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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Portuguesa e a tragédia grega posta em prática - Até quando há de brilhar a cruz dos teus brasões?

Olá!

Domingo passado, mais uma vez dei um pulinho no Canindé para acompanhar o calvário da Portuguesa, a mesmíssima Lusa que, apesar dos poucos títulos, tem a simpatia de ser uma espécie de Robin Hood dos paulistanos, sempre empedernindo as coisas para os grandes para depois tropeçar nos pequenos. Isso era nos bons tempos. Mas hoje, ora pois, convive com a segunda divisão do Campeonato Paulista e está fora das disputas nacionais, pela primeira vez em sua história. Quotidianamente, a sua vida é um abismo eterno, cujo fim parece sempre mais fundo.


Neste exato momento, a Portuguesa joga a Copa Paulista, espécie de campeonato tampão que serve para ocupar os times paulistas no segundo semestre, enquanto aguardam o desenrolar dos torneios nacionais. Serve mais para negócios do que propriamente para disputa: o prêmio do campeão é uma vaga na série D do Campeonato Brasileiro e a honra dúbia de um título considerado de segunda linha. Exceção feita ao Juventus, que lota seu pequeno estádio aos domingos pela manhã, é um festival exibido a poucas moscas, esta que vos fala inclusa. O que me leva? Já expliquei no texto acima citado, além do fato de que, com o preço do ingresso de um jogo do Corinthians, dá para assistir quase toda a tal Copa Paulista.

Dá dó de ver a fossa que a Portuguesa se enfiou. Ela está disputando esse desmerecido campeonato pela primeira vez em sua história, atrás da vaga perdida nas divisões nacionais. Sem demérito de ninguém, as semifinais da quarta divisão do Brasileiro foram disputadas por Operário/PR, Atlético/AC, Globo/RN e Juazeirense/BA, clubes que, somados, não tem um décimo da tradição rubro-verde. O clube está todo largado, embora o estádio em si mantenha sua dignidade à moda antiga. Lugar bom de ver jogo, daqueles escadões em que não há restrições nem para quem quer assistir compenetradamente a partida (como eu), nem para quem prefere ficar de pé, pulando e cantando. Um memorial, em suma.

Resolvi redigir este texto com dois propósitos: o de demonstrar a afinação entre Futebol e Filosofia, especialmente no plano estético; e tentar entender se esse destino é justo.

O que há para discutir de estético na atual situação da Portuguesa? Ora, ora, é óbvio... Nietzsche só usou o exemplo da tragédia grega porque não chegou a conhecer o clube do Canindé, por um lapso de meros vinte anos. Teria diante de si uma espécie de materialização da sua visão sem a necessidade de recorrer aos Apolos e Dionísios da vida, que deixaram de ser moda a mais de 2000 anos. E é esse o grande defeito que o bigodão mais famoso da Filosofia encontra no projeto socrático que seguiu ao modelo mitológico. Com o primado da razão, perdeu-se o vínculo com a própria vida. Vamos entender melhor essa coisa toda.

Diferentemente do que a cultura judaico-cristã preconiza com seu monoteísmo, os gregos antigos subordinavam todos os aspectos de sua realidade a diferentes divindades, cada uma delas com seus poderes e idiossincrasias próprios. Havia deuses para tudo: para a morte, para o amor, para os mares, para o comércio, para a justiça. Dois deles, Apolo e Dionísio, regiam princípios que influenciavam não somente a produção artística, mas, por reflexo, o modus vivendi de seus humílimos súditos. Apolo era o deus da harmonia, da forma, das medidas perfeitas, daquele que se sujeita a ficar horas e horas burilando um detalhezinho de uma escultura ou de um traço. Ele se afasta de seu objeto de criação para poder apreciá-lo de modo desapaixonado, sendo crítico de seu próprio trabalho. Tem liberdade para criar, mas sempre dentro de um escopo que lhe estabelece um determinado limite: a dimensão do quadro, o volume da pedra, a área do palco. É, por isso, melhor representado pela pintura, pela escultura e pelas artes cênicas. Já Dionísio é, em boa parte, o oposto de tudo isso. Ele não aceita os limites impostos por uma circunscrição, sendo, portanto, o deus da música, a arte que reconhece o improviso e que não tem um espaço para lhe fechar, já que transcende a própria orquestra – seu som se espalha pelo ambiente todo. Seu afastamento não se dá com relação ao objeto, mas de si próprio. Dionísio se projeta para além de si mesmo, é o deus da embriaguez, do derramamento e do delírio. Ao contrário de Apolo, ele não idealiza o mundo como em um sonho; prefere se atirar nele, viver a vida com tudo o que ela tem de bom e de ruim, já que o belo e a forma perfeita não lhe dizem respeito. Não há projeto para Dionísio. Não lhe faz sentido tê-lo. A vida é vida agora, e só agora.

A síntese possível entre ambos está na tragédia (leiam meus apontamentos já realizados sobre o tema neste texto), que reunia a arte cênica do teatro com a arte musical do coro. Para Nietzsche, a antiga filosofia de vida dos gregos plasmava os princípios apolíneos e dionisíacos da tragédia – eles idealizavam e realizavam, sonhavam e viviam, equilibravam a visão que tinham de si mesmos e do mundo que os rodeavam. Ao contrário do que nos habituamos – que a arte esteja circunscrita a locais próprios – a tragédia, para os gregos, é vivida na própria vida, ou seja, a arte está nos movimentos do dia-a-dia. Não temos em nossa cultura uma ideia de vida como obra de arte, muito embora eu me lembre muito bem das teatralizações dos diálogos de minha já morta mãe com a ainda viva dona Madalena, bem mais velha. Ao saírmos das reuniões mensais do Conseg* Liberdade, para reclamarmos da pouca segurança em nossas maltratadas ruas, a cena se repetia idêntica. Caminhávamos todos juntos, até mesmo para minimizar o risco da precitada segurança exígua, até que o tom de voz de ambas ia aumentando. De repente, lá estavam as duas para trás, gesticulando paradas contra o descaso do poder público, irritadíssimas. Esqueciam dos riscos ao redor e nem se tocavam de que já estavam afastadas do grupo principal, uns trinta passos atrás (cabe aqui um rápido aparte. As reuniões do Conseg ocorriam na última quarta-feira do mês, terminando às 21:30, aproximadamente. Quarta-feira é dia de futebol, o que aumentava minha pressa de chegar em casa, derrubando a tese que eu mesmo propalava de que era necessário ser rápido para evitar o ladrão). Podiam continuar andando e falando as mesmíssimas coisas, mas é o espírito dionisíaco florescente que fazia-as ficar cegadas. Não haveria um quinto da dimensão expressiva pretendida se não parassem para praguejar contra a falta de segurança que elas mesmas contribuíam, com aquela representação, a alimentar. Mas isso era uma eventualidade. Para o grego, que precisava ser artístico até na retórica que aplicava na ágora, o voto que damos aos políticos é uma espécie de mortalha do élan criativo.

Isso porque, com a ascensão de Sócrates e sua ponderação racional, o princípio dionisíaco foi sufocado. A vida do grego deixou de ser um derramamento no turbilhão dos acontecimentos para que se perguntasse passo a passo o que motivava suas ações, tudo muito bem pensado e baseado em um cuidado excessivo com o futuro, tornando algo como uma mera espera pela morte, sem dor, porém. Tudo isso foi reforçado mais tarde com o advento do Cristianismo e seu espírito apostólico, que levou à Grécia e ao mundo todo a doutrina do prêmio post mortem da vida eterna. Os percalços da existência terrena passaram a ser fardos a serem suportados, e não contingências que reescrevem histórias, e, com isso, Dionísio morreu definitivamente. O homem meramente apolíneo se caracteriza pela imposição de limites, que não consegue mais afastar-se de si mesmo para ir além de si mesmo, e fica plantado em sua cadeira de balanço e tricotando, enquanto conta os minutos para a chegada do fim.

De forma que, com relação à Portuguesa, a ideia de tragédia grega revive. Aqueles torcedores que formam o coro ao redor do campo não têm propriamente consciência disso, mas o eixo da tragédia da Lusa não está no fato de que, para frente, haja dias melhores, mas que haja dias. Então nada resta a não ser viver o hoje, a torcer hoje. O torcedor da Portuguesa xinga mais do que o normal por causa disso, porque sofre mais, porque tem o destino mais incerto, porque o juiz rouba mais, porque os dirigentes são ainda mais incompetentes, porque não há dinheiro e daqui a pouco não há mais estádio... É preciso vomitar o que te faz mal exatamente no momento da ânsia, porque ele é o único que seguramente ainda há.

Os times menores já se conformam com seu papel e, nos poucos torcedores sinceros, já repousa cristalizada a consciência de que seu lugar é aquele. Para os grandes, há a certeza de que, passe um ou dez anos, os títulos virão, e virão em abundância. O luso não tem certeza nenhuma, e, por isso mesmo, se entrega ao fluxo da vida, àquilo que ocorrer dentro do campo, o teatro apolíneo daquilo que ele se constitui em coro dionisíaco. Vivem a vida na tragédia do próprio time. Nietzsche se orgulharia dos verde-encarnados.

Agora, se tudo isso é justo ou injusto... Aí é mais difícil de estabelecer. Ou melhor, não é, não. Aproveitando o menosprezo nietzschiano pela racionalidade pura, digo que a torcida não merece o que está acontecendo naquele largado clube da várzea do rio Tietê. Nem vou entrar na esparrela barata e sentimental de dizer que o clube é dos torcedores. Não é. O clube é dos sócios, que podem sobreviver à existência do futebol, como aconteceu com o Atlético Ypiranga e o Guapira, que fecharam seus departamentos de futebol profissional e vão seguindo suas vidas. Mas o time sim, este existe não somente em função dos sócios, que, de resto, elegem os conselheiros que provocaram a derrocada, mas principalmente de seus torcedores. E, ao contrário do Juventus, que é o segundo time de muita gente, quem vai ao Canindé tem a Lusa como time de coração, ainda que sejam poucos. Há exceções, como eu, mas a imensa maioria dos que lá estão tem bandeirinhas penduradas na janela, tem chaveiros no bolso, tem o envelhecido retrato do dúbio título de 73 na parede, além de caçar infindamente roupinhas para seus bebês (tão fáceis de achar para outros times), todos eles com a cruz verde emoldurada pelo escudo vermelho, os mais jovens ladeados pelo leãozinho, os mais velhos pela saudosa Severa, a dançarina de vira que a representava (eu resgataria este símbolo imediatamente). São pessoas que amam o time a valer, sem ter um cartel extenso de títulos para esfregar na cara de ninguém. É a síntese do amor puro e desprovido de racionalidade. Já aqui encerro o debate, e tudo o mais que eu falar é irrelevante.

Mas o fato é que essa tragédia toda não surgiu do nada. Não vou repassar a história quase centenária do clube, bastando relembrar o fatídico Campeonato Brasileiro de 2013. Portuguesa, Flamengo e Fluminense chegam à última rodada do Brasileirão precisando cada um de seus determinados resultados para escapar do rebaixamento à série B. A Lusa depende só de si mesma, e obtém um suficiente empate com o Grêmio, e se safa, restando ao tricolor carioca o indigesto percalço.

Mas um fato novo foi detectado. Perto dos 30 minutos do segundo tempo do embate retro, o jogador Héverton foi mandado a campo pelo treinador rubro-verde. Este jogador, como foi dito depois, estava suspenso por duas partidas e não poderia jogar. Discutiu-se muito o aspecto da validade da comunicação feita pela CBF por e-mail, na sexta-feira anterior ao jogo, à noite, para o advogado luso; o aspecto esportivo dos resultados obtidos em campo e da pouca relevância que representou a entrada do jogador para os placares; os precedentes em que outras equipes tiveram as penalidades convertidas em multa; o histórico do beneficiado Fluminense que, mais de uma vez, teve seus rebaixamentos revertidos; mas a irregularidade estava cometida e o tribunal desportivo usou a letra dura da lei, abiscoitando quatro pontos da Fabulosa, um obtido pelo empate na partida e três de castigo, o suficiente para safar o Flu e arremessar a pobre Portuguesa ao inferno da segundona. Desde então, sem o dinheiro da televisão e bons contratos de patrocínio, a queda foi vertical. Em quatro anos, os lusitanos saíram da elite do futebol nacional para a periferia dos desesperados, que vendem o almoço para barganhar a janta.

Já disse que a torcida não merece o desgosto que vive. O clube em si também não, como instituição. A Portuguesa revelou uma infinidade de craques para o futebol tupiniquim (vejam este texto) e até mesmo já foi considerada um dos clássicos do estado. Sim, meninos e meninas fãs do esporte bretão. Portuguesa versus Corinthians-São Paulo-Santos-Palmeiras já foram jogos de cachorro grande, que valiam esse rótulo. Sem contar o clássico lusitano, na peleja contra o carioca Vasco da Gama. Sempre disputou as principais competições do Brasil e tinha jogadores indicados ao escrete canarinho, como provam Djalma Santos, Jair da Costa e Zé Maria, campeões mundiais jogando pela Portuguesa. É, por isso, relevante para o futebol.

Tentar entender a própria Portuguesa como culpada por seu amargo destino é esquecer que, como instituição, ela é neutra. É bem verdade que certas entidades são más em si mesmas, bastando pensar em associações racistas como a Ku Klux Klan ou órgãos terroristas, mas há gente que confunde uma instituição com as pessoas que as dirigem. Um bom exemplo é a recente onda de demonização do Estado, mas também ele é uma instituição neutra, sendo bom ou ruim dependendo do que se fizer dele. É claro que na ótica brasileira, com governos inchados e corruptos, as opiniões ficam obnubiladas, e essa galera aponta Estados de pouca interferência como exemplos de eficiência administrativa. Se vivêssemos na Escandinávia, talvez nossa visão sobre tamanho do Estado fosse outra. A Portuguesa, nesse sentido, é uma instituição quase neutra. Alíás, é uma entidade que tem um propósito bom. Seu nome completo, Associação Portuguesa de Desportos, denuncia que um grupo de pessoas de uma determinada colônia resolveu se reunir para praticar esportes. Só isso. O clube em si é só mais uma vítima.

Portanto, e mais uma vez, e obviamente, o problema está nas pessoas, que

  1. usam os regulamentos da forma que melhor convém a quem mais interessa;
  2. comandam outros clubes que poderiam se alinhar à causa da Lusinha. Pensem em Brasileirão sem os clubes paulistas;
  3. gerem iniquamente recursos que não lhe pertencem;
  4. estão cagando para quem não tem culpa, justamente os precitados clube e torcida.
Isso porque os dirigentes, sabendo (mas não aprendendo) o quanto a Portuguesa é feita sob medida para ser prejudicada, nunca a prepararam adequadamente para viver sua própria realidade com autonomia. Permitem que se vilipendie o clube, quando não o fazem eles próprios, e não se preocupam com uma dignidade mínima para o seu nome, com um lugar mínimo, que não deveria ser o atual, definitivamente. Mas que é onde se chegou. Por isso, mais do que uma estrutura injusta, que sempre vai privilegiar os clubes maiores, a culpa maior está no próprio corpo diretivo, que, no mínimo dos mínimos, sempre trabalhou com um horizonte irreal.

Vai bem a Lusinha na Copa Paulista. Ontem o jogo foi meio desinteressado, já que a mesma está classificada antecipadamente para a próxima fase, quando o torniquete será naturalmente apertado, e o adversário Taubaté já está matematicamente eliminado. Mas o time vai pegando coesão e entrosamento, mesmo com a repetição de certos erros, como a troca incessante de técnicos e jogadores, e a falta de um meia de ligação. O craque do time, Marcelinho Paraíba, tem 42 anos e nunca jogou nessa função. Seu futebol está visivelmente melhor do que no sonolento empate com o Nacional, no comecinho da competição. Principia lentamente a aparecer um esmaecidíssimo brilho naquilo que hoje vemos como sombras, uma vontade de potência que Nietzsche enxergou em todos os organismos vivos, mesmo que seja para dar o último respiro.

Recomendação de leitura:

Mais do que recomendável, o livro abaixo é uma das essências para compreender o pensamento nietzschiano, onde é explorada a composição dualística da cultura grega.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


* Os CONSEG’s – Conselhos de Segurança são agrupamentos comunitários em que são discutidas questões relacionadas à (oh!) segurança dos bairros. O ápice é a reunião mensal, onde são levadas as reivindicações aos diferentes órgãos afetados. Além das óbvias polícias, costumam estar presentes representantes da prefeitura, dos órgãos de trânsito, da guarda municipal, eventualmente dos bombeiros e outras entidades municipais e estaduais.

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