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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 20º tomo: o apelo à novidade (argumentum ad novitatem)

Olá!

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Tudo bem com vocês, pessoas? Vamos nos dirigir às falácias novamente, neste intrépido empreendimento chamado Pequeno Guia das Grandes Falácias. Vou mencionar mais um apelo, as falácias informais de relevância. Como de costume, principiarei dando base “experimental” ao pensamento que norteia o erro, pinçando alguma coisa extraída do mundo que nos rodeia.

Em meados do século XVIII, o mundo conheceu uma virada científica e tecnológica que acelerou de tal forma o progresso que o próprio conceito de memória foi alterado. De fato, uma pessoa que observasse a boa e velha Várzea do Carmo em 1500 ou em 1900, pouca diferença perceberia: o trajeto curvilíneo do rio Tamanduateí serpenteando pela parte baixa dos outeiros onde se situa a região central da cidade de São Paulo, com a desembocadura do rio do Carmo a encher-lhe de água nos temporais de verão.

Avançando meros 50 anos, já estava essa mesma área irreconhecível: o rumo do Tamanduateí foi modificado, tornando-se reto; o rio do Carmo desapareceu, entubado que foi em uma galeria da rua Tabatinguera, e foi erigido um quartel e um parque – o Parque Dom Pedro II. Só não mudaram as cheias. Mais 50 anos e ele está ainda mais descaracterizado: a arborização foi sobejamente diminuída; muitos prédios foram erguidos, mas, sem a manutenção necessária, degradaram rapidamente. A região ganhou um imenso terminal de ônibus e perdeu qualquer espírito paisagístico, sendo o trecho mais violento do Centro, pior até mesmo que a Cracolândia. Guardem bem todas estas informações.

Quando eu ainda era um rapazinho, na já longínqua década de 80, trabalhei em uma metalúrgica que produzia máquinas-ferramenta para deformação de metais: eram tesouras mecânicas, guilhotinas, calandras, laminadores e principalmente prensas. Se você que me lê não sabe o que é isso, imagine o seguinte: você está na frente de um computador com sua caneca de alumínio, daquelas que mantém sua água, refri, chá, gasosa, cerveja, energético, caipirinha ou o que lhe contentar geladinhos por mais tempo. Essa caneca não saiu assim da natureza. Ela era minério de alumínio, que, uma vez aquecido, foi laminado e transformado em placa. Uma dessas placas foi colocada em uma máquina que, ao submeter-lhe à pressão de um golpe de algumas toneladas, deu-lhe a forma característica, obtida a partir de um molde que permite ao industrial produzir uma grande quantidade de outras canecas iguais. Essa máquina é a tal prensa.

(Para quem não se interessa pela área de mecânica e metalurgia, pode saltar estes parênteses confortavelmente; mas para esclarecer a quem ficou se perguntando que diabos são esses nomes todos: tesouras mecânicas servem para cortar chapas e peças metálicas; as guilhotinas também, mas o princípio de funcionamento é diferente – na tesoura, o corte é progressivo, como em uma tesoura manual, ou seja, o corte inicia quando você começa a pressionar as argolas e termina quando seus dedos chegam ao fim do curso. Já a guilhotina corta a peça toda de uma só vez, em um só golpe, como se fosse a cabeça de um condenado. Dependendo de sua regulagem, pode ser utilizada não para cortar, mas para dobrar metais, produzindo peça em “L”, como nas mãos francesas. Em tempo: tecnicamente, guilhotinas de papel são tesouras, não guilhotinas. Calandras são equipamentos de três rolos, onde dois rolos menores pressionam a chapa de metal contra o rolo maior, fazendo com que esta fique curvada, e laminadores são máquinas de dois rolos que se prestam a dar espessura desejada a uma chapa metálica. Sabe aquelas maquininhas de fazer massa de macarrão? O laminador é uma dessas com mania de grandeza).

O fabricante era filho de alemães, e gabava-se de produzir equipamentos duradouros, mesmo que trabalhando sob condições extremas de impacto e temperatura, como era o caso das infernais forjarias. E era verdade mesmo, sem papo de vendedor. As máquinas aguentavam sarrafo bruto à vontade.

Pois bem. Vieram os anos 90, e, com eles, a abertura de mercados; e, com ela, as máquinas chinesas. Máquinas modernas, precisas, muito mais leves e fáceis de transportar do que os trambolhos teuto-tupiniquins. Utilizavam comandos eletrônicos geridos por computador, em substituição aos dispositivos mecânicos da velha guarda. Eram fabricadas em poucas semanas, enquanto levávamos alguns meses para produzir ferramentas do mesmo porte. A tecnologia embarcada fazia supor um preço maior, mas não – uma prensa chinesa custava METADE da correspondente nacional. Com tudo isso, não havia como evitar: as novas máquinas chinesas eram melhores que as velhas brasileiras, correto?

Seriam, se não fosse um mero detalhe: as máquinas do velho senhor tedesco duravam não duas, nem três, mas QUATRO vezes mais tempo considerando o mesmo nível de eficiência. A heroína a salvar sua reputação era, como eu disse, a existência da política de superdimensionamento para evitar que problemas estruturais ocorressem, como quebras de solda ou fissuras, fatais em prensas. Em mãos habilidosas, rendiam e resistiam como nos bons tempos. Não deu muito certo, muito embora. A empresa se apequenou, e, de gigante do ramo, virou mais uma oficina de manutenção do que propriamente uma fabricante.

Isso tudo para demonstrar que a afirmação de que algo é melhor apenas porque é mais novo ou mais moderno é algo falacioso. É o apelo à novidade, ou argumentum ad novitatem.


Tudo o que é novo é necessariamente melhor?

É preciso colocar alguns pingos nos is. Em um mundo onde os ciclos de validade de uma determinada tecnologia são cada vez mais curtos, temos a tendência de vincular atualização permanente com melhoria na qualidade, o que nem sempre se encaixa. Lembrem-se do famoso caso do botão Iniciar, onipresente em todas as versões do Windows, que sumiu na versão 8, para reaparecer na versão 10, dada a avalanche de protestos dos usuários. Só que a variação tecnológica é tão presente em nossas vidas que acabamos por confundi-la com hábitos e costumes, achando que a novidade nestes também devem ser considerados melhores necessariamente, o que não são. A mesma pressão psicológica para trocar o celular se aplica, desta forma, à ética, ao convívio, ao corpo social. Basta que se pense nos velhos hábitos de gentileza com os mais velhos que acabam por se confundir com uma certa indiferença. Mas esta não é a tônica deste texto.

Outra coisa: novidade assemelha-se à evolução, e devemos lembrar que este é o mecanismo que fez com que as espécies no mundo sejam o que elas são hoje. Só que há um erro nesse raciocínio: na natureza, as novidades nem sempre são melhoramentos. Ao contrário até. As mutações costumam ser desvantajosas, sendo apropriadas em um número menor de vezes. Pense em uma mutação que gere o encurtamento da língua de um tamanduá, por exemplo. Certamente o pobre bichinho terá transtornos, e não benesses. Ou seja, as transformações são objetos para que a seleção natural atue, e a novidade pode ser fator de extinção, não de melhoria.

É óbvio que o recurso à novidade nem sempre é falaz. Não há dúvida, por exemplo, que os carros atuais poluem muito menos a atmosfera do que os antigões. Quem se lembra dos velhos DKW’s com motor de dois tempos sabe que de seu escapamento brotava uma fumaça azuladinha, de bela tonalidade, inexistente nos carros de hoje. Essa coloração se dava pela presença de óleo lubrificante junto à gasolina, misturados que eram, proporcionando uma quantidade muito mais significativa de poluentes, e poluentes perigosos. A presença de injeção eletrônica e catalisadores minimizou muito o problema, que somente é grande devido à gigantesca quantidade de veículos em circulação neste mundo de meu deus.

Por isso, dizemos ser esta uma falácia de relevância. Quando a novidade é importante para o argumento em questão, não podemos dizer que se trata se uma falácia. Mas, em geral, temos a tendência a associar o antigo ao antiquado, à ferrugem, à obsolescência; e novo ao avanço, ao moderno, ao melhor, esquecendo que nem sempre esse é um argumento válido.

E agora lembremo-nos da Várzea do Carmo e do Parque Dom Pedro II. Qual era melhor? O intocado e pouco aproveitável? O renovado e elitizado? O decadente e bem fornido de transportes? É melhor o novo, o velho ou o muito velho? Nada poderá ser dito com relação à novidade, mas com o uso racional da área. Por exemplo: a várzea original era muito ecológica, mas, justamente por ser várzea, era uma megalópole de mosquitos e pernilongos. Já o parque recém-montado era uma graça, mas foi a partir dele que o rio Tamanduateí ganhou estatuto de esgoto a céu aberto, sua única função a partir daí. E, por fim, o bairro atual é todo funcional, com ônibus, metrô, fura-fila, mercadão, vinte-e-cinco e santa-rosa, mas é preciso muito cuidado para andar por lá. Qualquer que seja o motivo de rejeição ou preferência, fatalmente estará pouco relacionado à novidade das implantações feitas na área. Perceberam?

Recomendação de canal:

Neste tempo em que as novidades são apresentadas nas propagandas como a quintessência da necessidade de consumo, é sempre bom ter alguém com os pés no chão para nos dar uns toques sobre suas armadilhas. Vou recomendar o bom canal da jornalista Francine Lima, que se ocupa em desvendar e desarmar as arapucas existentes em rótulos e embalagens, sempre com precisão e bom humor.

LIMA, Francine. Do campo à mesa. Vídeos. Disponível em: https://www.youtube.com/user/docampoamesa

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 10º relato: Pedreira entre porcelanas e destemor da morte

Olá!

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Muito bem, o roteiro está se encaminhando para o seu final. Eu e a patroa fizemos nossos pacotes logo cedo, com muitas garrafas e badulaques no porta-malas e fomos embora de Monte Alegre do Sul, após o café da manhã incluso no preço. Saímos logo cedo porque pretendíamos ainda dar pneu de comer ao asfalto no dia derradeiro por mais duas cidades antes de aportar em nosso lar, um pouco contrariados pela proximidade do fim da jornada, mas movidos pelas saudades crescentes de filhos, afilhados, amigos e bichos de estimação.

A primeira delas foi Pedreira, bastante conhecida pela produção e comércio de porcelanas. Assim como eu, quase todo mundo acha que o nome da cidade deriva da quantidade de pedras espalhadas por seus montes, e que, de alguma forma, poderiam vir a ajudar na produção de sua mercadoria de destaque. Nada a ver. O nome nasceu da quantidade de “Pedros” envolvidos na fundação do singelo lugarejo, tornando-o insólito. Obtive essa informação no museu da cidade, do qual falarei daqui a pouquinho.


É uma cidade que não foge do modelo das demais pertencentes ao Circuito das Águas, embora seu mote principal seja um pouco diferente, menos aquático e mais artesanal. Artesanal? Mais ou menos. O processo acabou se tornando mais fabril com o correr dos tempos. Mas os prédios antigos estão lá, como a Prefeitura, por exemplo:


A tradicional igrejona matriz é dedicada a Sant’ana, padroeira local, e fica localizada na praça de mesmo nome. Passei por lá em dia de evento – acho que estava sendo celebrada uma primeira-comunhão, e estava apinhada.


Na mesma praça, há uma concha acústica toda estilizada, e parece a mim que o coreto quase que onipresente em todas estas cidades do interior ficou guardado apenas no museu da memória de seus habitantes mais antigos. Mas a peça é interessante.


Se há uma atividade preponderante, nada mais óbvio que haver uma certa concentração de estabelecimentos para divulgar e comercializar o fruto de seus labores. São inúmeras lojas de porcelana e cerâmica, onde são oferecidos os mais variados artigos, desde aparelhos de jantar, abajures, vasos e moringas, arte utilitária portanto, até bibelôs diversos, feitos só para enfeitar. Algumas lojas são bastante simples, e vendem produtos prontos ou crus, enquanto outras são mais sofisticadas. Entrei em uma particularmente interessante, que possui uma espécie de varanda montada sobre palafitas em sua parte do fundo, um espaço zen, afastado do burburinho das compras e que é erigido sobre o rio Jaguari, que corta a cidade. Tentei entrar em contato com a loja para poder postar algumas fotos, mas não consegui. Vou, portanto, apenas dar amostra desse espaço.


O rio em questão é um tanto barrento, mas, segundo os lojistas, é bastante limpo. Notei mesmo que ele não tem um fluxo muito calmo, o que deve revolver o material de seu fundo. As aves pousadas nas pedras (sei lá quais) meio que corroboram sua potabilidade.


Pedreira, nos últimos tempos, também tem se dedicado com afinco na movelaria leve, com itens feitos em MDF (sigla de Medium Density Fiberboard – Placa de Fibra de Média Densidade). Trata-se da mistura de madeira moída e cozida com resinas, que posteriormente são moldadas por prensagem, resultando em um material bastante leve, o que pode ser útil para mobiliário onde não é necessária alta resistência. Em uma das lojas, os artesãos bolaram uma réplica da torre Eiffel:


Mas não se pode deixar de visitar o Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira. Aproveitando um sobrado histórico, o lugar é uma fonte completa para quem quiser conhecer os quês e porquês que constituíram o município e o fizeram se tornar o que ele é.


Há muito material para ser estudado, portanto, serei bem breve. Há muitos dados sobre a fundação, as promulgações de leis, os símbolos municipais, e assim por diante. No piso térreo, está situado o equipamento histórico. Mostra itens que exemplificam a cidade em seu contexto urbano...


... e na sua formação rural:


Na parte de cima, a cereja do bolo. Um roteiro completo que explica passo a passo a manufatura de porcelana, exibindo materiais, maquinário, fotografias e peças parciais, desde a extração da matéria-prima até os requintes de finalização do produto:


Não há somente peças artísticas. Há também aplicações industriais e muito uso da cerâmica em isolamento elétrico e térmico, como nos isoladores de rede abaixo:


Mas é óbvio que pensar em porcelana é pensar em arte e em habilidade manual. Há vários armários com portas de vidro que permitem ao visitante observar como as peças são utilizadas para enfeitar e servir. O mané que tirou a foto (eu) esqueceu que espelhos refletem, e é possível divisar quase todo o meu privilegiado abdômen.


Algumas peças sacras foram ambientadas em cômodos acompanhados de móveis, para dar uma ideia de como são utilizados com função ornamental. De fato, dão vivacidade ao ambiente, seja por colori-lo, seja por refletir luz ou dar volume aos diferentes itens do ambiente.


Notem que na foto anterior temos um anjo da guarda. Também são muito comuns as imagens de Sant’ana, pelo simples motivo de, como já disse, tratar-se da padroeira local. Temos abaixo uma amostra estilizada de Sant’ana educando Santa Maria.


Em outro móvel, mais uma Madona, desta vez refletindo o estilo renascentista, em uma abordagem que eu vejo com muita raridade: bastante ousada.


Para fechar, também em Pedreira encaramos um Festival da Coxinha, promovido pelo bar Pedrock’s, misto de boteco de beira de estrada e moto clube, nome este que brinca com o nome da cidade e com a lendária terra dos Flintstones (Bedrock).


No tal festival, há coxinhas para todos os gostos: carne, queijo, camarão, palmito, bacalhau, etc., além, é evidente, das de frango. Todas boas, em tamanho e sabor. Nos vidros da porta de entrada, uma coletânea das escuderias que por lá passaram, vindas de todas as partes do estado.


Não pude deixar de comentar com o dono do lugar sobre a escuderia de alguns colegas de trabalho, de quem pediu o escudo. Já o obtive, e levarei a Pedreira assim que possível. Trata-se dos Pintinhos do Asfalto. Como são meus amigos, não tecerei nenhum comentário, limitando-me a submeter sua arte à apreciação dos meus leitores:


E, para variar, pus-me a refletir. Moto-clubes podem ser vinculados a um monte de significados que transcendem o simples fato de se juntar aos amigos para beber em companhia montados em seus equipamentos de duas rodas (motorizados, por certo). Podemos pensar na liberdade das estradas, na independência e transgressão com relação à sociedade convencional, na exploração bandeirante de locais desconhecidos, na sanha de conquista desses novos territórios, na lógica gregária das antigas tribos, no domínio da tecnologia em que o homem domina a máquina como fazia com os cavalos, no amor storgé que nos dá sensação de pertença, na exacerbação da masculinidade que substitui o membro ereto pela moto mais potente e via discorrendo. Dá para perceber que é bem possível escrever um livro muito circunstanciado sobre o tema, mas quero me limitar, neste momento, a algo mais simples. Sabemos que motocicletas possuem limitações com relação a outros automotores, como capacidade de bagagem restrita (inclusive estepes), menor proteção contra intempéries, proteção insignificante contra acidentes. Por outro lado, há uma maior dificuldade de detecção pelos temíveis radares, há uma gama muito maior de plasticidade dos movimentos, permitindo ao condutor incauto se espremer por fendas inimagináveis, e desafiar as regras da Física e da legislação é mais alcançável. À guisa de Euclides da Cunha, informo que não só o sertanejo, mas também o motociclista é, antes de tudo, um forte. E, como tal, sente prazer em se expor a riscos. Por que?

Primeiramente, devo dizer que essa dinâmica do risco não é só do agrado dos membros dos moto-clubes. Os seres humanos, em geral, têm certa propensão a se expor a riscos, alguns controlados, como as montanhas russas dos parques de diversão (argh!); outros, terceirizados, como os filmes de terror. Mas, muitas vezes, esses riscos são absolutamente reais, como nos esportes radicais e nos de velocidade.

Já procurei falar sobre a lógica da substituição da guerra, em um texto onde apliquei a dialética hegeliana aos célebres e melancólicos 7 X 1. Mas ela não pode ser atribuída sem malabarismos a qualquer esporte, especialmente naqueles individuais. Ora, direis: não existe hoje esporte exclusivamente individual. Bem, exclusivamente não, mas essencialmente sim. Há sempre equipes de preparação, técnicos, médicos, roupeiros e muitos outros. Mas o âmago de esportes como tênis, atletismo e natação (exceto revezamentos) está no esportista isolado, no indivíduo atleta. Não há substituição nem sentido de equipe. Aqui, o sentido de reprodução do campo de batalha do modo como coloquei fica prejudicado.

A presença do fator risco, exacerbado em esportes de velocidade, pode ser explicado por dois outros fatores: um atávico-psicológico e outro fisiológico. De fato, o homem, assim como todos os animais, precisa conhecer bem suas capacidades para conseguir se manter sobrevivendo em ambiente perenemente hostil. É preciso saber calcular, por exemplo, o tempo necessário para cruzar um trecho aberto entre dois abrigos, a altura máxima de um salto, a força para suportar o próprio peso e outros planejamentos mais. A cada vez que o faz, o humano testa seu limite e parametriza até onde pode chegar, formando sua caixa de ferramentas para sobreviver. Superar esses parâmetros significa a possibilidade de dar melhor manutenção à espécie. Pode parecer estranho a nós, seres contemporâneos, mas isso já foi tão significativo para nossos mecanismos evolutivos que ficou gravado em nosso substrato mental. A superação do limite, em seu extremo, é um desafio à morte, o que naturalmente é prazeroso.

O segundo fator, conexo ao primeiro, é que a situação de perigo libera em nosso organismo quantidades industriais do hormônio da atenção e da explosão muscular: a adrenalina. Várias pesquisas já puderam detectar que as descargas de adrenalina produzem efeitos que tornam todo o organismo preparado para o ataque ou para defesa – situações de alerta máximo, e que isso propicia sensação de prazer multiplicada aos limites do corpo. A adrenalina, desta forma, funciona como uma autêntica substância dopante, e, por isso mesmo, capaz de viciar.

Este é o motivo pelo qual tanta gente gosta de filmes de ação ou de terror: a adrenalina é liberada aos borbotões, por efeito psicológico. Esportes de risco iminente, como são o automobilismo, o motociclismo, a motonáutica, as escaladas, o paraquedismo, entre outros, mantém o nível deste hormônio alto por muito tempo, elevando o prazer vinculado ao perigo.

Eis aí mais dois motivos pelos quais o esporte não é bom apenas fisicamente, mas filosoficamente também.

Recomendação de filme:

Vamos de clássico do cinema da contracultura, o road movie Sem Destino, muito conhecido pelo nome original Easy Rider, que tem uma puta trilha sonora; um autêntico grito pela liberdade e uma radical visão social esquecida até então pelo cinema ianque.

HOPPER, Dennis. Sem Destino (=Easy Rider). Filme. EUA: 1969, cor, 94 min.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 9º relato: Amparo, os filhos ilustres e os filmes psicológicos

Olá!


Eu não estava brincando quando disse que Monte Alegre do Sul é pequena, não. Quando estávamos de pouso na precitada cidade, encontramos comida suficiente e bebidas em profusão, mas alguns outros pequenos itens que tornam as viagens mais confortáveis (como repelentes) não eram muito simples de encontrar na agradável micrópole, o que nos levou a buscá-los em outras plagas, mais especificamente em Amparo, uma das maiores cidades da região.


A cidade possui o melhor conjunto de construções históricas do Circuito das Águas, localizadas naquilo que é conhecido como Centro Velho. Uma de suas marcas principais é uma praça belíssima, denominada grandiloquentemente de “Parque Alonso Ferreira de Camargo”. O nome é originário de um dos membros de uma família especialmente empenhada na Revolução Constitucionalista de 32. É bastante arborizada e tem um bonito espelho d’água, atravessado pela ponte aí embaixo:


A cidade de Amparo orgulha-se da sua vocação bandeirante, ponto de cruzamento entre os caminhos do sul de Minas Gerais, Campinas e Vale do Paraíba. Prova disso é a homenagem prestada pela colônia sírio-libanesa local, na forma de uma estátua alocada no parque já mencionado.


No cume do outeiro que faz o limite superior desse logradouro, fica a igreja dos franciscanos, a Fraternidade São Benedito, construída no início do século XX, a partir de uma escola preexistente. Viveu como local central de encontro da cidade até a construção da parte mais nova de Amparo.


Um de seus anexos são as grutas erigidas em honra a Nossa Senhora de Lourdes, a Nossa Senhora Aparecida e uma fonte encimada por São Francisco de Assis, natural padroeiro da ordem de sua criação. O conjunto todo tem aquele velho propósito de propiciar um pouco de paz aos transeuntes, no que tem sucesso.


Como não poderia deixar de ser naquela que é considerada a capital histórica do Circuito das Águas, há algumas bicas espalhadas pela localidade, com aquelas qualidades já bem conhecidas de todos nós: frescor, cristalinidade, agradável nas bocas e nas nucas calcinadas pelo calor de janeiro.


A pegada histórica de Amparo não lhe foi atribuída em vão. São inúmeros imóveis bastante antigos e bem conservados, especialmente nesse trecho da cidade. O casario térreo, feito em adobo ou taipa, dá-lhe o habitual aspecto de cidade centenária. A foto de baixo é só uma amostra: há muitas outras casas espalhadas pelo centro histórico.


Deslocando-se pela cidade, chegamos a outro conjunto arquitetônico composto por igrejas e praças. Não sei o que aconteceu com as fotos que tirei. Devo ter me atrapalhado todo na hora de copiar da máquina para o computador, há um buraco na numeração. Neste pedaço, há alguns prédios interessantes, como a Igreja do Rosário, um centro cultural, muitas lojas e dois salvados deste meu alegado sinistro: esta imagem da Mãe Amparense...


... e a estátua de um filho ilustre, o Dr. Paulino Moser Recch, médico e cientista local, que tinha como especialidade o cultivo de orquídeas e o estudo de insetos.


Mas não é só o honorável médico que é filho famoso dessa cidade. Quero destacar aqui o escritor e roteirista Marçal Aquino, que tem feito belos trabalhos no cinema nacional, e que extrapolou os limites da cidade bem mais do que nosso anterior benemérito.

Eu, particularmente, assisti com maior atenção a dois filmes cujo roteiro foi desenvolvido pelo escritor em foco: Nina e O Cheiro do Ralo, ambos em parceria com o diretor Heitor Dhalia e com o desenhista Lourenço Mutarelli. Ambos os filmes tem muitos pontos em comum: ambiente lúgubre, clima psicológico pesado, ação limitada, ritmo compassado e personagens problemáticos, mas que diferem muito em seus desenrolares. Ou seja, que não se esperem estripulias hollywoodianas. Comecemos falando de Nina.

O filme é soturno, na mesma São Paulo sombria que enxerguei na cidade anônima do filme Ensaio sobre a Cegueira (do qual falei aqui). Busca inúmeras referências no livro Crime e Castigo, capolavoro de Fiódor Dostoiévski, um dos maiores mestres da literatura russa, mas não chega a se afigurar como uma versão própria e acabada.

O filme Nina tem um belo problema: este livro no qual se baseia. É simplesmente ousado demais tentar filmar uma obra do porte de Crime e Castigo, mas o roteiro acaba se saindo bem, já que se trata de uma grande paráfrase, e não da tradução do texto para a linguagem do cinema. A ideia de fazer um Raskólnikov feminino é boa, porque já ajuda a criar um pequeno distanciamento. Mas o filme é também devedor de outro célebre escritor russo, Anton Tchekhov. O filme tem a característica de pinçar a história de algum lugar e arremessá-la à nossa frente. Não sabemos de onde Nina aparece, sabe-se pouco de seus vínculos familiares, porque veio parar em um quarto de pensão perdido na cidade grande.

O que é certo é que Nina extrai menos de seu psicologismo, como faz Raskólnikov, e mais de sua vida tresloucada, regada a drogas e festinhas de embalo. Nina é mais solta biograficamente: sabemos muito pouco sobre ela, como já disse. Já Raskólnikov deixa explícita sua intenção de cometer algo grandioso, apesar de pobre. Nina parece mais querer sobreviver, Raskólnikov quer ir além do seu abandonado diploma de advogado, ser extraordinário, uma espécie de übermacht nietszcheano. Apesar de logo no início do filme Nina fazer a mesma distinção entre ordinários e extraordinários (que, ao lado do assassinato da senhoria é o principal ponto de contato com Crime e Castigo), ela se vê às voltas com uma espécie de descuido de si mesma, enquanto Raskólnikov filosofa, e muito.

Não vou revelar profundamente enredos, apenas mencionar que o centro nervoso tanto do filme quanto do livro (o tal assassinato) comanda as ações anteriores e posteriores a si constituindo um ponto de inflexão sobre aquilo que ambos constroem mentalmente. A pressão sobre a psique de ambos é imensa antes e após a ação criminosa. Antes, Nina é ódio que se acumula até se purificar, não há nada além de ódio; Raskólnikov não é só isso: é calculismo também, uma realização da sua ilusão de superioridade.  Depois, Nina cada vez mais se encaminha para a loucura – esse é seu castigo. Para Raskólnikov é pior – a consciência de que ele não é um dos extraordinários. A sua consciência o condena antes de todos os outros, como ocorreria a qualquer um. Raskólnikov tem algo a mais em seu castigo, que Nina não tem – ele fracassa.

Algumas pontuações: é gratificante ver uma atriz realizar outro trabalho que não seja aquele em que estamos habituados a vê-la. Guta Stresser padece de acorrentamento a um personagem como nenhum outro membro da extinta Grande Família. Marco Naninni e Marieta Severo já tinham carreiras teatrais, cinematográficas e televisivas consolidadas antes da série. Pedro Cardoso tem um vínculo forte com a imagem de humorista. Mesmo personagens laterais, como o Paulão de Evandro Mesquita, contam com uma carreira musical para lhes dar caminhos alternativos. Com Guta, não. Você consegue vincular Naninni e Irma Vap, Marieta e Carlota Joaquina, Pedro e TV Pirata, Evandro e Blitz, todos externos à Grande Família; mas não consegue desprender Guta de Bebel. Sua atuação nesse filme, portanto, pode até não ser um máximo primor, mas é muito boa, passa bastante convencimento, e faz entrever alguns caminhos que lhe proporcionem alternativas. É um belo item de currículo. Além disso, o filme ganha completamente o jogo com as intervenções de Lourenço Mutarelli. A ideia de substituir as ações mais agudas pelos seus desenhos disformes e tresloucados é simplesmente genial. Se nada no enredo e nas atuações valer a pena, o filme se basta nesta coletânea de expressões rasgadas, a raiva e o desespero sintetizados em seus traços angustiados.

Com relação ao filme O Cheiro do Ralo, vemos novamente a trinca Aquino-Dhalia-Mutarelli dando as caras, só que desta vez a participação que temos do último é diferente. Ao invés de emprestar seu traço corrosivo, temos a transposição para a película de seu livro homônimo. Trata-se da história de um homem, interpretado por um Selton Mello irretocável, que vive de um ofício pouco provável: compra de quinquilharias e antiguidades, em uma sala ordinária localizada em algum lugar entre a Luz e o Paissandu (na minha percepção).

Para ele, Lourenço, uma atividade que parte da frieza à avareza. O roteiro enfatiza sua personalidade autocentrada utilizando o artifício de não atribuir nomes a quase ninguém (o nome de sua ex-noiva é conhecido, como se para manter um peso a ser arrastado). É o amálgama do prazer sádico ao atribuir valor ínfimo ou nulo a objetos que possuem extremo significado sentimental a quem o traz para se desfazer. Já há a dor da separação entre o objeto que lembra pessoas, eventos passados, glórias pretéritas, ato este que só se dá pelo desespero de quem não tem dinheiro, banco, amigos a recorrer.  É o confronto mais cruel entre o real e o simbólico que podemos vislumbrar: tudo aquilo que há de mais significativo na vida de uma pessoa, é mero objeto de especulação pela outra. Lourenço se diverte com o seu poder de barganha, em jogar com os sentimentos pessoais. O persistente cheiro que vem de seu banheiro dá nome ao filme e lhe traduz o caráter.

Mas é um homem em permanente conflito. Tudo é sussurrado, quase transmitido em segredo, como uma vergonha ou uma fraqueza. E, tudo isso posto, podemos notar que ambos os filmes têm ainda outro elo, mais sutil e importante, vinculados à obra de Dostoiévski. Os monólogos mentais de Raskólnikov, ausentes em Nina, estão a pleno vapor no personagem Lourenço de O Cheiro do Ralo. Ele tem fixação por uma garçonete de um boteco barato (mais especificamente por seu traseiro), que ameaça lhe corresponder, mas Lourenço é um materialista irremediável. Também o corpo é mercantil, não só as consciências. A garçonete é a sua bunda, nada mais. E o complexo de sentimentos contraditórios vai se desenrolando, agora sim no plano psicológico que Dostoiévski atribuiu à sua criatura.

Dois bons filmes, que recomendo, assim como recomendo também uma visita à bela Amparo.

Recomendações:

DHALIA, Heitor. Nina. Filme. Brasil: 2004. Cor. 90 min.

DHALIA, Heitor. O Cheiro do Ralo. Filme. Brasil: 2007. Cor. 112 min.


Também vou indicar o livro mencionado neste texto:

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

sábado, 7 de novembro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 19º tomo: o apelo à emoção (argumentum ad passiones) e algo sobre a fosfoetanolamina

Olá!

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Já dizia nosso bom e velho (põe velho nisso!) Platão: se a cópia já é ruim, a cópia da cópia é pior ainda. Como é triste quando alguém tenta imitar o outro naquilo que ele tem de pior... Não me refiro aqui à arte, para quem Platão reservava a crítica de ser uma exacerbação da imperfeição. Explico: o nosso amigo acreditava que existia um lugar onde tudo era perfeito - um lugar onde havia os modelos de tudo o que existe: os seres, as coisas, seus atributos e qualidades. Esse lugar era chamado de eidos, o mundo das Ideias, predecessor de tudo o que existe fisicamente. Também era chamado de Hiperurânio, aquilo que está acima dos céus. É o lugar da essência, aquilo que faz alguma coisa ser exatamente o que é, e, portanto, só pode ser percebido pelo intelecto puro, pelo puro pensamento, apenas e tão-somente.


A emoção é muito mais eficiente que a razão...

Mas como surge o mundo concreto, o mundo que percebemos através dos sentidos? Segundo Platão, há um Demiurgo, um Deus que é expressão de uma vontade de plasmar no mundo concreto cópias dos modelos essenciais do eidos. Mas, ao contrário do que se poderia pensar com base na teologia ocidental e na tradição judaico-cristã, o Demiurgo não reproduz cópias perfeitas. Cada espécime tem características próprias, como os homens, que não são iguais uns aos outros. Cada homem do mundo sensível é uma reprodução do homem ideal.

Pois então. O que é a arte para Platão? Quando um artista produz sua obra, o faz com base em sua sensibilidade, de sua observação do mundo que o rodeia. Este mundo está crivado de objetos que nada mais são do que reproduções dos objetos perfeitos do Hiperurânio. Quando a obra de arte é executada, o artista nada mais faz do que assumir o papel de Demiurgo, sendo ele o artífice de um novo objeto extraído de um modelo. Com um pequeno detalhe: seu paradigma é imperfeito. Ele mesmo, o modelo, já é uma cópia. A arte é cópia da cópia, e só pode ser mais imperfeita ainda. Por isso, Platão não costumava levar a arte muito a sério.

Não me referia à arte, como disse, mas a algo análogo. E fiz esse périplo todo para dar base filosófica ao seguinte acontecimento recente: se alguém passa vergonha tentando se fiar na TV Globo como fonte de informações, que dizer daquele que busca apoio na TV Record, seu pastiche, sua cópia da cópia? Já falei sobre isso em outro texto, mas insisto na tese porque há corroborações abundantes. O caso mais recente é a polêmica gerada em torno de uma pretensa substância que teria propriedade de curar câncer, a fosfoetanolamina.
O imbróglio é gigantesco e tentarei ser o mais sucinto possível. Há mais de 20 anos, uma linha de pesquisa química da USP descobriu uma maneira de sintetizar a fosfoetanolamina, um composto produzido pelo próprio organismo humano. Essa substância parece agir positivamente sobre um melanoma específico em ratos, o que é altamente promissor. Até aqui, nada demais. O problema é que tal substância começou a ser distribuída gratuitamente para pacientes de câncer, com o intuito de realizar-se uma pesquisa informal. Há dois imensos erros aqui. O primeiro torna a experiência perigosa – era instruído aos pacientes que cessassem outros tratamentos, como quimioterapia, imunoterapia e radioterapia. O segundo faz a experiência inútil: não há registro de resultados. Só há depoimentos, só existem evidências anedóticas, episódicas. A distribuição era feita na base do vai-que-é-mole. Não há um cadastro e rastreamento dos casos. E dessa forma, só restam as alegações, mais nada. Não se sabe quem tomou a substância e

  1. Mesmo assim morreu;
  2. Fez extração dos tumores;
  3. Cujo tumor tenha estacionado;
  4. Retomou outros tratamentos;
  5. Teve efeitos colaterais ou reações adversas*.
Não se sabe nada. Só se sabe que há depoimentos de pessoas que se sentiram melhor após seu uso.
Gente, isso é bom, é promissor. É altamente estimulante para que sejam expandidas rapidamente as pesquisas necessárias. Qual o grande problema? A maneira como o tema foi abordado. Desta vez – DESTA VEZ – a Globo fez a lição de casa direitinho. Convocou de seu quadro o melhor representante possível para tratar do assunto, o Dr. Drauzio Varella. Tem muita gente que não gosta dele, que é mais popstar do que cientista, mas isso não arranca seu diploma da parede, e por isso discordo da posição. A Globo deu voz a todas as partes envolvidas: à USP, à Anvisa, à Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, ao químico da fosfoetanolamina, Dr. Gilberto Chierice. Mostrou os trâmites legais e judiciais. Consultou também um dos principais oncologistas da atualidade no Brasil, o Dr. Antonio Carlos Buzaid, e trouxe uma advertência clara e séria: cuidado com as especulações sem base. Elas podem ser perigosas. Não há ainda nenhuma base científica para conferir o estatuto de medicamento a tal substância, especialmente estudos clínicos que lhe verificariam segurança na administração. Para mim, praticamente perfeito.

Aí vem a Record. E produz uma reportagem que contém, basicamente, o depoimento apaixonado de uma mulher em tratamento de câncer, que declara melhoras significativas em seu organismo após o uso do produto. Mostra a batalha de seus filhos para obter a substância, e busca as mesmas opiniões da Anvisa e da SBOC, mas, se você contar os minutos expostos, dá uma conta de 4 contra 1 a favor dos defensores da fosfo. Fala-se em doação, em sonho, em esperança, em valer a pena tentar. Repetiu a dose no dia 04/11, trazendo um caso pessoal de uma analista de sistemas, falando em luta e em dignidade. Desta vez, mais ninguém é ouvido além da depoente. Nenhum médico, nenhum psicólogo, nenhum farmacêutico, nenhum laboratorista. Não há nem ao menos um examezinho para mostrar a evolução do quadro. Só o depoimento.
Eu não sei o que a Record quer com isso. Aliás, sei sim. Quer audiência. Polemizar sobre um determinado assunto que afeta tanta gente gera televisores ligados e polpudas verbas publicitárias. Mas é um caminho perigosíssimo. Basta ver a quantidade de mensagens revoltadas nos vídeos disponíveis na internet. Todo mundo que fala com a razão sobre o caso é colocado na conta dos malvadinhos, de arautos de um governo que não pensa na saúde pública, em sabotagens da indústria farmacêutica, em médicos egoístas.

Pura teoria da conspiração. No meu texto sobre as vacinas, já tentei dar uma clareada no processo de pesquisa científica. Não é nada simples, é custoso e moroso. Mas qualquer cientista que conseguisse, de fato, criar um remédio que curasse alguns (não todos, só alguns) tipos de câncer entre as centenas que existem, estaria condenado a ganhar o prêmio Nobel por aclamação, principalmente com a rapidez e ausência de efeitos colaterais dos casos que vêm sendo veiculados. Isso significa renome e muito dinheiro. O prêmio representa 8 milhões de coroas suecas, que, em dinheiros ianques, representam cerca de US$ 1.300.000,00. Nada mal. Outra coisa: imagine quanto não lucraria uma indústria farmacêutica que tivesse a patente desse medicamento na mão. E, mesmo que com um preço caro, duvido que o governo não economizaria muito com os tratamentos da doença. Por isso tudo, dizer que há um conluio universal contra a descoberta de um remédio para o câncer é rematada parlapatice.
Luta, sonho, esperança, a batalha pela vida: emoções. A abordagem é muito antiga: é a falácia do apelo à emoção, ou argumentum ad passiones, provavelmente uma das mais poderosas falácias informais de dispersão e relevância que temos em nossa linguagem. É basicamente produzido através da manipulação das emoções, que se contrapõe claramente ao uso da razão. É exatamente o caso que temos em tela. Toda a racionalidade buscará compreender os motivos pelos quais uma substância tão promissora não é logo liberada para utilização em doentes de câncer, doença terrível. E a resposta é simples: a Ciência PRECISA atuar de forma desapaixonada. Não foi um nem dois medicamentos que produziram efeitos colaterais inesperados, alguns deles devastadores. O caso da talidomida é o mais emblemático de todos. A história é conhecida e ajudou a construir a pesquisa farmacêutica da forma que ela está estabelecida hoje, pelo seu pior caminho: ao gerar um número enorme de vítimas. Um depoimento emocionado não significa nada para a pesquisa. O médico não vai perguntar se você está mais feliz, mais esperançoso ou mais confiante ao tomar um remédio; ele perguntará se você se sente melhor. Reações como euforia ou depressão serão registradas como efeitos do tratamento, não como justificativas clínicas.

... e mais perigosa também

A Ciência é fria porque é preciso ser fria. Não pode buscar seus resultados desesperadamente. Se os benefícios da fosfoetanolamina não puderem ser aproveitados pela atual geração, que não sejam, paciência; que sejam pelas próximas. Se as pesquisas mostrarem que não é adequada como remédio, que seja descartada, ou que sejam pensadas modificações para aperfeiçoá-la. O apelo à emoção, pelo contrário, é vivaz. Apela para aquela parte da nossa mente que reage de imediato, que atende necessidades prementes; que é instintiva, não racional. É tudo o que a pesquisa científica não necessita.
Muita gente pensará neste momento: “Você não sabe o que é ter uma pessoa que você ama sofrendo de uma doença incurável”. Engano. Sei muito bem. Dois dos meus avós morreram de câncer, e minha mãe também. Meu avô materno morava na mesma casa que eu. Teve um câncer exposto, que se espalhou da garganta para o rosto e para a cabeça. Demorou um ano e meio sangrando e se sufocando, até ser submetido a uma traqueostomia. Depois desse dia, nunca mais o vi. Era criança, e na década de 80 era proibido entrarmos no Hospital do Câncer. Depois minha avó paterna teve câncer no pâncreas. O médico insistia em dizer que sua dor abdominal era oriunda de formação de gases. Só descobriu a doença quando já não havia nada a fazer. Quando estava a poucas semanas de sua morte, já não reconhecia mais ninguém, perdeu suas referências. Em um de seus poucos últimos momentos de lucidez, disse para mim: “Que castigo, meu filho. Ninguém merece isso”. Já minha mãe teve câncer na bexiga. Tentou se tratar durante três longos anos, com poucos resultados práticos, até ser vitimada por uma infecção generalizada. Contei a história neste texto.

Eu teria tudo para odiar as pessoas e as instituições que nos proíbem de tentar qualquer coisa para tentar salvar suas vidas, mas não podemos mover-nos com base em emoção, em especial no momento em que falamos de populações amplas, de benefícios que precisam sê-los de fato. Por isso, resigno-me à minha dor particular. Torço para que nenhum dos meus tenha que passar por isso, e, se acontecer, que o sofrimento seja mais curto, apoiado inclusive por uma fosfoetanolamina agora devidamente aprovada e beneficiando muita gente (olha um apelo aí se formando).
Duas coisas: não retiro o direito de pessoas tentarem se salvar com tratamentos que não possuem comprovação de segurança, desde que devidamente informadas dos riscos. Em um paciente terminal, não há nada mais natural do que arriscar qualquer coisa para se curar ou, ao menos, mitigar sua dor. Pode-se tentar babosa com whisky, sangue de carpa, casca de caranguejo, cartilagem de tubarão, garrafadas, mezinhas, fórmulas de rezas, fluído de freio, merda, extrato mole de frango da Malásia, qualquer coisa se justifica. Certa vez, em uma crise de dor de dente, recomendaram a mim que espetasse um cravo-da-índia na cárie, que bochechasse um conhaque e que mastigasse tabaco, o que fiz desmanchando um cigarro. As poções mágicas só serviram para me deixar com um mau hálito do caralho. O que resolveu meu problema de fato foi um anti-inflamatório e uma visita ao dentista, mas na hora do desespero você dá ouvidos a qualquer pessoa que relata um tratamento de sucesso.

Por outro lado, o tipo de informação manipulada como a da Record deveria ser punida de alguma forma. Em uma população que conhecesse minimamente o processo científico, a punição viria do controle remoto. Mas seria o mundo ideal, e não o temos. Seria muito interessante que as emissoras de televisão produzissem um bom material sobre o funcionamento da pesquisa e o disponibilizassem em suas páginas da internet, indicando-os quando necessário. Poderiam, aliás, fazê-lo com relação a vários assuntos polêmicos que precisassem de um conhecimento mínimo, em qualquer área. Acho que fumei um e nem lembro.
(Na edição final deste texto, antes de clicar no botão “Publicar”, lembrei que a TV Cultura utiliza um esquema chamado “Segunda Tela”, em que são fornecidas várias informações relativas aos programas que vão sendo exibidos. Por isso entendo que é uma emissora diferenciada, conforme já havia dito neste texto, já um bocado antigo).

Há apelo à emoção não falacioso? Como é a oposta dialética da razão, é muito raro que um discurso emotivo também respeite as normas da lógica, mas não é impossível de acontecer, principalmente porque podemos falar racionalmente das próprias emoções. Quando dizemos que as emoções são fonte de inspiração artística, por exemplo, não há nada de errado nisso.
E também é preciso notar que a eficiência de um discurso emotivo é bem maior e desejável que em um raciocínio complexamente construído. Imagine a seguinte situação: um jogador de futebol está deixando frequentemente sua retaguarda descoberta, o que é um convite para os contra-ataques do adversário. No momento dos treinamentos, o técnico pode lhe explicar paternalmente que ele deve ter cuidado, ficar atento aos lançamentos no espaço vazio que ele proporciona, sob pena de periclitar o restante da peça defensiva da equipe e levá-la à derrota. Poderá desenhar os esquemas do erro e das possíveis alternativas para sua correção. Poderá exibir videoteipes e colher o depoimento dos companheiros de time e da crítica desportiva. Mas, na hora do jogo, o técnico simplesmente grita: “CORRE, F... DA P...!”.

O técnico apela para o brio do jogador, para a necessidade imediata que tem em evitar uma situação de perigo para sua equipe. A retórica emotiva é a única aplicável nessas condições.
Mas é preciso um cuidado canino com essa falácia, já que é a ferramenta que existe quando não é possível usar o argumento racional. E é com ele que nascem as publicidades dos tomadores de empréstimos sorridentes nos bancos, a beleza a qualquer preço, a indução do consumo ao álcool, o incentivo à guerra, o discurso do ódio.

Recomendação de leitura:
Segue o livro em que Platão discute a questão da arte:

PLATÃO. Timeu – Crítias. Coimbra: CECH, 2011.
Também linko alguns vídeos de pessoas que estão habituadas ao processo de pesquisa científica:

Canal do Pirulla: https://www.youtube.com/watch?v=L51NrrK1APQ

Primata Falante: https://www.youtube.com/watch?v=nXN3KG_AIR8

Eu, Ciência: https://www.youtube.com/watch?v=eY9OEBCv9ds

*Há gente que diz que a fosfoetanolamina não tem efeitos colaterais porque é produzida pelo próprio organismo. Sugiro a estas pessoas que tomem uma injeçãozinha de adrenalina ou um copinho de ácido clorídrico. Também são produzidos pelo corpo e não farão mal algum.