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quinta-feira, 31 de março de 2022

Imprinting, a tatuagem mental que nos modela o comportamento

(Existem padrões mentais que podem ser comparados a tatuagens? Existem, e nós os chamamos de imprinting)

Olá!

E a patroa criou coragem, fazendo a tatuagem que tanto queria. Ela vinha namorando as agulhadas já há um bom tempo, mas a coisa parecia que não ia desatar nunca. Para incentivá-la, arranquei um escorpião do bolso e a presenteei, no seu aniversário do ano passado. Após pesquisa e fila, fomos parar em um estúdio de Taubaté, pequeno e bem organizado. Um pouco de incômodo no começo, para duas horas depois ter as duas flores lilases pareadas, uma mais para o ombro, outra mais para as costas.


Nossa juventude foi em um tempo em que tatuagens eram MUITO mal vistas, basicamente feitas por surfistas ou bandidos, o que, na época, nem eram considerados tão distantes assim. Explico. Surfistas eram caras que, no estereótipo, não se davam a estudo e trabalho, além de gostarem de "consumos alternativos" (vejam os materiais do grupo Sobrinhos do Ataíde, impagáveis, especialmente no personagem Peterson Foca). Como resultado da baixa dedicação laboral, eram considerados párias sociais como os fora-da-lei. Estúdios de tatuagem como vemos hoje, cheios de cervejas e ares condicionados, basicamente não existiam, e a arte era exercida em valhacoutos realmente medonhos. Mas os desenhos eram muito diferentes dos de hoje, mais rústicos e com aquela coloração esverdeada típica. Agora, as peles parecem telas de pintura.

Eu, já nos meus quinze anos, era louco para fazer uma tatuagem. Mas acontece que, salvo raríssimas e honorabilíssimas exceções, empresas simplesmente não contratavam tatuados, pelos motivos já expostos acima. Duas eram as alternativas, então: fazer uma tatuagem escondida (e não a revelar) ou trabalhar por conta. Como a primeira não faz sentido e a segunda era bem difícil para quem vem do proletariado, o jeito foi por a viola no saco e deixar o projeto tatuagem para quando ela fosse mais aceita socialmente.

E esse tempo chegou, não é incrível? O medo da patroa não era com a dor das agulhadas. Isso ela cansou de tirar de letra, com aplicações de enzima no couro cabeludo e de glicose nas capilares das pernas, em episódio que já contei aqui. A questão maior era mesmo de aceitação social, porque ela própria tinha essa visão ruim que acabei de mencionar, e só um longo período fez com que sua ideia primeiramente mudasse, para depois ter vontade de ter uma tatuagem e, por fim, resolvesse encarar as reações de terceiros.


Claro que uma tatuagem exige alguma certeza, porque, ao contrário do que acontecia com aquelas de chiclete, a de agulha não sai. Ela tatuou uma flor de maracujá, que tem toda uma história na vida dela. É algo que filosofei para ela: tatuagens de moda logo perdem o sentido, e é uma nota pretíssima para remover, nem sempre com bons resultados. Por isso, entendo que é preciso que haja significado na vida da pessoa, mesmo que a forma fique datada, porque o conteúdo sempre trará alguma recordação, alguma essência, alguma história. E será mais difícil bater um arrependimento.

Agora, pensando de forma um pouco mais abstrata, tento raciocinar se há alguma forma de tatuagem mental. Afinal de contas, toda forma de disposição social (incluindo preconceitos) é deveras arraigada, e só um tempo muito longo e uma oposição muito insistente pode fazer com que seja passado um laser nos consensos deliberados. O pensamento pode ser tão marcado quanto as agulhadas de uma tatuagem. Mais até, porque as tatuagens não são transmitidas entre as gerações. Os juízos preconcebidos, esses sim.

Mas não é exatamente isso que eu quero dizer. Eu lembro que nas aulas de Psicologia da Educação, especialmente nos capítulos de mecanismos da cognição, falava-se de fenômenos mentais em que se dava uma gravação permanente de conteúdos no cérebro, desde a mais tenra infância. É óbvio que é possível pensar no medo irracional que temos de insetos do tipo barata, ou de ratos, ou de lagartixas. Esse tipo de coisa é incutido em nossas mentes por nossas mães (e pais) e lá ficam gravados pelo resto da vida, mesmo que tomemos plena consciência de que o risco até ocorre na forma de doenças, mas não é nisso que pensamos quando encaramos a cascuda. Temos um medo na sua forma pura, um medo tão desvinculado da realidade que chega a perder o próprio objeto. Por que, hein?

Bom… embora o medo não seja como o conteúdo de um livro, é algo que se aprende. E é muito útil na nossa vida. Nascemos com certos medos porque eles nos ajudam a sobreviver. Só que, se eles precisam ser aprendidos, é preciso que este processo seja rápido. Uma criança normalmente não distingue muito bem o que pode ser perigoso para ela, e coloca toda sorte de porcaria na boca, por onde ela faz alguns reconhecimentos, mas também quebra a cara. Quando ele pega uma barata e vai levá-la à boca, sua mãe (se não chegar a desmaiar) terá uma reação contundente, que vai assustar o bebê e ensiná-lo, independente da forma, de que há algo errado nesse seu ato ou no objeto a que se dedica. Para todo o sempre, esse “modelo” de reação persistirá.

Poderíamos pensar, sendo assim, que o processo de aprendizado mais primitivo vem dessa reação a reações, mas há coisas que são ainda mais instintivas do que esse modelo de interação. Não dizemos que os filhos reconhecem suas mães só de olhar? Parece poético, mas tem sua dose de realidade.

Como compreender esse processo? Se você for daqueles criacionistas arraigados, terá que olhar apenas para a espécie abençoada e será um pouco mais difícil de entender esse fenômeno. No entanto, se você achar a evolução convincente, poderá olhar para outras espécies e tirar algumas informações a partir do comportamento delas. E é o que o zoólogo e psicólogo Konrad Lorenz fez.

Este austríaco criou uma variação da Biologia chamada de etologia, partindo do princípio que seria necessário estudar os padrões de comportamentos para explicar como se dá a cognição de certas ações. Ele observou em aves que certos comportamentos absorvidos ainda nos primeiros momentos de vida são gravados de tal forma na mente dos filhotes que são carregados pelo resto de suas vidas. Parece existir algum espaço mental que precisa ser preenchido de imediato, tão logo vejam a luz. Logo que eclodem de seus ovos, os patinhos procuram qualquer coisa maior do que eles e que se mova por perto. Na imensa maioria das vezes, essa coisa será sua mãe, e o código instintivo diz que é seguro estar próximo a ela. Com isso, a lacuna estará preenchida e eles viverão da melhor forma possível. Todavia, é plenamente possível acontecer um erro nesse processo, porque o código mental dos patinhos diz assim: "siga a primeira coisa que você ver se movimentando". Essa coisa pode não ser sua mãe, mas outra ave, uma pessoa, ou até mesmo um objeto experimental inanimado, como testou Lorenz. Os bichinhos que usou em experiências andavam atrás dele como se fosse sua mãe, com aquele gingado típico dos patos. E ele deu a esse fenômeno o nome de imprinting, ou estampagem, em português. É uma alegoria para o processo de “carimbo” que um papel recebe para não mais ser apagado, ao menos sem deixar uma série de esfolamentos (o que não deixa de ser um testemunho de que por ali passou uma impressão permanente).

O imprinting seria, então, um fenômeno adquirido instintivamente, que será carregado pelo restante da vida do indivíduo. Quem cria canários está acostumado com o imprinting sem nem mesmo se dar conta do termo técnico. O que faz com que os filhotes comecem a cantar é a imitação dos pais, já que as mães somente e ocasionalmente piam. Se um canarinho não for exposto a cantos, ele não aprenderá a cantar, ficando limitado a piados parecidos com os das meninas. Mais ainda: embora haja um espectro razoável de melodias, somente àquelas que o filhote for exposto farão parte de seu repertório. Os criadores têm um truque para fazer com que isso aconteça, que é colocar um “esquentador” para puxar o canto dos meninos, outro canário que já tem as faculdades de canto desenvolvidas. Ou seja, se quisermos que o novo cantor tenha um repertório mais amplo, deveremos colocá-lo, desde bem jovem, a várias fontes canoras. É um fenômeno que eu presenciei em casa. Eu tinha um canário salsa reprodutor que teve seus filhos de primeira ninhada, e repassou a eles seu canto campainha, aquele de vibratos muito rápidos, como se fosse um guitarrista de heavy metal. Ganhei um belguinha amarelinho, amarelinho, que tinha um canto muito mais modulado, com uma gradação bem mais suave, à moda dos músicos de jazz. A segunda leva de canarinhos sabia misturar muito bem os trinados ligeiros do pai com a costura melódica do “tio”. Ou seja, tendo dois canários adultos cantando, não adianta fazer guerra: um não aprende com o outro. Entretanto, os filhotes, independentemente da filiação, aprendem cantos mistos. Passada uma determinada idade, o canto não muda mais, e essa padronagem permanecerá pelo restante de sua vida artística. Não é um belo exemplo de imprinting? 

Percebam, portanto, meus queridos, que o imprinting tem uma importante porção instintiva, mas que não pode prescindir do ambiente. Ou seja, imprinting e instinto são coisas distintas. A parte do instinto está na predisposição a preencher uma informação necessária aos elos mentais de uma criatura, mas que não tem como existir sem a parte ambiental, de onde vem a informação que o instinto tanto espera. O organismo do ser espera que a modelagem seja mantida por toda a existência do indivíduo e, de certa forma, é isso mesmo o que acontece. É óbvio que alguns comportamentos são sazonais, e, com isso, abandonados após algum tempo utilitário. O patinho não perseguirá a falsa mãe para sempre, mas certamente influenciará na maneira como ele atuará como adulto, apresentando-se como mãe (se for fêmea).

O ser humano entra na mesma lógica, ainda que sua capacidade de raciocínio permita com que certas estampagens possam ser remodeladas. O instinto também em nós existe, bastando pensar na defesa inútil que faríamos com as mãos se percebêssemos um piano caindo sobre nossa cabeça. Também em nós o instinto é uma reação imediata a uma situação que exige resposta rápida. E também em nós essa é uma janela para a gravação de impressões. Mas não é só. Temos cunhagens sempre que nos é apresentado conteúdo novo e desconhecido. A lacuna que se abre para o imprinting é exatamente esse vazio em que se faz necessário um preenchimento. O primeiro conteúdo que lá entrar ficará fixado, mesmo que venha a ser reelaborado futuramente.

Um dos comportamentos mais fáceis de se observar de estampagem no ser humano vem do exemplinho da boca que mencionei logo agora. Essa tendência a levar tudo para a boca vem pelo imprinting causado pelo ato de mamar. Um recém-nascido, quando vai mamar pela primeira vez, não sabe que seu sofrimento pode ser amenizado pela ingestão de alimento. Quem sabe disso é sua mãe, e a chave do instinto somente entra no ato da sucção. Isso grava no bebê um fato novo: colocar um seio na boca causa a satisfação do arrefecimento de um incômodo; no caso, a fome. E tudo vai para a boca após isso como consequência do imprinting.

Isso perdura pela vida inteira. Pense em qualquer coisa que lhe foi provada errada. Vou dar um exemplo meu. Sempre achei que uma boa dose de maizena ajudava a dar cabo dos desarranjos intestinais tão frequentes anos atrás. Provado e mais provado que isso não funciona, ainda hoje quando tenho espasmos fico tentado a tomar uma boa dose da adstringente solução, mesmo sabendo que nada faz a não ser dar uma bombardeada na quantidade de amido. Está lá gravado na minha cabeça, e a simples menção de um desconforto faz um restore dele para minha memória de trabalho. É inevitável.

Isso tudo está no substrato da espécie. Eu fiz aquela infame comparação entre um ser pronto e acabado e a aceitação à ideia de evolução porque não há como compreender estes fenômenos fora dos mecanismos evolutivos, a não ser que sejamos irrealisticamente concessivos com um pensamento sobrenatural. Já havia notado Lorenz que as homologias são indisputáveis, tanto no plano físico, como já observava desde Darwin, quanto no equipamento psíquico, que é tão hereditário quanto uma pinta ou um cabelo avermelhado. Se temos alguns comportamentos que se assemelham aos de macacos, de mamíferos ou de vertebrados, é porque lá atrás, há milhares e milhares de anos, tivemos ancestrais comuns. E nesses ancestrais já existiam mecanismos cognitivos que se baseavam no imprinting.

Essa é a nossa tatuagem mental. O imprinting é uma peça vital nos nossos processos de aprendizagem, porque uma cognição bem feita tende a se alastrar pelo tempo, e é muito mais difícil de ser rearranjada quando absorvida impropriamente. É algo que nossas escolas deveriam levar em conta na exposição de seus conteúdos, porque tudo o que vem depois não será tão simples de demover. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Bom livro para compreender as ideias de Lorenz e saber mais sobre etologia:

LORENZ, Konrad. Os Fundamentos da Etologia. São Paulo: UNESP, 1995.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (36 - Etimologia)

(As origens sempre são objeto de nossa curiosidade. A mesma coisa se aplica a palavras e expressões)

Olá!

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De onde você vem? Essa é uma daquelas perguntas que passam pela cabeça de todo mundo. Algumas vezes, quando ainda somos crianças, perguntamo-nos como chegamos ao mundo. Pessoas que creem em múltiplas encarnações gostariam de saber o que eram em vidas passadas. E há quem goste de traçar as origens familiares, tentando encontrar algum ramo de sua linhagem que pertença à nobreza. Isso gera as longas árvores genealógicas, muitas delas com forçadas de barra monumentais só para dar aparência insigne e augusta a alguém nem tão esplêndido assim.

De minha parte, menos metafísico, queria confirmar com mais certeza os relatos de meus ascendentes, que eram as únicas ferramentas disponíveis até bem pouco tempo atrás e, se por um lado traziam todo um colorido à nossa imaginação, por outro careciam, infelizmente, de precisão. Eu, por exemplo, sei que meus avós paternos eram italianos, e os maternos eram um da Itália, outro da Espanha. Mas e antes disso? De onde eram os avós dos meus avós? É sempre possível fazer suposições, mas sem cravar grandes prognósticos.

Daí que surgiram nos últimos tempos exames baseados em DNA para traçar as origens baseados na semelhança genômica. Isso me chamou bastante a atenção, de modo que me interessei por sapear um orçamento. Caro! Mas a magia da internet permite que tentemos conseguir promoções, e verifiquei que vários canais do YouTube oferecem cupons de desconto para quem fizesse um orçamento por sua indicação. Isso fez minha cabecinha mascateira girar suas engrenagens: é óbvio que eles não permitem cupons cumulativos via site, mas o que aconteceria se eu usasse a rapidez típica dos mercadores e um pouco de confusão mental no meu interlocutor? O jeito é tentar fechar um contato e conseguir falar com alguém de carne e osso. Em uma delas, fiz uma maçaroca de ofertas dadas por vários youtubers, introduzi a temática da vontade inenarrável, falei sobre os fregueses que se ganham e a quantidade de indicações que a gente consegue fazer e mais um monte de blá-blá-blá que minha suposta descendência judaica parecia ensinar. Sim, é verdade. Eu ando por Higienópolis e o pessoal me cumprimenta, como se pertencesse à comunidade. Quem me dera.

O resultado foi surpreendentemente bom, com um desconto de 40% para dois exames, o meu e o da patroa, o que já serve para os filhos também. Recebidos os kits e enviadas as babas, o resultado chegou em quinze dias. Com relação à patroa, deu mais ou menos o que se esperava: uma mistura de Europa Central e Américas, com pitadas de Itália e África Subsaariana. Quanto a mim, 93% de ascendência europeia, com ênfase nas Penínsulas Itálica e Ibérica e Europa Central, o que certamente vem da França, com um restinho do norte da África e do Oriente Médio. Duas surpresas, no entanto. Mesmo com a cara típica de judeuzinho do Bom Retiro, menos de dois por cento do meu DNA vem dessa etnia, e um bom pedaço dele, cerca de 10%, vem do Cáucaso, cujo representante mais comum em Terra Brasilis vem dos armênios.

Não tenho nenhuma notícia de parentes da Armênia. Tentei ainda puxar o restinho da memória dos parentes mais antigos para tentar achar alguma possível via, mas nada. A única coisa que eu sei é que meus avós moravam na Mooca e o seo Poladian, maldosamente chamado de turco da foto*, era um vizinho que tinha uma casa fotográfica. O resto é história, ainda mais porque não quero deposições contra a honra para nenhum dos meus familiares.

Todos nós gostamos de conhecer origens, porque nossa cabecinha carrega um telencéfalo extremamente desenvolvido e que é louco por estabelecer correlações de causa e efeito, mesmo que nem sempre elas sejam reais. E se procuramos saber de nossas origens, também nos apetece conhecer as origens de nossos países, de nossas religiões, de nossos sistemas sociais, de nosso conhecimento científico e até mesmo de nossos times. Fazemos isso porque uma história contada inteira dá encadeamento muito mais lógico ao estado atual do mundo, e mata uma espécie de fome de conhecimento. É como ocorre com as baratas que aterrorizam os verões brasileiros. Se sabemos por onde elas entram, podemos agir tapando buracos e instilando venenos, ao passo que uma mera presença misteriosa dá aquela sensação de braços amarrados. Ou então falando mais fácil: podemos passar a vida inteira sem perguntar de onde veio o bibelô que está na estante, mas é muito mais legal quando ele tem uma história e nós podemos transmiti-la, não é verdade?

A mesma coisa acontece com as palavras, essa espécie de átomo da linguagem, as primeiras a carregarem consigo algum sentido. E o estudo da origem das palavras e das expressões idiomáticas é conhecido como Etimologia.

Da mesma forma que ocorre com seres humanos e com coisas, sempre importa mais o sentido imediato das palavras. É quase uma coisa instintiva. Preocupamo-nos com seu uso e seu significado dentro de uma frase, no mais das vezes sem pensar em sua história, o que faz com que o estudo etimológico pareça secundário. Acontece que, se em um momento corriqueiro possa ser verdade que minúcias linguísticas nem passem pela nossa cabeça, em qualquer leitura mais aprofundada a correta interpretação da origem de uma palavra traz informações que enriquecem muito o sentido geral que se obtém.

Quando coletamos informações sobre uma cidade, como costumo fazer em meus textos de viagens, muitas vezes damos de frente com nomes indígenas, muito sonoros, mas que não sabemos de imediato o que querem dizer. Ao desvendá-los, ganhamos dados que não falam somente sobre a palavra em si, mas sobre a própria origem do lugar, e isso mostra a importância da Etimologia para além da curiosidade. No caso do estado de Pernambuco, por exemplo, uma das versões diz que este nome vem do tupi paranã-puka, que significa algo como "buraco no mar". Isso se deveria ao fato de que há um braço de mar dividindo a ilha de Itamaracá ao continente, que fica praticamente encaixada na costa, como se fosse uma peça de puzzle. Notem as informações extraídas somente da origem do nome: trata-se de uma região costeira, onde há ao menos uma ilha que contém importância geográfica. É mais ou menos o que eu já havia falado neste texto, sob outro viés, em que eu choramingava contra as mudanças de nomes significativos de ruas por sumidades absolutamente alheias à história daquele local. Outro exemplo, este vindo do português mesmo: Bahia. Sabe-se que seu nome completo era Bahia de Todos os Santos, o que já nos diz se tratar de região litorânea, com um acidente geográfico específico (a baía) e que foi descoberto no dia 1 de novembro, por ocasião da festividade católica de Todos os Santos, dia destinado, ora vejam, para homenagear todos os santos reverenciados por aquela igreja, inclusive os desconhecidos.

Bom… sejamos justos e verifiquemos a etimologia da palavra Etimologia. É uma palavra que vem do grego e é a fusão dos termos etimo e logos. Este último já é velho conhecido nosso, e, no contexto aplicado, significa estudo. Porém, como o tema é origem das palavras, vou dar uma caprichada. Logos é uma palavra polissêmica, ou seja, pode ter múltiplos sentidos. Sua raiz mais profunda está na capacidade humana de interligar o discurso com a estrutura do universo. Em outros termos, o logos é nossa razão, a transformação de realidade em conceitos e em linguagem, e seu consequente processamento. Por isso, quase sempre que queremos nos referir ao estudo sistemático de alguma área, acrescentamos a ele o termo "logia".

E o que é esse tal de étimo? É o significado mais profundo, a verdadeira acepção de um termo. Sempre que se faz um estudo aprofundado de uma palavra qualquer, é em busca do étimo que se vai.

Percebemos que a busca pelo étimo revela vias diversas de transmissão dos termos através da história. Como vivemos no Brasil e temos o português como língua base, a maior parte de nossa etimologia é de origem latina. Ocorre que nossa mestiçagem linguística é ainda maior que em Portugal. Tudo começa lá mesmo, porque o latim que origina a última flor do Lácio é cheio de misturas bárbaras, além do próprio latim já carregar consigo muitas etimologias indiretas. Eu falava sobre o étimo. Ele chegou a nós pelo latim etymon, que, por sua vez, é oriundo do grego étymos. O mesmo ocorreu por via das invasões ao império romano, que trouxeram palavras germânicas, árabes et cetera. A alface de sua salada, por exemplo, tão cara aos portugueses, veio do Magreb, que conheciam a folhagem por al khass.

Só que em Pindorama a coisa é ainda mais enriquecida com vitaminas e ferro. Esta é uma terra de imigrantes, de escravatura tardia e que era povoada de indígenas, o que fez com que sua língua se tornasse ainda mais preenchida de termos que o português de Portugal. Notem que alguns deles são vazios de sentido para os conterrâneos de Camões, mas que podem ser aproveitados por aqui sem perdas: “tocaia” e “esconderijo” são sinônimos no Brasil, sendo que o primeiro, sendo de origem tupi-guarani, inexiste em Portugal; no Brasil, a palavra “tchau” se tornou marca da despedida breve, vindo do italiano ciao, o que não ocorre em Portugal. “Moleque”, de origem africana, não faz grande sentido na ponta da península. E assim vai.

Os etimólogos fazem trabalho de gente grande. Normalmente, temos o termo presente e consegue-se recuar no tempo com alguma tranquilidade até certo ponto. Daí para trás, os elementos vão ficando mais e mais nebulosos, até se perderem na poeira do tempo. Entretanto, a busca é fundamentalmente sempre a mesma: encontrar o radical de um termo. Essa palavra vem de raiz, que é uma alegoria para o que de mais profundo uma palavra pode ter. Para descobrir essa origem mais remota, é bastante normal a necessidade de uma espécie de engenharia reversa, atentando à maneira como a palavras se formam para fazer o processo invertido. Eles levam em consideração fatores como:

Afixação: um radical dificilmente é apresentado sozinho para dar significado completo a uma palavra. Notem, por exemplo, que os verbos contêm suas várias desinências para situar o tempo e as pessoas. O verbo “cruzar”, por exemplo, tem seu radical cruz-, que sempre estará presente em qualquer palavra que lhe seja derivada, além do sufixo -ar, que lhe dá a característica de ser um infinitivo, e daí por diante na conjugação: cruzei, cruzaste, cruzaria, cruzem, cruzando e via discorrendo. Também há prefixos que modificam o radical - entrecruzar, descruzar e por aí vai.

Apofonia: é a alteração de timbre de vogais em vocábulos que compartilham um mesmo radical. É muito comum observar este fenômeno nos plurais onde a letra “O” é fechada no singular e aberta no plural: porto/portos, novo/novos, gostoso/gostosos. Há casos, porém, em que a alteração é mais radical, com a substituição de uma vogal por outra. Um clássico vem da correlação podos em grego e pedis em latim. Ambas significam “pé” em português, mas a diferença no uso do radical faz com que palavras grafadas de maneira diferente tenham significado igual, como em podofilia e pedolatria, o ato de ter fetiche por pés. Não confundir com pedofilia, por gentileza, que é coisa muito mais séria.

Assimilação: a junção de certas letras no processo de afixação tem a tendência de fazer com que uma assimile a outra, modificando-a ou suprimindo-a. Comparando a palavra ajuntar e adjunto, podemos verificar que ambas possuem o mesmo radical e o mesmo prefixo. Entretanto, em ajuntar ocorreu a assimilação da letra “D” no prefixo ad, enquanto em adjunto isso não ocorreu.

Particípio: é o processo de adjetivação de um verbo. A questão aqui é que frequentemente vemos um particípio nascer de outro particípio. Desta forma, quando se acha o radical de uma palavra, encontraremos um particípio, e ele mesmo já será a derivação de outra.

Há ainda outros fenômenos de transformação, como a tendência em se trocar sistematicamente uma letra por outra, como demonstrei no texto deste link, ou a utilização de letras de ligação para acomodação fonética. Um bom exemplo é a palavra “chaleira”, cuja composição dispensaria a consoante “L”, mas fica muito esquisito falar chaeira, concordam? É muito mais acomodado linguisticamente a palavra com a adição da ligação, mas etimologicamente se torna um problema quando acontece em uma língua remota.

A etimologia não cuida unicamente das origens das palavras, mas também das expressões idiomáticas, que são muito mais particulares de cada língua, porque envolvem muito do viver popular próprio. Isso faz com que a tradução de uma expressão brasileira não faça sentido algum em Portugal ou em Angola, por exemplo. O termo “pedra noventa”, comum no século XX nas regiões de colonização italiana, é completamente estranha em Portugal. E por que? É que é uma expressão que vem do jogo de tombola, semelhante ao bingo, que é composto por cartelas com números que vão sendo sorteados de um saquinho, até que alguém as complete. A maior das pedras é a noventa, e, portanto, o pedra noventa é o amigo que não dá furo, aquele em que a gente pode confiar.

Por todo o exposto, é bem fácil de notar como a etimologia não é apenas um apanhado de curiosidades sobre a origem dos nomes (embora essa seja uma característica absolutamente legítima). É também um delineador das rotas por onde o conhecimento passa. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Um clássico das consultas etimológicas:

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010,

* Chamar um armênio de turco é a mesma coisa que glorificar o assassino de seus pais, meu caro leitor. Para maiores detalhes, leiam este texto.