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segunda-feira, 15 de abril de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (26 – Economia)

Olá!


“Vamos economizar, vamos economizar”, era o mantra repetido à exaustão nos idos da década de 70, tempos de eu-menino. Não que hoje as pessoas não pensem em juntar algumas moedas, mas a lógica cruel do êxodo rural de então formava uma espécie de roteiro que se repetia nas vilas e cortiços da Terra da Garoa: sair do miserável interior (para quem não era dono de terras), alugar um quarto na capital, arrumar emprego na indústria ou na construção civil, juntar as merrecas enforcando qualquer tipo de luxo imaginável, comprar um terreninho na periferia, roer borda de penico para juntar os cobres de novo, até conseguir levantar um cômodo-e-cozinha nos fundos do imenso latifúndio de 5 X 25. Daí para frente, já instalado em boteco próprio, o contribuinte conseguia planejar com um pouco mais de tranquilidade a expansão do seu castelo. Muita gente ficava só no sonho, e ia parar nas favelas. Outros iam morar a milhas e milhas e milhas de qualquer lugar nos predinhos financiados pelo BNH, mas a diretriz geral era essa que acabei de narrar, com muita austeridade orçamentária e aproveitamento de tudo até a carcaça. Essa foi a história de meus pais, e também a dos meus sogros.

O problema é quando você fica tão acostumado a uma vida restritiva que nunca mais consegue se livrar dela. Pior ainda: certos hábitos se tornam tão arraigados que acabam por afetar seu psicológico. É o caso da senhora minha sogra, que se tornou aquilo que hoje nós chamamos de acumulador compulsivo. Isso significa que ela ajunta toda sorte de porcaria com o argumento de que pode ter serventia. Isso é compreensível para as sacolinhas de mercado, que vão ao lixo como recipiente, e não como conteúdo, mas a coisa, quando chega a nível patológico, ultrapassa os limites do razoável. É tampinha, é latinha, é potinho, é garrafinha, é bisnaguinha, é madeirinha, é papelzinho, é linhazinha, é araminho, é paninho, é toco de lápis e toco de vela em quantidade de fazer inveja a qualquer cemitério. Para todo lugar que se olhe, é uma pilha de tranqueira, pela casa tutta intera. O antigo quarto da patroa tem uma picada por onde se entra e se sai com o único objetivo de dar acesso à janela. O resto do espaço é intransitável. A cozinha tem mesinhas auxiliares para suportar o que já não cabe nos armários, ou em cima deles, ou embaixo deles, e é assim por toda parte, um bom sobrado soterrado sob um autêntico Brumadinho de inutilidades e velharias. Mas vai falar isso para ela...

O pior é que a condição lhe causa sofrimento. É uma casa que nunca esteve arrumada como se deve, e que dá o triplo do trabalho para limpar, sem nunca estar limpa de verdade, como se pode supor. O sogrão, entre o conciliador e o passivo, já desistiu do projeto de aplicar massa corrida nas paredes. Prá que? Vai tudo ficar escondido pelas pilhas de párias dos produtos industrializados. As irmãs da ilustre genitora da patroa, sórdidas, humilham-na sem piedade: “muito bonita sua decoração nova”, “sim, não sabia que a Doriana vendia bibelôs”, sapecam as malvadas. A sogra se irrita e promete uma devassa definitiva, mas sofre às escâncaras na hora do despejo, imaginando o aperto que vai passar sem aquele potinho de margarina já quebradiço. Ela tem copos novos e bons, feitos de vidro temperado; tem potes Tupperware, linhas Corrente e adesivos post-it. Seu tempo de desgraça já se foi há muito, mas moldou sua psiquê, de modo a criar um laço afetivo com o escolho. O desfecho da faxina, que deveria ser um caminhão de carregar tijolo, resume-se a um saco de cinquenta litros, que fica encostado no poste para o lixeiro levar. O resultado só é perceptível pelo seu imenso cansaço e cara de poucos amigos. Pobre sogrona... Neste ponto da vida, não dá para esperar mudanças muito radicais, e o jeito é se conformar com seu insólito sentido estético.

Eu quis contar essa historinha não para tripudiar a memória da protagonista, até mesmo porque ela está viva e bem, mas para dar uma leve demonstração de como as disposições econômicas influenciam pesadamente nossas vidas. Afinal de contas, todos nós precisamos dispor de uma determinada quantidade de recursos para sobreviver, mesmo como espécie. Se não os possuímos, não nos entregamos, e damos o jeito que dá. E, da mesma forma que há leis da Física que regem os astros, parecem existir mecanismos que guiam e explicam as origens e aplicações desses recursos, que vão muito além do uso que o senso comum dá a essa área de estudo, que é o sentido de poupança. Afinal de contas, o que é essa tal de Economia?



Oikos, que se traduz do grego como “casa”, e nomos, que se pode traduzir como “gerência” ou “cuidado”, são os componentes do termo Economia, a “administração da casa”. Deste modo, podemos perceber que a sabedoria popular não está errada com relação à ideia de poupança. Realmente, fazer reservas que nos permitam enfrentar gastos grandes ou inesperados é uma prática de gestão de recursos que, na maioria das casas de nossa proletária gente, é a única possibilidade disponível. Só que, por trás do léxico, há muito mais coisas envolvidas do que o mero aperto orçamentário.

A Economia tem por objetivo estudar as formas de valoração de bens e recursos, e como estes transitam de uma mão para outra, mãos essas que podem ser grandes, como as grandes corporações e as diferentes nações do planetinha azul. A Economia é uma ciência social, e, como tal, depende da existência de uma sociedade para ter sentido, ora vejam só. De certa forma, uma acompanha o curso histórico da outra, aumentando de complexidade na mesma proporção. Mesmo na aurora de nossa espécie, quando já podemos ver rudimentos do conceito de sociedade, e ainda éramos caçadores e coletores, já podíamos observar uma certa economicidade muito rústica, como armazenamento e compartilhamentos, mas é a partir do momento em que se passa a atribuir valor às coisas que o fenômeno passa a se deslindar.

Pequenas comunidades pensam em coisas bastante quotidianas: os tempos de plantar e de colher, os estoques para prover as necessidades invernais, a escolha desses mesmos provimentos. Percebeu-se que em certos momentos a produção ia além do necessário, e que esse excedente podia ser trocado por outras coisas que se precisassem ou quisessem, fazendo nascer o comércio.

Com o tempo, dadas as sazonalidades ou os contextos históricos, tais produtos tinham uma variabilidade, maior ou menor, no seu poder de troca, e o modo como se atingia o valor dos objetos foi se tornando cada vez mais complexo, de modo que pessoas com um olhar mais profundo começaram a enxergar alguma lógica por trás das transações comerciais, que, no limite, são a Economia materializada. E isso ocorre nas coisas mais profanas do mundo. Relembro, por exemplo, da minha época escolar. Dentre as possibilidades de lazer neste período, tínhamos as bolinhas de gude e os papagaios em geral, incluindo pipas, quadrados, maranhões, peixinhos, arraias, capuchetas, barracas, mantas e que-tais. No primeiro caso, os recursos necessários são mínimos, como meia dúzia de bolinhas e um piso minimamente utilizável, em geral de terra, mas uma poça de areia, tapete ou cimento rústico também resolve. Já no segundo, não basta somente o quadrado em si, mas é preciso muitos metros de linha, plástico para a rabiola, vidro para o cerol e condições climáticas ideais, com tempo seco e um mínimo de vento. Além disso, há todo um trabalho por trás da atividade de empinar pipas que, no caso das bolinhas, se limitava a ir ao bazar e comprar. Era preciso conseguir papel e bambu, que deveria ser cortado e rebarbado*, para construir a armação e suas regulagens antes da colagem da capa de papel, que era feita com uma liga de farinha e vinagre. Era preciso boa técnica para montar o estirante, peça que ligava o quadrado ao rolo de linha. Um bom estirante garantia a “dirigibilidade” do conjunto, que era estabilizado por uma rabiola, que incluía o trabalho de cortar o plástico e amarrá-lo no espigão, além da perigosa confecção do cerol, que era feito de vidro moído e goma, para esfregar na linha 10. Um bom cerol necessitava de horas de trabalho, porque a sua moagem precisava ser muito bem feita. Um pó muito grosso pesava e enrijecia a linha, e garantia um tiro pela culatra (Desculpem, mas no meu tempo de moleque não havia grande censura nessa atividade. Não aconselharia ensinar isso para as crianças, assim como meu pai fez comigo).

Durante as férias, as atividades lúdicas se multiplicavam por mil, dada a óbvia desobrigação acadêmica. Mas havia uma distinção muito clara entre as férias de verão e as de inverno. O inverno paulistano, para quem tem minha faixa etária, era bem diferente do que temos hoje em dia. Era uma perene garoa, gelada até trincar os ossos, dia após dia, quebrada por um ou outro veranico de três dias. Veranico... acho que a meninada nem sabe mais o que significa esse termo. Bom... em uma situação dessas, ter um quadrado na mão não valia nada, porque não se empina pipas na chuva, mesmo que seja na garoa: o papel molha e torna o brinquedo imprestável. Por isso, é um objeto que tem muito valor no verão, e quase nada no inverno. Podia-se ter um estoque imenso no alto do guarda-roupas, com quilômetros de linha 10 besuntada pelo cerol mais fininho, feito de lâmpadas fluorescentes. Com chuva, nada feito. Já as bolinhas, como eu já disse, tem uma utilidade preservada o ano inteiro, e somente a disponibilidade de tempo justifica o fato de um valor mais robusto nos meses de férias. Mas dá para brincar de bisteca em qualquer canto, aberto ou fechado: rua, quintal, praça, sala de casa, com chuva ou com sol, no frio polar ou no calor saariano, de dia ou de noite. Por esse motivo, as bolinhas de gude têm uma utilidade mais permanente do que os quadrados. Estes, por sua vez, explodem de uso no momento adequado, que é relativamente curto. A representação gráfica dessa variação poderia ser mais ou menos assim:



Percebam como a diferença entre os picos e os vales entre as pipas é muito maior que entre as bolinhas de gude. Isso nos dá uma noção muito importante em Economia: os preços das mercadorias flutuam, embalados por diversos fatores – utilidade, disponibilidade, sazonalidade.

Mas e esse tal de preço, como surge? Já vimos que o comércio inicia como escambo, mas ele é praticável com limites. Três são as dificuldades: estabelecer justiça entre os valores, equilibrar vontades e estabelecer negócios envolvendo mercadorias de natureza muito diferentes. Um exemplinho para cada. 1. Eu tenho bolinhas de gude e você tem pipas. Como estabelecer quantas bolinhas eu preciso para ter uma de suas pipas? 2. Eu quero uma pipa, mas você não quer bolinhas. E aí? 3. Eu tenho bolinhas e você não tem pipas, mas o terreno para jogar, que vale muito mais que milhões de bolinhas, e não tem como ser repartido. A solução para essas aflições é um acordo social: o estabelecimento de uma matéria simbólica, que represente a riqueza de cada um e que todos concordem em lhe atribuir um valor comum que ela, intrinsecamente, não tem – o dinheiro. Sendo assim, não dizemos mais que vinte bolinhas de gude valem uma pipa, mas que tanto umas quanto a outra valem cinco unidades monetárias vigentes no país da transação, ou seja, vinte bolinhas ou uma pipa tem o mesmo preço, cinco reais.

Na medida da expansão e do aperfeiçoamento das relações comerciais, vai emergindo um conjunto de fenômenos que os observadores percebem se repetir, formando um funcionamento lógico e previsível, garantindo a cientificidade da Economia. O exemplo mais bem consolidado que eu posso dar é a famosa Lei da Oferta e Procura: um preço é estável se a quantidade demandada de um produto é igual à quantidade oferecida. Como se pode perceber, este equilíbrio é precário, por uma montanha de razões. A variação do desequilíbrio é uma força que atua sobre os preços, ou seja, quanto mais pessoas desejam uma determinada mercadoria, maior é o valor que aquelas se propõem a pagar, e mais caro ele se torna. De novo as pipas: nos meses de férias de verão, há uma procura maior pelo brinquedo, e as crianças aceitam dar um pedaço do fígado por ele (vide a quantidade de atropelamentos que tal atividade acarreta). Muita coisa está envolvida, além da sanha do dono da papelaria – sua capacidade de produção, sua capacidade de investimentos, as variações estacionais e assim por diante. Nos meses seguintes, a demanda cai, e o preço vai junto, navegando ao sabor dessa estranha divindade, o Deus Mercado.

Dá para perceber que um estudo dessas condições nunca é simples. Cravar uma previsão econômica é coisa semelhante à meteorologia – seria tudo muito bonito se as coisas fossem lineares, mas a cada dia que passa damos mais crédito à Teoria do Caos, e percebemos que o inesperado dificulta qualquer tentativa de sistematização. Para salvaguardar sua cientificidade, a Economia lança mão do conceito de ceteris paribus, um termo latino que significa “sem alterar as demais coisas”, em uma tradução aproximada. Em resumo, uma análise baseada na Lei da Oferta e Procura leva em consideração condições previsíveis. Vejam: dado que em janeiro há mais crianças em férias, há um aumento no público demandante por pipas, e seu preço tenderá a subir. Não estamos, nesta análise simplista, colocando condições imponderáveis, e imaginamos que outros fatores se comportarão como senhores de bem, mantendo-se quietinhos em seu lugar. Porém, um verão especialmente chuvoso pode derrubar a procura, ou uma greve de caminhoneiros pode dificultar a chegada de papel aos bazares, diminuindo muito a oferta. Estes fatores não invalidam a lei, apenas lhes agrega uma condição que lhe faz furar a previsão. Se essas condições fossem conhecidas, seriam excluídas do ceteris paribus e colocadas na equação, para se fazer sentir os seus efeitos. Por isso, é bastante comum ver nos artigos de Economia a delimitação das exceções: em um quadro de livre mercado, na presença de vasta gama de concorrentes, sob condições de estabilidade política e social, et cetera, pá e bola.

A Economia, como pudemos ver, guarda a aridez típica da matematização, especialmente por dar uma certa impressão de ser uma ferramenta do capital, que usam suas análises de mercados e tendências para investir e ganhar mais e mais, coisa inatingível por nós da patuleia. Mas o fato é que se trata de uma Ciência Humana, que investiga os recursos que giram ao nosso redor e influenciam nossa vida e sociedade, mesmo que não os vejamos. Por isso, formar uma visão crítica sobre a questão é uma necessidade filosófica que nós temos. Quem nos ensina é a economista Joan Robinson ao afirmar, em tradução livre, que “a maior utilidade de se aprender Economia é não ser enganado pelos economistas”.

Recomendação de Leitura:

Muita gente vai torcer o nariz por causa do autor, mas é um livrinho simples e bastante didático para entender um pouco melhor os mistérios dessa inefável Ciência. Leiam sem preconceitos. É a obra de um professor, e não de um marxista. Mentiram para você quando disseram que são sinônimos.

SINGER, Paul. O que é Economia? São Paulo: Brasiliense, 1989.

* Uma das minhas mais perenes cicatrizes vem dessa época e dessa atividade. Estava alisando uma vareta de taquara com uma daquelas facas dispensadas do uso doméstico, que não cortava mais nada, a não ser meu dedo. É uma lembrança que vou arrastar para sempre, como se pode ver.