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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Pequeno guia das grandes falácias – 64º tomo: o if by whiskey

(Há dois lados na questão da vacina? Vamos analisar pelo viés das falácias)

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Eu tomei todas as doses da vacina. Não tomei forçado, mesmo com meu medo de agulhas. Tomei porque é um caminho consolidado, mesmo com toda a urgência com as quais estes fármacos foram produzidos. Cumpri a rigor meu calendário, as duas doses prescritas e a de reforço, todas nos primeiros dias da janela para minha idade e comorbidade. Coloquei um avatar de Wally Gator no Skype e fiz campanha com os meus parcos recursos.

Eu usei máscaras com todo o rigor possível, até mesmo na porta do apartamento, para colocar o lixo no latão. Usei máscaras de pano no começo, duas quando necessário, progredindo para as cirúrgicas e posteriormente para as PFF2, raspando o bigode de décadas para melhor acomodá-las e resistindo bravamente ao incômodo nas orelhas e a vontade de arrancá-las nos momentos de maior esforço, quando você puxa o ar e não vem. Mantive-as cem por cento do tempo em que pus o focinho para fora de casa, evitando a custo de colocar as mãos nelas, mesmo com o nariz coçando a ponto de ficar vermelho. Não fiz estética – sempre procurei usar máxima eficiência, fazendo inclusive o risonho teste do palito de fósforo, para verificar possíveis vazamentos. Usei fita adesiva para mantê-las no lugar e evitar os escapes, fáceis de notar quanto se usa óculos. Enfiei a mão no bolso com gosto, e, mesmo com uma tristeza profunda vinda da conta, dei pouquíssimo descanso aos artefatos usados, como se fossem descartáveis.

Eu mantive o afastamento social, vivendo uma vida quase eremítica até tomar as primeiras duas doses da vacina. Após isso, poucas idas a lugares essenciais, sem festas de fim de ano, sem receber ninguém em casa, sem aceitar nenhum convite e, quando saísse, cumprindo todas as normas de segurança até com excesso.

Eu usei sabão para as mãos, álcool para esterilizar qualquer produto vindo de fora, usei Lysoform© nas roupas, cloro nos vegetais, revi todas as condutas de higiene que eu tinha até hoje, criando calçados exclusivos para sair e para ficar em casa, tomei banho imediatamente após qualquer saidinha que fosse para buscar uma Aspirina© na farmácia.

Eu cheguei ao descuido em nome do cuidado. Desmarquei todas as consultas que eu tinha, inclusive as periódicas, utilizando serviços remotos em qualquer lugar onde ele fosse possível. Afinal de contas, os serviços médicos, os laboratórios e os hospitais eram onde a coisa mais fervia. Fiquei com gastrite e otite até se curarem sozinhos. Não é a melhor forma, mas sempre que eu punha as coisas na balança, pendia para o risco de uma doença sem cura, com resultados inesperados.

Eu acompanhei a evolução da pandemia pela TV e pela internet, aprendi termos novos e velhos, morri de raiva com a atitude dos mandatários e suas poções mágicas, acompanhei a evolução gráfica dos casos e das mortes, mesmo com as sabotagens públicas.

Cuidei por mim, pelos filhos, pela patroa. Pelos velhinhos deste prédio de gente doida. Pelos parentes e amigos, pelos sogros já idosos e por gente que eu nunca vi na vida, porque ser responsável é isso: cuidar de quem se gosta é fácil. Se dizemos que amamos país, estado e cidade, é preciso cuidar do povo destes mesmos lugares.

No entanto, ela veio. No domingo passado acordei com a rouquidão típica dos fumantes exagerados, só que eu não fumo há décadas. "Deve ser refluxo", disse a patroa. Devia ser mesmo, pensei eu, diante da ausência de qualquer outra moléstia, e segui meu dia normalmente. Segunda e terça amanheci da mesma forma, o que foi me deixando bolado, e fui atrás de fazer um teste, já que a semana seguinte estava sujeita a ser de açodada escala presencial. Só consegui fazê-lo na quarta à noite, diante da explosão de consumo dos kits. O cotonete me fez morrer de coceira, uma sensação de desconforto pior que uma picada. Fiquei do lado de fora da farmácia, ainda cioso das minhas responsabilidades e dos meus cuidados. A patroa e a filha mais nova confessadamente achavam que era manha minha, e ficaram mais surpresas que eu com o diagnóstico.


Como um todo, meu grande sintoma foi a tal rouquidão, que ainda persiste, mesmo com um novo exame já declarando o término do perrengue. É bem verdade que na sexta-feira eu passei bem mal, com enjoo o dia inteiro, culminando no vômito que eu tanto odeio. Depois disso, fiquei com uma febrinha baixa que durou pela madrugada, com a cara-metade pacientemente me velando, sem querer saber de isolamento, a louca. A coisa terminou no clássico suador. E ça tout.

A questão, portanto, é sobre vacinas. Se você pegou a doença, você acha que valeu a pena se ocupar tanto de tomá-las conforme o prescrito?

Bem, se por valer a pena você quiser dizer que eu deveria estar protegido conforme me foi assegurado pela imprensa e pelos órgãos governamentais, e que eu poderia viver comumente, como se a pandemia tivesse acabado tão logo passassem as duas semanas de preceito após as doses recomendadas, e que eu poderia prescindir de vida tão regrada quanto a que eu descrevi logo acima, eu diria que não, não valeu a pena. Afinal de contas, a doença se instalou em mim em qualquer vacilo ainda desconhecido.

Agora, se por valer a pena você quiser dizer que obtive uma proteção maior do que teria pelos meus anticorpos pegos de surpresa, com sintomas muito mais graves e sequelas bem mais pesadas, que meus familiares mais próximos não foram contaminados por estarem igualmente vacinados, que as pessoas com as quais tive contato involuntário estando vacinadas igualmente continuam no planetinha azul, que meu tempo de recuperação foi muito mais curto e permitiu tornar indetectável a contaminação em poucos dias, neste caso podemos dizer que valeu a pena, porque a promessa da vacina não vai somente no bloqueio à doença, mas também na amenização dos efeitos.

Não preciso nem dizer que estamos diante de um novo tópico do Pequeno Guia das Grandes Falácias, a coleção de argumentos capengas que eu mantenho neste humilde espaço já por um bom tempo. Estamos diante de um tipo especial do falso dilema e da falácia relativista, de descrição bastante recente, conhecida pelo irônico nome de If by Whiskey, ao que caberá uma bela explicação.

Sua origem está em um discurso do deputado norte-americano Noah “Soggy” Sweat Jr., diante da continuidade ou extinção ao veto a bebidas alcoólicas no estado de Mississipi. Como bem se sabe, os EUA tiveram momentos no século XX onde foi implantada a Lei Seca, uma ideia furada para mitigar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Em uma das mais célebres inversões de causa e efeito de que temos notícia, acreditava-se naquele país que o álcool era motivador de miséria e violência, como se a primeira não visse nas bebidas uma válvula de escape e a segunda não fosse agravada pela atividade do comércio ilegal. Mesmo após o término das restrições pelo governo federal, e levando em conta que os EUA formam uma federação de verdade, alguns estados mantiveram por mais algum tempo suas restrições particulares. Como se vê, é matéria polêmica, com visões antagônicas dos moralistas antibebida e dos liberais antiproibição, o que fazia ser delicadíssima de se lidar para quem tinha contínuas pretensões eleitorais. Tal qual vemos hoje em dia, os ânimos estavam acirrados e qualquer posição adotada poderia representar munição para os lados contrários.

Instado a se posicionar, Soggy proferiu o seguinte discurso, do qual faço livre tradução:

“Meus amigos, eu não pretendia discutir esta controvérsia neste momento. Entretanto, eu quero que vocês saibam que eu não irei evitá-la. Pelo contrário, eu tomarei uma posição sobre qualquer assunto em qualquer momento, por mais controversa que possa ser. Vocês me perguntam o que eu penso sobre whiskey. Pois bem, aqui está o que eu penso sobre whiskey.

Se quando vocês falam whiskey, querem dizer a poção do diabo, o flagelo envenenado, o sangue do monstro, que profana a inocência, destrona a razão, destrói os lares, cria miséria e pobreza, literalmente tira o pão da boca de muitas criancinhas; se vocês querem dizer a bebida maligna que derruba os homens e mulheres cristãos do topo da vida justa e cheia de graças no poço sem fundo da degradação, e do desespero, e da vergonha, e do desamparo, e da desesperança, então certamente eu sou contra.

Porém, se quando vocês falam whiskey, querem dizer sobre o óleo da conversação, o vinho filosófico, a cerveja que é consumida quando bons amigos estão juntos, que coloca uma canção em seus corações e sorriso em seus lábios, e o brilho quente do contentamento em seus olhos; se vocês querem dizer a alegria natalina; se vocês querem dizer a bebida estimulante que coloca a primavera nos passos dos velhos cavalheiros nas manhãs gélidas; se vocês querem dizer a bebida que permite a um homem ampliar sua alegria, e sua felicidade, e a esquecer, mesmo que por um instante, as grandes tragédias da vida, as mágoas e as tristezas; se vocês querem dizer aquela bebida cuja venda traz ao nosso tesouro milhões de dólares, que são utilizados para providenciar cuidados carinhosos para nossas pequenas crianças deficientes, nossos cegos, nossos surdos, nossos tolos, nossos pobres idosos e enfermos; para construir estradas, hospitais e escolas, eu certamente sou a favor.

Essa é a minha posição. Não vou me retratar dela. É o meu compromisso.”

Dá para perceber todo o sabor de sabão neste pequeno discurso. Tomam-se duas posições para não se tomar posição nenhuma, e, dessa forma, tentar passar-se incólume por qualquer lado que venha a se por em questionamento. É atitude típica de políticos, que buscam não marcar tão fortemente suas posições a ponto de inviabilizar a recepção de votos por grupos concorrentes.

Por conseguinte, o grande propósito desta falácia é contingenciar um determinado argumento à opinião do seu interlocutor. Com o meneio retórico, o argumentador coloca uma bifurcação à sua proposição, como se fosse possível responder com “sim” e “não” à mesma pergunta objetiva. Isso claramente fere o princípio da não-contradição, que enuncia não ser possível a uma sentença ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Por outro lado, e derivado do fato de se tratar de questionamentos objetivos (você é a favor ou contra a venda de bebidas alcoólicas), não se pode dizer impunemente que “a beleza está nos olhos de quem vê”. Sim, é verdade que cada um pode ter uma opinião sobre qualquer assunto, mas nessa falácia temos uma inversão. O danadinho, ao invés de se situar e dar uma posição, relativiza as possibilidades de resposta e se põe em situação neutra a todas elas, justamente atendendo a todas elas, notaram?

Claramente há possibilidade de se aventarem duas posições sem que tenhamos uma falácia. O que faz com que este argumento seja falacioso é sua objetividade. Se a causa em questão é carregada de subjetivismo, então poderemos não ter um erro. Em um exemplo para lá de boçal, posso dizer que gosto de azul desde que não esteja sobre um campo verde, quando aí não gostarei do azul. É juízo de gosto, e não uma declaração objetiva sobre um assunto objetivo. Também a declaração de ausência de opinião formada tira a falta de lógica da declaração. Outro ponto é onde se coloca a situação temporalmente. Um argumento como o abaixo não é falacioso:

“Se houver disposição orçamentária, sou favorável à implantação de praças esportivas na cidade; entretanto, não é razoável que se desloquem recursos de áreas mais urgentes caso não haja recursos suficientes”.

Notem que aqui não há tergiversação, mas um condicional. Isso não é um ensaboamento, como na forma canônica do whiskey, e sim um contingenciamento para que se delibere a favor ou contra uma causa, o que me parece mais justo.

Com relação a mim e à minha posição com relação às vacinas, não vou me colocar tucanamente em cima do muro. Eu já dei meu parecer sobre a loucura que se criou em cima das vacinas e continuo achando que há muito de fundo moral na atual discussão, só que a coisa acabou por se pulverizar tanto que acabou ficando invisível. Para quem não tiver paciência de ler, vou resumir aqui. O Brasil sempre teve uma cultura de vacinação. Lá no começo, a coisa ia goela abaixo da população, que mesmo por vias tortas acabou tomando consciência da importância que tinha para sua saúde. Acontece que uma das campanhas foi para vacinação contra HPV em meninas pré-adolescentes. A principal via de introdução deste vírus no corpo é através do ato sexual (mas não só), e os moralistas de plantão vieram com suas habituais maluquices, do tipo “estão estimulando as meninas a uma sexualidade precoce”. Foi a primeira grita de real impacto que eu percebi na sociedade brasileira dos tais antivax, toda permeada do tal discurso catastrofista contra os bons costumes – ora, como se uma vacina fosse estimular ou impedir os impulsos de uma sociedade cada vez mais sexualizada a partir das elites.

Desde então, a doideira se disseminou, mas meio que se perdeu essa origem. Agora, fala-se em coisas como invasão ao direito ao próprio corpo, impedimento à liberdade de escolha, transformação de humanos em cobaias e, claro, implantação de chips para que governos, milionários, illuminatis ou marcianos controlem seu cérebro ou te matem quando bem entenderem.

Vacinas são boas para todos e foram boas para mim também. A desgraça só não está maior porque a grande maioria dos brasileiros está fazendo valer sua tradição de se vacinar, sem dar tanto ouvido para as bazófias da galera maluca, só que esse é o tipo da coisa que tende a crescer. Tem gente que absorve essas coisas porque não conhece a dinâmica social que tem uma campanha, e se deixa levar pelos casos que vê mais de perto, ou pelo o que ouve dos barulhentos, que se tem essa ferramenta para contradizer o bom senso. Só que é uma ferramenta muito eficaz.

A variante atual é muito contaminante, e pega de bobeira. A vacina é boa, mas não é milagrosa. Milagres não existem.

Cuidem-se bem. Bons ventos a todos.

Recomendação de audição:

O endereço abaixo contém a gravação de uma reprodução do famoso discurso do whiskey de Soggy Sweat:

https://en.wikipedia.org/wiki/File:Whiskey.ogg

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Sobre as peculiaridades da visão de Xenófanes sobre o cosmos e a arché

(Sempre que falamos sobre os primeiros filósofos, esquecemos de Xenófanes, mas sua visão era bastante própria e interessante)

Olá!

Os campinhos do Disparada e dos Veteranos, o quarteirão da Doces Santa Fé, as chácaras nas margens do Córrego da Moóca, as bordas da ferrovia Santos-Jundiaí, o caminho que acompanhava a adutora do Rio Claro, o quintal da Dona Lúcia, a rua da minha casa. Estes eram os lugares onde eu-menino respectivamente jogava bola, empinava pipas, roubava amoras, cortava caminho, ia para a escola, buscava ovos e, claro, saía de casa. De comum, todos estes lugares tinham o piso: terra, a terra batida típica das cidades que transitam de um ar ainda rural para a definitiva metropolização. Aquela terra já pobre, dura, cheia de formigueiros, e que criam uma espécie de camada saponificada quando cai a garoa, dando a ilusão de rinque de patinação indesejado a quem sai por compromisso.

Minha casa ‘inda tinha daqueles raspa-barros no portão, peça encontrável nos bairros mais antigos até hoje como um monumento aos incidentes de outrora, e minha mãe mantinha um pano de chão bem ao lado da torneira, para eu dar uma “tirada no excesso” assim que chegasse da rua com terra além dos sapatos. Fazia isso para evitar o rastro que chegava até o banheiro, e também não ter que me aplicar um dos seus inúmeros corretivos.

Naquelas pegadas, havia histórias de vida, como essas que eu conto agora. Era a terra que veio sendo cada vez mais afastada de nossos pés imundos, sempre sujeitos a cortes e vermes, mas que hoje estão protegidos por camadas de impermeabilização e tênis de marca. A mesma terra socada está embaixo do asfalto e do cimento, isolada das calçadas por muros tão altos que nem conseguimos supor se ainda há alguma flor que se plante nela, fora dos vasos que ficam nos parapeitos das janelas.

Esse é o painel que já meus filhos tinham para se relacionar com a terra, embora ainda na infância deles houvessem alguns poucos terrenos que hoje estão com prédios em cima. Essa terra que ainda é muito visível nas cidades do interior virou quase um artigo de exposição em Terra da Garoa e outras capitais, e é óbvio que esta relação tão telúrica em outros tempos está completamente diferente hoje em dia.

Sinto falta da terra? Olha, sinto falta é da minha infância, mas não posso deixar de sopesar custos e benefícios. Por um lado, era o inferno quando chovia e precisávamos chegar de aventais brancos na escola, porque os respingos eram inevitáveis, mas isso garantia matéria-prima para as boas guerras de lama no retorno. Asfalto representa piso decente para colocar o carro, assim como aumenta o perigo de atropelamentos de nós-crianças brincando nas ruas. Era garantia de espaço para brincar, assim como das doenças de barriga, que nos obrigavam ao dia do “salamargo”, uma mistura de ritual com higiene, quando nossas avós deixavam o medicamento exposto ao sereno, para no dia seguinte fazer a purgação. Não estão entendendo? Tinha um dia todo santo ano em que éramos vermifugados, com sal amargo, licor de cacau ou limonada purgativa, qualquer um dos três, que funcionavam de maneira similar: o purgante dava uma caganeira daquelas, o que fazia com que os intestinos ficassem “depurados”, ou seja, tudo se esvaísse das tripas, incluindo os vermes. Acho que funcionava, porque eu estou vivo até hoje.

Então é muito complexo dizer se era melhor ou não o tempo da terra nas barras das calças. Tudo vai depender de se achar isso uma sujeira indesejável ou um romântico distintivo dos tempos. Tendo a acompanhar o tempo que passa, e prefiro as coisas como estão, desde que preservados os devidos espaços para o equilíbrio pluvial de nossas cidades.

Falo tudo isso porque estou inspirado pela terra e pelo irrigador de plástico que instalei no meu quintal. É a prova maior de que coisas baratas não são sinônimos de coisas ruins. Gastei exatos vinte reais em um treco desses, que fica espetado na terra e girando de acordo com as regulagens, o que é uma autêntica mão na roda. É ligar a mangueira e contar dez minutos para que todo o projeto de horta fique devidamente molhado, sem qualquer tipo de esforço.


Vendo que deu certo, vou colocar mais uma dessas na diagonal oposta do quintal e cobrir o terreno com mais precisão e menos força necessária, economizando água. Aproveitei o calorão infernal do Vale e tomei um banho de aspersão, como não fazia há muito tempo.

Ficar na chuva simulada, enchendo os pés do antigo barro da minha infância me fez passar pela cabeça pensamentos igualmente infantis, como aquela velha assertiva bíblica – tu és pó e ao pó tornarás. Como seria se desmanchássemos ao contato com a água? Fiquei pensando nos filósofos da physis, aqueles cujo grande propósito era encontrar a arché, o fundamento de toda a realidade, conforme esmiucei aqui. É sempre fácil lembrar de Tales, Empédocles, Anaximandro, Demócrito e outros, mas poucos mandam de cara Xenófanes de Cólofon, talvez porque ele tenha eleito a terra como elemento primordial, o mais simples de todos, o mais ordinário, o mais, digamos, sem graça. Só que seu pensamento foi muito mais sofisticado do que essa constatação pode fazer crer, a ponto de ser uma espécie de pioneiro do monoteísmo. Vamos falar sobre ele.

A questão da arché em nosso herói ficará para o final. Seu principal pensamento tem a ver com a concepção que os antigos gregos tinham sobre suas divindades. A religião pública grega era caracterizada por deuses idênticos aos humanos, com duas diferenças fundamentais: a imortalidade e o poderio. De resto, tudo igualzinho, seja no físico, seja nos temperamentos, seja nos costumes e por aí vai. O deus grego é tal e qual um grego. Xenófanes observa que os deuses etíopes são negros e com os narizes largos, assim como os deuses trácios são ruivos e de olhos azuis, repetindo o mesmo fenômeno que ocorria na Grécia: os deuses locais são reproduções dos homens locais. Ele chegou à conclusão de que, se os animais possuíssem discernimento suficiente para moldar seus deuses, também o fariam à sua imagem e semelhança, com poucos diferenciais.

Isso tudo levou Xenófanes a se contrapor às teogonias de Hesíodo e de Homero, que nada mais faziam do que sistematizar o pensamento teológico do grego comum: os deuses nada mais são do que homens privilegiados, e que assim são porque cada cultura molda seu deus, como sintetizaria muitos séculos mais tarde o alemão Ludwig Feuerbach, que afirmava ser a Teologia uma forma de Antropologia, onde os deuses de uma cultura dizem muito sobre a consistência dos homens desta mesma cultura. Sendo que este último influenciou decisivamente na tese marxista da alienação, poderíamos dizer que Xenófanes era um pré-comunistão?

É forçar muito a barra, né? Até mesmo porque, se Xenófanes era contrário ao pensamento teológico helênico, isso não queria dizer que ele mesmo não tivesse suas próprias ideias com relação ao assunto. É um pensamento bastante inovador para a época, que abandonava a antropomorfização dos fenômenos e descarregava das divindades as paixões humanas e seus consequentes defeitos, dando rumo a uma forma de monoteísmo por um lado, de panteísmo por outro.

As réguas humanas são ineficazes para mensurar os deuses. Uma coletânea de deuses feitas a partir dos fenômenos que observamos no cosmos, como era de rigor no paganismo grego, era uma simples forma de suprimir a falta de reconhecimento que a divindade está em outra espécie de dimensão. Isso acontece porque, segundo Xenófanes, o universo é uno e deus é uno, identificando-se um com o outro. Não uma magna comitante caterva olímpica, como diriam os gregos, ou uma Asgard nórdica, ou qualquer outra forma de residência divina, porque a deidade não está aqui ou ali, ela se espraia pelo universo inteiro e é o próprio universo inteiro, ideia que mais tarde veio trazer problemas a gente como Giordano Bruno e Espinoza.

Notem que a proposta de Xenófanes é ao mesmo tempo monoteísta, porque preconiza que apenas um deus existe, e não vários; e panteísta, porque sendo deus o universo inteiro, tudo é deus, imutável porque pleno, irremovível porque alocado nos fundamentos. Esse é o principal ponto do frágil vínculo que os historiadores da Filosofia fazem com os demais eleatas, Parmênides à frente. Entretanto, os filósofos de Eleia eram fundamentalmente ontológicos, enquanto Xenófanes busca uma resposta cosmológica, como veremos adiante.

Diferenciar o monoteísmo do panteísmo parece simples, mas não é. Pelo ordinário estudo etimológico, um seria significado de “deus único”, enquanto o outro seria "tudo é deus", mas é plenamente possível fazer coincidir ambas as visões. Se esse tudo que significa o pan grego se referir a um único deus que se revela em vários aspectos e de múltiplas formas, então teremos uma coincidência de significados. Isso pode parecer estranho porque estamos acostumados a monoteísmos com um deus que se aparta – ele cria o universo e os homens, mas não se identifica com nenhum deles. Já esse panteísmo de um deus só é uma inovação clara, na medida em que a própria substância divina é a arché: tudo emana dela e permanece nela. Esse é o modelo de deidade tremendamente mais sofisticado que os deuses antropomórficos dos gregos, fortemente vinculados às características físicas e psicológicas dos humanos.

O que não está explícito atrás dessa maneira de pensar é uma epistemologia. Não é dado ao homem compreender toda a dimensão do universo, e por este motivo ele tem necessidade de fazer adaptações. A majoração das propriedades humanas para emular deuses é uma mostra de que temos um impulso em cobrir buracos cognitivos, o que fazemos até hoje (vide aqui e aqui). Essas teses que criamos tem a aparência de verdade, mas são apenas opiniões. O universo como algo imóvel e imutável é impossível de perceber, e somente pode ser deduzido através do intelecto. Olhando através dos sentidos sempre se terá a sensação de mudança e transformação, no que é o principal ponto de contato de Xenófanes com os eleatas.

Xenófanes ainda tinha uma concepção original com relação à arché. Diferentemente dos demais filósofos-físicos, o elemento que ele entendia ser a essência primordial limitava-se ao próprio planeta, distinguindo-se do uno no sentido de que, dentro de sua esfera, era o princípio originador. Nisso não há contradição, porque o uno dá origem a essa arché, que, por sua vez, é basilar na constituição de tudo o que existe nesta combalida bola azul. Esse elemento era a terra.

E por que ela? Xenófanes faz observações muito interessantes para chegar a esta conclusão. Primeiramente, observa que, apesar da imensa área marítima que circundava o mundo conhecido, sempre ela era fundeada por terra, por mais profunda que se encontrasse. O fundo de um rio era terra, de um lago, de um poço, do oceano. A água se fazia misturar com a terra, até o limite onde somente ela existia. Além disso, e o que é mais astuto, nosso amigo de Cólofon observava que era possível encontrar conchas e fósseis de peixes em lugares muito distantes das margens oceânicas. Isso o fazia concluir que esses lugares um dia estivessem cobertos de água, e por isso esses fragmentos se encontravam lá. A presença destes restos de seres vivos era uma maneira de antever seu retorno para o elemento fundamental, o que reforçava sua tese.

E é isso. Vou aproveitar o calorão e relembrar um pouco mais dos tempos de criança. Agora no cair da noite é o momento ideal para regar o quintal e tomar um banhão com essa nova mangueira coxinha que eu arrumei. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Vou recomendar o canal Parabólica, do professor Pedro Rennó, que contém boas séries sobre Filosofia, incluindo os pré-socráticos que costumo abordar neste blog.

https://www.youtube.com/c/Parab%C3%B3lica

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O café filosófico do quotidiano – a fácil moldagem do ápeiron de Anaximandro como essência de todas as coisas

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Então ficou combinado assim: eu passo a virada de ano em Taubaté e logo em seguida vou para Curitiba. Fiz isso logo cedo, para aproveitar a aparente trégua da chuva, o que se revelou uma ilusão logo na Serra do Cafezal, primeira serra do caminho na Régis Bittencourt, onde o céu caiu por entre árvores e caminhões. Por falar nela, estreei uma metodologia nova de preparar café exatamente nesta viagem. Eu tenho uma garrafa térmica que possui um filtro metálico, e isso resolveu um belo de um problema.

Na verdade, o problema vem da frescura dos critérios mais rigorosos que eu tenho imposto a mim mesmo desde que passei a pesquisar mais a fundo os diferentes métodos de extração de café. Normalmente, eu pararia no caminho e tomaria um café coado no posto, mas vislumbrei uma maneira de tomar um líquido melhor sem ter que parar.


A solução mais simples de todas seria preparar o café e colocá-lo na garrafa para ir tomando na viagem. Só que isso desnatura o sabor em questão de uma hora, e o objetivo não era queimar a largada, mas ter o produto lá pela terceira hora de viagem, quando o tédio começasse a bater. A melhor maneira, portanto, seria utilizar os poderes térmicos da garrafa e levar nela apenas a água quente.


Quando estivesse lá por Cajati, bastaria pegar o moinho manual e triturar uma quantidade de grãos suficiente para o tanto de água contido na garrafa. É neste momento em que o elemento filtrante de metal entra em ação, fazendo com que obtivéssemos uma infusão fresca, de sabor quase tão agradável quanto se água tivesse sido aquecida na hora.


O ideal seria ter uma daquelas cafeteiras portáteis que fazem de tudo, moendo o grão e aquecendo a água eletricamente, utilizando o plugue do isqueiro do carro, mas elas custam o olho da cara e eu não estou podendo, como todos os demais assalariados deste país, então posso considerar que o método é, no mínimo, eficaz para este propósito. Ainda deu uma sobrinha para tomar mais à frente, já quase na divisa com o estado do Paraná.


Nome do utensílio: garrafa térmica com filtro de metal

Tipo de técnica: infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: preenche-se a garrafa com água fervente, deixando espaço suficiente para despejar o pó. No momento adequado, retira-se o filtro e coloca-se o café moído. O filtro é reposto e a garrafa é firmemente fechada, ficando o tempo suficiente para a infusão. Após, o café é escoado para consumo. É importante que a garrafa tenha boa vedação para evitar a perda de temperatura.

Resíduos: Pouco

Temperatura de saída: Média-baixa

Nível de ritual: Baixo

Em um exemplo tão banal, podemos ver como as coisas têm sua plasticidade. Essa garrafinha não é destinada exatamente para se fazer café, dando-se melhor com chá, que é menos caprichoso com sabores e oxidações. Só que, bem usada, se prestou a um ótimo serviço. Poderia também levar suco, um vinhozinho, ser um peso de papel, um porrete de dar na cabeça de bêbado ou coisas menos votadas, tudo depende da criatividade de quem inventa usos.

Vou dirigindo e tomando meu café (que a PRF não saiba), em um ordinário copinho de plástico. Que vacilo, podia ter trazido recipiente melhor. O material é meio mole, o que dificulta um pouco o manuseio em momento tão delicado. Ele deforma todo na mão e parece que vai desmanchar. É outra coisa que é facilmente moldável, como também é o banco em que sento. Tudo na vida é tão plástico, tão flexível, tão acomodável que parece ser essa a nossa própria essência, e não a história parmenidiana de que tudo é imutável. Nós mudamos e nos adaptamos, seres e coisas fabricadas pelos seres, como as nossas próprias cidades.

Ora, se nossa essência é ser mutante, como quereria Heráclito, não é, ela mesma, algo imutável? Será que não é isso nosso core, nosso algo comum, nossa característica intrínseca? Vou pensando nisso já meio inebriado pelas curvas e pelo pico de cafeína, a ponto de esquecer que a patroa está do lado e solta um pequeno grito quando o copinho de plástico, o tal moldável que deu origem à série, escapole de sua mão e cai milagrosamente de pé no chão do carro, sem causar prejuízos. Apesar do susto, mantenho minha adrenalina em níveis estáveis e retomo meu papo interior sobre essência e plasticidade.

Quando falamos nesse tipo de coisa, resgatamos o pensamento mais primordial da Filosofia grega, que queria chegar em uma essência da mesma forma meu pensamento quase descoordenado em meio às serras da Regis. Já falei muito sobre isso neste blog, chegando quase à saturação, mas é que o tema é central na história filosófica ocidental, e eu mesmo me pego por vezes fazendo algo bem semelhante, como estou narrando neste momento.

Acontece que os primeiros filósofos buscavam a arché em coisas plenamente físicas, como especifiquei neste texto, sendo que o pioneiro de todos foi Tales, que elegeu a água como elemento primordial, pela sua quase onipresença no universo observável. Mas meu foco será em seu sucessor.

Anaximandro era milésio, assim como Tales. Em sua obra De Natura (outra dentre tantas “Sobre a Natureza” que os primeiros gregos escreveram), da qual nos chegou apenas alguns fragmentos, abandonou a linguagem em verso típica dos gregos e passou a utilizar a prosa, mais adequada a quem queria fazer uma comunicação mais livre de elementos desvinculados da ideia em si. Ele desenvolve sua ideia de arché de maneira mais intrínseca que seu antecessor, que ainda incorporava um elemento físico para explicar a essência originária do cosmos. Anaximandro entende que a água, embora concorde que esteja presente em quase tudo o que nos rodeia, ela mesma é uma matéria secundária, e tem ainda antes de si outro princípio primitivo, assim como qualquer outro elemento que se possa captar pelos sentidos, como tentaram Anaxímenes com o ar e Xenófanes com a terra, para ficar em dois exemplos.

Se nós paramos para pensar, de fato é difícil aceitar que um único elemento molde toda a realidade, pelo menos com suas simples características próprias. Uma substância mais permeável a moldagens daria uma explicação melhor à questão. Anaximandro sofisticou o pensamento talesiano através do ápeiron, palavra grega que significa algo como “sem limites”. Ele tira a necessidade de um meio físico e coloca um princípio delineador à realidade, de modo a tudo ser possível através dele. Esse princípio, como o próprio nome prenuncia, não possui limites quantitativos e nem qualitativos, ou seja, pode-se estender espacialmente para qualquer dimensão e assumir toda e qualquer forma que exista no universo inteiro.

O ápeiron de Anaximandro sobrepõe a dimensão temporal que estamos acostumados a adotar. Quando pensamos nos mais extremos dos tempos, podemos falar de vidas eternas, das quais as divindades são as mais potentes representantes. Entretanto, os deuses gregos tinham um infinitude em sentido único, sendo que eles jamais morriam, mas tinham um nascimento, que eram explicados nas diferentes teogonias, como é o caso célebre da de Hesíodo, já comentada neste texto. O mesmo se aplica ao universo e ao próprio mundo. Contudo, Anaximandro identifica o ápeiron com os fundamentos divinos e retira dele o início, reputando-o como eterno em qualquer sentido temporal: o ápeiron não tem fim, e também não tem começo, senão ele teria um limite. Ele está divinizado e quebra um dos eixos da religião pública grega, dando um certo sabor órfico à sua filosofia.

Mas como se dá a moldagem do ápeiron? Apesar de ser uma substância única, ele toma a forma e a matéria de qualquer objeto que possamos observar, e desses fenômenos podemos perceber que há uma série de características que muitas vezes são opostas entre si, aquela velha história do quente-frio, grande-pequeno, seco-molhado, velho-novo e così via. Em cada uma das instâncias que o ápeiron se concretiza, há uma predominância de um contrário sobre o outro. Essa predominância indica que um ponto de equilíbrio se perdeu, como são os relacionamentos pessoais e sociais, e isso gera uma “injustiça”, onde essa preponderância "massacra" o lado oposto. Imagine, por exemplo, uma planta em uma terra completamente seca. Todos os líquidos que estão em seu interior vão se esvaindo até sua morte. Todavia, se ela receber água incessantemente, suas estruturas internas se encharcarão a ponto de perder sua funcionalidade, o que também representará seu fim. Ou seja, a predominância de um dos opostos vai se manter até um ponto de cisão, quando os contrários porão um fim em si mesmos e renascerão novamente, dando ao ápeiron um novo aspecto. Eu já mencionei várias vezes as visões cíclicas da realidade, como acontece com Empédocles, com o Budismo ou até mesmo com a provocação nietzscheana do eterno retorno, e aqui temos mais uma dessas representações: tudo parte do ápeiron e tudo volta ao ápeiron, em um ciclo sem fim, já que a própria substância é infinita.

Essa história de jogos de equilíbrio e de vida cíclica é uma ideia que vem do orfismo, como eu disse logo atrás, que influenciou muito diretamente a filosofia pré clássica e que me levou a redigir um texto recente. Se você tiver paciência de ler, perceberá que já naquele momento existia uma ideia de carga de culpas semelhante ao que acontece com o pecado original cristão, e que se repete em Anaximandro: a injustiça dos desequilíbrios é inerente à própria constituição do cosmos, já estando embutida em sua substância original, e é isso o que faz com que ele se mova.

Além disso, Anaximandro rompe com a ideia de universo único. A sua lógica consiste na ausência de limitação do ápeiron, que não pode se restringir apenas ao universo visível. Do contrário, ele teria os limites da nossa própria percepção. Desta forma, não apenas os mundos teriam existências cíclicas e sucessivas, mas concomitantes, como os proponentes do multiverso amariam adotar mais tarde. Portanto, a filosofia de Anaximandro tem um horizonte bem mais largo que a de Tales, sendo até mesmo possível correlacioná-la com a metafísica dos mundos possíveis imaginada contemporaneamente.

Por fim, podemos chamar a atenção dos conspiracionistas de plantão para uma nova teoria com a qual eles podem assustar a patuleia. Para Anaximandro, o planeta Terra não possuía o formato plano que se cria na época, mas também não era esférico como sabemos hoje em dia. Anaximandro entendia que a Terra era cilíndrica.

Como funciona isso? Para ele, o cosmos nasce de uma das inúmeras oposições possíveis, a do frio versus calor. No âmbito local, esse contraste era representado pelo Sol quente e a Lua fria, cada um inserido em sua própria roda que se situam concentricamente. A luta entre ambos os estados criava uma espécie de túnel, exatamente onde a Terra estaria encapsulada, bem ao centro. O Sol e a Lua seriam visíveis por conta de descontinuidades nessa cápsula, e isso tornava possível a entrada de sua luz. O formato cilíndrico era melhor que o plano para explicar o deslocamento dos astros através dos céus, sendo que o mundo conhecido se limitava à Europa, África e Ásia. Nem se sonhava com América, Oceania e Antártica. Sendo assim, a porção sólida do planeta seria circundada totalmente por água que, ao contrário do pensamento de Tales de que a terra boiava sobre esse elemento, se autossustentava no espaço por ação das oposições externas já mencionadas.

Aqui, Anaximandro fará uma concessão a Tales e reconhecer a importância da água nas relações do planeta. Para ele, e prenunciando um rudimento de evolução das espécies, a vida inicia-se nos mares e lentamente vai migrando para a porção sólida, através de progressivas adaptações do seres que de lá surgem.

Eu fiquei lá por entre as serras divagando sobre a genialidade deste modelo de pensamento, em época que não havia instrumentos disponíveis, apenas os cérebros humanos. Quando dou por mim, já passei a Barra do Turvo e entrei no Paraná, com a patroa dando seu reconfortante cochilo de um olho só, e aperto o passo para chegar logo de uma vez e recolher todos estes pensamentos no texto que vocês estão lendo agora. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o livro de um dos principais físicos da atualidade, que rende suas louvaminhas (justas) àquele que é tido como um dos grandes precursores dos métodos científicos. Na ausência de escritos remanescentes do autor original, é uma boa dica para conhecer melhor este filósofo.

Rovelli, Carlo. Anaximandro de Mileto. O nascimento do pensamento científico. São Paulo: Loyola, 2013.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Feminismo: o que ele é e o que ele não é

(O feminismo é uma questão muito ampla e que gera um bocado de desajustes. Vamos tentar conciliar alguns deles)

Olá!

Clique aqui para ver mais itens desta série…

Como nasce um preconceito? Basta que se analise a própria palavra para se saber. Conceito tem a mesma origem etimológica da palavra concepção, que significa guardar dentro de si, gerar a partir de si, e pré significa antes. Preconceito, portanto, são ideias preconcebidas, que são formadas antes que tenhamos contato com o objeto de nosso suposto conhecimento. Suposto porque o preconceito consiste nisso: mera opinião. O preconceito faz com que tenhamos ideias errôneas não só sobre determinadas pessoas, mas também sobre determinados assuntos. Por essa razão, redigi pequenos textos de perguntas e respostas, com o intuito de dar informações a confusões que se fazem por pura e simples falta de pesquisa. Minha ideia não era criar uma série, mas eu tive o efeito mental de perceber que várias temáticas se ressentem desse problema, e a coisa foi crescendo. Sendo assim, resolvi criar uma página para rotear todos esses assuntos, já que a coisa cresceu. Aproveitem e sugiram temas.

Aproveitando a introdução, a pauta dessa vez será o feminismo. É um tema que aparentemente é muito simples, em parte porque está em nosso dia-a-dia, mas que é crivado de má vontade, porque nele está sintetizado um confronto que existe há décadas, e que muita gente tende a subestimar. Já vi gente que é arraigado combatente do racismo colocando o feminismo como uma pauta menor e, embora não seja uma posição comum, é muito sintomático de que algo vai mal quando acontece.

Provavelmente não se compreende muito bem o que seja o feminismo. Parece simplesmente mais uma versão da guerra de poder, como aconteceu já tantas vezes neste cada vez mais quente planetinha azul. De certa forma, é mesmo, mas não no puro e simples sentido de se trocar um detentor por outro, e sim para que se tenha um reconhecimento melhor da igualdade de direitos em um sentido mais amplo, e na constatação de que não há lógica em se nomear uma hierarquia entre gêneros, de modo mais estrito.

Por conta disso, vou seguir no método dos demais textos desta série e tentar trazer algum tipo de luz sobre o assunto, ou ao menos não o tornar ainda mais nebuloso. Vamos começar pelo mais básico…

O que é feminismo?

Feminismo, ao contrário dos demais temas da série, é aquilo que chamamos de termo guarda-chuva, ou seja, um nome genérico sob o qual temos várias acepções diferentes. Isso acontece dada a multiplicidade de correntes que vieram surgindo através dos tempos, cada uma com um objeto mais ou menos específico. Porém, de um modo geral, o feminismo é o conjunto de movimentos que defendem a igualdade política e social entre homens e mulheres.

O que é sexismo?

Esta pergunta é importante de responder porque há outra que é subsidiária a ela, que virá logo na sequência. O sexismo, ao contrário do feminismo, não é um movimento, mas uma atitude que considera que um dos sexos é superior ao outro, seja por características físicas, por predisposições históricas, por imposição social ou qualquer outro modo de distinção.

O feminismo é sexista?

Existem raras exceções, mas via de regra o feminismo não é sexista porque não inclui uma ideia de superioridade do sexo feminino. O que o feminismo defende é uma igualdade de direitos entre homens e mulheres. Hoje podemos achar incrível, mas o voto feminino é uma “invenção” recente. As mulheres não votavam porque elas não eram tidas como costumeiras titulares de direito possessórios, nem eram atuantes no mercado de trabalho formal. Querer votar, assim como os homens, é uma reivindicação que não coloca ninguém como melhor ou pior, somente assegura o mesmo direito a ambos os sexos. Essa é a natureza geral dos movimentos feministas. Portanto, não existe sexismo aqui, a não ser que o caso fosse de inverter as condições: dar apenas às mulheres o direito de voto, no exemplo.

Por que o feminismo é tão complexo?

Porque ele não é um movimento unívoco. Tem inúmeras faces e derivações que abrangem qualquer camada social. Uma boa parte dos historiadores especializados ensina que o feminismo veio em ondas, onde cada uma atendia interesses específicos que tinham diferentes abrangências. Na primeira, tínhamos as reivindicações mais gerais, com relação a direitos mais básicos e que atingiam qualquer mulher; na segunda onda, percebe-se que os direitos pleiteados por mulheres negras, indígenas e de outras etnias necessitam de mais profundidade do que aqueles das mulheres brancas, com muitas discussões próprias. Na terceira, entra na pauta os direitos das mulheres trans. Não se trata de uma divisão consensual, mas é possível perceber como os diálogos progridem e se tornam mais abrangentes com o tempo.

As mulheres são diferentes dos homens. Por que pretendem igualdade?

A igualdade não pressupõe uniformidade. Somos iguais quando podemos fazer as mesmas coisas, e não quando devemos fazê-las. É óbvio que a lei submete todos os cidadãos a certas regras, e é assim mesmo que funciona, mas a igualdade existe quando todos podem ou devem fazer as mesmas coisas. Reivindicações sobre remuneração igual para função igual e experiência semelhante não significam que preferências e costumes precisem ser os mesmos, entenderam?

Mas os homens continuam fazendo o trabalho mais pesado. Isso não lhes garantiria melhores direitos?

Poderíamos dizer que o "contrato de trabalho matrimonial" reproduzia a lógica de que os homens saíam para caçar enquanto as mulheres cuidavam da prole, e que lhes caberiam as melhores porções porque precisavam de força e, principalmente, foram eles que caçaram. Mas que sentido faz isso hoje em dia? Por um lado, os trabalhos fisicamente extenuantes têm diminuído a olhos vistos; por outro, os cuidados com os filhos passam a ser cada vez mais partilhados.

Se as reivindicações dos movimentos feministas são justas, por que geram tanta reação?

Pense que você está na rua comendo um saco de salgadinhos da sua preferência. Se alguém chega em você e reivindica metade de sua guloseima, você não vai gostar. Será preciso tempo e justificativa para que se tire sua noção de injustiça e você concorde em dividi-lo, porque você não vê nada de errado na situação privilegiada. O que os movimentos feministas pedem não são encarados como equalização de direitos, mas como concessão de privilégios, e isso nunca é bem visto sem mudanças nos paradigmas sociais.

As feministas falam muito do tal do patriarcado. O que seria ele?

Patriarcado é a estrutura social que favorece os indivíduos de sexo masculino. Isso é visível quando olhamos para as composições governamentais e verificamos que, apesar da divisão meio a meio na população, há uma predominância muito expressiva de membros do sexo masculino. Mulheres são estranhas no ninho dos núcleos de poder e, quando lá chegam, podem carregar uma aura de que o conseguiram por meios imorais. “Vaginocracia”, o comando das que se dispõe a sofás para a ascensão social, é um dos termos mais cruéis que eu já ouvi, porque reduz as ocupantes à sua ação sexual, e não sua competência.  

Entretanto, revistas de entretenimento masculino estão acabando. Isso é sinal de que há uma menor objetificação das mulheres?

É ingênuo pensar nisso, porque, se existe, é um fator para lá de secundário. A Playboy acabou por causa da internet. Um usuário qualquer repassava as fotos para acesso franco de quem se dispusesse a acessá-las, e os caros cachês deixaram de valer a pena. Essa é a real. Além disso, a objetificação hoje está nos sites de vídeos, o que nos mostra que ela não deixou de existir, apenas mudou de mídia.

O que atrapalha a militância feminista?

Obviamente existe resistência, mas certas correntes do feminismo são muito agressivas. Compreende-se. De acordo com a teoria da mola do Pirulla (assistam aqui), momentos de tensão máxima geram reações extremadas, em ambos os lados do artefato em pressão, mas tendem a se acomodar com o tempo e quando há concessões. Mas de fato há feministas que enxergam sexismo em tudo, que dificultam o diálogo e que tornam a causa antipática. Além disso, devemos admitir que as coisas não vão mudar do dia para a noite, e que dedos na ferida costumam doer. Quando isso acontece, o lado atacado simplesmente fecha os ouvidos, e é duvidoso se o método faz passar do engajamento de quem já é engajado. Fica só aquele famoso “pregar para convertidos”.

Uma lei como a do feminicídio não é sexista? A lei Maria da Penha não era o bastante?

Em que pese o monte de demagogia envolvido na criação deste tipo de lei, o fato é que existe um problema que precisa ser combatido. A violência doméstica é real e ocorre quase em sua totalidade contra o polo feminino da relação. Embora tratem do mesmo objeto, a Maria da Penha trata de questões protetivas, como a possibilidade de denúncia e prisão preventiva dos acusados, enquanto a lei do feminicídio modificou o Código Penal, formalizando um agravante nas condições de um homicídio e aumentando o tamanho da pena. São, portanto, complementares. Tem mais uma coisa: a lei Maria da Penha já foi utilizada para violência doméstica de mulheres contra homens através do princípio da analogia.

Então será preciso implantar leis para tudo? O feminismo é um grande legalismo?

É óbvio que não é possível nem desejável que todos os aspectos da vida social sejam subvencionados por legislações. Elas engessam as engrenagens e tolhem liberdades, e o pior: não alcançam tudo. Eu posso agravar penalidades contra o assassinato de mulheres, mas não tenho como criar leis que obriguem a sociedade a considerar mulheres tão competentes quanto homens. Para isso, é necessária uma mudança de visão, e não de legislação.

Você é homem. Não tem lugar de fala neste tema.

Essa questão do lugar de fala é um dos maiores mal-entendidos modernos, e já expliquei em detalhes neste texto. Mas vou dar uma repassada. Lugar de fala todo mundo tem, e serve para dar um espectro geral do que a sociedade pensa como um todo a partir da colocação de cada um dos componentes sociais. Afinal de contas, todos nós participamos do espaço público, cada um tendo sua própria perspectiva ou, melhor dizendo, perspectiva da soma de sua individualidade com seu estrato social. Como homem, eu tenho um ângulo da questão, independentemente de minha representatividade, assim como ocorre com homens e mulheres trans e cis, e qualquer outro indivíduo.

Eu não vou me aprofundar muito, porque apesar de ter lugar de fala, não sou grande estudioso no assunto, e não quero me colocar em polêmicas nas quais não sou muito inteirado, e também não vou colocar aquelas questões que suscitem ironia ou desprezo, tão comuns nos debates que pendem para o desprezo. Estou em processo de aprendizado permanente. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Para pegar um apanhado geral dos diferentes movimentos e selecionar autores para se aprofundar.

VÁRIOS AUTORES. O Livro do Feminismo. Col. As Grandes Ideias de Todos os Tempos. Rio de Janeiro: Globo, 2019.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Nietzsche versus Sócrates na briga da razão contra o instinto

(A razão é o maior diferencial do ser humano, nossa maior virtude. Será?)

“Sócrates queria morrer. Não foi Atenas, mas ele quem deu para si o cálice com o veneno. Ele impeliu Atenas para o cálice com o veneno. ‘Sócrates não é nenhum médico’, falou ele silenciosamente para si mesmo: apenas a morte é aqui a médica. O próprio Sócrates só estava há muito doente” – Nietzsche

Olá!

Desde muitos anos atrás, a patroa cuida de idosos. Sua cliente mais notável era uma senhora de boas posses e maus bofes, que causava um bocado de desprazer na consorte com suas idiossincrasias. Não durou muito tempo. A tal senhora ganhou uma tabuleta no cemitério da Consolação, liberando a esposa do suplício e dos vencimentos. Há bens que vem para males, por conseguinte. Entretanto, viver em condomínio faz com que se tenha uma certa indiscrição, e os vizinhos ficam sabendo da sua vida. Um comentário aqui, uma choradinha lá, uma maledicência acolá e sua vida se torna o famoso livro aberto. A intencionalidade dos bairros de casas térreas é desnecessária aqui: basta que se esteja na cozinha para que as conversas sejam ouvidas. Sendo assim, mesmo sem que se contasse a ninguém, o prédio todo sabia da atividade da patroinha.

Isso veio a calhar quando a dona Madalena, decana da ordem religiosa que administra o prédio, partiu o osso da perna quando caiu de uma escada. O problema é que a dona Madalena em questão, apesar da aparência de vovozinha que frita bolinhos de chuva, é uma autêntica urtiga. Cabe aqui algumas explicações.

Dona Madalena tem hoje 90 anos, com a saúde correspondente à sua idade. Em priscas eras, era bedel de escola pública, o que justifica muita coisa. No prédio queria ter o mesmo espírito mandatório que tinha perante seus alunos, com um nível de tolerância muito baixo. Portanto, qualquer liquidificador desregulado era objeto de seus brados e ameaças de denúncia por atentado ao sossego condominial, não importando se o horário do incidente fosse às três da tarde. Idem com sua atuação na tal ordem. Qualquer escorregada fora dos preceitos era suficiente para seu prorromper furioso, cominando com o inferno um impenitente que comungasse ou uma mocinha que casasse de branco sem a reputação ilibada.

Essa conduta traz alguns efeitos indesejados. Se por um lado ela conseguia ver atendidas suas demandas, pelo simples fato de se evitar a chateação de suas imprecações, por outro nunca soube o que é fazer uma amizade. Compreende-se, dada sua implicância com as menores coisas, não fosse o fato de que ela é membro de uma ordem religiosa, que deveria amar seu próximo como a si mesma, mas, no momento do acidente retro citado, não se achou nenhum cristão para cuidar da indesejada senhora. Ora (direis), e seus parentes? Responderei: que parentes? Ela não casou, seus irmãos eram padres e freiras e não deixaram descendentes (conhecidos). Primos e outros afins ficaram espalhados pelo interior gaúcho, e nem se sabem reciprocamente de suas existências. O jeito foi apelar para aquela moradora que tinha prática em cuidar de idosos, a tal patroinha daquele gordo que vive andando com camisa de time para cima e para baixo. No caso, eu.

A resposta foi um sim mediante paga, porque não está fácil para ninguém, com a condição de desobrigar o turno noturno e monitoração remota, já que eram somente dois andares de distância. A experiência com a senhora opulenta tinha desgastado a esposa e não havia espaço para caridade no momento. Conta ela que a Dona Madalena apresentou suas credenciais logo no primeiro dia, no que coube reação: ou a senhora me respeita, ou eu viro as costas e daqui me vou agorinha! As coisas amainaram e foram bem até a plena recuperação da macróbia senhora. Hoje, mais de dez anos depois, a cara-metade continua cuidando dos eventuais perrengues dela, já sem cobrar nada, porque o estranhamento inicial acabou virando, agora sim, uma certa amizade.

Ao fim e ao cabo, tenho dó da Dona Madalena, e de todo mundo que hoje é solitário porque não cativou suas amizades em nome de um rigor autoaplicado por conta de noções de pecado e de premiação futura. Eles creem que todo esse sofrimento vale a pena, que estão sozinhos no mundo porque o mundo é fonte inesgotável de perdição e assim por diante, que melhor seria acabar tudo de uma vez e sermos colocados diante do tribunal divino para seja selado o destino de cada um. A noção que carregam de pecados é um fardo ainda mais pesado que os conceitos de finitude de um ateu, porque, para este, acabou e pronto, sem paraíso, mas sem inferno também. Já pessoas assim temem a morte a quem deveriam ansiar como alívio e passagem para a paz divina, porque não há certeza alguma do que é ação diabólica e do que pode causar a pena eterna.

Eu aqui, pequenininho, tenho esse tipo de percepção com relação a esses dualismos. Não sei se estou certo ou errado, somente posso colocar a coisa em termos de palpite. Se eu tiver que um dia me ver com deus, ver-me-ei, fazer o que? Explicarei a ele que houve um determinado momento em que não via motivos para crer em uma divindade, e parei de me cometer autoengano. Se ele for misericordioso como dizem que é, saberá compreender, e me destinará uma pena mais leve; se não, assumo a bronca e tento segurar a peteca. Vamos ver quando chegar a hora.

Mas minha opinião não é relevante para fins filosóficos. Há gente de porte graúdo (e muito) que pensou o dualismo e gente igualmente grande (e como) que o criticou. Falo de Sócrates, Platão e Nietzsche. Na esteira de meu último texto sobre o ateniense, achei importante fazer esses tipos de distinção.


Sócrates, além de todos os predicados que já discorremos neste blog, produziu outra novidade bastante significativa na Filosofia antiga. O método dialético socrático junta à essência do homem sua própria psiquê, porque é nela que ocorrem as ilusões de saber, e que a maiêutica consegue provar como falsas. Os processos dialógicos tão caros a Sócrates eram maneiras de se fazer exames da alma. A sequência de questionamentos fazia aflorar uma confissão de ignorância, que, no fundo, levantavam perguntas sobre as mais arraigadas convicções, religiões inclusas. Por isso, ele era essencialmente um filósofo ético, mais do que gnosiológico.

Esse novo estatuto da alma mais elevada na relação com o corpo conduziu a um pensamento que isolava radicalmente mundos físico e ideal. Como eu já disse anteriormente, é muito difícil discernir o que é propriamente socrático e o que é ideário próprio em Platão, mas é certo que o autoconhecimento, a declaração de ignorância e o jogo das respostas dialéticas influenciaram a maneira com a qual Platão desenvolveu sua forma de pensar. Ou seja, o que diz Platão sempre é socrático de alguma forma.

O que temos é que estes filósofos clássicos separavam o mundo da mesma forma que separavam os corpos das ideias. Havia um mundo perfeito, onde todos os objetos e ações tinham um modo paradigmático que era plasmado para o mundo que temos ao nosso redor. Aqui, temos todas as imperfeições possíveis de quem reproduz uma cópia. Por melhor que seja o pintor, algum tipo de diferença haverá com relação ao modelo ideal e, sendo que esse modelo ideal representa a imperfeição, a cópia é uma degeneração. Nada no mundo físico é melhor do que no mundo das ideias, atingível unicamente pelo intelecto, pela psiquê, pela alma.

Esse paradigma calçou perfeitamente o número do Cristianismo, que tão logo se viu livre das perseguições romanas, formalizou sua Filosofia a partir do pensamento socrático-platônico. A partir da Patrística, o mundo das ideias foi convolado em paraíso, o lugar onde Deus impera e onde tudo emana de seu intelecto, com a perfeição que lhe é atribuída. O nosso mundo físico, imperfeito, empobrecido, cúpido, hediondo, impróprio, é o lugar de expiação desde que a cópia de Deus, o homem, subverteu a perfeição de quem emanou.

A conclusão é de que o mundo em que vivemos não pode ser um objetivo em si mesmo, porque se distancia da perfeição vinda de Deus. Todo prazer sensório é transitivo e destinado ao fim, além de causar o mal maior de arraigar a própria existência do homem ao agarrá-lo ao mundo, e afastá-lo do objetivo ideal de ir ao encontro da divindade.

Sabendo que o Cristianismo é a principal religião mundial até os dias de hoje, e que continuamos dizendo que a principal diferenciação entre o ser humano e os demais animais é a capacidade racional, podemos dizer que este modelo socrático-platônico continua em plena prática, com a concordância de inúmeras vozes e cabeças. Mas há bastantes contestações também.

Nietzsche, o filósofo do martelo, é talvez aquele que tece as críticas mais ácidas e virulentas ao sistema socrático. Ele atribui ao grego a destruição do antigo espírito heroico, muito mais próximo à vida, transformando-a em doença. Lembremo-nos de que o alemão fundamentava sua visão de realidade em outro tipo de dualismo: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da ordenação, da boa medida, da moderação e da expressão justa das coisas, ligado ao racional e ao lógico. Já Dioniso é o deus da criatividade, do caos, do êxtase, das paixões e do homem próximo à natureza, ligado ao instintivo e aos sentidos. É no equilíbrio entre as forças representadas por essas duas deidades que se desenvolve a vida tal qual foi criada, sintetizado na expressão da arte, especialmente da tragédia grega.

Nietzsche fala mal de Sócrates com gosto. Dizia ser baixinho, feio, corpulento, desagradável como figura, um sujeito doente. Atribui a ele a morte do espírito dionisíaco que permeava o pensamento grego de até então, aniquilando toda a porção mais próxima à existência e a relegando a um racionalismo permanentemente absurdo. A vida passa a ser castigo, e se opta por não mais vivê-la.

Nietzche tem uma visão de virtude que é completamente antagônica à de Sócrates e dos demais pensadores clássicos. Estes entendiam que a grande virtude do ser humano estava em se buscar uma racionalização permanente de tudo, para concluir que tudo no mundo estava errado, e isso explicava a insatisfação, o sofrimento, a discórdia. Tanto o Platonismo quanto o Cristianismo buscavam o afastamento do mundo por julgá-lo torto e inadequado, e viver era o principal problema filosófico a ser resolvido: como ser virtuoso em meio a um turbilhão de contingências.

Nietzsche dizia que, se há alguma coisa torta, é exatamente nessa maneira de pensar. Apolo e Dioniso representam forças opostas, mas ainda assim forças, que simplesmente são inevitáveis. Buscar como solução a supressão de uma delas é, além de inútil, uma bobagem. Como o alemão era meio doido, ele dava a solução de se atirar no turbilhão, e não fugir dele. Toda manifestação individual é tolhida pela força reativa da razão quando tentamos reprimir o dionisíaco que habita em nós. E por que força reativa? Porque ela reage em sentido contrário à ação espontânea de uma vontade. Digamos que eu queria dançar, ou cantar, ou trepar, ou encher a cara. A reação da minha razão será: não, é ridículo; não, eu não sei fazer; não, é pecado; não, faz mal. Toda racionalização é um brochante para a minha vontade de potência, a coisa mais autêntica que eu tenho em mim e que partilho com todos os demais seres humanos.

Essa vontade de potência é todo impulso vital que está contido em um ser humano. Tire-me a razão, e eu ainda terei meu instinto e minhas forças mais primevas, mais atávicas, mais próximas à natureza. É a vontade de potência que faz o mundo girar, e prendê-la dentro de um quartinho é descaracterizar o que temos de melhor.

Nietzsche entende que por trás disso tudo está uma moral dos fracos, que usa a única ferramenta que tem à sua disposição para justificar sua existência: uma retórica que anule as verdadeiras virtudes. Porque nada mais resta ao impotente do que declarar que a potência é um mal em si. Nada mais resta ao feio do que dizer que a beleza é decadente. Nada mais resta ao fraco do que afirmar que a força é imoral. Criar uma moral onde a fraqueza seja vista como real virtude é o ponto de conformação que foi criado com tanto sucesso por aqueles que nada tem de favorável à vida para oferecer – quantas vezes não ouvimos que o comedimento, a moderação, a temperança, a paciência são preferíveis àquilo que os impulsos vitais nos apontam para fazer?

Sócrates falava da razão como guia das condutas. Platão fala em um demiurgo que urdia o mundo sensível a partir do mundo ideal, e o Cristianismo colocou Deus na condição de imperador do mundo do além-vida. Segundo o bigodudo, entre eles só há a diferença de se mudar a divindade que está no posto maior. Um por outro, são todos ídolos. Diferentemente do sentido baconiano, que explicitei neste texto, aqui os ídolos são as imagens belas de forma, mas ocas de valor, que representam todos os modelos mentais que servem para escravizar a vida, para demover as forças vitais das pessoas e torná-las vazias de vontade.

Só resta a arte, diria Nietzsche. Só na arte ainda temos liberdade de produzirmos de acordo com o que efetivamente pensamos e queremos, e por isso ele dava tanta importância para a tragédia, porque o herói trágico não renegava seu próprio destino. A aceitação da vida como ela é deve ser vista com grande alegria. A vida é um pacote que traz consigo as alegrias e os infortúnios, e a arte é sua máxima expressão. Viver artisticamente é dar a máxima vazão à vontade de potência, martelando os ídolos e relegando os fracos que querem negá-la à sua própria insignificância.

Tudo isso segundo Nietzsche. Bons ventos a todos e bom 2022.

Recomendação de leitura:

O Caso Sócrates ou o Problema de Sócrates, de acordo com a tradução, está contido no livro abaixo recomendado:

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Ou Como Filosofar a Marteladas. São Paulo: Escala, s. d.