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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Sobre novelas e a ideologia que nos cerca

Olá!

Faz algum tempinho atrás, publiquei dois textos que discutiam a questão da atitude ética na publicidade, por conta das aporias da minha afilhada Renata (primeiro aqui, depois aqui). Estes textos suscitaram alguns comentários feitos pelo meu sobrinho Pedro, em ótimo texto disponibilizado em seu blog Reflexos. Recomendo sua leitura antes de prosseguir aqui.

Em síntese, temos a contraposição do valor simbólico com relação ao valor real da mercadoria e também a ação subjetiva e sugestiva da publicidade como meio de convencimento, no que concordo plenamente. De fato, a publicidade não se escancara para vender o produto das empresas. Utiliza-se muito mais da sua capacidade de persuasão emotiva.

Pois muito bem. A resposta do Pedro inspirou-me a prosseguir um pouco mais no assunto. Temos então um problema que não se limita unicamente à publicidade, mas à mídia como um todo. Vamos analisar?

Pincemos o caso das novelas, essa verdadeira mania dos brasileiros, mais essencial que o pão com manteiga (na chapa ou fora dela) no café da manhã. Seus roteiros são muito semelhantes uns aos outros, isso é um fato. Há sempre um mocinho, há sempre o mau, a trama sempre se desenrola na base de romances. Quando não são o foco principal, são acessórios imprescindíveis. O mocinho sofre muito, o malvado se regozija disso. Mas no final toda a situação se inverte: os bons revertem o estado de coisas, casam-se, juram amor eterno e vão ser felizes para sempre. Os maus morrem, são presos, enlouquecem, desaparecem, qualquer coisa do gênero. A família dos bons se reagrupa, a dos maus de desagrega, com a devida salvação dos membros que se desvinculam da pia mater do mal, o vilão. E torcemos desesperadamente para que a cadeia de acontecimentos escorra sempre de acordo com esse script. Se isso não acontece, temos uma sensação de desconforto, como se algo estivesse fora de seu lugar, algo não se justificasse. Significa, portanto, que a novela (por extensão, a mídia) é um espelho de nossos anseios, correto?

Hmmmmm! Creio que talvez não. Ou talvez sim no que se refere a anseios, mas não ao real observável. Talvez seja meio difícil encontrar alguma reprodução fidedigna do mundo midiático em nosso meio.

Pensemos. Como falei ainda agora, na novela temos a expectativa de que as boas famílias se tornem cada vez mais unidas, e que as famílias dos maus se dissolvam, não é isso? Olhamos então para nossas próprias famílias e percebemos que nós mesmos somos desagregados: os pais se separam, os filhos querem sair de casa, temos parentes que não vemos desde o último enterro, vamos a um casamento e não reconhecemos mais ninguém. Pela lógica midiática – somos, portanto, maus? Se nossa vida fosse uma novela, estaríamos na conta daqueles a quem desejamos o desaparecimento?

Esse pequeníssimo exercício analítico nos permite perceber que ideais e realidade não tem vínculo necessário. Isso, de certa forma, é um alívio, porque desejos e vontades são movidos por componentes irracionais, por isso é bom movimentá-los em uma medida justa. Só que a sensação de incômodo com o fim inesperado da novela permanece. Será que este sentimento é feito da mesma matéria que o desejo de tomar o Toddynho que acabei de ver na propaganda, tão melhor que esta porcaria de chá aguado que eu estou tomando agora? Será que absorvi um modelo pré-estabelecido e oculto de mim que força uma determinada ordem que as coisas tem que seguir? Só se o nome for alienação.

Falamos desta palavra e já pensamos em loucura. Não, não, calma, para de babar! Alienação é muito mais do que isso, e loucura é conceito pra lá de relativo (leiam ou releiam aqui). Também não estou pensando em Marx (não ainda). Comecemos por seu antecessor e influenciador nessa matéria, Ludwig Feuerbach.

Feuerbach fez uma interessantíssima análise sobre o sentimento religioso. Para ele, o homem, ao pensar em suas divindades, extraía aquilo que tinha de melhor em si mesmo: a justiça, a bondade, a misericórdia, a paciência, o amor e assim por diante. Atribuía todo esse conjunto de virtudes, elevados ao paroxismo, a um outro ser, devidamente divinizado, externo a si próprio. Esse ser (alienus, O Outro em grego) é seu Deus. Este Deus é pleno de todas as maiores virtudes humanas porque o próprio homem não se julga digno, ou merecedor, ou forte suficiente para reconhecê-las como suas. Diante dessa constatação, Feuerbach conclui que a teologia nada mais é do que uma antropologia, porque ao estudar os atributos da divindade chegamos aos valores mais significativos para o homem. A grande questão em Feuerbach é: por que o homem tem a necessidade de atribuir a esse grande Outro qualidades que na verdade são suas?

A análise de Feuerbach é inteligente, mas tem algumas aporias. Isso porque ele leva em consideração os princípios judaico-cristãos vigentes na Europa, mas não investiga em profundidade a religiosidade de outras matrizes, onde as divindades não recolhem os melhores aspectos dos membros da comunidade que as reverenciam. E, mesmo ao considerar apenas o cristianismo, há o reverso da medalha: no âmago da religiosidade, nem sempre a divindade é detentora apenas de qualidades, mas de sentimentos menos nobres também. Pensemos, por exemplo, na crença popular das promessas feitas aos santos, muito comuns no Catolicismo. O não cumprimento da promessa implica em uma “desproteção” do mesmo. Não adianta pedir-lhe mais nada, porque está desfeito um vínculo de confiança, gerando uma estranha contradição para quem é supostamente um santo (que, a bem da verdade, não é acolhida pela doutrina oficial da Igreja, que não reconhece como necessariamente válidas as graças obtidas por promessas. A fé seria o combustível da graça, e não a realização material da oferenda. Também é necessário lembrar que, apesar disso, a Igreja não contraria frontalmente os pagadores de promessa, como se pode observar nos imensos salões de ofertas da basílica de Aparecida, para citar um exemplo). A doutrina do dízimo das denominações protestantes, em especial dos neopentecostais, é ainda mais clara: a quem falhar com essa obrigação ou descumprir outras leis divinas, toda sorte de desgraças está reservada, de descamações a hemorróidas. O livro bíblico Deuteronômio, em seu capítulo 28, relaciona todos os castigos destinados aos infiéis. O Deus aqui referido assemelha-se mais a um comerciante do que um ser detentor de todos os atributos pios, que promete pronta entrega para pagamentos em dia, e nome no Serasa para maus pagadores. Virtudes como a piedade e a misericórdia só se atingem com a quitação da dívida.

Santos que desprezam, Deus que se vinga: aqui o alienus não é formado apenas das virtudes preconizadas por Feuerbach, mas também dos mais terríveis defeitos (como, de resto, já acontecia com o paganismo e seus deuses similares a humanos superdotados).

Mas Karl Marx percebeu que as idéias de Feuerbach tinham uma lógica que transcendia o mero alcance teológico, no que consistia, aliás, sua principal crítica a esse sistema. Da mesma forma com a qual se pensa a divindade como uma coleção das qualidades humanas, também realizamos transferências de atributos aos produtos que consumimos e às vezes criamos, bem como à publicidade realizada em relação a eles. Os produtos, sejam eles físicos, intelectuais, culturais e et cetera, recebem valores que não são seus; são nossos, mas imputamos a eles. Temos um exemplo quando pensamos no heroísmo dos esportes radicais praticados nas propagandas de cigarro, sem nos darmos conta do contrassenso existente nessa relação. Não é o cigarro que propicia este heroísmo, ele já se encontra em nossa disposição de enfrentar desafios. Outro exemplo: existe um comercial de uma montadora que para mim é particularmente detestável. Essa peça diz que quando envelhecermos viveremos apenas de nossas lembranças, e deixa subentendido que elas só serão boas se adquirirmos o produto certo. No carrão (o alienus) está depositada nossa felicidade. Então é isso? Só verei minhas expectativas correspondidas por aquilo que possuo? A felicidade não é possível aos pobres? Não é inerente ao ser humano, mas às posses do ser humano? Infelizmente, este tipo de trabalho só leva à frustração e, pior ainda, ao ódio. O objeto inalcançável, portador da realização do desejo, passa a ser visto como algo que não me pertence, como se não dependesse de minha força de trabalho e de minhas parcas economias para ser possível. Mas a roda já está em giro, e procurarei alcançar este objeto com todas as minhas forças, sacrificando meu tempo livre, minhas relações pessoais e a cervejinha de sexta-feira nesta busca quase irracional.

Marx percebe, portanto, que a alienação se espalha por todo o meio social, inclusive em suas matizes políticas, e dá a esse estranho comportamento, que inibe o homem de reconhecer seus atributos migrados ao alienus, o nome de ideologia.

Para estimular o consumo ao máximo, a publicidade faz uso desta ideologia, e procura trabalhá-la em favor das empresas que representa cutucando o aspecto emocional do contribuinte. Como foi bem explicitado pelo Pedro, temos um órgão que coíbe os abusos da propaganda leviana, o Conar. Mesmo não sendo um órgão regulador, é importante discernir que sua lógica é baseada em regras, normas, convenções, leis. Isso implica em reconhecer que, mesmo ao impor limitações, a regulamentação segue os anseios da sociedade. Afinal, não são as leis que regem os mecanismos sociais. Pelo contrário, é a sociedade que se espelha nas leis que cria. Por isso mesmo, temos uma produção midiática feita sob medida ao que quer nosso organismo social. E também é por isso que não sou contrário à publicidade, mesmo da maneira com a qual é feita. Idem quanto as novelas. Ela é reflexo exatamente do que somos. Só acho que, no final das contas, este movimento circular vicioso, viciado e viciante poderia e deveria ser amenizado, principalmente lembrando que a nossa principal mídia (a TV ainda) é uma concessão pública.


Recomendação de leitura:

A obra de Feuerbach é quase que monotemática. Ele não pensou sistemas metafísicos, éticos ou estéticos. Preferiu se ater mais ao estudo das influências teológicas na existência humana. Talvez por isso não seja tão conhecido. Mas sua tese é precursora de todo o marxismo, e, como tal, traz reflexos à Filosofia ainda hoje.

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2009.