Olá!
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Vamos dar continuidade ao périplo. Após Monteiro Lobato e
São Francisco Xavier, eu e a patroa nomeamos a cidade de Santo Antonio do
Pinhal como porto seguro para nossas estadias. Como pegamos um hotel bastante
razoável a preço amigável, resolvemos fixar âncoras por lá mesmo, ao invés de
caçar pouso aqui e ali, como é consuetudinário fazermos. Óbvio que isso acabou
por nos levar a muitos endereços do retro citado município, e em diferentes
momentos, o que me levará a deixá-lo por último (mas não em último). Então
passarei para o próximo passo, a cidade de São Bento do Sapucaí, lugar onde se
habituou a construir capelas de mosaicos.
Em primeiro lugar, vamos dar a situação geral. Ao contrário
do que ocorreu nos quatro primeiros dias de viagem, o tempo deu uma fechada
geral, ficando nublado e garoento (existe essa palavra?). Para quem queria
visitar a célebre Pedra do Baú e suas vizinhas, trata-se de um brochante
acidente. Vejam a situação da dita cuja:
O mesmo se aplica ao Bauzinho e à Ana Chata, as outras duas
formações que compõe o conjunto, do ponto de vista da apícola em que nos
encontrávamos:
Estando tudo invisível e indistinguível, nada a fazer senão
buscar alternativas. Enquanto a precipitação ainda não estava no nível do
encharcante, fomos visitar a parte mais rural da cidade, onde podem ser
encontradas muitas trilhas e cachoeiras, dentre as quais a Cachoeira dos
Amores.
Ela é subsidiária ao Ribeirão do Paiol Grande, e fica em uma
propriedade particular, que cobra (pouco) pela entrada. É uma das mais
tranquilas de todas para levar crianças, tendo em vista sua pouca altura e
grande piscina natural, com várias pedras para servir de assento.
Quando a chuva apertou, o único rumo a ser seguido era o da
região urbana. Seguindo o costume desta região que se ligava no passado às
trilhas que levavam às Minas Gerais, há um padrão semelhante às localidades de
tropeiros, sendo que, especialmente aqui, há a influência das bandeiras que
partiam do universo então habitado, mais próximo ao litoral. Para rememorar
este fato, logo no pórtico de entrada de São Bento, encontra-se a estátua de um
bandeirante, figura polêmica sobre a qual debateremos oportunamente.
A área possuía todas as características de cidade fundada
entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a atividade agrícola suportada por mão
de obra escrava. Um dos bairros mais célebres é justamente o Quilombo, cujo
nome é autoexplicativo. No local onde se situava o dito cujo, foi montado nos
dias de hoje um complexo de venda de artesanatos. Na sua entrada, há a
reprodução de uma capelinha de pau-a-pique, com os seus simples paramentos.
O lugar é um galpão bastante amplo, de pé direito alto, e é
gerido por uma espécie de cooperativa de artesãos, que dividem o espaço em si,
mas que possui um caixa centralizado e partilha de gastos para o bem comum dos
cooperados.
A principal matéria-prima utilizada é a palha de bananeira,
que permeia flores, imagens de santos estilizadas, presépios, recobrem bandejas,
guarnecem cortinas, arquitetam cestos e ornamentam caixas de bijuterias, e
constituem o casco de inúmeros barquinhos votivos, daqueles que carregam
promessas para os santos.
Por falar em artes, no mesmo bairro temos mais duas
curiosidades interessantes: a igreja da Imaculada Conceição, em estilo
colonial, toda construída em adobe (os famosos tijolos de barro misturado com
palha, para dar mais leveza à estrutura), com o característico mastro do Divino
cravado logo ao lado ...
... e o atelier do artesão Ditinho Joana, provavelmente o
artista mais conhecido da municipalidade, com renome a nível nacional na
utilização de esculturas de madeira. Naquele dia nublado, infelizmente fechado.
Em regresso ao trecho central da cidade, chegamos às capelas
de mosaicos, de onde se originou o costume local de se produzir obras de arte
revestidas pelas coloridas partículas. A primeira delas fica à beira da
estradinha que leva ao pé da Pedra do Baú, dedicada à Santa Cruz.
Já a outra fica na porção mais central da cidade, em uma rua
do fundo de um quarteirão, colocada ao lado de um atelier, de autoria dos
mosaicistas Ângelo Milani e Claudia Villar.
Ambas não são compostas apenas de peças aleatórias. Os
mosaicistas aproveitaram a superstição popular de não jogar cacos de imagens de
santos no lixo, sob pena de sacrilégio, e agregaram ao revestimento toda sorte
de pedaços de estátuas. O resultado final é curioso e belo, apesar de um pouco
lúgubre.
E a moda pegou de tal forma que é possível ver mosaicos pela
cidade inteira. Como era de se esperar, eles estão nos ateliers...
... nas praças...
... nos estabelecimentos comerciais (como o bom restaurante
Sabor da Serra – não estou ganhando um tostão pela propaganda... rá, rá, rá)...
... também nas placas e faixas das ruas...
... e até mesmo nos marcos da via sacra que levam às
proximidades da igreja matriz, de forma a terem serventia nas solenidades e
procissões da Semana Santa.
Por falar nela, a igreja matriz é dedicada, como não poderia
deixar de ser, a São Bento, que fundou a Ordem dos Beneditinos, rigorosa com
seus claustros. A igreja em si possui as típicas estruturas em arcos
abobadados, o que confere ar magnânimo à obra.
Um dos seus mais conhecidos párocos foi o Monsenhor Pedro do
Vale Monteiro, cuja estatua fica situada na praça de mesmo nome. Dizem que foi
intensamente dedicado à educação das crianças, em especial as mais carentes.
Fomos embora após um sorvete de queijo. Mas resolvemos
voltar no dia seguinte, com a melhora das condições do clima. Novamente fomos amassar
barro com nosso pobre carrinho, já devidamente amarronzado. Ainda impossibilitados
de buscar as alturas das pedras, fomos caçar algo diferente: uma fábrica de
azeite situada no meio dos campos. Trata-se da Oliq (também não estou ganhando
nada aqui).
Fomos recebidos pelo Ademilson e pela Natália, que recebem
os visitantes com fatias de pão italiano e muitos goles de azeite puro,
divididos entre azeitonas de origem espanhola, portuguesa e italiana, além dos
óleos de abacate. Eles têm a paciência de demonstrar todas as etapas da
produção, que no mês de abril não está ativa. O motivo disto é a sazonalidade
do negócio. As azeitonas ficam prontas no fim do ano, e a colheita e prensagem
ocorrem por essa época.
Eu sempre tive curiosidade de ver as oliveiras. Há tantos
significados por trás delas e de seu produto principal que não resisti à
vontade de lidar com elas filosoficamente.
Esse é o tema, portanto. Tenho um livro chamado “A Filosofia
na Cozinha”, escrito pela professora italiana Francesca Rigotti, muito
interessante e fácil de ler. É daqueles que, abaixo de uma boa árvore e
acompanhado de um queijo com um fio de azeite, é possível ler de uma só
sentada. Um dos tópicos do livro diz respeito aos alimentos filosóficos. A
professora inclui quatro na lista: leite, ovos, pão e vinho. Vou adicionar mais
um – o tal do azeite.
Lipídeos. Isso é o que buscamos, basicamente, quando abrimos
uma garrafa de bom óleo. Em geral, não estamos aqui muito preocupados com sua
composição molecular, mas com aquilo que se pode extrair de seu imo. De fato,
ao pensar no azeite de oliva, o mais tradicional de todos, temos uma espécie de
correspondência metafísica com uma anima,
ou até mesmo de uma arché, uma essência que explica a sua existência. Quem
conhece um lagar certamente sabe do que estou falando.
Uma azeitona, vista individualmente e por fora, não faz
supor nada mais do que uma fruta pequena, pouco apetitosa se comparada a uma
ameixa ou uma manga. Só que a aparência modesta precisa ser descortinada para
que se chegue ao paroxismo do azeite. Vejam: a mesma ameixa ou a mesma manga citadas,
uma vez premidas, gerarão um sumo e basta – algo efêmero, tão passageiro quanto
uma estrela cadente. Já a azeitona passa
por um processo que se assemelha a um rito de passagem – da destruição de sua
forma perfeita no processo de moagem ao estertor da prensagem a frio que lhe
rouba a essência, um líquido extraído como se extrai uma verdade, com dor. Mas
deste parto o sumo resultante fará com que a mágica aconteça: os químicos dirão
se tratar de uma diferença de polaridades entre substâncias, mas os estetas
pensarão se tratar de uma espécie de epifania, como se o próprio produto do
esmagamento pudesse dizer: “Se queres minha substância autêntica, se queres
minha característica distintiva, se queres aquilo que me torna único, eu vos
darei sozinho”. E eis que óleo e água se isolam sem intervenção, como se a
legitimação do processo se desse por essa manifestação volitiva – da oliva,
claro. E da desnaturação da moagem e da prensagem, desprendida da água da
vulgaridade, nasce a essência mais pura, mais original, mais espontânea e
franca – o fruto da oliveira tem agora sua verdadeira natureza exposta – o
azeite.
Processo análogo ocorre com os demais óleos, embora de
outros seja necessário ainda o cozimento, o refino, a filtragem, mas o objetivo
é sempre o mesmo: retirar o cerne do vegetal. Só que o azeite de oliva é ainda
mais delicado. Sob pena de alterações na sua acidez e na oxidação, o processo
precisa ser, paradoxalmente, delicado e rápido. Não se pense em acrescer
aditivos para mantê-lo estável, isso não é coisa de azeite. No máximo, pondere
espécies diferentes de azeitona para se chegar ao melhor sabor – todas elas de
alma entregue.
Diferentemente da água que cai célere, o azeite escorre. Ele
reluz e brilha como se fosse um verniz pelo qual o alimento precisa passar para
se tornar ainda mais nobre. Enquanto Heráclito usava a água dos rios para
simbolizar o devir, Parmênides perdeu a excelente oportunidade para trazer ao
azeite o privilégio de representar a permanência. Qualquer um que precise lavar
a louça sabe bem do que estou falando. Um suco, um vinho ou outro líquido
privado de viscosidade causam um resíduo que basta uma boa enxaguada para
resolver. Vá fazer isso com algo impregnado de azeite. É preciso água quente e
saponificação adequada para que desprenda do objeto em que se instalou. O
azeite (e gorduras em geral) se agarra tenazmente em seus invólucros e
recipientes, e por isso mesmo é tão utilizado em medicina e ritos religiosos.
Peguemos o exemplo da liturgia cristã. Enquanto nos
batizados a água representa uma limpeza dos pecados, do azeite se espera
representar a graça divina que para sempre se funde ao fiel. É também fármaco
que aquece os ungidos em seu leito de morte. Aliás, os unguentos e pomadas
aproveitam justamente essa característica de adesão para que sejam mantidas no
corpo do enfermo as mezinhas que lhe darão efeito curativo.
Além disso, o azeite doa seu pendor lubrificante para o
quotidiano dos homens. Espalhado pelo corpo é proteção e estratégia de luta. Os
antigos gladiadores se besuntavam de azeite para dificultar o agarre pelos seus
adversários. Se o azeite quase se funde amorosamente com o que se toca, também o
faz com o guerreiro que lhe busca o socorro.
E a noite... O azeite é o combustível das lamparinas que
nossas avós e todas as enfermeiras buscavam para cuidar de seus entes. Não é
por ventura a lamparina acesa o símbolo do cuidado solidário? Que vale a
lamparina sem seu azeite para queimar? A candeia nada é sem seu azeite; já o
azeite permanece o que é. O azeite, aqui mais uma vez, é símbolo de persistência
e da paciência, da chama que queima lentamente, consumida aos poucos por um
pavio que parece inerte, como se fosse seu dever não ser notada. Uma espécie de
desafio ao próprio tempo.
O azeite é tudo isso e muito mais que possamos pensar. Ele
se agarra à nossa mente da mesma forma que à nossa pele. Lembro ainda hoje dos
dias em que não havia muita coisa para entreter o estômago, como hoje em dia podemos
encontrar em nutellas e cream-cheeses. A copa pouco cheia não chegava a exaltar
o ânimo, mas uma bem imiscuída garrafa de bom azeite parecia reluzir quando
encontrada. Eram poucas as coisas de qualidade máxima adquiridas pela minha
operária família. O arroz precisava de escolha, a carne nem sempre servia para
bife, os ovos dependiam do bel-prazer das galinhas da redondeza; economizava-se
em tudo isso para que se pudesse ter o melhor azeite. Um pouco de sal, um fio
de azeite e um pão honesto: era isso o necessário para aplacar a ira estomacal
com um prazer um tanto raro de encontrar.
No final das contas, fiz mais poesia do que filosofia, mas
quem disse que essa última precisa ser desprovida de emoção e boas lembranças?
É isso que espero de meu azeite e da minha visita a São Bento do Sapucaí, a
quem espero rememorar nos dias em que estiver mais contando histórias do que
propriamente as vivendo.
Recomendação de leitura:
Como mencionei acima, a professora Francesca teve uma boa
ideia ao reunir os princípios filosóficos que podemos encontrar ao redor de um
fogão e à beira de uma mesa. Segue a referência.
RIGOTTI, Francesca. A
Filosofia na Cozinha. São Paulo: Ideias e Letras, 2016.