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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 7ª estação: Wenceslau Braz e a resiliência de quem quer escrever a própria história

Olá!


O feriado de 12 de outubro caiu em uma sexta-feira. Isso significa fim de semana prolongado, com o corolário de estrada cheia. A idade é uma coisa curiosa mesmo. Ganhamos cada vez mais paciência nas relações interpessoais e cada vez menos no trânsito. Não sei exatamente os motivos desta psicologia, mas ouso arriscar. Na medida em que ganhamos experiência, cada vez mais fica consolidado em nós que não adianta dar murro em ponta de faca: as pessoas não são exatamente como gostaríamos e fazem coisas que temos dificuldade em aceitar, mas elas são assim e pronto. Por outro lado, minutos de engarrafamento são tempo absolutamente perdido, o que é coisa preciosa para quem já está no segundo tempo da partida. Por esse motivo, pus-me de regresso no próprio sábado. Desperdicei o domingo? Em tese sim, mas vocês verão que eu tinha motivos para ter cuidados além do próprio porre do retorno congestionado.

Ainda havia boa parte do sábado para curtir. Fizemos um esquema meio louco, que envolvia cronograma e cronometragem precisa. É que a patroa queria levar laticínios para casa, incluindo leite in natura, o que envolve refrigeração. Encontramos uma casa que vendia leite cru, queijo e manteiga à beira da estrada. Reservados os produtos, deveríamos buscá-los às quatro da tarde, hora de encerramento das atividades. A partir daí, era carregar o Bedelho e pegar o beco que leva a São Paulo, visando manter a integridade do alimento transportado. Eu detesto leite, é verdade, mas não moro sozinho e fica muito mais em conta comprar direto do produtor.

O tal do laticínio fica bem na beirada da estrada que leva a Wenceslau Braz, pequeno município fronteiriço ao estado de São Paulo, e que nos contaram possuir uma boa e pouco movimentada cachoeira. É para lá que vamos, gelando as costas enquanto esperamos a hora certa de buscar o acervo lácteo.


O nome do lugar é Cachoeira do Areião, explicado pela quantidade de areia que fica no fundo das águas de seus remansos. Faz parte do curso do Rio das Bicas, o principal do município.


O lugar é propriedade particular, e cobra uma pequena taxa pela visitação. Quando a área é bem mantida, com uma estrutura mínima para quem a procura, acho justo que se faça a cobrança.


Não sei definir bem se o sítio fica localizado de fato em Wenceslau Braz ou se está em Delfim Moreira, mas o que importa é o contexto em que foi inserido em minha viagem. Sendo assim, por concordância geográfica ou licença poética, vai ficar por aqui mesmo.


A Cachoeira do Areião é composta por vários saltos e pedras descobertas, escorregadias até dizer chega, o que exige cuidado. Para chegar à parte alta, existem algumas trilhas mais ou menos fechadas, cheias de vegetação nativa.


A cachoeira principal tem bem a altura de um sobradão, uns dez metros, creio eu. É daquelas cujo volume d’água dá uma bela pancada na cabeça, para gáudio dos que morrem de calor. É um ponto bastante perigoso para quedas, no entanto. Melhor redobrar os cuidados e ser comedido nos atrevimentos.


Como curiosidade, a casa é guardada por um cachorro, que, se não me engano, se chama Tigre. É daqueles que vem correndo que nem louco quando te avista, e você se borra achando que ele vai te atacar. Nada disso, o bicho é boa praça e brincalhão.


Ele só vira fera se achar que o dono está sendo ameaçado. Além disso, foi ensinado a tirar sujeiras de dentro da água, inclusive galhos que por ventura caiam. Foi criado na água desde pequeno e sabe nadar sem muito esforço.


Nas redondezas, há mais algumas coisas a serem vistas. Um fato digno de nota é que Wenceslau Braz possui uma antiga unidade da IMBEL, uma indústria que produz material bélico para o exército. Para tocar sua atividade, foi construída uma pequena hidrelétrica que funciona até hoje, gerida pela REPI – Rede Elétrica Piquete-Itajubá. É considerada ambiente militar e seu acesso não é muito facilitado. Seu lago é formado pelo mesmo Rio das Bicas.


O tal rio é tão presente na cidade que corta inclusive seu pequeno núcleo urbano, exatamente na altura onde fica a antiga construção da retro mencionada fábrica. Estando na cidade ou nas estradas, o rio é facilmente localizável.


De saída do Areião, fomos dar uma passadinha pela cidade. O núcleo urbano é muuuuuuuuuuito pequenininho, e se assemelha a uma vila. Só tinha um lugar para almoçar, mas ok. Sua igreja matriz tem uma torre em curioso formato piramidal, e é nomeada para homenagear Sant’Anna. Só tirei fotos medíocres, peço perdão.


O adro da igreja fica em nível mais alto em relação à rodovia, e tem o de sempre: canteiros, bancos, bandeirolas para a recém terminada festa de Aparecida e coreto.


Por fim, há uma outra construção que pontua o centro, próximo à matriz. É um castelo. Seria um desejo exótico como o castelo Pioli de Brazópolis? Ou um templo, como faz antever a cruz inserida em uma de suas torres? Ou ainda a sede de alguma sociedade não bem especificada? Uma casa de shows temática? Não, é algo mais simples. É uma pousada, a Pousada Castelinho.


Wenceslau Braz foi um presidente do Brasil, já me repeti muito sobre isto nesta série. Mas o nome original da povoação era outro, remissivo mais uma vez ao rio: Bicas do Meio. Sendo parte da Estrada Real, e, por consequência, caminho de tropeiros, a presença de vários pontos onde se podia coletar água tornava a localidade importante e lhe explica o antigo topônimo. Já expressei neste texto todo o meu desalento com essas mudanças de nome, porque acho que infringem a nossa história. Tudo bem, pode ser um orgulho para uma região pequena ter um filho tão ilustre (muito embora seu nascimento tenha sido na atual Brazópolis), e eu não tenho nada a condenar nos anseios de quem tem o direito de legislar sobre o próprio nome, mas insisto que isso é tolher a história das gerações futuras, mas é coisa minha. E la nave va...

Wenceslau Braz é definitivamente uma cidade pequena. O núcleo urbano é reduzidíssimo e mesmo a extensão rural não é das maiores. Está na posição nº 5122 nos tamanhos em área do Brasil. Para um município predominantemente agrícola, é bem pouco. Conversei com o pessoal da cachoeira e da pequena lanchonete, e ouvimos o mesmo que em tantos outros lugares campesinos. Os velhos adoram o lugar, os jovens o abominam. A fórmula é bem conhecida. Muitos daqueles que moram aqui por prazer o fazem depois de ter habitado em cidades grandes, e optaram por um lugar tranquilo para passar os restos dos seus dias. Valorizam sobremaneira a paz que não tinham em São Paulo, Belo Horizonte, São José dos Campos, Curitiba... Enfim, fazem-no por escolha. Já os moços têm diante de si uma carência completa de oportunidades. Além dos estabelecimentos que citei, há terra e mais terra, com o agravante de estar inserida em área de preservação, o que é um bem para o patrimônio ecológico, mas um atravanco para quem quer mais do que colher ou extrair. Ainda que se esforcem muito em universidades, o exercício de suas profissões será limitadíssimo em uma cidade pouco maior que uma povoação. Ora, direis, São Caetano do Sul tem quatro páginas no guia Mapograf (alguém ainda sabe o que é guia Mapograf?) e é cidade riquíssima; Águas de São Pedro é menor ainda e ostenta um dos melhores índices de desenvolvimento humano do Brasil, perdendo somente para o precitado município do ABC. Tenho a dizer ao nobre e suposto interlocutor que uma das quatro páginas de São Caetano, sozinha, é preenchida por uma montadora gigantesca, o que garante emprego em grande quantidade e indubitável qualificação. Com relação a Águas de São Pedro, é movida por intenso turismo, provido por abundantes recursos naturais. Wenceslau Braz não tem, por enquanto, estes panoramas à sua frente. O que há de perspectiva em seu futuro?

Percebo que, em certos momentos, as pessoas têm uma propensão a ocultar suas origens. Não estou pensando em ninguém especificamente daqui, mas já ouvi muitos depoimentos de gente que parece ter um constrangimento de dizer de onde veio, seja pela pobreza da região, por um ar de provincianismo, por outro motivo qualquer. É uma forma de renegação da própria história, o que é sempre triste. Parece que há um trauma a ser carregado em ponto menor, e isso me remete à questão da resiliência, um tema que foi bastante desenvolvido pela psicologia dos últimos tempos, mais especificamente por Boris Cyrulnik, francês de ascendência judaica. Boris sofreu uma das experiências mais traumáticas que alguém pode ter tido. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando era uma criança, toda a sua família foi conduzida para um campo de concentração, onde foi violentamente assassinada. O menino foi o único que conseguiu fugir, em uma perspectiva altamente destrutiva. Isso foi inspiração para toda a sua carreira, até os dias de hoje.

A pergunta que cerca as teses de Cyrulnik é a seguinte: por que pessoas diferentes reagem de maneiras diferentes aos seus traumas? Por que há quem define sua história a partir de eventos prejudiciais e há quem não o faça?

Vamos colocar um caso hipotético, daqueles quase tolos. Dois torcedores de um mesmo time vão presenciar a final de um campeonato, justamente contra seu adversário mais ferrenho. O resultado é um desastre – lavada fora o baile. Ambos sofrem na hora, mas um deles, já nos próximos dias, retoma sua rotina normal: reage às gozações com outras tiradas e promete “vingança” para o próximo torneio. Vai trabalhar normalmente, participa das resenhas, mesmo que contrariado, almoça no mesmo lugar e não fica casmurro em casa, para a incompreensão de esposa e filhos. Já o outro apaga o assunto “futebol” de sua agenda. Consome seu banco de horas para faltar por uns três dias (o que aumenta a zoeira dos colegas), não come direito e deixa de ir ao estádio por uns bons anos. As camisetas do time vão parar no fundo da gaveta, quando não no bazar de uma igreja qualquer, e sua reação tende a ser explosiva. Aos mais íntimos, incluindo os familiares, reserva uma raivosa distância.

Ora, para o primeiro, o futebol representa um esporte e nada mais, uma diversão fugaz, que lhe afeta, mas não muda seu modus vivendi. Para o segundo, afeta a honra e tem um significado que lhe atinge em cheio a personalidade. O fato que ocasionou o prejuízo é exatamente o mesmo, mas as reações são diferentes porque o que está em jogo em sua consciência são separadas por um desvão abissal. O dano é uma coisa, a representação do dano é outra completamente distinta. Como isso se formou? Através da vivência de cada um dos nossos infelizes torcedores.

Saindo da brincadeira e lidando com questões mais dolorosas, podemos pensar em termos de abusos infantis, sejam lá quais forem. Um pai agressivo, por exemplo, causa lesões em uma criança. O dano em si pode ser curado com alguns unguentos, mas a representação do dano como um todo pode marcar a vida inteira. Se a mãe opta pelo silêncio ou por defender a atitude do pai (às vezes por conta do próprio medo), a criança se sentirá desamparada. Desenvolverá suas próprias defesas sem contar com mais ninguém, e, a partir daí, sua personalidade será moldada – arredia, desconfiada ou coisas piores, incapaz de traduzir em palavras suas próprias aflições. Afinal, ao tentar reproduzi-las, encontrará um paredão à sua frente, e o ato de reavivar as memórias só se consistirá em uma dupla dor. Toda a sua vida ficará crivada pelo ato violento, do qual terá dificuldade em se desvencilhar. Caso encontre apoio, poderá ter nesses efeitos e, mais precisamente, na representação da violência, uma redução significativa, deixando de atribuir a todo e qualquer adulto uma possibilidade de ressurgimento do trauma. Notem como a história de uma e de outra será marcada pelo trauma.

O termo resiliência vem do efeito mecânico de retorno à forma original após um corpo sofrer uma deformação. O processo de vulcanização, por exemplo, visa causar uma deformação permanente em um artigo de borracha, o que o torna resiliente a novas modificações em sua forma. Este termo foi emprestado pela psicologia como uma metáfora da resistência da personalidade a impactos. Ser resiliente, portanto, é uma maneira de não deixar que as adversidades da vida influenciem no jeito de ser de um ser humano. Como descrito acima, o processo de autoestima é o primeiro a ir para o vinagre: há uma tendência em se culpabilizar a si mesmo quando não se encontra eco na tentativa de reagir. A resiliência, neste caso, é sempre fomentada por agentes externos – o meio familiar e social. Relatos de outras pessoas que passaram por traumas semelhantes são bastante eficazes nestes casos. Basta para que o indivíduo não se enquadre solitariamente perante a sua dor. Não se trata de mero estoicismo.

Agora, podemos pensar em uma resiliência coletiva? Penso que sim. Tudo depende da maneira como uma comunidade constrói suas defesas aos próprios sofrimentos. É muito comum perceber que certos povos são mais sofridos, seja pela predisposição geográfica dos locais onde se desenvolveram, seja pelos relatos de conflitos que atravessam suas histórias. A reação perante um terremoto, por exemplo, pode ser um grande salve-se-quem-puder ou uma teia de solidariedade. No primeiro caso, as pessoas com certeza não aprendem a lidar com situações que podem voltar a ocorrer no futuro: diante de uma hecatombe, há bem pouco a se fazer individualmente. Já no segundo, o elo social se fortalece e as próximas ocorrências vão encontrar um povo mais estruturado para encarar as mesmas adversidades. Vejam como os japoneses se organizam para os frequentes sismos que ocorrem em seus territórios. Todos sabem exatamente o que fazer, ainda que o desastre seja grande.

E é aí que eu quero reduzir o ponto, como propus lá no início. Entendo que o mesmo princípio geral da resiliência possa ser aplicado não a traumas propriamente ditos, mas aos rótulos que são impostos a pessoas e a nichos sociais. Como já descrevi neste texto, o meio social tem uma tendência a se prender a descrições precisas sobre seus componentes, e o mais incrível é que os próprios indivíduos procuram se adequar à discricionariedade do rótulo. Roqueiros têm que andar de preto, emos têm que ter franja, hippies têm que ter flores no cabelo, grunges têm que usar camisas de flanela. Enquanto elemento de identificação das tribos urbanas, tudo bem. O problema se dá quando o rótulo vem de fora: nordestinos são extravagantes, negros são malandros, gays são lascivos, índios são incultos, interioranos são matutos. Ou seja, o preconceito vem travestido de distintivos de fracasso: fracasso em tentar se colocar como cultura válida, fracasso em se encontrar no meio do progresso, fracasso em se ver reconhecido como um cidadão como outro qualquer. Da mesma forma que diante do trauma, há duas maneiras em que podemos nos colocar diante do problema, vinculado à representação que se dá ao dano. Podemos nos conformar em receber a pecha e nos comportar como a mesma preconiza, ou podemos dizer um “não” ao rótulo, que, em última instância, nos tenta causar prejuízo. O morador da cidade pequena não pode e não deve se reduzir àquilo que constitui seu estereótipo. Não são jecas que andam de chapelão e pé descalço, que estão condenados a uma cultura rasteira, e a uma cidade sem perspectiva de progresso. Essa é uma história escrita por quem vê de fora, por quem não lhes conhece a realidade e que se fixa a uma visão de julgamento antecipado. Ninguém conhece o destino de ninguém, mesmo que seja de uma coletividade. Pode parecer autoajuda, mas a caneta que escreve a história está na mão de cada um. Se eu tiver que recomendar a cada um desses jovens que não veem expectativa alguma em suas vilas, é que estas serão aquilo que eles, moços que tem a vida inteira pela frente, fizerem delas. Achar ou criar um novo propósito na existência é a principal virtude da resiliência. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

O título parece de romance, e há outros do autor que remetem à autoajuda, mas é um ledo engano. Sua escrita é séria e trata de problemas delicados, conforme descrevi neste texto. Vale a pena conhecer.

CYRULNIK, Boris. Falar de Amor à Beira do Abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

domingo, 25 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 6ª estação: Brazópolis observando o universo e as armadilhas da realidade e do senso comum

Olá!


O dia em que fui para Piranguinho estava muito, mas muito quente, em completa oposição aos demais dias desta até então úmida aventura. É aquela famosa anedota dos extremos: tá reclamando? Vai prá Cuba! Mas eu acho que Cuba é ainda mais quente do que o Sul de Minas, então me dou por satisfeito. Meu carro não tem um ar condicionado dos mais ferozes, embora beba um combustível lascado. Mas, ainda assim, é um ar condicionado, que vence em frialdade o scirocco tupiniquim que vem das meras janelas abertas. Portanto, vamos fechá-las para amplificar o aroma das paçocas e pés-de-moleque e pegar estrada novamente. Para quem está com fome (estamos próximos do meio-dia), é meio torturante, ainda mais sabendo que a quantidade de açúcar que transporto nesses acepipes é suficiente para levar ao coma qualquer diabético de minha nacionalidade, eu incluso. É o meio caminho entre a ironia e a contradição.

O rumo já é conhecido de vocês, caso tenham lido meu texto anterior. Como eu já expliquei em outros textos, mais notadamente naquele que relato minha viagem a Monte Alegre do Sul, eu gosto de bebericar uma branquinha, bem de leve. Nem em sonho eu bebo antes de dirigir, e, para isso, tenho na patroa uma sommelier competente, para depois curtir de boa na lagoa. Estou na rota de Brazópolis, terra de morros e vales que parecem infinitos, terra natal do meu colega João Francisco, que sempre traz um queijinho para nosso deleite. O conceito de “plano” parece inexistir por aqui.


Substituindo o nome anterior do lugarejo, que era São Caetano da Vargem Grande, o topônimo é homenagem ao Coronel Francisco Braz, o mesmo que nomeia a praça da matriz de Piranguinho, pai do presidente Wenceslau, um dos políticos que fez parte da dobradinha café-com-leite, a alternância combinada no poder entre paulistas e mineiros. Bom, acho que estou me repetindo, mas preciso deixar este texto minimamente autônomo. O busto que lhe faz memória está situado na praça da igreja matriz.


Esta última, cujo padroeiro é São Caetano di Thiene, originalmente era uma capela de fazenda, que abarcava a região em que hoje está instalada a praça. Infelizmente, estávamos em pleno dia de Nossa Senhora Aparecida, motivadora do feriado, e as atenções estavam voltadas para outro ponto da cidade, que veremos mais tarde. Por aqui, a matriz encontrava-se fechada, mas a bela feitura de seu exterior faz imaginar que sua parte interna também seja agradável de se ver.


Pude perceber que a cidade tem muitas construções antigas, algumas delas datadas do século XIX. Em um exemplo, há o prédio do Grêmio Operário 1º de Novembro, que congrega algumas atividades sociais, como time de futebol e concursos de misses. Pelo que conseguir levantar a custo, pelo menos até 2013 ainda estava ativo.


Ainda na categoria “edifícios”, o prédio mais curioso de todos é, sem dúvidas, o castelinho em cujo frontispício estão os dizeres Vila Dona Benedita de Faria Pioli. Diz-se que o proprietário desejava morar em um castelo, e resolveu homenagear a senhora sua mãe. Hoje em dia, após muitas considerações sobre espectros e assombrações, o espaço é aproveitado como arquivo municipal.


Em outro ponto da cidade, já quase no caminho do distrito de Luminosa, há os restos mortais do que um dia foram os depósitos da ferrovia da cidade.


Bom... A partir deste ponto, pegamos a estradinha de terra que leva ao nosso objetivo primaz neste périplo a Brazópolis: caçar a boa bebida que provamos em Delfim Moreira. Luminosa é um patrimônio de dois ou três quarteirões, perdido no meio de morros e plantações.


O lugarejo é muito próximo à divisa com o estado de São Paulo. Do lado de lá das montanhas abaixo, está situada a cidade paulista de São Bento do Sapucaí, produtora de mosaicos e azeite à qual já visitei e mencionei em meu blog.


A construção mais notável é a igreja de Nossa Senhora das Candeias, que é o centro espiritual da rota chamada Caminho da Fé, que se inicia em Águas da Prata e desemboca no santuário nacional de Aparecida. Trata-se de uma gigantesca trilha que corta montes e vales para ser feita a pé ou, no máximo, de bicicleta, serpenteando 322 Km em seu eixo principal por altitudes que chegam a mais de 1800 metros.


Na entrada do pequeno núcleo urbano fica o sítio que abriga o alambique Luminosa, onde também é servida comida de fogão a lenha e outras bebidas. Seu acervo de cachaças é vasto, com misturas de todo tipo.


A produção é feita de forma quase que totalmente artesanal, com os destiladores, fornos e tanques expostos para visitação, além de toda a infinidade de garrafas colocadas no próprio armazém, com amostras de degustação de todos os produtos, feita orgulhosamente pelo seu dono, o Guido. Haja fígado.


A grande atração, além das puras, é a cachaça de banana, mas há muita variedade disponível, com algumas um tanto exóticas. Na rosa-sol, por exemplo, vai cravo, canela e mais alguma coisa que eu esqueci. Boa.


De volta para o centro do município, fomos dar um rolê pela região do santuário de Nossa Senhora Aparecida, com o objetivo de descolar uns acepipes nas barracas típicas. É um ponto muito alto e bonito de Brazópolis, onde não pontua apenas o templo, mas os belos e grandes prédios da Escola Técnica.


A igreja, como sói acontecer nessas datas comemorativas, estava plena e absoluta, enfeitada de ponta a ponta e preparada para receber fieis e nem tanto, alguns interessados em render culto, santificar ex-votos, outros para pedir e agradecer, e outros ainda para satisfazer a curiosidade e comer alguma boa pamonha.


A réplica da imagem da santa, que, à moda do santuário nacional, possui uma passagem por detrás do altar, também estava preparada para receber seus visitantes. No momento em que passei por esse lugar, imperava uma certa modorra, dado o imenso calor e o período pós-prandial (hora da siesta, em espanhol rudimentar, com acento aberto no “e”), mas o segundo turno de visitações estava previsto para a fresca do fim de tarde/começo da noite.


A marca principal de Brazópolis, no entanto, está no campo das Ciências, em especial da Astronomia. Aqui fica sediado o Observatório do Pico dos Dias, onde estão instalados os maiores telescópios do território tupiniquim. O precitado pico fica localizado a quase 1900 metros de altitude, e é gerido pelo LNA – Laboratório Nacional de Astrofísica. Para chegar lá, percorre-se uma estrada de terra com 12 km de extensão, que inicia no portal abaixo, no bairro de Bonsucesso.


O caminho para o observatório, por si só, já vale a caminhada. Lá está, por exemplo, a Falésia dos Olhos, um paredão que é ponto de escalada. Para os menos ousados, dá para chegar ao sopé da pedra através de trilhas pela área rural à sua frente ou pela vertente superior.


O lugar também é chamado de Pedra da Cruz por conta do cruzeiro que guarnece o paredão.


Minha intenção era brasileiríssima. Eu sabia que a subida ao Pico dos Dias somente pode ser feita em dias de tempo firme e com agendamento prévio, mas a expectativa de tirar umas boas fotos era tentadora. Achava que, se utilizasse as palavras corretas e me propusesse a vencer os últimos cinco quilômetros a pé, talvez me deixassem chegar até o ponto mais alto, mesmo que nem me aproximasse dos prédios de pesquisa. O problema é que não havia viv’alma para que eu gastasse meu português, e tentar entrar pelo meio do mato era, no meu entender, transgressão demais. Paciência, fica para a próxima.


Só a vista daquela altitude toda, no final das contas, já valeu o ingresso. Daqui, é possível ter uma ideia da extensão do vale que fica aos pés do observatório, e da grande quantidade de bananeiras que o pessoal planta no local.


O que é possível fazer é mirar os laboratórios à distância, com os típicos formatos arredondados de suas cúpulas. Todo mês de setembro, aproveitando o estio, o LNA promove um festival durante uma semana para visitação monitorada, além de alguns dias em que a presença noturna de visitantes é admitida, mediante inscrição e sorteio. Já está na minha agenda.


Quando nos deparamos com tamanha parafernália, é quase inevitável que pensemos naqueles estereótipos dos malucos de jaleco, que parecem viver absortos em seus pensamentos e que não tem outra diversão a não ser procurar minúsculas agulhas nos palheiros celestes. Esse tipo de desconhecimento ajuda a sedimentar a dificuldade que as pessoas têm em compreender o que efetivamente é a Ciência. Já tratei muito do tema por aqui, inclusive combatendo uma certa prepotência que os cientistas têm em se considerar mais possuidores de conhecimento do que outros meios de saber, mas o fato é que, por muitas vezes, essa antipatia nasce justamente a partir do senso comum ou de uma certa “impiedade”. A Ciência lida com problemas muito sérios, coisas que versam sobre vida e morte, e decretar que fosfoetanolamina e pinga-com-banana tem o mesmo efeito sobre as células cancerosas faz com que tentemos, muitas vezes, nos enganar para manter esperanças.

É pena não ter podido subir aos telescópios. Eu já estava escrevendo este texto na cabeça exatamente no momento em que apertava em vão o botão do interfone. Eu sou da área de Filosofia, mas sempre temos em nós um misto de curiosidade e sede de conhecimento que forma uma espécie de espírito científico, que, aliás, é a mola propulsora de metodologias, inclusive. Ainda que pareçam coisas herméticas, restritas a ambientes como este.

O fato é que os métodos científicos sempre foram objetos de difícil consenso. Vou apresentar hoje as teorias do filósofo e literato francês Gaston Bachelard, que discutiu justamente o problema do senso comum diante do conhecimento científico. Mas é preciso puxar o fio da meada. Acompanhem, porque é interessante.

Até o fim da Idade Média, o saber científico estava situado em um patamar inferior aos ditames metafísicos da Religião. Afinal de contas, muita coisa de difícil explicação caía na caixinha fácil dos misteriosos desígnios divinos. A partir de René Descartes e Francis Bacon, no entanto, novas correntes de pensamento mudaram o estatuto da visão que temos sobre a realidade. O primeiro lança a ideia da dúvida metódica, em que nada pode ser assumido como verdadeiro se não passar pelo crivo da evidência, em um processo dirigido pelo próprio raciocínio humano. Já o segundo forma as bases do experimentalismo, de modo a se estabelecer a necessidade de um método que abarque e cerque todas as possibilidades necessárias de serem testadas em um determinado fenômeno. Descartes cria o que chamamos de racionalismo, e Bacon, por sua vez, o empirismo. A partir daí, surge uma longa discussão sobre o primado epistemológico de ambos. Será a razão a principal fonte de conhecimento, ou essa tarefa deve ser atribuída à experiência?

Quem resolve o enigma é Immanuel Kant. Tanto intelecto quanto observação tem seu valor no processo gnosiológico. Do primeiro, temos as estruturas mentais que permitem a absorção do conhecimento; do segundo, obtemos os objetos que formam seu conteúdo. É impossível um viver sem o outro. Desta forma, as filosofias seguintes já tinham uma base bem fixada para desenvolver outros temas. Uma delas, dado o desenvolvimento humano que levou as técnicas e as ciências ao ápice, dava ênfase total ao processo científico como conhecimento válido, de modo que áreas nunca dantes abarcadas pela teia científica passassem a ser incluídas no seu bojo, como o estudo das sociedades e da moral. Era o Positivismo, predominante no século XIX, que, se por um lado tinha a vantagem de seu otimismo com relação aos avanços, por outro reforçou a ênfase no método empírico, o que diminuiu o valor da razão para as Ciências.

O processo empírico das observações tinha como pano de fundo a indução. Tantas vezes um fenômeno ocorre da mesma forma, que supomos que sempre ele se repetirá. Como corolário, a Filosofia da Ciência que brotou do Positivismo adota um princípio de verificação que exclui qualquer valor de verdade de saberes não palpáveis. A coisa funcionava mais ou menos bem até surgirem teorias científicas de altíssima complexidade e abstração. É aí que entra Bachelard.

Nosso caro francês pensava que, estando as coisas dessa maneira, a Teoria da Relatividade de Einstein ou a Física Quântica de Max Planck seriam uma mera filosofia da physis, algo muito semelhante como as elucubrações sobre a arché dos velhos pré-socráticos. Estes cientistas foram criadores de modelos que fugiam da experimentação direta, com altíssimo índice de abstração, e que quebravam fortemente paradigmas anteriormente bastante sólidos. Para se ter um exemplo, as teses einsteinianas modificavam substancialmente as consagradas leis de gravidade de Newton, sem, no entanto, invalidá-las quando pensamos em termos empíricos. De fato, as leis de Newton conseguem corroboração experimental de maneira muito mais simples e intuitiva, mas não conseguem atingir grandes limites, como acontece quando a velocidade da luz é implicada em um cálculo. A física de Einstein resolve estes problemas de forma teórica, sem existirem recursos para desenvolver experimentos com as tecnologias disponíveis. Podemos perceber hoje em dia que suas descobertas vêm sendo progressivamente comprovadas, como é o caso recente das ondas gravitacionais, mas, de fato, para um modelo científico que exija a verificação, não há como considerá-las como tal.

Bachelard combate a vertente positivista e estabelece que a Filosofia da Ciência precisa atuar com um condão histórico, de modo a se atualizar da mesma forma que as próprias Ciências. São inúmeras as vezes que novas descobertas rompem com todo o conhecimento estabelecido até o momento em que ocorrem. Em seu pensamento, a verdade nada mais é do que a retificação de um erro anterior, que, por sua vez, também se tornará um erro que deverá ser corrigido por uma nova verdade, e assim sucessivamente, ad aeternum. A verdade é histórica, assim como a Ciência deve ser e a Filosofia da Ciência também. Isso inclui sua metodologia.

Antecipando-se a Thomas Kuhn, que vislumbrou uma metodologia da crise nas Ciências, Bachelard entende que a Epistemologia deve caminhar dentre rupturas. Sua resistência maior, chamada por ele de obstáculos epistemológicos, vem de uma espécie de continuidade entre o conhecimento científico e o senso comum: queremos que a Ciência nos forneça explicações de maneira tão palpável quanto nossa avó explica a receita de bolinho de chuva (está chovendo hoje). Quais são, portanto, esses obstáculos epistemológicos ao espírito científico?

O primeiro é a própria realidade. Como captamos intuitivamente o universo ao nosso redor, temos tremenda dificuldade em compreender uma explicação que fuja ao alcance dos nossos sentidos. Pensemos nas teorias sobre os átomos, por exemplo. Enquanto acompanhamos a realidade, a explicação de que qualquer material é divisível até o ponto em que isso não seja mais possível é bastante intuitiva. Afinal de contas, o processo de divisão pode chegar a um ponto em que não seja mais perceptível, mas basta dar continuidade na mesma lógica para que tal processo avance mentalmente: um átomo é uma minipartícula absolutamente sólida. Essa é a sensação que nos dá a realidade. Mas a ideia de que o átomo não é sólido, mas formado de subpartículas, algumas concentradas em um núcleo, outras circulando ao seu redor, com a imensa maioria de seu espaço ocupado por vácuo, que possuem diferentes órbitas e níveis, e que mesmo o que poderia ser considerado matéria em seu interior é, hipoteticamente, uma forma de energia, foge completamente à realidade circunstante.

O segundo é o senso comum, traduzido pela noção de que este é uma forma de conhecimento em continuidade com a Ciência, tendo apenas uma diferença de profundidade. Bachelard insiste que não há nenhum tipo de encadeamento entre senso comum e conhecimento científico. O senso comum existe para que vivamos nossa vida, encaremos nossa realidade; a Ciência guiada por ele é imbuída de um monte de penduricalhos que somente lhe atrapalham. Obviamente, esta ideia está relacionada à primeira, de que a realidade nos é dada para ser interpretada. Mas nossas opiniões e preconceitos se imiscuem silenciosamente por todos os aspectos de nossas vidas, de modo até mesmo a turvar nossas pesquisas mais rígidas metodologicamente. O mero empirismo, apesar de jamais poder ser descartado como ferramenta de pesquisa, induz-nos a nos convencer bovinamente e consolidar nosso senso comum, constituindo-se em bela armadilha epistemológica.

A regra de ouro bachelardiana é que o racional deve ter primazia sobre o real. Isso significa que Bachelard é um novo racionalista? Não. Seu objetivo é fixar que o cientista não é um mero receptáculo para dados empíricos, mas um sujeito na relação do conhecimento. A Ciência nunca é definitiva, necessita de constantes correções e é preciso ter consciência de que qualquer nova hipótese é uma tentativa de aproximação, mas que depende da abstração do pesquisador, para que não se crave no imobilismo.

É tentando dar alimento a esse espírito científico que eu subi as montanhas de Brazópolis e lá observei observatórios, não tão perto quanto gostaria, mas não tão longe que se fizesse cessar minha inspiração. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Bachelard não é exatamente um filósofo fácil, mas sua verve contestadora encanta. Vou recomendar seu livro que trata mais diretamente da questão aqui abordada.

BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 5ª estação: Piranguinho e as mãos do mercado mexendo nos pés-de-moleque

Olá!


Quando estávamos em Delfim Moreira, ao cair da noite, encostamo-nos em um barzinho para comer qualquer petiscaria que estivesse disponível. Era estilo botecão mesmo, com balcão de fórmica e mesinha de madeira recoberta por aquelas toalhas xadrezes, baleiro rotatório, estufa para salgados, potes de sardinha enrolada e demais que-tais. Apesar disso, não estava repleto de bêbados, como sói acontecer no nosso imaginário, e sim com uma luz meio fraca, tipo daquelas de fim de expediente. Não era possível fazer grandes exigências porque estávamos mais sujos do que poleiro de galinha (exagero), então ficamos na base do queijinho minas e da azeitoninha. Tudo de bom, tudo de bem, quando o dono da tasca ofereceu uma especialidade da região: cachaça artesanal. Eu costumo ficar ressabiado com esse tipo de assertiva, otimista demais, mas sou bem educado e provei o pretencioso preparado. E era realmente bom, sabor suave, sem aquele travo arrepiante que denuncia a bebida de má qualidade, mais próxima dos derivados de petróleo do que dos destilados de cana. Na verdade, posso dizer que era uma pinga realmente notável, e me interessei por saber mais. O dono me mostrou o rótulo: Luminosa, um distrito da municipalidade de Brazópolis. É longe? Não. Então vamos para lá.

Isso não foi no mesmo dia. Brazópolis fica a oeste de Itajubá, onde ficamos hospedados, lado oposto a Delfim Moreira. O tempo bem mais firme foi um convidativo para sairmos mais cedo, e, no meio do caminho, há uma cidade que tem uma tradição e um mote poderosos: Piranguinho.


Piranguinho tem um nome que é composto pela palavra tupi pyranga, que quer dizer vermelho, e complementada pelo sufixo í, que dá a conotação de diminutivo, e se refere a um tipo de pedra vermelha outrora comum no município. Eles se autoproclamam a “Capital Nacional do Pé-de-moleque”, mas falo já, já sobre isso.


A cidade possui uma praça central bastante calma, que homenageia o Coronel Braz, o velho advogado e político Francisco Braz, pai do presidente Wenceslau, muito influente em toda a região (e, em certo momento, no Brasil inteiro). A igreja matriz atual é dedicada a Sant’ana, que, na tradição da igreja Católica, é avó de Jesus.


Esta igreja tinha outro padroeiro, mas não sei por qual motivo, o mesmo foi “destituído”. Tratava-se de São Benedito, o mais célebre dos santos negros, antigo cozinheiro de um convento franciscano. A referência ao seu antigo padroado está do lado de fora da igreja, e me pareceu bastante sincrético: as mãos de um africano que toca o seu atabaque, algo tão típico dos cultos do candomblé.


No restante da praça, além do belo arvoredo e dos velhos costumeiros dos bancos, mais dois pontos a serem notados. O inevitável coreto...


... e o monumento Abraço, feito em bronze, para homenagear a construção da primeira igreja da localidade. O próprio monumento é sincrético, por mencionar todos os homens e mulheres de todas as raças que ajudaram a edificar Piranguinho.


Mas, como eu já disse, o carro-chefe daqui é o pé-de-moleque, doce feito classicamente de amendoim agregado com calda de açúcar, um daqueles petiscos bons para quebrar os dentes, como o torresmo e o quebra-queixo, mas que, segundo os produtores locais, não segue exatamente os cânones da sua manufatura, aquela mera rocha doce. Aqui o processo também incluiria a moagem do grão e o uso de rapadura.


A explicação para a preferência por este doce faz remissões antigas. Dos tempos em que ainda operavam ferrovias na região, mais precisamente. De fato, Piranguinho possui uma estação bem preservada no distrito de Olegário Maciel e a ponte de ferro sobre o rio Sapucaí, por onde o trem a ligava ao município de Itajubá.


Estamos no começo do século XX e as famílias complementavam sua renda com pequenos negócios, que incluíam a venda de produtos artesanais nos vagões dos trens durante suas paradas. Na estação de Piranguinho, um dos mais bem aceitos era exatamente o pé-de-moleque, que era vendido em tabuleiros, na maioria das vezes por crianças.


O nome do doce tem duas explicações, nenhuma delas firme suficiente para fixar uma “jurisprudência”. Na primeira, fala-se dos garotos que ficavam olhando as cozinheiras pelas janelas, atraídos pelo seu aroma inebriante. Algumas delas, ao ver as cabecinhas tímidas e os olhos gordos, diziam “pede, moleque. Pede, moleque” esperando a demanda pelo bocado. Na segunda, faz-se uma alusão à aspereza típica da guloseima, que lembraria um pé grosseiro das crianças que andavam descalças para toda parte onde iam (a versão moderna chamada pé-de-moça, feita com amendoim moído mais fino, remete a essa mesma lógica). Logo na entrada da cidade, uma estátua lembra, com exagero óbvio no pé, tanto o meio de venda quanto os próprios vendedores.


Por ocasião do aniversário do lugarejo, é realizada uma festa com uma semelhança ao aniversário de São Paulo, o tradicional bolo do Bixiga. Para quem não é da Terra da Garoa, explico. No bairro do Bixiga, é feito um bolo cujo tamanho aumenta um metro por ano, para que cada um represente um ano na idade da cidade. Por isso, no último mês de janeiro foi feito um bolo com 458 metros de comprimento, comemorando os seus 458 anos. Aqui em Piranguinho, o bolo é substituído por pé-de-moleque, naturalmente. Isso produziu o maior pé-de-moleque do mundo, atualmente com 23 metros, como conta esta placa na Praça da Paz. Não se trata de espelhar a idade, mas, a cada ano, procura-se superar o récorde anterior.


Muito embora ainda seja possível encontrar quem produza o pé-de-moleque artesanalmente, a maioria das iguarias encontradas é oriunda de fábricas, que modernizaram o negócio. Algumas delas são resultado do crescimento dos postos de venda, que emprestam seu nome ao empreendimento como um todo.


Além disso, os produtos se diversificaram muito. Os pés-de moleque estão mais sofisticados, feitos com chocolate e leite condensado. Há outros produtos de amendoim também, como cajuzinho, paçoca e o grão in natura, para acompanhar uma boa cerveja.


O comércio da iguaria foi evoluindo com o tempo. Dos meninos ambulantes, especialmente após o fim da linha de ferro, passou-se a vender o produto nas barracas, que são distintas por cores. A bem dizer da verdade, algumas delas cresceram tanto que já não podem receber o nome de barraca, mas de shoppings do amendoim, como é o caso da barraca amarela...


... e da laranja, que diversificaram bem mais a grade de produtos, e vendem bebidas, mel, rapadura e outros quitutes.


A barraca vermelha se manteve mais fiel ao amendoim, aperfeiçoando-se, porém, no quesito gourmetização, produzindo, inclusive, manteiga de amendoim, base para coisas como Amendocrem© e batida. Lembro que meu primeiro porre foi na base de batida de amendoim, que é docinha e engana muito, viu?


Algumas das barracas são verdadeiramente representantes deste nome, mas, como ficam na beira da estrada, possuem um movimento considerável. Nesta categoria, há a barraca roxa...


... e a barraca azul, que vende uns cajuzões gigantes.


Já as barracas que estão fora da rodovia são bem menores, pelo óbvio motivo de que o fluxo de veículos é igualmente menor. Ou seja, é preciso intencionalmente entrar na cidade para acessá-las. Como eu estava a passeio, nada que me importunasse, até porque cada uma delas tem sua sutileza. Nessa categoria, temos a barraca prata...


... a barraca verde, que também vende boas cocadas...


... e a barraca branca, onde encontramos trufas de amendoim, doce-mais-doce-do-que-doce-de-batata-doce.


Um registro e um protesto. Inexiste pé-de-moleque diet, ajudando a nós, diabéticos, a formar uma nova minoria social que se sente excluída neste universo de rapadura. A única coisa que se pode achar é aquela paçoquinha comprável a quilo na Sé e na Luz, ótimas, mas que tem dois defeitos: não é caseira e não é de Piranguinho. Acho que aquele que conseguir desenvolver uma fórmula que use ao menos frutose, menos devastadora para a gente de sangue doce, fará um bom negócio. Afinal de contas, poderá atingir também outros nichos, como a galera fitness e pessoal que tenha outras restrições ao consumo de açúcar. É um bom mercado a explorar.

Mercado... Hoje em dia falamos mais e mais dele, como uma panaceia universal que irá resolver todos os problemas da humanidade, mandando para o inferno da miséria apenas aqueles que não merecem sobreviver no mundo do empreendedorismo. Mas esse é o típico papo do senso comum, variável com o tempo e com o vento. É preciso olhar um pouco mais sobre o nascimento do conceito para usá-lo com sabedoria. Vamos fazê-lo agora, e a partir de seu criador, o escocês Adam Smith.

Estamos no século XVIII, às voltas com uma mentalidade de mudanças, mais especificamente nas vésperas da Revolução Francesa. Já não há mais clima para a permanência de sistemas monárquicos absolutistas, que mantém as pompas e circunstâncias de uma camada extremamente privilegiada e segura o crescimento de outras classes, que possuem cada vez mais tecnologia para produzir e enriquecer (a burguesia) ou a miséria de sempre (o proletariado). O problema não era só as bases políticas, mas também o formato econômico e monetário. A maioria dos países adotava uma política mercantilista, que se apoiava em forte intervenção do Estado na economia, principalmente na administração de metais preciosos que tinham valor de moeda. Sua doutrina principal era a soma zero, que significava que, a cada ganho que alguém tem, há outra pessoa obrigatoriamente perdendo. Como o sustento do aparato da corte se dava pela extração de dinheiro da economia, e esse era o lado positivo da conta, a banda negativa era custeada por quem produzia. Desta forma, um Estado muito grande retirava recursos demais do meio circulante.

As insurgências derivadas do pensamento revolucionário incluíam essa aversão aos privilégios dos reis, que empobreciam a maior parte da população. Claro: se a riqueza de um país é medida em ouro, quem o detém deixa os outros sem nada. Os princípios liberais clássicos, no entanto, viam o mundo sob outro escopo. Estamos em pleno Iluminismo, o movimento que mudou o eixo das relações humanas, que teorizou uma mudança da humanidade em busca do aperfeiçoamento. A sua palavra chave é liberdade: liberdade de dogmas, liberdade de tiranias, liberdade de escolha.

O polo de oposição ao mercantilismo e ao absolutismo que lhe dava sustentação veio do liberalismo econômico, cujo maior mentor era Adam Smith. O horizonte de fundo de sua teoria vem de uma constatação moral. Os homens são essencialmente egoístas. Quando alguém lhe vende alguma coisa, não o faz por benemerência, ou por entender que o desenho social necessita de gente que venda e gente que compre, mas porque quer melhorar suas condições materiais. Então é desse jeito que a banda tem que tocar.

Isso é um mal em si? Nada disso, diz Smith. É justamente dessa vontade de crescer como indivíduos que os seres humanos procuram produzir mercadorias cada vez melhores, e isso é o impulso básico do desenvolvimento da tecnologia. Como esse tipo de mecanismo pode girar se os indivíduos estão submetidos a leis que cercam todos os aspectos de suas vidas? Somente com liberdade econômica pode-se chegar ao maior desenvolvimento possível, e para isso a ênfase do modelo econômico precisa trafegar da instituição para o indivíduo.

O conceito mais famoso de Adam Smith é a mão invisível do mercado. Segundo ele, a economia de um país possui um estado de equilíbrio que deriva da lei de oferta e procura, e que dispensa todo o tipo de intervenções. A coisa funciona assim: o preço de uma determinada mercadoria está vinculado à sua disponibilidade. Isso é fácil de ver na feira. Quando é época de manga, ela passa a ser oferecida por vários feirantes e seu preço cai. Assim que a safra acaba e a fruta vai rareando, seu preço começa a subir, e somente aqueles doentes por manga se propõe a pagar o preço mais alto. A diminuição do consumo faz com que o preço se estabilize, até chegar uma nova época de colheita e o preço caia novamente. Além disso, há a concorrência. O preço base da manga é mais ou menos o mesmo. O que os feirantes podem fazer para que a freguesa opte pela sua? Descontos nas quantidades maiores, a entrega de um brinde, dúzias de treze, frutas já lavadas e outros artifícios que atraem os compradores. De uma forma ou de outra, pelo trabalho ou pelo engenho, é oferecida uma vantagem ao adquirente, repassando o ciclo do egoísmo: não é só quem vende que quer se locupletar; quem compra também quer fazer um bom negócio. Nesse sentido, os metais preciosos que davam lastro ao mercantilismo eram mercadorias como outras quaisquer, passíveis de variações no preço de acordo com sua oferta e sua procura. O valor intrínseco do enriquecimento de um país é o trabalho de seus indivíduos, realizado sem amarras externas. Esse é o princípio basilar do Capitalismo.

A mão invisível seria a metáfora para esse equilíbrio natural entre as forças econômicas. Todas as vezes que um Estado intervém na economia, esse equilíbrio é quebrado e o mercado deixa de funcionar como deve. O egoísmo humano persiste, e procurará meios desvinculados do trabalho legítimo para prosperar, como a corrupção, por exemplo. Por este motivo, o mercado e a concorrência devem ser livres.

Mas a doutrina de livre mercado não pode ser imune a críticas, como parece ser a proposta dos neoliberais de plantão. Em primeiro lugar, e sem juízo de valor, a livre concorrência traz em si a doença da contradição. Monopólios e oligopólios são derivações possíveis no mundo dos negócios. Preços combinados são prática comum: a OPEP, por exemplo, não pratica livre concorrência, mas nasce de seu contexto. Sempre é possível que os feirantes se juntem para combinar o preço da manga. Ou seja, o livre mercado pode atuar, de per si, para impedir a livre concorrência, já que a livre associação também está no rol das liberdades do indivíduo. Para evitar esta circunstância, criam-se leis anticartel, o que é, ora vejam, uma intervenção estatal.

Outra coisa importante a notar é que o mercado funciona bem em países com economias sólidas e população com um nível aceitável de renda. É muito difícil imaginar que países com alta concentração de renda, como é o caso da Terra de Santa Cruz, possam oferecer oportunidades razoáveis para quem deseje empreender, em que pese nossa carga tributária elevada (e de péssimo retorno). Por fim, há ainda a questão de que atribuir áreas problemáticas, como a preservação do patrimônio histórico e o meio ambiente, dificilmente seriam bem geridas pela iniciativa privada, por conta do confronto de interesses. Uma construção histórica, mas totalmente não-funcional, situada em local privilegiado comercialmente deveria ser tratada de que forma pelo mercado? É óbvio que os interesses econômicos prevaleceriam, porque são mesmo importantes, mas mesmo países com alto índice de liberdade econômica têm interesses históricos. Mas o dono do terreno onde está a obra pode cismar de simplesmente derrubá-la para vender o terreno. Se isso te parece absurdo, a intervenção estatal é a solução para o problema. O mesmo se aplica quando pensamos nas áreas ainda preservadas de vegetação original. Ou estão lá porque o Estado é dono delas, ou porque há leis que obrigam sua permanência. Presença estatal, de uma forma ou de outra.

A mão do mercado explica, em boa parte, a diferença entre as barracas de Piranguinho. As barracas grandes, como a amarela e a laranja, tem mais procura por uma série de fatores: porque são mais tradicionais, mais bem localizadas, mais sortidas, mais divulgadas. Cresceram e prosperaram. A pequena barraca prata é menos procurada, e talvez não encante como as outras, talvez terá uma história mais curta, mas isso não impede que tenha o melhor dos produtos. Suas trufas são prova de criatividade, e é isso que essa estranha divindade talvez premie, fazendo-a crescer. O deus-mercado não é previsível em sua totalidade; seus humores variam mais que o tempo de São Paulo, e todas as vezes que vemos uma portinha fechando sentimos um pouco de sua crueldade e indiferença pelos sonhos que se encerram junto com o negócio. O Capitalismo não é para idealistas. Sonhos, só os de consumo. 

Adam Smith não foi um insensível que não tenha detectado estes fatores, e não quis dar uma solução final para a economia de qualquer país. Ele tinha a Inglaterra e a Europa continental à sua frente para analisar, e não tinha um horizonte meramente técnico, sendo notável seu interesse humanista, quando afirmava que havia, de fato, um estrato populacional que precisava de socorro estatal para sobreviver em ambiente capitalista. Mas também é preciso um pouco de consciência na quantidade de incenso a ser acendida à frente de seus altares. Como eu disse, para que o liberalismo funcione bem, é preciso propiciar opções viáveis às pessoas. É muito diferente viver em São Paulo ou em Piranguinho. É diferente ser pobre em São Paulo ou em Piranguinho. O liberalismo é uma forma válida para enriquecer um país, mas não podemos esquecer que países como Japão e Coréia do Sul cresceram sob forte intervenção estatal na economia, e ninguém pode afirmar que são modelos de fracasso. Como seria São Paulo liberal ou Piranguinho liberal? Até que ponto as barracas maiores não engoliriam de vez as menores? São pontos a se cuidar antes de erguer uma bandeira que muito pouco conhecemos em Terra Brasilis. Pode funcionar? Pode. Pode não? Também pode. Se eu tivesse que fazer uma aposta, seria na segunda hipótese, mas esse é papo para outro momento. Por ora, vou comer uma paçoquinha da 25 fazendo de conta se tratar de uma autêntica peça piranguinhense, enquanto a patroa se delicia de verdade. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Tem muita gente que se diz liberal sem entender o que significa o termo, e, pasmem, há muita gente que o critica sem também saber nada sobre ele. O antídoto é ler. Por isso, recomendo o livro de cabeceira que toda pessoa interessada em Economia deveria ler. Indico o primeiro volume, porque a obra é extensa. Caso gere interesse, leia os demais livros da obra.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Volume 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Col. Os Economistas.