por exemplo, adora juntar toda sorte de potinhos plásticos. Isso é bom para o ambiente, porque o reaproveitamento diminui a necessidade de produção, mas ela não o faz por uma atitude ambientalista, e sim por compulsividade acumulativa. Por isso, ambientalismo é muito aberto para que se feche uma definição inconteste, mas podemos defini-lo como toda e qualquer ação consciente que vise um mínimo de preservação do meio ambiente.

O ambientalismo é uma Ciência?

Não. Está mais associado à Filosofia, porque prescinde de um método baseado em verificabilidade e falseabilidade, embora as correntes mais sérias sempre procurem se associar a estudos confiáveis. No entanto, os motores para o ambientalismo não são unicamente a proteção ambiental com caráter pragmático, mas, muitas vezes, pelo simples fato de existir uma empatia com os outros componentes do meio, ou uma suposta sinergia de fundo esotérico. O ambientalismo transpõe a barreira da ciência e vai a outros aspectos existenciais.

Ambientalismo coincide com Ecologia?

É quase óbvia a correlação que se faz entre Ecologia e ambientalismo. Mas há muitas diferenças entre ambos. A Ecologia é uma Ciência, que pretende que suas observações sejam as mais neutras possíveis, enquanto o ambientalismo é uma atitude. Um ecologista, por princípio, deve se socorrer em dados e, a partir do momento que coloca termos éticos em seu discurso, torna-se um ambientalista. Ou seja, o que ocorre é que, por dois caminhos, um acabe se vinculando ao outro. Podemos ter gente com propensões de defesa à natureza que se interesse por saber mais e melhor, e com isso siga os passos da Ecologia. Por outro lado, pode ser que alguém que comece estudando a Ecologia acabe por se apaixonar pelos objetos que estuda, e tome o rumo do ambientalismo 

Por que ambientalistas são chatos?

É preciso ser cuidadoso com prejulgamentos. Chato é tudo aquilo que vai contra nossas convicções. Mas é óbvio que existem pessoas tão engajadas que acabam por jogar contra, não há dúvidas. Fanatismo existe em qualquer área onde haja posições bem marcadas. Quem nunca encarou um crente chato, um vegano chato, um comunista chato, um corintiano chato… Todos defendem com unhas e dentes sua posição, a ponto de perder a racionalidade. Mas isso não significa que TODOS os demais crentes, veganos, comunistas e corintianos sejam chatos, que não tenham suas ideias sensatas, que não troquem a lógica pela pura defesa apaixonada. Tudo isso acontece com os ambientalistas também. Há aqueles que se arrogam um conhecimento superior, que não ouvem teses contrárias, que metem o dedo na cara de pessoas que não têm más intenções, apenas desconhecem os problemas que os ambientalistas abordam. Isso sim dá uma conotação de chatice, mas aqui trocamos o berimbau pela gaita, jogando tudo na generalização apressada: não é pelo fato de existirem fanáticos que todos aqueles que defendem causas ambientais são fanáticos. Enfim, chatos são os fanáticos, e não os ambientalistas.

Por que se fala tanto em sustentabilidade? O que é essa tal de sustentabilidade?

Sustentabilidade é uma filosofia de uso do meio ambiente em que sempre se pensa na preservação vinculada ao desenvolvimento. É mais que uma disciplina, mas um modo de vida que procura conjugar bem-estar com manutenção ambiental. Em resumo, é a tentativa de manter o máximo de preservação ambiental sem abrir mão do desenvolvimento econômico, porque não se quer que as cidades não possam evoluir. Obviamente é um jogo de ganha-perde, porque sempre se terá de abrir mão de algo para sair do outro lado e conseguir um mínimo de qualidade de vida para além de nossos próprios quintais. Tem sido muito perseguida nos dias atuais porque é muito difícil não aproveitar um recurso que está lá, que nós precisamos, mas não podemos esgotá-lo.

Quando as empresas agem, os ambientalistas as acusam de “greenwashing”. Que diabos é isso?

O greenwashing (literalmente "lavagem verde", em inglês) é uma prática empresarial que visa dar uma roupagem ecológica a atitudes que não são exatamente amigáveis ao meio ambiente, sendo mais uma prática publicitária do que propriamente a aplicação de políticas ecológicas. Como nos tempos atuais as pessoas têm se preocupado mais com questões ambientais, ter uma espécie de "selo verde" traz dividendos para a empresa que o possui. Por exemplo: uma fábrica pode produzir equipamentos eletrônicos que realmente possuem eficiência energética, e explorar essa característica como uma vantagem verde, mas o custo disso pode ser a extração de minérios de maneira predatória ao meio ambiente. Outro exemplo: uma fazenda se dedica a produzir alimentos orgânicos, que evitam a poluição do solo e dos mananciais, mas o faz à custa de desmatar matas ciliares. A empresa se aproveita unicamente do aspecto positivo de seu produto, "esquecendo" o lado de lá, que, bem medido e bem pesado, pode até ser mais prejudicial no conjunto.

Por que ambientalistas são vistos como hippies que ficam fumando maconha e aplaudindo o sol?

Estereótipos. Normalmente, uma pessoa que aprecia a natureza quer estar próximo a ela, e isso pode ser feito das mais diversas formas: optando por destinos intocados nas férias, tendo hortas orgânicas em casa, estudando sobre o assunto e outras maneiras. Isso nada tem a ver com hippies, nem com maconheiros, que existem em centros urbanos da mesma forma que em retiros ecológicos. Como se criou uma imagem de desvinculação desta tribo ao mundo tipicamente capitalista, coloca-se todo mundo no mesmo pote. Um estereótipo (“impressão sólida”, em grego) é exatamente isso.

Então tudo o que é dito por ambientalistas é sinônimo de verdade?

Longe disso. Há uma linha divisória que nem sempre é muito clara, mas que faz toda diferença em qualquer discurso: quando se deixa de basear em fatos para se basear em crenças. As regras do bom pensamento dizem que devemos sempre nos ater à realidade, e isso não ocorre pelo puro e simples motivo de apreciarmos paragens verdes e os animais que lá vivem. Isso se assemelha aos ambientes idealizados de desenhos animados, e crer nisso é infantilizado em alguns casos, delirantes em outros, desonesto em mais alguns. Mesmo que o ambientalismo não seja uma Ciência, deve se pautar ao mínimo na lógica para emanar suas propostas.

Se a causa ambiental é uma ação digna, por que há tanta gente contrária a ela?

Vamos progressivamente. O fato não é que muitas pessoas são contra a defesa da natureza, mas que simplesmente não se importam com a questão. Em um país de povo pobre como o Brasil, a dona de casa luta contra os preços do mercado, e fica difícil pensar no meio ambiente quando o cobertor é curto demais. Pode ser um mero desinteresse, falta de preparo em encarar problemas incômodos, falta de conhecimento para compreender esses mesmos problemas. Quem se posiciona contrariamente à causa ambiental de verdade, geralmente tem muito a perder com o controle que é imposto, e aqui é impossível não pensar na ação empresarial. Já aqui é preciso desfazer a ideia de que toda empresa se guia pelo lucro a qualquer custo, e que não haja empresários verdadeiramente preocupados com a questão ambiental, mas é inevitável que se esbarre no modo de produção capitalista. Vou falar mais sobre isso logo adiante. 

Mas esse controle não é uma questão de tolher liberdades?

Tolher liberdades… Sempre que alguém lhe falar em defesa de causas libertárias, pergunte como ele se posiciona com relação a outras liberdades, como a de casar com alguém do mesmo sexo e ter os mesmos direitos de qualquer outro casal, ou de decidir pela eutanásia. Caso a resposta para estes pontos não seja tão alinhada à causa da liberdade, então você terá à sua frente um leitor de cartilhas, de onde será difícil de tirar algo diferente do posicionamento conservador disfarçado de liberal. Se, por outro lado, admitir-se liberdades para qualquer caso, é preciso pensar se há sentido em se possuir liberdades plenas em casos onde o prejuízo se arrasta para populações inteiras. Populações de pessoas mesmo, não é nem uma questão de piedade ou de empatia com comunidades da fauna. Neste caso, é uma questão de decidir o que importa mais: o indivíduo ou a sociedade, e, com isso, determinar até onde é possível chegar com as liberdades.

Por que o ambientalismo só ganhou força há menos de 50 anos?

Não sou comunista, mas preciso falar sobre como o capitalismo opera, portanto não me prejulguem. Embora o modo de produção deste sistema venha transformando a paisagem da Terra desde meados do século XVIII, é a partir do pós-Guerra que fica evidenciado seu máximo esplendor, com todos os seus avanços tecnológicos por um lado, e toda sua ação predatória por outro. É a partir de então que as grandes cidades passam a registrar casos e mais casos de doenças relacionadas às mudanças na composição do ar e o povo como um todo passa a sentir os reflexos na própria pele, literalmente. Causas antes difusas agora passam a ganhar a mídia, e a ganhar relevo, como a extinção de espécies, mudanças no regime de inundação dos rios e outros mais; alguns, com estatuto de ameaça planetária, como o buraco na camada de ozônio e o tão recentemente debatido aumento da temperatura global. Isso deu uma certa chacoalhada nas pessoas como um todo e é natural que haja maior engajamento na mesma medida. 

Por que o ambientalismo sempre se encontra nas pautas de esquerda?

(Comecem lendo este texto, para compreender minha dificuldade com posições políticas inamovíveis). Com extrema simplificação, via de regra a direita prioriza liberdade, que é exercida por indivíduos; já a esquerda tem seu foco na igualdade, que se volta para comunidades. Quando estamos falando em causas ambientais, naturalmente não estamos falando de um fazendeiro específico ter o direito de possuir reservas florestais em suas propriedades, mas em seu dever de mantê-las. Isso porque a manutenção do meio favorece não aquele tal fazendeiro, mas toda a coletividade, que fruirá dos benefícios da manutenção daquele espaço. Mas não há nenhum tipo de limitação filosófica para que cidadãos ditos de direita defendam de verdade causas ambientais. Só é bem raro de acontecer, porque não faz parte do pacote.

Mas se o Brasil se especializou em commodities, tolher a expansão agrícola não nos conduzirá ao empobrecimento?

O Brasil caiu na armadilha da divisão internacional do trabalho, uma política já antiga que preconiza uma especialização dos países nos mercados internacionais. Cabe a nós fornecer produtos agrícolas, devido ao território privilegiado. O problema das commodities agrícolas é o seu baixíssimo valor agregado. Quem tem um espectro maior de ofertas para o mercado internacional costuma ser menos abalado por crises setoriais, porque é a velha história de guardar todos os ovos em uma cesta só: quando ela cai, já sabe. A questão recai novamente sobre o individualismo. É muito atrativo para um fazendeiro expandir suas propriedades em alguns hectares sobre a floresta, mas o interesse coletivo não vai no mesmo sentido, porque a oferta que virá normalmente não se voltará a uma diminuição de preço para o mercado interno, além de reduzir a área verde original cada vez mais. A questão é saber se a área já disponível para o agronegócio não é grande o bastante e se pode ser otimizada para produzir melhor, sem recorrer ao recurso fácil da expansão contínua. Dificilmente todo esse território não pode ser melhor aproveitado para render o suficiente. Mas eu não sou da área e vou passar a pergunta.

Em um momento de economia incerta, não é um problema aumentar os gastos com preocupações ambientais?

Reutilização, reciclagem e diminuição de consumo não representam incremento, mas diminuição de gastos. Portanto, são três coisas em que se precisa pensar: visão de longo prazo, sociedade como um todo e atitudes simples. Esses são os alicerces da gestão ambiental.

Acho que está bom por enquanto. É um assunto tão amplo quanto sua própria definição, e, sendo assim, podemos voltar ao assunto a qualquer momento. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Embora nos últimos tempos tenhamos tido dificuldades nas políticas públicas no quesito ambiental, é importantíssimo que se conheçam ao menos rudimentos do que a legislação reza sobre o tema, já que é ela que disciplina as condutas disponíveis legalmente, concordando com ela ou não. As mais importantes são as seguintes:

Código Florestal: disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm

Lei dos Recursos Hídricos: disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.433%2C%20DE%208%20DE%20JANEIRO%20DE%201997.&text=Institui%20a%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de,Federal%2C%20e%20altera%20o%20art

Lei dos Crimes Ambientais: disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm

Política Nacional do Meio Ambiente: disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6938.htm

A imagem utilizada neste post é oriunda do Ministério do Meio Ambiente, disponível em: http://a3p.mma.gov.br/9-premio-melhores-praticas-de-sustentabilidade-premio-a3p/