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terça-feira, 28 de novembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 8º sopro: Jesuânia, sotaques e a fala como originadora da língua

Olá!


Viagens têm percalços, todos sabemos bem. Alguns são bastante comuns no dia-a-dia dos diabéticos. Tomamos litros e mais litros de água, no desespero de nosso organismo em diluir a montanha de glicose que nos tritura por dentro, o que faz com que nossas bexigas estejam frequentemente repletas. Tudo bem, aliviar-se atrás de um matagal não chega a ser exatamente um problema. Mas, naquele momento, havia uma coincidência a dar complexidade à causa. A patroa, tendo em vista a empolgação nas fontes de São Lourenço, encontrava-se aperreada, e, não tendo a facilidade anatômica para aproveitar montículos e muretas, criou a demanda do pit stop. É assim que fomos instados a desviar a rota e conhecer a pequena Jesuânia.


Outro fator favoreceu a parada. Um estranho congestionamento, fichinha para quem vem da Pauliceia Desvairada, mas inesperado na ligação a Lambari, decorrente de um acidente. O escorregão inusitado de uma motocicleta fez com que seu infeliz condutor danificasse algum osso secundário, trazendo a necessidade de uma ambulância, e o estreitamento somado à excessiva curiosidade deram belo plus ao tempo necessário à viagem. Sendo assim, há sinais dos céus suficientes para adentrar a bucólica localidade.


Em uma passagem de fim de tarde, era normal que não desse tempo de caçar trilhas e cachoeiras, que eu sei existir, e procuramos a igreja avistável ao longe, para conseguir a caridade sanitária tão almejada naquele momento inglório, no que fomos atendidos.


É a bela e imensa igreja do Bom Jesus, que é ladeada, em seu adro, por uma gruta representando a aparição de Nossa Senhora à menina Bernadette Soubirous, na cidade francesa de Lourdes. Diz-se que a pequenina recebeu 18 visões da santa na gruta de Massabielle, onde a santa se afirmava como a Imaculada Conceição. Essa é uma das mais célebres versões de Santa Maria.


Além dessa presença relativamente comum nessas terras de muitas águas (a gruta de Massabielle tem uma fonte a quem se atribui dons milagrosos), outros elementos de cunho religioso se destacam. Eu já tive a oportunidade de mencionar em outros textos desta sequência a presença constante de dois beatos nas paróquias da região. Um deles é o Padre Victor, de Campanha...


... e a outra é a Nhá Chica, da cidade de Baependi. Falarei melhor sobre ambos posteriormente, mas é interessante a devoção que auferem, talvez maior até que a dos próprios padroeiros dos municípios. Uma relação de proximidade? Com certeza. Mas vamos deixar para o momento certo.


Na frente da igreja, a praça íngreme e bonita, com traços característicos do pequeno agrupamento urbano que lhe deu origem, e que hoje é sede de um lugarejo eminentemente rural.


Bom Jesus de Lambari, Bias Fortes e Lambarizinho. O marco abaixo, localizado no sopé da praça central, relembra o momento em que essa sucessão de nomes deu lugar à sua definição como município, em 1948, já com o nome atual (uma alusão ao nome de sua paróquia, o que acaba por significar alguma coisa como “terras de Jesus”).


A praça central da cidade, bastante íngreme, não tem aqueles bons elementos históricos, do passado mais distante, tempos da taipa de pilão e do pau-a-pique. Vimos um grande casarão de visual eclético, com telhados diversos, à moda dos minaretes de mesquita. Ao redor, sobradinhos e casinhas térreas.


No centro de São Paulo, temos ocasionais visitas de pássaros que não sejam pardais e pombos. Em Jesuânia, há uma espécie em cada poste, como esse casal de papagaios que fotografei pelo celular, em uma rua que despinguela do morro da igreja para a estrada principal.


Estando por aqui, achamos por bem dar uma volta pela cidade, para conhecê-la um pouco melhor. É um lugar muito, muito, muito pacato, e mesmo o comércio local é pouco. Encontramos uma padariazinha que emanava um cheiro muito bom, e resolvemos tentar encontrar lá uma atração turística gastronômica. Na verdade, acho que nós é que fomos encontrados...


Fomos atendidos por uma mocinha bem jovem, que nos ofereceu a especialidade da casa: pão de queijo recheado de linguiça. Seu preparo é semelhante ao que fazem os padeiros do Bixiga, com a diferença que a cobertura não é feita com pão italiano, mas com o clássico local, um pouco mais denso que o normal, para sustentar o embutido. Acompanhado de molho, é realmente muito bom.

Mas a mocinha é a verdadeira atração. Em cinco minutos de papo, ela se provou um autêntico dicionário de mineirês. Não fosse o convívio com minha sogra, paranaense de infância nas Alterosas, provavelmente eu ficaria vendido na imensa maioria dos termos utilizados. Não vou me lembrar com exatidão, mas ela juntava coisas do seguinte naipe na mesma frase, ao se referir à guloseima:

- Esse trem é bom prá mais de metro. Um cadinho e cê vai amarrar no toco e encher a matula até empanzinar. Uai! Vai comer um só?! Tem base isso?!

Tudo isso naquele cantar típico dessas plagas, com a supressão abundante de sílabas e a puxada costumeira dos erres. Uma tradução possível seria:

- É um petisco muito gostoso. Um pouquinho é suficiente para você ficar aqui e querer levar para casa, e comer até se sentir cheio. Ora, vai comer só um?! Como é possível?!

É, não posso me dar a exageros, isso é fato. E a merenda era tão saborosa quanto calórica, fazer o quê? O negócio é ter um pouco de continência e parcimônia – usar pouco para poder usar sempre, ou até onde der, ou até a porra-louquice mandar tudo para o inferno.

Trezentos quilômetros nem são tanta distância assim, não é mesmo? E quanta diferença linguística me separa daquela menina, que mora comigo no meu país... Mas me dou conta da bobagem ao lembrar que moro em São Paulo, uma cidade que é, ela mesma, dividida por diferentes sotaques. Há um falar nos Jardins, de acento feminino e adição de vogais (“não tô einteindeindo...”), há a pronúncia dura da periferia, tão típica das declamações dos rappers, e há o mooquense, mais cantado e gritado que uma ópera, com tônica italiana, além de outras variantes. O idioma de um país só é algo monolítico no sonho dos gramáticos.

Uma das preocupações contemporâneas da Filosofia diz respeito exatamente à questão da linguagem, matéria-prima da Filosofia Analítica, que tenta compreender o mundo através da análise das proposições. Como eu esmiucei neste texto, os analíticos imaginavam ser a linguagem o mapeamento perfeito de toda a realidade, e, por isso, seria suficiente voltar o foco para ela, algo muito mais simples de se fazer.

Uma das principais teorias linguísticas foi elaborada por Ferdinand de Saussure, que incluía a articulação entre significantes e significados para elaborar signos, as unidades de expressão linguística, devidamente dichavada nesta postagem. No entanto, como sói acontecer, há algumas dificuldades, ainda que reconheçamos sua robustez. A principal delas diz respeito à dicotomia língua-fala (langue-parole, em francês). Saussure reconhecia a língua como um fato eminentemente social, mas entendia que o mais significativo em seus estudos era a estrutura, sua parte formal, e esta residia na língua. A fala era algo excessivamente assistemático, dada às intempéries de quem a profere. E é aí que está o chamado paradoxo de Saussure: a linguagem precisa ser analisada pela sua parte bem estruturada, a langue. No entanto, o uso social dos idiomas se dá pelas pessoas, que usam a parole. Como é possível resolver essa ambivalência?

Uma das opções de resposta se dá pela sociolinguística de William Labov, filósofo norte-americano que estudou a língua como um fato social sujeito a transformações, a chamada variação linguística. Sua escola ficou conhecida como sociolinguística variacionista.

É assim. A língua ganha expressão por meio de falantes, e falantes vivem em sociedade. Como bem sabemos, as comunidades formam peculiaridades, e não há como excluir a fala desse processo. Com essa ideia na cabeça, Labov promoveu uma pesquisa junto a comunidades negras, que eram consideradas grandes desvirtuadoras da linguagem. Houve o cuidado de se colocar um interlocutor comunitário para realizar os levantamentos necessários, para que não se desse o impacto da presença de um pesquisador estranho ao meio, o que certamente poderia refrear o nível de relacionamentos. O resultado final indicou que, apesar de um linguajar endêmico, com elementos léxicos próprios, a estrutura essencial da língua originária era reproduzida. Isso significa que, uma vez detectada a estrutura linguística de uma sociedade específica, ela é passível de análise da mesma forma que se dá com a língua de origem, e o paradoxo de Saussure é resolvido. Ou seja, é nos falantes que repousa a língua, e não o contrário. Suas maneiras de falar não se mudam de forma abrupta; detecte-se o esqueleto de sua fala, e a estrutura da linguagem estará lá, plácido e fagueiro.

Pensemos agora em nosso continental país. Há alguma chance de um país tão vasto, com tantas etnias e com tantas influências externas guardar alguma porção de homogeneidade? É óbvio que, em um país multicultural, a linguagem seja igualmente heterogênea. Mais que isso: é necessário que seja, sob a pena de não cumprir plenamente sua função de comunicar. A variação linguística não existe por desleixo em relação à dita norma culta, mas porque é elemento de identidade de um grupo. Uma comunidade que se expressasse puramente em “cultês” corresponderia a um grupo com a cultura sufocada, ditada por regras escritas e sem nenhum nível de espontaneidade. E sabemos que isso não existe, até mesmo por resistência daqueles que não querem receber intromissão tão pessoal em seu jeito de ser.

Em termos práticos, sabemos que é muito difícil, mas o ideal é que fôssemos “bilíngues”, no sentido de dominar o padrão da língua sem perder a fluidez da fala. Não quero criar uma hierarquização, mas é importante a existência de uma norma padrão e que a dominemos, sem perder nossa fala natural, que nos permita a comunicação comunitária eficiente. E, para isso, é preciso ter em mente duas coisas: a norma padrão é originada do falar (e não o contrário) e a parole é muito mais dinâmica do que a langue. Nesta última, não há o menor sentido em se dizer que há um jeito certo ou errado de se falar.

Vejam a própria formação da língua portuguesa. Ao passear pelo interior, é comum percebermos a troca do L pelo R nos encontros consonantais. Assim, ouvimos Creuza, atreta e bicicreta. Mas essa é uma tendência da última flor do Lácio, facilmente detectável ao compará-la com outros idiomas oriundos do latim. Vejam os quadros abaixo e percebam como o português (assim como o galego, seu aparentado) tende a trocar o L latino pelo R, assim como o italiano e o corso fazem o mesmo com o I, enquanto do francês, o espanhol, o catalão e o romanche tendem a mantê-lo. O romeno, de acento fortemente eslavo, e o maltês, com grandes influências árabes, apesar de serem consideradas línguas latinas, escapam do padrão.

Este é o diagrama referente à palavra “prato”. Notem que eu procurei colocar as palavras em sua raiz latina e algumas variações derivadas:


Procurei agrupar em “parzinhos” de proximidade linguística, o que é completamente arbitrário de minha parte, e que só tem fins didáticos. O português e o galego se tocam no norte de Portugal e no noroeste da Espanha, fazendo uma mescla entre ambos. O espanhol e o catalão, da região nordeste da Espanha e sudoeste da França, é de uma composição mais complexa, mas ainda assim com afinidades. O francês e o romanche, que é falado em parte da Suíça, tem muitos pontos de contato, sendo que, neste último, há ainda bastante influência do alemão e do italiano. E temos o italiano e o corso, da ilha da Córsega, que tem muita proximidade também com o francês. Este é o diagrama da palavra “praça”.


Percebam que o romeno, fortemente influenciado pelas línguas eslavas, como o húngaro, o búlgaro e o russo, e o maltês, carregado de línguas árabes, são as variações mais divergentes, e, além disso, não estão ligadas entre si, como as outras mencionadas retro. Esse agora é o quadro que preparei para a palavra “igreja”.


Isso ajuda a explicar que o eixo das transformações é movido por peculiaridades que se travestem de erro, mas que, na verdade, são forças originadoras da própria língua. Todos esses idiomas hoje consagrados um belo dia foram corruptelas do latim, sua língua originária, e deram princípio a novas normas padrão, que serão transformadas mais uma vez, em um processo infinito de criação e ressignificação. Mais ainda: essas transformações se dão em vários ramos, o que ocasiona um paralelismo em seu desenvolvimento.

E mais uma coisa. A não ser nos casos de preconceito linguístico, quando tentamos imputar a dominância de uma variação em detrimento das outras, é uma delícia comparar sotaques, que no Brasil são inúmeros. Os mineiros engolem letras, os cariocas sibilam os esses, os paulistas carregam nos erres, que os baianos aspiram, os gaúchos mais cantam do que falam, os pernambucanos não palatalizam os tês e dês, os cearenses abrem as vogais, os paraenses guardam proximidade à norma culta, os manezinhos correm tanto na fala que parecem que vão tirar o pai da forca com a boca, os paranaenses repuxam nos enes, e tantos outros; sem contar as palavras próprias de cada região, gerando um monte de confusão nos visitantes. Esses sotaques são candidatos a um dia se tornar dialetos, com variações mais aprofundadas, que extravasam a mera prosódia. Já não serão diversas apenas na melodia e na velocidade da fala, mas também na ortografia e no vocabulário sem sinonímia nos padrões linguísticos, até chegar nas regras gramaticais e virar, por si só, um idioma autônomo. É assim que a coisa funciona.

No fundo, o que importa de verdade é que nós consigamos nos comunicar, e que seja de maneira adequada a cada circunstância. Não é preciso usar “vossas excelências” para pedir um pão de queijo em uma cidadezinha do interior de Minas, e é, na verdade, mais legal “empanzinar o bucho” do que “locupletar o aparelho gástrico”, porque um é dito de forma a criar uma empatia na comunicação, enquanto o outro é mera formalidade, que afasta as pessoas, ainda que signifiquem a mesma coisa.

Recomendação de leitura:

William Labov dá uma das abordagens possíveis à questão da linguagem como elemento social, o variacionismo, que foca a variação, óbvio. Outra abordagem é a interacionista, mas deixemos para outro momento.

LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo, Parábola, 2008.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar – 7º sopro: Carmo de Minas, o café e a cultura na encruzilhada da apropriação e assimilação

Olá!

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É inegável. Já na ida de Lambari a São Lourenço a estrada rescendia àquele aroma peculiar e inebriante. Café! Apesar de não estar exatamente na região onde a cafeicultura é mais presente no estado de Minas Gerais, sem dúvida é aqui a cidade que melhor se identifica com a rubiácea pelas paragens que minha atual viagem pretende percorrer. Falo de Carmo de Minas.


O nome da cidade tem tudo a ver com Nossa Senhora do Carmo, uma das personificações da mãe de Jesus. O Carmo, ou Carmelo, é uma montanha de Israel onde, segundo a Bíblia, o profeta Elias guerreou dialeticamente com os sacerdotes do deus Baal. É lá que se originou e estabeleceu a ordem dos Carmelitas, focada em oração e penitência. Na praça principal do lugar está fincado o templo dedicado a, obviamente, Nossa Senhora do Carmo, de onde se originou o nome local.


Esta mesma ordem é a proprietária do prédio em que habito, para citar en passant. O interior da igreja é caracterizado pela existência de estátuas em tamanho natural dos doze apóstolos, com um furo, na minha humilde e pouco teológica opinião. Como se sabe, um dos doze se matou – Judas Iscariotes. Fê-lo em arrependimento à sua caguetagem, mas sua vaga não ficou vazia. Em substituição, os apóstolos remanescentes escolheram Mathias, por sorteio, como se pode ler no livro dos Atos dos Apóstolos. Era de se supor que fosse esse o gajo a ocupar um dos nichos, mas não. Quem ocupa o pedestal é São Paulo, que nem chegou a conhecer Jesus pessoalmente. Bem, passons. O pároco devia ter lá os seus motivos.


Do lado de fora, ainda no campo de ação da igreja, temos uma homenagem ao padre açoriano Joaquim Gonçalves Cardoso, que foi o mais eminente pároco daquela freguesia, quando ainda se denominava Silvestre Ferraz.


Espalhadas pela praça, vemos a presença da obra de outro ilustre morador local, o escultor Francisco da Silva Reis, o Chico Cascateiro, cuja principal característica era o uso de cimento e outras massas para simular objetos naturais, especialmente imitando madeira. Um deles é o chafariz.


Tentei descobrir o porquê do cognome, mas não consegui nada, a não ser saber que o gajo era português. Há um livre exercício de hipóteses – pode ser que ele gostasse de tomar banho de cascata, gostasse de replicar cascatas em suas obras, não gostasse de contar histórias fiáveis ou, o que seria mais romântico, conseguisse enganar os apreciadores com a perfeição de suas obras, fazendo-os cair em uma cascata do bem. Sei lá.


O pedaço onde ficam as casas de café fica bem em um dos extremos do perímetro urbano, no cimo de uma colina. Como em outros casos deste périplo, a cidadezinha um dia fez parte da Estrada Real, que procurei descrever com detalhes em meu texto sobre Pouso Alto. Deem uma lida lá para pegar bem o contexto.


As casas de café da região procuram disputar entre si a primazia do melhor café. Calma, crianças, não briguem. Todos são bons, portanto, procurem apanhar mais fregueses no preço, porque vocês estão muito caros. Cada um tem lá o seu atrativo. O Centro do Café tem uma boa variedade de objetos correlatos, como bules, açucareiros e placas motivacionais para um bom cafezinho.


O café Unique investe nas pesquisas de variedades exóticas e procura, como o nome diz, um sabor único (contrassenso da minha parte, há mais de uma variedade à venda). Essas barriquinhas lembram minha infância, quando o governo tentava nos incutir que o café era um autêntico símbolo da glória brasileira. Era uma balela, mas o distintivo é bonito mesmo.


Por fim, o Café Carmo de Minas transformou sua loja em um pequeno museu, com uma série de artigos de outrora e que remetem aos métodos utilizados para produzir o negro e bendito pó, como essa torreifadeira tripla...


... e essa moendinha, protótipo da primeira fase do caffè espresso. Tudo bem, faltam os quinze bars de pressão, mas todo café começa pela moagem, não?


Não. O café começa pelo plantio. Os cafeicultores locais têm o cuidado de tentar tornar Carmo de Minas um centro de excelência na produção de cafés finos, e, pelo que pudemos conversar com o pessoal do comércio, os resultados têm sido animadores. Tem tudo para dar certo. Nada é mais brasileiro que um bom cafezinho.


Brasileiríssimo, aliás. Foi do café que obtivemos um dos mais longos ciclos de geração de riqueza em nosso país. E mesmo hoje, com a diversificação da produção mundial, ainda somos referência em matéria de qualidade.

Brasileiríssimo, será? Etiopíssimo não seria mais verdadeiro? Afinal de contas, quando falamos de Etiópia só pensamos nos concorrentes dos quenianos na Corrida de São Silvestre ou na conjugação fome-guerra que sempre grassou e desgraçou o país, sem se dar conta que é de lá que surgiram as primeiras sementes que possibilitam o saboroso líquido. Foi introduzido no Brasil muito tempo depois de descoberto pelos europeus, por obra do militar Francisco Melo Palheta, e se afeiçoou tanto pelo clima e pela terra desta casa que aqui ganhou seu lar mais célebre. É certo chamá-lo de brasileiríssimo?

Estou levantando essa lebre por causa das recentes discussões sobre apropriação cultural, um conceito que chegou a acirrar susceptibilidades. As correntes são duas: a uma, parece que o uso de elementos de uma determinada etnia por outra é a consequência natural do convívio; a outra, há a impressão de tomada indevida, de descaracterização e de atribuir para si o que é de outrem. Quem tem razão, se é que alguém tem?

É preciso ser um pouco mais básico e definir primeira e minimamente o que é cultura. E já defino que se trata do conjunto de ações e pensamentos que caracteriza o modus vivendi e a maneira de encarar o mundo de um determinado grupo humano. Esses grupos podem ser variados em seus critérios, mas o que nos é significativo aqui é o aspecto étnico, ou seja, de pessoas que, de alguma forma, dividam características biológicas e/ou sociais.

A cultura, para o que nos cabe aqui, precisa ser estudada no convívio com os grupos étnicos, e ninguém foi tão pioneiro nisso quanto Claude Lévi-Strauss, antropólogo belga de quem já tratei neste texto, mas que, neste momento, devo aprofundar na análise.

Utilizando a metodologia criada pelo polonês Bronislaw Malinowski, a etnografia, que consiste no contato intersubjetivo entre ambos os lados do estudo (em outras palavras, morando junto aos índios), Lévi-Strauss fez as malas e foi morar anos a fio com diferentes tribos indígenas no Brasil. Essa abordagem permitiu que Strauss compreendesse coisas que não seriam possíveis sem o fruto do longo convívio. Em primeiro lugar, é preciso obter confiança daqueles para os quais você é um estranho; e depois, é preciso ter em mente que as coisas não se transmitem de estalo. É preciso tempo para que elas aconteçam, e presença para que sejam constatadas. Pode ser muito interessante que, por exemplo, um velho cacique lhe relate como se dá a época de uma determinada caça, e é realmente um tipo de informação que precisa ser considerado. Mas há problemas. Um deles: a visão do cacique é particular. Como será a visão dos outros? Dos jovens, dos velhos, das mulheres, dos subalternos, das tribos próximas. Outro: conta-se a prática da caça. Ok. Mas e se a próxima temporada esperada não vier? Apelarão para uma divindade? Mudarão o alimento do período? Buscá-la-ão em outros lugares? Não farão nada? Só o convívio suprime, e em parte, o imponderável. E a reação ao imponderável é o que melhor dá ideia aos limites e valores de determinada cultura.

Pois bem. Depois de anos de convívio com inúmeras culturas diferentes e de diversas localidades, Lévi-Strauss chegou à conclusão surpreendente e basilar para sua escola antropológica. Apesar das diferenças abissais existentes entre as culturas dos diferentes povos, elas possuem todas uma única estrutura. Isso significa que, por trás de um sistema cultural, há os mesmos eixos que existem em outros, ainda que, sob o olhar direto, pareçam tremendamente distintos. Por exemplo: toda cultura tem a intuição de uma anterioridade que chega a um determinado limite, quando não há mais como voltar para trás e um elemento externo interfere no cosmos e a origina – são os mitos de criação. A maneira como eles são descritos são as mais diferentes possíveis, mas eles (quase) sempre estão presentes. Pode ser um ovo primordial, uma deidade, uma energia cósmica ou qualquer outra intervenção, não é isso o que importa, mas sim o fato de ser uma presença invariável. Idem com o culto aos mortos. Não há etnia no mundo que vilipendie os corpos dos entes queridos. A forma com que isso é feito pode variar: enterro, cremação, lançamento ao mar, enclausuramento em um mausoléu, com ou sem ritos preparatórios. Mas, como elemento constitutivo, o respeito aos seus mortos está presente em todas as culturas.

Inúmeros outros fatores estão presentes em todas as comunidades que constituem culturas diferentes entre si – todas têm a noção de espaço vital, de transmissão de saberes, de organização do poder, de estética e arte, de acordo mútuo e punição, entre outros. Enfim, as sociedades e suas culturas possuem um âmago comum, o que varia é a casca que o reveste. E, sendo assim, não dá para se falar em superioridade de uma em relação a outra, já que são diferentes maneiras de se repetir uma mesma estrutura, que, se coexistem, é porque cada uma delas se mostrou adequada para fazer funcionar um organismo social.

A noção de superioridade cultural padece do mesmo erro que se comete ao investigar a evolução das espécies. Não existe espécie mais ou menos evoluída. Se uma espécie existe hoje, ela tem o mesmo nível de evolução de qualquer outra. Seus indivíduos foram naturalmente selecionados até tornar o que o conjunto como um todo é. Se ela existe, é porque é evoluída. Não há ápice na evolução. Idem com as culturas. O fato de existirem culturas ágrafas, por exemplo, não indica que sejam culturas inferiores; indica apenas que há grupamentos que prescindem de registro e/ou contagem, sendo suficiente aquilo que se expressa oralmente. Vivem bem assim e pronto.

Pois bem. Se não há hierarquia entre culturas, como podemos estabelecer o que se apropria e o que se assimila? Poderíamos pensar no que significa apropriação e, falando diretamente, é tomar para si o que não é seu, sem a concordância do outro. Mais diretamente ainda, é roubo. Assim, se dissermos que o café é coisa brasileira sem reconhecer sua anterioridade, podemos falar em apropriação. Agora, se tivermos a lembrança de observar sua história, a maneira como se imiscuiu em nossos bules, e como passou a fazer parte de nosso quotidiano e a ser gerador de riqueza, temos a assimilação.  Podemos buscar muitos outros exemplos. Vejam o futebol. Diz-se com frequência que o Brasil é o país do futebol (do que já discordei aqui), e, de fato, 90% das discussões de boteco têm esse pano de fundo. Mas ele não chegou aqui por intervenção divina, e sim dos ingleses, que começaram a praticá-lo aqui do lado de casa, na Várzea do Carmo (Carmo também). O Corinthians se autointitula “o clube mais brasileiro”. Mas com esse nome em inglês, e com essa referência a um povo grego? E o Santos Futebol Clube? São Paulo Futebol Clube? Fluminense Futebol Clube? Embora aportuguesado, o termo “Futebol Clube” é um anglicismo. Na nossa estrutura linguística, o correto seria “Clube de Futebol”, mas a origem étnica do termo justifica a construção. E isso não tira de nós a predileção pelo esporte.

Tudo isso serve para demonstrar como é complexa a questão da transformação cultural. Há culturas dominantes que se impõe à cultura subalterna, que lhe sugam elementos, que lhes assimilam ou que se imbricam; há possibilidade, com esses movimentos, de acentuação ou de atenuação de guetos, tudo é possível e nem tudo é desejável. Mas aqui no Brasil, os horizontes são tremendamente obnubilados. O brasileiro, como se bem sabe, é uma miscelânea de povos, e é de se esperar que a sua cultura também o seja. Falar em apropriação, a não ser quando se vilipendia claramente a origem de determinado objeto cultural, envolve tantos fatores que eu me declaro incompetente para analisar com propriedade. Mas sigo pelo caminho pacífico do caldeirão cultural, onde cada pitada influencia o sabor final. O café é brasileiro, porque constitui parte do jeito de ser dos habitantes daqui. E não precisamos negar sua origem etíope e sua transição por outras terras para inseri-lo, também nós, em nosso ethos. Espero que essa seja a melhor forma de acabarmos com os nossos preconceitos.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo é a reunião de uma série de artigos que buscam uma renovação do método antropológico, para que as estruturas façam parte do escopo primordial de qualquer estudo que foque a cultura humana:

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 6º sopro: São Lourenço e as armadilhas do desencantamento do mundo

Olá!

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Ainda em recuperação das emoções e desventuras no antiquário em Cambuquira, a articulação para os rumos a serem tomados no dia seguinte apontaram minha barca para a maior cidade da região, que é o polo por onde toda a redondeza orbita, já que é significativamente mais populosa e, por efeito, mais equipada de comércio e serviços. Trata-se de São Lourenço.


O nome remete ao padroeiro da cidade, dada a sua data de criação, que coincide com a suposta ocasião de seu martírio. Conta-se que, a exemplo de tantos cristãos dos primeiros séculos, o diácono Lourenço não quis renegar sua fé, o que, à época, representava uma sentença de morte. O ponto notável é que, embora tendo sido morto queimado, novamente como outros tantos, não foi exposto diretamente às chamas, mas colocado em uma espécie de grelha. Morbidamente: ao invés de cristão na brasa, temos aqui cristão na chapa. Minha liberdade na brincadeira tem eco no próprio relato de sua paixão, onde se diz que o mesmo Lourenço, ao já se encontrar bastante queimado de um lado, sugeriu aos carrascos que o virassem do outro, para assar por igual. Quem disse que o bom humor não pode estar presente até nos momentos difíceis? Sua basílica é essa aí:


Ainda no campo da religiosidade, tenho mais duas observações a fazer. Na primeira, temos um curioso templo, de uma entidade da qual eu nunca havia ouvido falar: a Sociedade Brasileira de Eubiose. É uma instituição daquelas que costumamos chamar de esotéricas, apesar da flagrante generalização. Eubiose significa algo como “bom modo de viver”, e junta ciência, filosofia e religião. À parte disso tudo, é um lugar bem belo, com um jeitão meio grego, eu achei.


A outra diz respeito a uma singela capela dedicada a Nhá Chica, nas cercanias do perímetro urbano. Há inúmeras representações de santos em estilo naïf, tornando a construção uma coisa única, formando uma coleção de mosaicos de cacos de ladrilhos. A princípio, eu tinha entendido que a capela tinha sido erigida pela própria beata, mas depois vi que não. Bem, no momento certo falarei mais sobre ela.


São Lourenço extravasa muito da questão da religiosidade. Um dos mais admiráveis equipamentos culturais de lá é o sistema ferroviário, que preserva bem conservados uma estação inaugurada em 1884...


... e uma linha operante de caráter turístico, ligando São Lourenço ao município de Soledade de Minas, com preço assombroso (o que não foi exatamente um problema, dada sua operação unicamente em fins de semana). É tudo à moda antiga, com locomotivas a vapor. Esta da foto já foi aposentada, sendo apresentada apenas como objeto museológico.


Ainda nas vizinhanças da estação, fica situado o Educandário São Lourenço, uma escola ainda ativa que funciona em prédio histórico, gerida pela Igreja Católica, dando uniformidade ao conjunto arquitetônico da região.


Históricas também são as árvores da praça. Segundo se diz, são as mesmas que a florestaram na ocasião da construção da gare. As raízes de concreto, que se estendem em forma de mão na direção delas representam a proteção à natureza e à história, e foram idealizadas pelos alunos do educandário retro.


Só que São Lourenço tem um elemento turístico ainda mais característico – o gigantesco Parque de Águas, que abraça mais de 400 mil metros quadrados de paisagismo, área verde, lagoas e fontes, além de outras veredas, como o caminho do bambuzal.


Um dos principais equipamentos do parque, sem dúvida, é o balneário, onde a água é utilizada para práticas estéticas e medicinais. O prédio é imponente, regendo toda a área do lago.


O lago, aliás, não só é morada de uma montanha de garças e patos, mas é ponto de lazer, porque é navegável. Há diversidade – pedalinhos, caiaques, miniescuna e botes...


... como o que eu e a patroa fretamos por uma hora. Não sou atleta, longe disso, e é meio confuso nas primeiras remadas, mas depois pega-se o jeito e dá para fazer altos rolês pelas águas, sempre bem acompanhados.


Também aqui dentro há lugar para as manifestações religiosas. Além de uma imagem tida como milagrosa de Nossa Senhora dos Remédios, cheia de ex-votos e agradecimentos, o parque é sede da ermida do Bom Jesus do Monte, onde moram religiosos, e por isso seu acesso é restrito. Mas há um elevatório onde os fiéis podes dirigir suas preces ao céu e ter uma visão um pouco mais ampla daquele setor.


Dentro do parque, há alguns animais que vivem soltos, como vários passarinhos, borboletas e alguns macaquinhos sauá, com sua longa cauda preênsil. Alguns deles são expeditos o bastante para se aproximar dos caminhos artificiais e ganhar suas frutas.


O centro das atenções, naturalmente, está nas fontes. O parque tem nove delas, entre gasosas, sulfurosas, magnesianas e etc. Todas elas ficam acomodadas em construções semelhantes a quiosques, e são canalizadas por bicas, de acordo com suas propriedades medicinais. Ficam espalhadas por toda parte, para dar uma melhor dinâmica na caminhada.


Há fartas descrições das propriedades de cada uma delas, em painéis explicativos, o que é muito legal. Há inclusive avisos para aquelas que precisam ser consumidas com parcimônia. A fonte ferruginosa, por exemplo, chega a ter a água levemente turva, o que indica grande quantidade de elementos em suspensão. É bom não ir com muita sede à fonte (ai!).


Em um dos quiosques, há uma curiosidade: um bico de gás, que muitas pessoas procuram alegando benesses respiratórias. Algumas reclamam se sentir mal ao respirar, outras dizem sentir uma renovação do fluxo de energia. Eu e a patroa demos nossa cafungada, e somos unânimes: ainda que por somatização (vide), dá um levíssimo barato.


Todas as cabanas que guarnecem as fontes são de bela feitura. Pudera. Há uma Nestlé por trás da sua manutenção, sem crítica. Esta aqui é uma das mais visitadas:


Há também um “lado de lá” do parque. Acessível por intermédio de um túnel, um novo quarteirão está sendo formatado para expandir a obra. Por ora, há um jardim japonês já completo...


... e uma fonte sulfurosa, cuja água, por motivos óbvios, tem um cheirinho meio demoníaco. Esta é a parte do parque II que ainda está sofrendo um processo de ajuste na paisagem. De fato, a fonte está apenas funcional, ao contrário do que acontece na gleba principal.


Falando em projeto paisagístico, este parque é mais complexo do que o de Lambari, minimalista, e o de Cambuquira, bucólico. Como o espaço permite, o pessoal que cuidou desse aspecto teve mais liberdade e pode viajar mais na maionese. Foram buscar na mitologia grega as figuras das ninfas, divindades menores, todas elas femininas e que representam os espíritos da natureza.


As ninfas não representam uma classe uniforme. Há várias espécies delas, sempre de forma etérea, como se constituíssem a alma do ambiente em que habitam. Há ninfas das selvas, das montanhas, dos vales, dos ventos e de tudo o que se pensar em termos de ambiente. Aquelas que povoam os mundos aquáticos, como as que temos aqui, são chamadas de náiades.


Também as náiades não são um bloco fechado. Como os ambientes aquáticos são bastante diversos entre si, como oceanos, rios, lagos e etc., existem náiades específicas das fontes, que lhes emprestam os dons de cura e saciedade: as crinéias.


As crinéias mais famosas foram Aganipe, filha do deus-rio Ternesso, mãe de Dânae e habitante da fonte de mesmo nome, no sopé do monte Hélicon; e Salmácis, caso único em que uma divindade feminina tenta violentar um outro deus, Hermafrodito, o filho de Hermes e Afrodite. São representações da beleza e da perfeita integração entre homem e natureza, como as demais ninfas.


Como são interessantes as construções míticas, não? Com poesia e arte, todos os povos sempre buscaram dar explicação não só aos seus sentimentos e aflições, seus destinos e futuros, mas mesmo aos pequenos aspectos práticos de suas vidas. Nesta minha viagem a São Lourenço, enquanto caçava alguma coisa dietética nas abundantes prateleiras de abundantes doces de abundante açúcar, encontrei um pequeno livro (indicado nas recomendações) que conta o mito tupi da criação da Serra da Mantiqueira. Uma história lindíssima, lírica, e que satisfez por muito tempo o imaginário dos povos que o contavam. Não tendo à sua disposição um aporte científico, justificavam a existência de seu meio através de um sistema intrincado de contos e lendas. Em síntese: o Sol vagava pelo mundo em sua eterna alternância com a Lua, quando avistou em um pequeno lugarejo uma mulher linda, pela qual se apaixonou. Diante de tanta beleza, o Sol deixou de se pôr, para contemplar sua paixão, secando os rios e gretando a terra. A Lua, revoltada, foi apelar a Tupã, o deus supremo, que condenou a jovem que se atreveu a apaixonar o Sol. Atirou-a ao fundo de um vale, ao redor do qual havia uma imensa cadeia de montanhas, e a escondeu na escuridão que se formou. O Sol, todas as tardes, avermelhava-se de tristeza e ia se afundar no mar, por detrás do horizonte. Vendo a sua tristeza, também a Lua se comoveu, chorando as estrelas que povoam o céu, enquanto a índia de nome perdido no tempo chorava todas as noites por não mais poder ver o seu amado. Daí, o nome Mantiqueira, a "serra que chora" em língua tupi. Vai dizer que não é bonito?

Mas o mundo moderno, com exceção das religiões fortemente institucionalizadas, abandonou a narrativa mítica, apesar de sua beleza intrínseca. Por que?

Penso que tinha razão nosso caro Nietzsche quando afirmou que o homem perdeu a capacidade de suplantar a si mesmo ao abandonar a formação de uma mitologia nos moldes da tragédia grega (revivida pela pobre Lusa, como descrevi neste texto). Mas o bigodão acha que o sacrifício do pensamento estético se deu por força de uma mudança de paradigma epistemológico, ao se adotar o racionalismo extremo proposto por Sócrates. Mas há mais de um caminho para analisar a questão. Vou seguir o itinerário sociológico de Max Weber para tentar fazer uma outra compreensão do abandono dos mitos.

Weber percebe como a religião morde seu próprio rabo quando surge o novo paradigma proposto pelo Protestantismo. Inicialmente, o Cristianismo baseia-se fortemente na ideia de que o mundo terreno é uma instância passageira, de onde os fiéis deveriam buscar simplesmente ferramentas que pudessem garantir suas salvações: boas ações, boas palavras e bons pensamentos. Este mundo não é o Reino de Deus prometido pelos profetas, em suma. É um terreno de castigo, longínquo do paraíso edênico. Ele tem mais a atrapalhar do que a ajudar, com suas tentações e oferecimentos às vaidades humanas. Além disso, o mundo é um lugar de provação, onde o trabalho é uma atividade vista como um castigo divino: comerás teu pão com o suor do teu rosto. Não à toa, a palavra trabalho tem origem no latim tripalium, três paus, que eram um instrumento de tortura.

Com o advento da Reforma Protestante, há uma mudança na filosofia salvífica e, de embalo, no modus vivendi do cristão. Weber nota que a mudança mais radical se dá através não dos ditames de Lutero, primeiro reformador bem-sucedido, mas da interpretação de Calvino.

Ao contrário do que pensava a corrente dominante do Cristianismo, Calvino entende que a salvação não se dá pelo conjunto da obra de um ser humano, mas da livre vontade de Deus. A tese é a seguinte: Deus é um ser superior a toda a humanidade, que lhe é totalmente subordinada. É impensável que a criatura possa prescrever condições ao seu criador. Sendo assim, Deus admite ao seu lado quem ele bem entender, e não há nada que o homem possa fazer para mudar isso. É a doutrina da predestinação: o homem já tem seu destino escrito e definido.

Mas isso traz uma dificuldade aparentemente insanável. Se já se está marcado por um destino imutável, dependente exclusivamente da vontade divina, como fazer para se ter noção de quem pode ou não ser salvo? Calvino diz que Deus dá “dicas” de suas escolhas – o homem escolhido é próspero, ele tem recompensas já em sua vida terrena. Assim, se os negócios vão bem, se a terra é produtiva, se a freguesia cresce, se os bens se acumulam, isso é manifestação inequívoca da benesse divina. De cara, esse pensamento tira o aspecto pecaminoso que o Catolicismo atribuía ao lucro e à sua variante mais mesquinha, a usura. Sendo a prosperidade uma manifestação da vontade de Deus e o lucro sendo seu principal propulsor, nada há de errado nele.

Essa filosofia religiosa caiu como uma luva para o contemporâneo capitalismo que florescia. Devidamente escusado de seus pecados, os capitalistas encontravam o conforto antes inexistente para a prática de suas atividades, o que, inclusive, desmistificava a visão negativa que se dava ao trabalho.

Weber nota uma coisa interessante, derivada disso tudo: os católicos se preocupam com uma educação humanista, enquanto os protestantes dão maior importância à educação técnica, e uma das consequências aparentes é que os negócios vão todos caindo nas mãos destes últimos. Eles estão melhores acomodados com a posição individualizada da dicotomia protestantismo-capitalismo. Lembrem-se: sendo escolha única de Deus, a salvação se aplica a indivíduos, e não a grupos. A comunidade agora é menos importante do que o indivíduo, que passa a olhar muito mais a si mesmo. O individualismo passa a ser a doutrina subjacente tanto à religião quanto ao sistema econômico, com o trabalho como bandeira a ser carregada. Quase que por uma motivação psicológica, a propensão ao trabalho do protestante vira uma ética do dever laboral – o trabalho não só não é mais um castigo, como ele é uma obrigação, um espaço do qual Deus se utiliza para manifestar suas decisões.

E é aí que nasce o busílis. Ao preconizar um mundo já delineado, cuja única ação tem por propósito dar vazão àquilo que já está decidido, tem-se que praticamente apenas o trabalho é a oferta que se tem a fazer a Deus. Uma vida ascética não tem mais valor, um culto aos santos e a imitação de suas vidas não tem mais valor, incensos e velas não tem mais valor, narrativas míticas (a não ser aquela chancelada pelo seu livro sagrado) não tem mais valor. O mundo perde por completo seu aspecto mágico e passa a se pautar unicamente pela “racionalidade”. É o que Weber chama de desencantamento do mundo, que não tem o sentido de desilusão ou desapontamento que o termo parece dar, mas de exclusão de todo o misticismo.

Só que é exatamente aí que o parafuso quebra na próxima volta. Da mesma forma que o capitalismo encontra no calvinismo sua cara-metade religiosa, também este vai se constituindo em restante do aspecto místico a ser descartado. Em um mundo cada vez mais laico, e com os progressos científicos cada vez mais substituindo a necessidade de orações, e com o paradoxo dos prósperos de outras religiões, e com o malabarismo lógico para conciliar (sem sucesso) predestinação e livre arbítrio, o fato é que a ética do capitalismo baseado no calvinismo aproveita-lhe apenas o esqueleto, como se fosse um fóssil. E a cobra morde o próprio rabo. O desencantamento do mundo mostra ainda mais uma vez suas garras, sufocando o próprio movimento religioso que lhe deu origem.

E nesse meio tempo já se perdeu todo o lirismo das diferentes mitologias... O mundo desencantado de tudo seria o cúmulo da chatice, não fosse a arte, mas isso é tema para outro momento.

Recomendações de leitura:

Basilar na Sociologia, o livro abaixo representa o suprassumo da visão weberiana sobre a influência da Religião na vida da sociedade. Se o assunto interessar, não deixe de ler.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2000.

Também referenciei o livrinho que encontrei em São Lourenço sobre o mito do surgimento da serra da Mantiqueira. É ótimo para crianças, porque é todo ilustrado pela própria autora, mas que serve muito bem para exemplificar a poética a que me refiro neste texto.

BAJGIELMAN, Selma. Lenda da Mantiqueira. São Lourenço: Novo Mundo, 2014.