Marcadores

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Navegar é preciso viver - 3ª ancoragem: São Bento do Sapucaí, por uma Filosofia do azeite

Olá!

Clique aqui para visualizar as outras ancoragens publicadas

Vamos dar continuidade ao périplo. Após Monteiro Lobato e São Francisco Xavier, eu e a patroa nomeamos a cidade de Santo Antonio do Pinhal como porto seguro para nossas estadias. Como pegamos um hotel bastante razoável a preço amigável, resolvemos fixar âncoras por lá mesmo, ao invés de caçar pouso aqui e ali, como é consuetudinário fazermos. Óbvio que isso acabou por nos levar a muitos endereços do retro citado município, e em diferentes momentos, o que me levará a deixá-lo por último (mas não em último). Então passarei para o próximo passo, a cidade de São Bento do Sapucaí, lugar onde se habituou a construir capelas de mosaicos.


Em primeiro lugar, vamos dar a situação geral. Ao contrário do que ocorreu nos quatro primeiros dias de viagem, o tempo deu uma fechada geral, ficando nublado e garoento (existe essa palavra?). Para quem queria visitar a célebre Pedra do Baú e suas vizinhas, trata-se de um brochante acidente. Vejam a situação da dita cuja:


O mesmo se aplica ao Bauzinho e à Ana Chata, as outras duas formações que compõe o conjunto, do ponto de vista da apícola em que nos encontrávamos:


Estando tudo invisível e indistinguível, nada a fazer senão buscar alternativas. Enquanto a precipitação ainda não estava no nível do encharcante, fomos visitar a parte mais rural da cidade, onde podem ser encontradas muitas trilhas e cachoeiras, dentre as quais a Cachoeira dos Amores.


Ela é subsidiária ao Ribeirão do Paiol Grande, e fica em uma propriedade particular, que cobra (pouco) pela entrada. É uma das mais tranquilas de todas para levar crianças, tendo em vista sua pouca altura e grande piscina natural, com várias pedras para servir de assento.


Quando a chuva apertou, o único rumo a ser seguido era o da região urbana. Seguindo o costume desta região que se ligava no passado às trilhas que levavam às Minas Gerais, há um padrão semelhante às localidades de tropeiros, sendo que, especialmente aqui, há a influência das bandeiras que partiam do universo então habitado, mais próximo ao litoral. Para rememorar este fato, logo no pórtico de entrada de São Bento, encontra-se a estátua de um bandeirante, figura polêmica sobre a qual debateremos oportunamente.


A área possuía todas as características de cidade fundada entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a atividade agrícola suportada por mão de obra escrava. Um dos bairros mais célebres é justamente o Quilombo, cujo nome é autoexplicativo. No local onde se situava o dito cujo, foi montado nos dias de hoje um complexo de venda de artesanatos. Na sua entrada, há a reprodução de uma capelinha de pau-a-pique, com os seus simples paramentos.


O lugar é um galpão bastante amplo, de pé direito alto, e é gerido por uma espécie de cooperativa de artesãos, que dividem o espaço em si, mas que possui um caixa centralizado e partilha de gastos para o bem comum dos cooperados.


A principal matéria-prima utilizada é a palha de bananeira, que permeia flores, imagens de santos estilizadas, presépios, recobrem bandejas, guarnecem cortinas, arquitetam cestos e ornamentam caixas de bijuterias, e constituem o casco de inúmeros barquinhos votivos, daqueles que carregam promessas para os santos.


Por falar em artes, no mesmo bairro temos mais duas curiosidades interessantes: a igreja da Imaculada Conceição, em estilo colonial, toda construída em adobe (os famosos tijolos de barro misturado com palha, para dar mais leveza à estrutura), com o característico mastro do Divino cravado logo ao lado ...


... e o atelier do artesão Ditinho Joana, provavelmente o artista mais conhecido da municipalidade, com renome a nível nacional na utilização de esculturas de madeira. Naquele dia nublado, infelizmente fechado.


Em regresso ao trecho central da cidade, chegamos às capelas de mosaicos, de onde se originou o costume local de se produzir obras de arte revestidas pelas coloridas partículas. A primeira delas fica à beira da estradinha que leva ao pé da Pedra do Baú, dedicada à Santa Cruz.


Já a outra fica na porção mais central da cidade, em uma rua do fundo de um quarteirão, colocada ao lado de um atelier, de autoria dos mosaicistas Ângelo Milani e Claudia Villar.


Ambas não são compostas apenas de peças aleatórias. Os mosaicistas aproveitaram a superstição popular de não jogar cacos de imagens de santos no lixo, sob pena de sacrilégio, e agregaram ao revestimento toda sorte de pedaços de estátuas. O resultado final é curioso e belo, apesar de um pouco lúgubre.


E a moda pegou de tal forma que é possível ver mosaicos pela cidade inteira. Como era de se esperar, eles estão nos ateliers...


... nas praças...


... nos estabelecimentos comerciais (como o bom restaurante Sabor da Serra – não estou ganhando um tostão pela propaganda... rá, rá, rá)...


... também nas placas e faixas das ruas...


... e até mesmo nos marcos da via sacra que levam às proximidades da igreja matriz, de forma a terem serventia nas solenidades e procissões da Semana Santa.


Por falar nela, a igreja matriz é dedicada, como não poderia deixar de ser, a São Bento, que fundou a Ordem dos Beneditinos, rigorosa com seus claustros. A igreja em si possui as típicas estruturas em arcos abobadados, o que confere ar magnânimo à obra.


Um dos seus mais conhecidos párocos foi o Monsenhor Pedro do Vale Monteiro, cuja estatua fica situada na praça de mesmo nome. Dizem que foi intensamente dedicado à educação das crianças, em especial as mais carentes.


Fomos embora após um sorvete de queijo. Mas resolvemos voltar no dia seguinte, com a melhora das condições do clima. Novamente fomos amassar barro com nosso pobre carrinho, já devidamente amarronzado. Ainda impossibilitados de buscar as alturas das pedras, fomos caçar algo diferente: uma fábrica de azeite situada no meio dos campos. Trata-se da Oliq (também não estou ganhando nada aqui).


Fomos recebidos pelo Ademilson e pela Natália, que recebem os visitantes com fatias de pão italiano e muitos goles de azeite puro, divididos entre azeitonas de origem espanhola, portuguesa e italiana, além dos óleos de abacate. Eles têm a paciência de demonstrar todas as etapas da produção, que no mês de abril não está ativa. O motivo disto é a sazonalidade do negócio. As azeitonas ficam prontas no fim do ano, e a colheita e prensagem ocorrem por essa época.


Eu sempre tive curiosidade de ver as oliveiras. Há tantos significados por trás delas e de seu produto principal que não resisti à vontade de lidar com elas filosoficamente.


Esse é o tema, portanto. Tenho um livro chamado “A Filosofia na Cozinha”, escrito pela professora italiana Francesca Rigotti, muito interessante e fácil de ler. É daqueles que, abaixo de uma boa árvore e acompanhado de um queijo com um fio de azeite, é possível ler de uma só sentada. Um dos tópicos do livro diz respeito aos alimentos filosóficos. A professora inclui quatro na lista: leite, ovos, pão e vinho. Vou adicionar mais um – o tal do azeite.

Lipídeos. Isso é o que buscamos, basicamente, quando abrimos uma garrafa de bom óleo. Em geral, não estamos aqui muito preocupados com sua composição molecular, mas com aquilo que se pode extrair de seu imo. De fato, ao pensar no azeite de oliva, o mais tradicional de todos, temos uma espécie de correspondência metafísica com uma anima, ou até mesmo de uma arché, uma essência que explica a sua existência. Quem conhece um lagar certamente sabe do que estou falando.

Uma azeitona, vista individualmente e por fora, não faz supor nada mais do que uma fruta pequena, pouco apetitosa se comparada a uma ameixa ou uma manga. Só que a aparência modesta precisa ser descortinada para que se chegue ao paroxismo do azeite. Vejam: a mesma ameixa ou a mesma manga citadas, uma vez premidas, gerarão um sumo e basta – algo efêmero, tão passageiro quanto uma estrela cadente.  Já a azeitona passa por um processo que se assemelha a um rito de passagem – da destruição de sua forma perfeita no processo de moagem ao estertor da prensagem a frio que lhe rouba a essência, um líquido extraído como se extrai uma verdade, com dor. Mas deste parto o sumo resultante fará com que a mágica aconteça: os químicos dirão se tratar de uma diferença de polaridades entre substâncias, mas os estetas pensarão se tratar de uma espécie de epifania, como se o próprio produto do esmagamento pudesse dizer: “Se queres minha substância autêntica, se queres minha característica distintiva, se queres aquilo que me torna único, eu vos darei sozinho”. E eis que óleo e água se isolam sem intervenção, como se a legitimação do processo se desse por essa manifestação volitiva – da oliva, claro. E da desnaturação da moagem e da prensagem, desprendida da água da vulgaridade, nasce a essência mais pura, mais original, mais espontânea e franca – o fruto da oliveira tem agora sua verdadeira natureza exposta – o azeite.

Processo análogo ocorre com os demais óleos, embora de outros seja necessário ainda o cozimento, o refino, a filtragem, mas o objetivo é sempre o mesmo: retirar o cerne do vegetal. Só que o azeite de oliva é ainda mais delicado. Sob pena de alterações na sua acidez e na oxidação, o processo precisa ser, paradoxalmente, delicado e rápido. Não se pense em acrescer aditivos para mantê-lo estável, isso não é coisa de azeite. No máximo, pondere espécies diferentes de azeitona para se chegar ao melhor sabor – todas elas de alma entregue.

Diferentemente da água que cai célere, o azeite escorre. Ele reluz e brilha como se fosse um verniz pelo qual o alimento precisa passar para se tornar ainda mais nobre. Enquanto Heráclito usava a água dos rios para simbolizar o devir, Parmênides perdeu a excelente oportunidade para trazer ao azeite o privilégio de representar a permanência. Qualquer um que precise lavar a louça sabe bem do que estou falando. Um suco, um vinho ou outro líquido privado de viscosidade causam um resíduo que basta uma boa enxaguada para resolver. Vá fazer isso com algo impregnado de azeite. É preciso água quente e saponificação adequada para que desprenda do objeto em que se instalou. O azeite (e gorduras em geral) se agarra tenazmente em seus invólucros e recipientes, e por isso mesmo é tão utilizado em medicina e ritos religiosos.

Peguemos o exemplo da liturgia cristã. Enquanto nos batizados a água representa uma limpeza dos pecados, do azeite se espera representar a graça divina que para sempre se funde ao fiel. É também fármaco que aquece os ungidos em seu leito de morte. Aliás, os unguentos e pomadas aproveitam justamente essa característica de adesão para que sejam mantidas no corpo do enfermo as mezinhas que lhe darão efeito curativo.

Além disso, o azeite doa seu pendor lubrificante para o quotidiano dos homens. Espalhado pelo corpo é proteção e estratégia de luta. Os antigos gladiadores se besuntavam de azeite para dificultar o agarre pelos seus adversários. Se o azeite quase se funde amorosamente com o que se toca, também o faz com o guerreiro que lhe busca o socorro.

E a noite... O azeite é o combustível das lamparinas que nossas avós e todas as enfermeiras buscavam para cuidar de seus entes. Não é por ventura a lamparina acesa o símbolo do cuidado solidário? Que vale a lamparina sem seu azeite para queimar? A candeia nada é sem seu azeite; já o azeite permanece o que é. O azeite, aqui mais uma vez, é símbolo de persistência e da paciência, da chama que queima lentamente, consumida aos poucos por um pavio que parece inerte, como se fosse seu dever não ser notada. Uma espécie de desafio ao próprio tempo.

O azeite é tudo isso e muito mais que possamos pensar. Ele se agarra à nossa mente da mesma forma que à nossa pele. Lembro ainda hoje dos dias em que não havia muita coisa para entreter o estômago, como hoje em dia podemos encontrar em nutellas e cream-cheeses. A copa pouco cheia não chegava a exaltar o ânimo, mas uma bem imiscuída garrafa de bom azeite parecia reluzir quando encontrada. Eram poucas as coisas de qualidade máxima adquiridas pela minha operária família. O arroz precisava de escolha, a carne nem sempre servia para bife, os ovos dependiam do bel-prazer das galinhas da redondeza; economizava-se em tudo isso para que se pudesse ter o melhor azeite. Um pouco de sal, um fio de azeite e um pão honesto: era isso o necessário para aplacar a ira estomacal com um prazer um tanto raro de encontrar.

No final das contas, fiz mais poesia do que filosofia, mas quem disse que essa última precisa ser desprovida de emoção e boas lembranças? É isso que espero de meu azeite e da minha visita a São Bento do Sapucaí, a quem espero rememorar nos dias em que estiver mais contando histórias do que propriamente as vivendo.

Recomendação de leitura:

Como mencionei acima, a professora Francesca teve uma boa ideia ao reunir os princípios filosóficos que podemos encontrar ao redor de um fogão e à beira de uma mesa. Segue a referência.


RIGOTTI, Francesca. A Filosofia na Cozinha. São Paulo: Ideias e Letras, 2016.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Navegar é preciso viver - 2ª ancoragem: São Francisco Xavier e as incertezas sobre nosso lugar na árvore da vida

Olá!


Após Monteiro Lobato, seguimos viagem na direção de Campos do Jordão pela estrada velha, mais longa e tortuosa que a Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro, mais habitual nos dias de hoje. Para acessar a vetusta rota, é preciso sair da via Dutra em São José dos Campos e atravessar um bom trecho urbano. A primeira cidade que se chega após sair de São José é justamente Monteiro Lobato. Para seguir viagem, a opção à esquerda nos leva de volta à capital do vale, o que nos faz imaginar aqueles municípios em forma de ferradura, como acontece com Santo André. De fato, se pegarmos a linha de trem da Santos-Jundiaí para chegar à Serra do Mar, sairemos de Santo André, passaremos por Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, até chegarmos a Paranapiacaba, igualmente em Santo André.

Passons, diriam os franceses. No caso presente, o retorno a São José dos Campos se dá no distrito de São Francisco Xavier, para onde voltaremos nossa atenção a partir de agora.

São Francisco Xavier é um distrito tão isolado geograficamente dos demais bairros de São José que em tudo se assemelha a um município autônomo. Além da óbvia descontinuidade urbana com a sede, há toda uma estrutura muito similar a tantas e tantas cidades do interior paulista, onde se destacam as igrejas, como a de São Sebastião, de aspecto mais moderno...


... e a do padroeiro, santo que evangelizou o extremo oriente, com arquitetura mais voltada para o barroco das cidades antigas.


Também há uma grande praça com coreto, que abriga a concentração do casario e os restaurantes de comida típica, que aqui, em específico, exploram o uso das trutas, peixe de sabor suave e que recebem o convidativo acompanhamento das cervejas locais.


Mais retirado do núcleo urbano, são encontradas as grandes propriedades de criação das tais trutas, em meio a estradinhas e carreadores. Há também a possibilidade de se atrever as próprias varas, porque há uma série de bons rios para a pesca, como é o caso do Rio do Peixe.


Como não sou chegado a molhar minhoca (o verme, no caso), fui procurar algum lugar legal para tomar um banho, o que me levou à cachoeira Pedro David, homenagem a um antigo entusiasta local, que fica situada em uma espécie de área de proteção ambiental, com acesso gratuito e alguma estrutura (leia-se banheiros).


Tá bom... Nem só de banheiros vive a estrutura mencionada. Há um pequenino estacionamento (do lado de fora) e alguns benefícios como mato roçado e acessos facilitados, além de uma capela de pedras dedicada a Nossa Senhora Aparecida. Religiosidade é algo bem presente nestas sendas rurais, como já pude falar neste texto.


As pontes e escadinhas não estão lá de bobeira. O acesso para a cachoeira é um tanto acidentado mesmo, o que dificultaria a chegada de quem estivesse mal preparado. Há um bocado de pedras, e a laminha das beiras escorrega um montão.


Além disso, como o acesso se dá pela cabeceira da cascata, dá para notar que a água flui com certa força, o que pode ser ainda mais perigoso. Justifica-se o cuidado, por conseguinte.


O trecho intermediário é um tanto vertical, com uns quinze metros de altura, mesmo não sendo tão caudaloso, e fica bem embrenhado na mata. Vale lembrar que há uma bela sequência de quedas d’água.


Mas a parte baixa é bastante bonita, com um remanso que permite chegar à larga queda final. Por estar mais difusa, a água aqui não cai com tanto peso, mas é gelada toda a vida.


Seguindo pelo nosso périplo, eu e a patroa pegamos o rumo da Pedra de São Francisco, mais conhecida como Pedra do Porquinho. É uma rota em aclive crescente, onde pudemos ver MUITOS ciclistas tentando vencer o desafio de contrair e distender tantas vezes os músculos das pernas. Também fiquei surpreso com a quantidade de carcarás na rota. Vejam que belo exemplar.


A tal da Pedra do Porquinho, na verdade, é um mirante que dá para chegar muito perto de carro. Deixando-o em uma área próxima, anda-se algo em torno de cem metros para se chegar ao pico. Lá em cima, há um conjunto de várias rochas, sendo que em duas há o apoio de escadas.


Na imagem abaixo, é possível perceber claramente porque a pedra tem o apelido de “porquinho”.


É um lugar alto prá cacete, e venta muito, como sói acontecer nesses lugares. A vista é trezentos e sessenta graus, o que permite visualizar o mar montanhoso da região.


De cima da pedra mais alta, é possível até mesmo vislumbrar a área urbana do município de São José dos Campos, o que só pode ser feito em dias claros, como o que tínhamos naquele momento.


Mas por que Pedra de São Francisco? Por causa da homenagem feita abaixo do que seria a “bunda” do porquinho. Sob sua sombra, uma estátua do santo e sua célebre oração (dizem que esta atribuição é apócrifa) “Senhor, fazei de mim instrumento de vossa paz”. Sim, não se trata de São Francisco Xavier, mas de São Francisco de Assis, o que achei estranho; nem tanto, dada a popularidade deste último.


Sempre há algo chamando a atenção que não está no mais óbvio. Notei que a cidade utiliza uma iconografia de macaquinhos por todas as partes. Há exemplos no pórtico de entrada do distrito...


... nas identificações e placas oficiais, como no portão da cachoeira e nos escritos explicativos...


... e nos nomes dos negócios locais, como o desta pousada.


Tudo está ligado, como pude pesquisar mais tarde, ao fato de que este é o lugar com maior número de mono-carvoeiros, ou muriquis, que temos na região da Mantiqueira. Extraí a imagem do site EcoAtlantica para dar uma ideia melhor de como é o macaquinho em questão. 



Quem vê assim, pode achar que os muriquis andam soltos pelas ruas. Nada disso. Estima-se que haja pouco mais de 100 deles nas matas locais. São arredios, apesar de pacíficos. É preciso horas e horas de paciência para conseguir visualizar algum deles, e eu não estava munido desse tipo de equipamento. Estão ameaçadíssimos de extinção.

Pois muito bem.  Não tenho como evitar, e nem quero, a abordagem da temática do racismo, uma vez mais. Isso porque, como se bem sabe, o termo macaco, aplicado ao ser humano, tem conotação ofensiva, no mais das vezes. É só pensar em termos de metáfora (vejam este texto): quando chamamos alguém de macaco, podemos alegar que o fulano em questão é ágil, capaz de subir em árvores com uma destreza somente possível a quem tem quatro mãos. Até aí, nada de mais. O problema acontece quando dirigimos o chamamento a uma pessoa negra. Neste caso, a intersecção não está em um aspecto positivo, mas ao macaco visto como ser inferior, como um humano malfeito, incapaz de aprimoramento, só de macaquices.

A coisa sempre foi assim. Era quase natural que a ofensa se desse. Basta que nós, que temos uma faixa de idade acima dos 30, lembremos qual era o tratamento que dávamos aos nossos colegas de escola ou vizinhos de cor. Ocorre que após muito tempo, a comunidade negra resolveu sair do anonimato e a vindicar o direito de não ser ofendida pela sua pele. Isso exacerbou certos ódios, principalmente em locais onde há proteção física aos revides (redes sociais) e onde o comportamento de manada é favorecido, como nos estádios de futebol. Seja porque aumentou em número ou evidência, a quantidade de casos de jogadores negros ofendidos com a pecha de macacos aumentou em muito, a ponto de acontecer um fato triste e curioso: no Campeonato Espanhol de 2014, torcedores do Villarreal arremessaram bananas no lateral brasileiro Daniel Alves, então jogador do Barcelona. A sua reação foi a melhor possível: descascou uma delas e a comeu, demonstrando estar acima da injúria, sem, no entanto, fingir não a perceber.

A cena correu o mundo, e colocou mais bananas na salada de frutas do debate. Até que ponto, nós, humanos que também somos primatas, podemos nos diferenciar dos macacos? Não seremos nós, negros e brancos, índios e orientais, também macacos?

Há duas respostas possíveis, pelo que consegui refletir. Do ponto de vista biológico, não há nem muito o que discutir. Para tanto, vou recomendar a paciente visualização deste vídeo, mas vou fazer um breve resumo para aqueles que não puderem acessá-lo. Para investigar um sem-fim de pressupostos, como as evidências evolutivas e a biogeografia, os biólogos criaram uma área denominada taxonomia, que se encarrega de classificar os seres vivos de acordo com suas semelhanças. Pensamos imediatamente em Carlos Lineu, que criou a nomenclatura baseada no latim, utilizada até hoje. Mas as modernas técnicas de classificação levaram à criação da cladística (do grego Kladós, ramo), que utilizam a ideia subjacente à evolução de que as espécies atuais descendem de ancestrais comuns, o que acontece sucessivas vezes. Desta forma se constitui sua principal ferramenta visual, que é o cladograma, assemelhado a uma árvore que vai derivando seus ramos:


Percebam que cada conjunto de espécies é ligada ao ramo anterior no exato ponto onde há um ancestral comum, ou seja, uma espécie a partir da qual outras duas tenham evoluído. Em suma, é um diagrama que busca reproduzir o que seria uma "árvore da vida". Ao observar o cladograma acima, percebemos que a espécie humana não é nada mais do que um mero ramo de uma longa cadeia filogenética, toda ela composta de macacos, macaquinhos e macacões, incluindo lêmures e tarsos. Não há dúvida – chamamo-nos primatas por um mero eufemismo. O que nós somos mesmo, biologicamente falando, é macacos. É possível aliviar a barra? Talvez. Diamantes e carvões são compostos da mesmíssima matéria – longas cadeias de carbono. O seu arranjo é que faz a diferença. Por assim dizer, acontece com o homem a mesma coisa. O homem é um macaco que deu certo, mas ainda assim um macaco.

Bem, este é o aspecto biológico, que nos iguala, mas há também o ponto que nos diverge, e aí vamos entrar nas sendas filosóficas, partindo dos pressupostos de Jean Jacques Rousseau, festejadíssimo filósofo suíço. A partir daqui, para o bem da concisão, chamarei “animais” todos os animais não humanos.

Partamos do próprio conceito biológico. A designação taxonômica do ser humano é homo sapiens sapiens, homem que sabe que sabe. O que podemos tirar daí? Que o homem é o único ser que tem capacidade de escapar do concreto, chegando a um fenômeno mental que denominamos abstração. Os animais em geral conseguem, em maior ou menor nível de sofisticação, realizar processos mentais, mas de forma a se reportar a objetos e fatos concretos. É bem verdade que alguns estudos recentes têm demonstrado que certas espécies desenvolvem algum tipo de comunicação, mas a distância com que operam no simbólico com relação ao ser humano é abissal. Por isso, a linguagem nos animais é no máximo rudimentar, e conceitos em que o abstrato é essencial, como na obra de arte, simplesmente inexiste. Essa incapacidade, além do mais, impede um cálculo projetivo, que avalia a situação atual para tomar decisões que implicarão para além do momento posterior imediato.

O que Rousseau nos coloca é que, dadas essas diferenças, os animais são livres NA natureza, mas escravizados PELA natureza. Isso significa que, apesar de possuir em si tudo o que necessita para sobreviver, o animal tem uma margem muito pequena para manobrar dentro da programação que a natureza lhe reserva. Por exemplo, uma vez acuado, não há muita opção: ou foge, ou enfrenta a ameaça.

Em condições meramente naturais, o homem enfrenta o mesmíssimo problema, mas possui a faculdade de intervir no fluxo reservado a ele pela natureza. Como é capaz de abstrair, o homem não tem a necessidade de se submeter ao acaso, ou, melhor dizendo, ao mecanismo cíclico natural. Caso se veja acossado pela fera, terá basicamente as mesmas opções de qualquer animal. Mas como pode dar vislumbre às possibilidades que o podem acometer ainda que distante delas, o homem pode simplesmente evitar a situação, construindo artefatos que o coloquem a salvo. Onde o animal é livre para viver, o homem é livre para escolher. Rousseau traz o exemplo da pomba, que morre de fome diante do alimento que a natureza não lhe reserva, e do homem que se entrega a excessos, porque dá asas às suas vontades. Em suma, a natureza move os animais e os homens, mas o último tem o arbítrio para aceitar ou resistir.

Mais ainda. Rousseau fala sobre perfectibilidade, que é a capacidade de aperfeiçoamento humano. Enquanto o animal limita-se a ser sempre o que a natureza faz dele, o homem tem a faculdade de aprender sempre. E é nisso que podemos fazer uma confluência com o nosso tema. Ainda que o homem possa aprender, tem a liberdade de escolha de resistir não só à natureza, mas ao aprendizado que recebe. Já há milhares de anos que os homens têm resistido à hipótese da igualdade entre todos, ainda que a Ciência e a Ética venham demonstrando cada vez mais o absurdo dessa linha de pensamento. A liberdade não pode ser absoluta, já que interfere na liberdade do outro, e devemos internalizar essa ideia pelo simples fato de não sermos entregues unicamente ao instinto. A nossa própria capacidade de raciocinar tem que nos dar a aceitação de que biologicamente somos macacos, como qualquer primata, e que filosoficamente somos únicos, os únicos capazes de se reconhecer como protagonistas no fluxo temporal e espacial ao lado da natureza. É esse o tipo de decisão que se toma ao criar a reserva para os muriquis, que, deixados à própria sorte, rumariam para uma extinção causada pelo próprio homem. Se o ser humano erra, há locais em que percebemos que ele tenta se corrigir. E por isso que gostei de São Francisco Xavier.

Recomendações:

A tese de Rousseau sobre a desigualdade dos homens é maravilhosa, e defendida pelo mesmo com ardor. A diferenciação que estabelece entre animais e seres humanos é acessória, já que o foco do debate consiste em ideias de fundo político e moral, mas é necessária para estabelecer premissas do que é o homem como ser único. Não é preciso concordar com ele, mas tentar compreendê-lo.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Ática, 1989.

Já havia recomendado o Canal do Pirula neste blog, por isso mesmo vou recomendar outro espaço, que, embora pouco atualizado ultimamente, contém boas informações sobre a humanidade vista sobre o prisma científico, inclusive com um dos vídeos versando sobre a mesma aporia tratada aqui.

Yuri Grecco. Canal Eu, Ciência. Disponível em: https://www.youtube.com/user/EuCiencia

O exemplo do cladograma foi extraído do seguinte endereço:

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Navegar é preciso viver - 1ª ancoragem: Monteiro Lobato (cidade) e as discussões sobre a obra de Monteiro Lobato (autor)

Olá!


Desta vez, a coisa estava beirando o insustentável. Não me refiro a irritabilidade, mau humor constante e outras casmurrices, mas a afecções físicas mesmo: uma enxaqueca insuportável, de dias, acompanhada de palpitações, além da já usual azia daqueles que abusam do café. Chego à conclusão camoniana de que é preciso navegar, é preciso viver, ou não é preciso nem navegar, nem viver... tudo junto e misturado. Antes da explosão, aproveito do fechar de olhos que a precede e peço o penico das férias por uma semana, tempo suficiente para cultuar uma prática dantes tão frequente e ora quase olvidada: a arte de dormir. É o que faço logo de estalo. Em contraposição a uma média diária de seis horas, ofereço a Morfeu o sacrifício do reconforto que se inicia às 21:00 de um dia para sair de seus domínios às 10:00 da manhã seguinte, sem nem ao menos as diabéticas interrupções para alívio, causando espanto na patroa. Devia fazer mais de 20 anos que eu não fazia uma puxada dessas.

Há quase dez anos que moro em um apartamento, o que me é experiência inédita. Sempre morei em casa, várias delas; pequenas que fossem, tinham quintais e jardins. Sinto falta disso, não só pela ausência de espaço vital, mas também pela imensa seletividade de horas de sol, restritíssimas no centro de São Paulo. Depois da maratona onírica, achei por bem ficar mais perto do astro-rei, e resolvi subir a Serra da Mantiqueira mais uma vez, o que fiz da mesma maneira incerta que relatei em outras oportunidades. Curiosamente, quanto mais se achega às proximidades do Sol, mais frio se faz. Sim, a Ciência explica isso, mas não deixa de existir um lado metafórico, algo como “quanto mais perto, mais longe”.

O importante é que tudo se inicie, e desta vez a coisa se deu pelo pequeno município de Monteiro Lobato, nome adotado para homenagear o famoso escritor, possuidor de terras na então cidade de Buquira, seu antigo nome.


Como é de se esperar, a cidade tem lojas de artesanato que se espalham por todos os lados, tematizadas pelos personagens do célebre Sítio do Picapau Amarelo. Logo na entrada da área urbana, já encontramos a loja da Gisele, que, apesar da grande quantidade de bonecos “globais”, faz questão de explicar que as ilustrações originais dos personagens são bastante diferentes.


Para melhor ilustrar, fui caçar em meus livros uma dessas imagens mais antigas, o que demonstra o fato: a boneca Emília, para dar um exemplo, tem cabelos curtos e escuros.


Mesmo lojas com comércio diversificado também procuram vender seus artesanatos e basear suas decorações em motivos “sitio-do-picapau-amarelenses”, como podemos ver na loja que tem lan house anexa...


... e nos anúncios dos cursos de artesanato. Cucas, sacis, marqueses de Rabicó, viscondes de Sabugosa e Emílias. Emílias e mais Emílias, de todas as formas e tamanhos.


Também o comércio central tem seus nomes afetados pelo consagrado literato. Percebam, no exemplo abaixo, que não só a decoração, mas os próprios nomes dos estabelecimentos utilizam referências à sua obra. Tem o mercadinho Visconde, a doceria Urupês, a pastelaria da Cuca e o restaurante Tia Nastácia, dentre outros. Cria clima, sem dúvida.


A praça central da cidade fica em um baixio, desvinculada da igrejona típica, e congrega o grosso do comércio miúdo local, incluindo os bons restaurantes de pratos típicos e o inevitável coreto.


Já que falei da igrejona, ela fica no alto de um outeiro, e é dedicada a Nossa Senhora do Bom Sucesso, padroeira local.


A religiosidade não fica circunscrita unicamente às igrejas. Ao lado do estádio municipal, bem próximo à entrada da cidade, temos um conjunto elaborado pelo santeiro Francisco Ferreira, que é composto por uma gruta que abriga uma fonte, um minúsculo apiário (não sei se proposital) e uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes encerrada em uma capelinha de vidro.


A gruta é cercada por uma pequena e bem arranjada pracinha, onde adejam muitas, mas muitas borboletas. Trouxe um exemplo para vocês observarem.


Uma particularidade do local são os Pereirões, enormes bonecos com o feitio daqueles tão famosos de Olinda. Uma vez por mês, é tradição que uma série deles saia pelas ruas para correr atrás das crianças, que se espalham por toda parte em desabalada carreira. No Carnaval, a farra é diária. Tivemos sorte de passar ao lado de um bar onde estava sendo feita a manutenção de alguns deles.


Por fim, o Sítio do Picapau Amarelo. A proprietária do imóvel garante ser o original, tendo em vista que aqui Monteiro Lobato tomou inspiração para escrever seus livros. Fica à beira da assim chamada Rodovia do Livro, que nasce na entrada urbana da cidade e desemboca em um lugarejo de Caçapava. A sua entrada é identificada pela célebre figura do Jeca Tatu, integrante do primeiro livro de contos do autor.


A proprietária é a dona Lúcia. Lúcia como era Lúcia o nome da menina do narizinho arrebitado, que empresta seu apelido à primeira obra infantil de Lobato. Seu avô adquiriu as terras do avô de Monteiro Lobato, segundo suas informações. Há uma caricatura sua em uma das paredes da cozinha.


É uma senhora que luta para desvencilhar o sítio da imagem global que mencionei logo atrás. Sua intenção não é recriar o ambiente das filmagens do seriado, mas restabelecer o lugar que circundava Monteiro Lobato e as referências que utilizou para inserir em sua obra. Assim como o sítio de Dona Benta, também aqui temos o casarão com alpendre na entrada...


... com vários cômodos, alguns grandes para acolher as reuniões de família ou acolher visitantes ilustres, lembrando se tratar de membros da casta de sangue azul tupiniquim...


... e com os cômodos menores, onde repousam os visitantes, e, no caso abaixo, é rememorado seu habitante mais célebre.


Há também o gigantesco quintal, equipado com o pomar, como sói acontecer nessas propriedades. Nas obras de Monteiro, a jabuticabeira era praticamente uma personagem. Hoje, há também um tanque de pedras para onde flui uma fonte, e para onde quase fui instado a fugir, perseguido que fui por uma caterva de gansos.


E há, em especial, o Reino das Águas Claras. Trata-se de um riacho situado nos fundos do sítio, onde são admitidos banhos. É aqui onde muitas das histórias do Sítio do Picapau Amarelo tiveram pano de fundo, começando desde a primeira obra: o lugar onde se encontravam os “peixinhos de olhos arregalados”, e onde a pequena Narizinho contraiu casamento com o seu príncipe Escamado.


Neste mesmo rio, uma cachoeirinha repleta de pedras faz encosto para molhar as costas. Realmente, uma breve nostalgia bate na consciência da gente, mas a patroa estava quase aos prantos, emocionada com o ambiente tão propalado na infância.


Dona Lúcia tem uma tarefa hercúlea. Há duas perguntas que não cessam: onde estão os personagens do Sítio? É aqui que foram feitas as filmagens? Dona Lúcia, sem muita paciência, explica que o propósito não é fazer um parque temático, mas relembrar o ambiente original da obra de Lobato, e que as filmagens foram feitas no Rio de Janeiro, uma boa centena de quilômetros mais para frente. Se há algum personagem legítimo, que existiu de fato, foi só Tia Nastácia, como pode ser visto nesta foto:


Ela conversou conosco por horas, e, no meio tempo, pudemos observar o fenômeno acontecendo: as pessoas chegam no sítio e ficam decepcionadas, buscando no imaginário os feitios globais, que não existem. O antídoto, para dona Lúcia, está na estante de livros que fica logo na entrada da casa – uma biblioteca onde praticamente toda obra lobatiana está representada. Se as pessoas parassem por um pouco de tempo e as lessem – à sombra de uma das inúmeras árvores ou esticado nas poltronas abundantes da casa – poderiam absorver as histórias por si mesmas, e não pelo olhar pré-fabricado de uma emissora de tevê. Por isso mesmo, ela inseriu no verso da placa de entrada do Sítio os seguintes dizeres:


É inevitável que este texto verse sobre o Monteiro Lobato que dá nome à cidade. Parei um pouco para pensar se já é possível contestar se o seu Zé Bento é ainda o mais conhecido escritor de histórias infantis do Brasil, mas creio que não. Se fizermos uma enquete do tipo “primeira marca que vem à cabeça”, deve ocorrer uma certa goleada a favor do patrono destas plagas e, embora os resistentes da cidade possam fazer beicinho, isso se deve em boa parte às produções da rede Globo.

A César o que é de César. Do ponto de vista estritamente técnico, tudo o que essa emissora faz é de primeira linha. E não é diferente com relação às suas versões do Sítio. Acompanhei um pouco mais de perto a versão da década de 70, por motivos óbvios, sendo que a mais recente, que revelou a atriz Isabelle Drummond para o mundo, conheci só de propagandas. Posso dizer que as histórias foram razoavelmente bem conduzidas e interpretadas, e, apesar da quantidade de enxertos, entendo que tratavam as crianças com respeito. Basta que se veja o naipe da galera que consta do elenco musical: Dori e Dorival Caymmi, Radamés Gnatalli, Ivan Lins, Chico Buarque, Gilberto Gil, Jards Macalé e tantos outros. A consequência natural foi a criação de derivados comerciais – roupas, discos, histórias em quadrinhos e bonecas, muitas e muitas bonecas. É neste ponto que uma contestação é válida, porque a ideia de Sítio do Picapau Amarelo se desvincula de Monteiro Lobato e vai parar nas mãos dos roteiristas e publicitários da poderosa vênus platinada. O simulacro de Sítio passa a ser o Sítio de verdade, o da Emília multicolorida; o Sítio originário, da boneca de trapo e do sabugo escavocado, fica revestido de anacronismo, parecendo ele mesmo a cópia malfeita, como já nos ensinava Baudrillard, como eu mesmo esmiucei há pouco tempo. Leiam que vocês vão entender direitinho.

Mas não é exatamente sobre isso que eu queria falar. Nos tempos em que meus filhos eram crianças, eu gostava de lhes contar histórias. Não se tratava daquela cena clássica da mãe lendo um livro à beira da cama para a criança dormir, mas de uma leitura interpretada, para ser ouvida e vista bem acordado. Então eu reunia a prole na cozinha de estar* e começava minha pantomima. Em um desses momentos, resolvi fazer uma série Monteiro Lobato. Fui à biblioteca do bairro e peguei o primeiro livro: Reinações de Narizinho. E assim foi se sucedendo. Não fiz a bibliografia completa, mas abrangi uma boa parte da mesma. E os rebentos se interessavam, riam, perguntavam o que significavam aquelas palavras estranhas, o que eram aqueles objetos desconhecidos, do tipo monjolo, gamela, cocho, tal e coisa. No final das contas, era bastante didático, as crianças se divertiam e eu também.

Só que, nos últimos tempos, essas leituras têm sido contestadas com certa veemência. O eixo: Monteiro Lobato seria racista. Vamos com calma nessa hora porque há muitas placas tectônicas em rota de colisão sob a paisagem.
Em primeiro lugar, é preciso ser justo. Monteiro Lobato não está nos altares da literatura nacional por suas posições políticas, mas por seu talento. Portanto, precisamos começar estabelecendo o que é uma posição legitimamente ética: só nos interessa a conduta pública de um ator social ou também é preciso compreender suas posições privadas? Tudo depende de quem o observa.

Vamos no exemplo mais clássico possível: o do semáforo vermelho. Em âmbito público, não importa se o faço por prazer em cumprir a lei, se o faço furioso, enfadado, impaciente, se eu xingo, se eu rosno. O que importa é que eu pare no semáforo fechado. A lei não existe para ser simpática a indivíduos, mas para regular o mecanismo social. Tanto que nenhum guarda lhe multará se você estiver com cara de bunda no semáforo, nem há radar que detecte palavrões; a multa só virá se você avançar no farol vermelho.

No alcance privado, a coisa muda, e muito. Suponha que você tenha filhos e que eles estejam no carro no momento de seus esgares e vociferações. Aqui, não estamos falando de atendimentos às limitações sociais, mas de formação de personalidades. Ao expor, ainda que no âmbito privado, nosso desagrado com os ditames da lei, temos a responsabilidade de incitar valores nos pequenos. Eles podem se tornar igualmente reclamões, ou, o que é pior, ultrapassar esse limite socialmente aceitável para transgredi-lo. É muito complicado fazê-lo deliberadamente.

O segundo ponto é o seguinte: como nos situamos diante de uma circunstância discriminatória? É um exercício de alteridade dos mais difíceis, porque por mais que tenhamos capacidade para nos colocar no lugar do outro, nunca teremos a exata dimensão do seu sofrimento. O racismo tem sido combatido já há um bom tempo, mas ele persiste, ainda que cada vez mais no mesmíssimo campo privado que mencionei no exemplo do semáforo. Aqueles que como eu são descendentes de europeus e outras etnias brancas temos dificuldade de sentir na pele o que é ser barrado na portaria de todos os prédios em que formos entrar, e só termos o acesso franqueado após perguntas e apresentações de documentos. Sabemos que cada vez mais temos que cadastrar nossos nomes e fotos, além de portar crachás provisórios, mas também sabemos muito bem que isso não acontece por nossa causa. Não fazemos parte da camada barrada, e aceitamos essas imposições única e exclusivamente porque desejamos que certas pessoas tenham a cancela fechada, por generalização.

Talvez seja possível (ainda que insuficiente) traçar analogias. Seja um ateu, por exemplo. As portas vão estar mais enferrujadas para abrir se você declarar essa opção. Ateus até hoje carregam a pecha de não ter limites morais, o que, em tese, só seria possível pela subordinação a uma divindade qualquer. Eles podem declarar o respeito à lei como sua base moral, ou aos costumes socialmente edificados, mas há aquele velho pé atrás. Pronto. Idem para os negros, para os gays, para quem quer que tenha uma vírgula a arrastar atrás de si.

Digo tudo isso porque, se por um lado podemos relativizar a questão racial em Monteiro Lobato, por outro temos que tentar compreender a quem essa mesma questão afeta. O escritor em questão é indefensavelmente racista no plano pessoal, como era escancaradamente racista toda a sociedade da época, recém saída do escravagismo oitocentista. Lobato mantinha estreita comunicação com eméritos eugenistas como Renato Kehl e Arthur Neiva, e era ele próprio membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, e a recente descoberta de uma correspondência na qual elogia a Ku-Klux-Klan arrepia os cabelos do mais leal dos defensores.

Tudo isso está na esfera privada de sua vida. Será que o mesmo transparece em sua obra? Há três estratos, dentre tantos que eu poderia trazer, que quero trazer para enriquecer o debate:

1. No livro Caçadas de Pedrinho, bem como em outros da série, a personagem Tia Nastácia é tratada, no mais das vezes pela boquirrota Emília, de “macaca de carvão” ou “negra beiçuda”. São tratamentos desrespeitosos, sem dúvida, mas prontamente condenados pelos outros habitantes do Sítio. Além disso, no mesmo livro, o episódio final nos mostra os membros todos montados a cavalo no rinoceronte Quindim, inclusive Tia Nastácia, que responde à estupefação de Dona Benta que “nego também é gente”.

2. O conto Negrinha tem sido bastante contestado pelo fato de mostrar um tratamento muito desumano à protagonista da história. Não compreendo, sinceramente, a crítica. A personagem, no decorrer do conto, toma consciência de sua humanidade, o que é negado à toda a comunidade negra no período em que foi escrito, de forma praticamente explícita.

3. Ao personagem Jeca Tatu, do conto Urupês (do livro homônimo) cabe uma crítica extremamente corrosiva. Caboclo, é tido como indolente e “parasita da terra”, desabituado ao trabalho e conformado com a condição de miserável, e fica nas entrelinhas a impressão de que estas características são fruto de sua miscigenação. Anos mais tarde, Monteiro Lobato revê sua posição, em especial por conta das constatações de que a debilidade do trabalhador rural se deve às más condições sanitárias em que vive. A partir daí passa a adotar uma posição de denúncia do descaso governamental com a questão do saneamento básico e assistência médica.

Percebam, portanto, como flutua o Lobato, e como em sua postura pública podemos imbricar uma série de paradoxos, de ambiguidades, de contradições, de antagonismos, de ambivalências, de rotas de colisão, de desencontros e, especialmente, de transitoriedade. Monteiro Lobato parece dar espelho a uma sociedade que se transforma e que ainda se choca com a mudança em sua estrutura. Devemos lembrar que a abolição tirou o negro da senzala (onde era cativo, mas tutelado) para colocá-lo na favela (onde é livre, mas desassistido), e que a imagem da elite não mudou um trisco sequer, como se fosse um milagre. Se até hoje discutimos sobre quotas, sobre apropriação cultural e outros que-tais, é sinal que a questão ainda hoje não está bem acomodada. Quando eu era jovem, para dar um exemplo, havia poucos atores negros no Brasil; galãs, nenhum. Hoje, encontramos principalmente atrizes negras protagonizando histórias, como Taís Araújo, Isabel Fillardis e Sheron Menezes, o que parece bom, mas que esconde outro viés, o sexista – são protagonistas porque não faz mais diferença a cor ou por que atendem a um padrão feminino de beleza? A porta que se abre tem a ver com a cor mesmo ou com a sensualidade? Por que, ao contrário das atrizes, os atores negros não são ainda os galãs das novelas? O mesmo se observa no padrão nipônico: Sabrina Sato, Giovanna Tominaga e Daniele Suzuki também atendem a um padrão de beleza que exclui os atores de origem asiática. Tem algum japinha ator do mainstream no Brasil? Eu não conheço, sério.

É nisso que eu retorno ao segundo ponto. Não tenho o parâmetro exato, eu, branco retinto, do que ofende os negros; por isso mesmo, defender-me-ei da tendência hodierna de considerar tudo o que é contestação como um mero mi-mi-mi. E com isso preciso colocar minha opinião à prova, porque haverá quem ache que estou defendendo o autor, portanto sou racista; haverá quem ache que eu estou contestando o autor, portanto sou censor; e haverá quem ache que estou sobre o muro, portanto sou isentão. Mas o fato é que entendo que, se escrita hoje, a obra teria pontos a serem guerreados, mas que não há como avaliá-la com a mínima coerência pegando-a como texto puro, sem colocá-la em contexto, o que seria a grande pedra de toque para ainda mantê-la válida. Em primeiro lugar, para demonstrar a diferença entre a vida pública e privada. Em segundo, para que se compreenda como os processos sociais não se movimentam de imediato. Em terceiro, para que entendamos como se deu a passagem do imediato pós-abolição aos dias de hoje. Em quarto, para que entendamos que a discriminação continua a se arrastar mesmo que não percebamos, e como ela se articula em diferentes mecanismos, como é a dicotomia racismo-sexismo que citei acima. E, finalmente, para que não se desperdicem obras de talento por conta de escorregadas do autor sob uma ótica extemporânea. É até mesmo didático nas mãos de um professor talentoso.

Recomendações de leitura:

Ler é a melhor maneira de identificar tudo aquilo que se fala sobre Monteiro Lobato. Vou recomendar três obras para formar esse arcabouço.

O primeiro é o mais citado, por estar disponível na rede pública de ensino.

LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Já no segundo, o interesse está na maneira com a qual a personagem Tia Nastácia é tratada de maneira diametralmente oposta aos despeitos que a boneca Emília comete.

--------. A Reforma da Natureza. São Paulo: Brasiliense, 1977.

Finalmente, foi lançada há poucos anos uma coletânea completa dos contos de Monteiro Lobato, incluindo os citados Urupês e Negrinha.

--------. Contos Completos. São Paulo: Azul, 2014.


* Explico o termo. A casa em que morávamos era pequena. Na verdade, seu projeto inicial era o de um sobrado, aí sim amplo, com três quartos e banheiro na parte de cima, enquanto o andar de baixo era equanimemente dividido entre sala e cozinha, devidamente assessorados por despensa e outro banheiro. Como o orçamento era medíocre, mandamos construir a parte de baixo e mudamos assim mesmo, arrastando uma dívida que levou anos a fio para ser paga, e que tem suas consequências psicológicas até hoje. Inicialmente, dividimos a sala com um tabique para fazer as vezes de quarto, que, com o crescimento das crianças, revelou-se insuficiente. O que restava ainda de sala virou outro quarto, com sofá e TV sendo acomodados em um quadrante da cozinha, que era italianamente grande, criando um ambiente à parte, mas integrado, dada a ausência de paredes. Deu certo, mas não adiantava tocar as crianças da cozinha para a sala – elas permaneciam na cozinha.