Marcadores

terça-feira, 15 de julho de 2014

Sobre goleadas e a dialética que explica os vexames no futebol

Olá!

“Que traulitada!”, diria meu avô. “Que sacolada!”, diria meu pai. “Que chocolate!”, diria eu. “Que sacode!”, diria meu filho. “Que porra foi essa?”, dirão meus netos. “Que vexame!”, diremos todos nós.
Vergonha: a tristeza diante da incapacidade, o luto que tende à permanência diante do erro, da afronta. Vergonha é a palavra que mais li e ouvi nos últimos dias, reflexo dos indiscutíveis 7 x 1 aplicados pela Alemanha no Brasil nas semifinais da Copa do Mundo. Indiscutíveis em tese, aliás. Podia ter sido muito mais.

Gosto muito de futebol. Quando eu era criança, existiam dois campos de futebol na minha rua: no começo, na parte baixa, existia o campo do Disparada, time de várzea sustentado por uma casa de materiais de construção de igual nome; no final, no topo da ladeira, existia (existe ainda) a tubulação que leva água do Rio Claro até não sei qual parte da metrópole. Andando por sobre os canos, rapidamente chegava-se ao campo da Rua Deiz (assim mesmo, conforme estava escrito pelo indigitado que redigiu ambas as placas que a identificava). Era um local menos recomendável, porque pertencia à malandragem local (Vila Diva, no caso), mas como era plano, tinha suas partidas menos influenciadas por fatores “geográficos” e mais por fatores “sociológicos”, como brigas nos fins dos jogos, às vezes com alguns objetos perfuro-cortantes. O campo do Disparada tinha um leve, porém perceptível declive, mas o pessoal que jogava lá era composto de operários que moravam na Vila Ema e arredores, e que iam trocar a graxa pela lama no final de semana (rapidíssimos parênteses: o clima de São Paulo mudou demais nas últimas décadas. O inverno era gelado de verdade, e durava três meses. Hoje em dia, cai em um final de semana. No verão, sempre tinha chuva no final de tarde. E os níveis de umidade do ar nunca eram tão baixos – o epíteto “Terra da Garoa” não se justifica mais). Esse pessoal se reunia nos botecos e combinavam seus jogos, em meio a muitas cervejas e talagadas da “marvada”. Conhecia quase todos. Sentava na beira do campo e ficava assistindo o proletariado judiar da bola, enquanto comia os indigestos torresmos do seu Geraldo, fundidor de ofício que nas horas vagas fazia as vezes de barman. Cara curioso, esse seu Geraldo. Vivia coberto de fuligem, em qualquer hora que fosse visto, e transferia seus vestígios em todo lugar onde encostasse, inclusive nas garrafas de Caçulinha que nos eram servidas. Bom, nunca tivemos problemas com anemia.
Também costumava frequentar, com certa frequência, o Desafio ao Galo. Quem tem mais de 40, sabe do que estou falando. Tratava-se de um torneio de várzea, mais “requintado”, no CMTC Clube (onde hoje há o recomendável Museu do Transporte, na Ponte Pequena), e que era disputado no seguinte esquema: o time detentor da última vitória era chamado de “galo”, o dono do terreiro. A cada domingo, um time desafiante vinha enfrentá-lo. Se vencesse, era o novo “galo”, e voltava a jogar na semana seguinte, contra um novo desafiante. Se perdesse, abaixava a crista e ia esperar sua vez de novo. Em caso de empate, pênaltis. Quem fosse o galo por mais tempo no ano, ganhava um troféu adicional, se não me engano.

Conheci muitos times que participaram do torneio, quase todos extintos: Atlas, SDR, Botafogo do Imirim, Corinthinha do Sapopemba, Estrela do Sul, Parque da Mooca, Aliança de São Bernardo, A. A. da Penha, Portuguesinha da Água Rasa... Essa era a ponta mais visível do futebol de várzea, porque era transmitido pela TV. Passava na Record, que na época não tinha absolutamente nada a ver com a IURD. Na pequena arquibancada, era possível observar duas coisas: vários olheiros tentando caçar talentos (era fácil reconhecê-los, já que sempre tinham na mão algum bloquinho ou caderneta, e também costumavam ir a campo para abordar algum rapaz mais habilidoso) e meu avô berrando impropérios para pernetas que ele nem conhecia.
Também peguei gosto em ir a estádios, principalmente na década de 80. Apesar de ser corinthiano, o time profissional que eu mais assisti foi o Juventus. Explica-se: o campo da Rua Javari era perto de casa – meia hora de ônibus, o ingresso era muito barato, havia frequentes promoções para sócios do clube, eu pagava meia-entrada por ser estudante e havia ainda a ligação afetiva: mooquense que sou eu, mooquense que é o Juventus, bairrista que é o mooquense (sou-o de nascimento, não de residência).

O resultado é que hoje volta e meia me pego assistindo jogos como Batatais vs. Lemense na rede Vida. Se me interessa o futebol mais miúdo, quanto mais não me atrairá seu evento maior, a Copa do Mundo. É bem verdade que os brasileiros não têm mais a mesma ligação com a seleção que tinham antigamente. Na Copa de 70, todos os jogadores atuavam no Brasil. Na de 82, acho que só o Falcão jogava na Itália, mas tinha uma forte ligação com o Internacional de Porto Alegre. Dos jogadores da atual, não me lembro de ver jogar com camisas brasileiras os seguintes: Daniel Alves, David Luiz, Dante, Marcelo, Maxwell, Luiz Gustavo, Fernandinho, Hulk. Vi muito pouco do Maicon no Cruzeiro, do Tiago Silva no Fluminense e do próprio Willian no Corinthians. Nenhum dos jogadores atua no estado de São Paulo. A desvinculação se torna inevitável. Mas, mesmo assim, a vontade de enfiar a cabeça na areia é inexorável.
Por que o futebol nos afeta tanto assim? O que há nele, que a princípio é apenas um jogo, para fazer com que percamos o sono, choremos, soframos, até morramos? Lembro os inúmeros casos de enfarte e do torcedor vascaíno que precisou ser seguro para não se atirar quando seu time foi rebaixado pela primeira vez.

Vejo e ouço em muitos lugares a explicação de que o futebol é metáfora da vida, por isso nos perturba tanto. Não me convenci.
Uma metáfora é uma figura de linguagem em que uma característica concreta é substituída por outra, por um processo de semelhança e comparação. Vai aqui o exemplo do “mala sem alça”. Qual é o seu uso na linguagem coloquial? É o cara chato, difícil de suportar. Uma formação de frase para estabelecer a correlação entre o cara chato e a mala sem alça é a seguinte:

Ok, temos uma comparação clara, que não é uma metáfora, porque não há sentido figurado. Na metáfora, pegamos uma característica comum e a imiscuímos na relação. É possível representar graficamente.


Na metáfora, temos a fusão daquilo que é explícito na comparação:

Presto! O termo que medeia ambos some e enriquecemos nossa linguagem, trazendo um novo significado para uma expressão anteriormente unívoca, tomada apenas em seu sentido estrito:

Posto tudo isso, acho que não é possível traçar um paralelo tão próximo entre vida e futebol para considerar um metáfora do outro. Muitos são os motivos: o futebol tem tempo e espaço definidos, regras razoavelmente claras, acesso restrito, e outros que-tais. Para mim, o futebol é muito mais semelhante a uma metáfora da guerra. Eu acho isso até óbvio demais. Mas cabe explicação, e farei isso com as teses de um alemão, vejam vocês! Ninguém menos que Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o pai do Idealismo moderno.

Nosso caro tedesco é bem conhecido. Formulou um sistema completo de Filosofia, que abarcou teoria do conhecimento, metafísica, lógica, ética e estética, entre outros, e influenciou gente à beça. Com tão vasto sistema, só posso brincar aos poucos, e me concentrarei em sua visão peculiar sobre a dialética neste texto.
A dialética sempre foi utilizada em Filosofia, lançando mão da linguagem como ferramenta para partir do particular ao universal, o que dá cientificidade ao método. Zenon, Sócrates e principalmente Platão, na sua alegoria da caverna, dão mostras de como é possível galgar uma escada em que se abandonam as imperfeições da sensibilidade para adquirir conhecimento seguro. Para Hegel, no entanto, o movimento dialético é um reflexo da própria motricidade da natureza e da história, no sentido de que um estado ou situação sempre caminha no sentido de algo que lhe opõe, e desse confronto é obtido um terceiro estado, que agrega algo de uma proposição e algo de sua negação. Este terceiro estado também é passível de uma nova negação, que gerará mais uma vez uma junção de opostos que se interpenetram, e assim por diante, ao infinito. O primeiro estado ou situação é a tese, sua negação é a antítese e o resultado de ambos é a síntese. Quando o intelecto aplica esse método na obtenção do conhecimento, nada mais faz do que plasmar um ciclo já existente em tudo ao seu redor.

Vamos dar um exemplinho rápido de procedimento dialético simples, que vi em algum livro. Interiorizei o exemplo, mas não encontro onde. Perdoe-me o autor. Em um estado absoluto, tudo é guiado pela vontade de um rei. Suas determinações podem ser justas ou não, podem se basear em seus caprichos ou na lógica, podem voltar-se para a população que rege ou exclusivamente em seu interesse. Essa é a tese. As pessoas desejam liberdade, porque não querem se submeter unicamente ao desejo régio, querem decidir suas causas coletivamente, querem escolher o que fazer da vida, sem depender de um poder central. Essa é a antítese. Pois bem. Se por um lado a tirania cria grilhões para as pessoas, a liberdade ilimitada é anárquica em seu pior sentido, porque ninguém tem garantias de que o desejo do outro não conflitará com o próprio. Para solucionar este problema, temos sua síntese: a lei. A lei impede que a tirania se estabeleça, porque dá balizas e limites ao exercício do poder. Faz o mesmo com o interesse individual, demarcando onde cada um pode chegar e o que cada um pode ou não fazer. Percebam que na lei há um elemento do absolutismo, que é sua propriedade de nada estar acima dela, mas também tem um elemento de liberdade, porque tira a coletividade do domínio da vontade de um só. E assim caminha a humanidade...
Vamos agora, e finalmente, aplicar toda essa parafernália à nossa inglória derrota. O ser humano tem algumas características básicas. Quer sobreviver instintivamente a todo o custo, quer preservar a própria espécie, vive em grupo, procura espalhar seus genes pelo mundo todo. Isso faz com que cada agrupamento procure expandir seu alcance ao maior território possível. Isso era bem simples quando o mundo era povoado por meia dúzia de tribos, mas na medida em que foram se reproduzindo mais e mais, os encontros começaram a ser inevitáveis. No dia em que o homem resolveu que queria entrar à força em um domínio alheio, nasceu a guerra. Ela esteve presente em todos os tempos, por conta dessa necessidade atávica de ampliar seus domínios. Criou armas e diversas táticas para isso, e, portanto, usou de violência e da morte em quantidades inimagináveis, por mais que a razão tentasse dissuadi-lo disso.

Acontece que as mortes geradas em uma guerra, que em última instância é uma ferramenta da preservação das espécies, vai também contrária a ela, porque se enfiar em uma aventura guerreira traz baixas para si; há sempre o risco de se perder uma batalha ou mesmo a guerra toda. Há o medo ancestral da morte, e a guerra é uma usina de morte e destruição, não só no combate direto, mas também na fome, na doença, no empobrecimento.
Temos então dois fatores que se imiscuem mutuamente. O instinto de sobrevivência traz a combatividade, mas também traz o medo da morte. Como podemos solucionar estas duas potências que tentam se anular? Como satisfazer o espírito de luta e o desejo de paz ao mesmo tempo? Qual é a síntese possível para estas duas necessidades contraditórias? Como podemos combater sem que haja perdas?

Sim, através do esporte.
Desse confronto dialético entre guerra e paz, temos o simulacro que satisfaz os desejos de combatividade e as garantias de que essa agressividade não terá como objetivo o extermínio do outro lado. E, de acordo com o meu entendimento, é no futebol que temos o exemplo mais bem acabado desta metáfora.

Não vou esgotar o assunto, mas vou exemplificar: no vôlei, no beisebol, não há contato físico; no basquete, o contato é mínimo e é repudiado quando existente; no tênis, nas lutas, na esgrima, o esporte é individual; no automobilismo, depende de máquinas; no remo, na canoagem, nas corridas atléticas, afere-se somente a velocidade ou a resistência. Já no futebol, temos um grupo grande, com funções bastante específicas (goleiro, zagueiro, atacante, armador, técnico, massagista, roupeiro, etc.). As cores do exército estão em evidência, há uma insígnia no peito e a torcida que rodeia é a população que a esquadra defende. O campo é amplo, as táticas são variadíssimas. As intempéries se fazem presentes: há jogos na chuva, no sol intenso, na noite, em dias sem umidade, até sob a neve. Joga-se na grama, na areia, no asfalto, no tablado, na terra, no cimento, no carpete. Não há riquezas – uma bola basta, com dois marcos fazendo as vezes de trave, se necessário. Não precisamos de cavalos ou iates. Há o general – o cartola; há o sargento – o técnico; há o cabo – o capitão do time; há os soldados – os jogadores. Há a retaguarda, que são o goleiro e a zaga; há a artilharia (termo militar), que é o ataque; há a reserva, que é o banco.
Aqui, temos espaço para os baixinhos e para os galalaus, para os delgados e para os espadaúdos, para os lentos e para os lépidos, até para os inábeis com força de vontade há utilidade. Vejam como é difícil uma “zebra” em qualquer esporte; só no futebol ela é frequente. É o inesperado, a força vence a inteligência e vice-versa. E, nestes caracteres todos, vemos reflexos da guerra. Só o futebol tem tantas características comuns com a guerra. Por isso, tanto somos afetados por uma derrota no futebol: é uma derrota na guerra, ainda que levada no plano do simbólico. Tanto pior na goleada acachapante. É a derrota fragorosa, algo como se todos nós fôssemos dizimados. É como se estivéssemos ameaçados de existir como nação, ou como sermos objetos de chacota para qualquer lugar que formos, de mãos amarradas, de cabeça baixa, com o chicote estalando em nossas costas, cidadãos de segunda linha – se é que mereceríamos essa denominação. Estaríamos mais próximos da escravidão e do cárcere, a nossa vergonha.

Quanto drama! Melhor que seja no esporte do que em uma guerra real. Mas dói. Principalmente quando nos consideramos melhores do que os outros.
Recomendação de leitura:
Abordei aqui apenas milimetricamente uma tese de Hegel. Para conhecer mais a fundo seu pensamento, recomendo a leitura de sua obra maior.

HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 2002.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O martírio como ato dramático e equivalente ao suicídio (ou não)

Olá!

Quando redigi meu texto em que eu falava sobre a dimensão estética do suicídio, que pode ser lido neste link, meu leitor e colaborador Vitor Bertalan levantou um questionamento sobre a questão do martírio. Ele teria o mesmo efeito estético que pretendi atribuir à minha dissertação, ou há algo de diferente no ato de entrega da vida em nome de uma causa, de uma convicção? Pois bem, dois anos depois, vou tentar responder.
O primeiro ponto a ser discutido é que não temos um só tipo de martírio, e por aí já adianto que há também diferenças no modo com os quais devem ser encarados. A palavra “mártir” acabou por se tornar muito genérica, e desde já vou excluir deste texto sua aplicação simbólica. Para definir bem que exclusão é esta, vou contar mais uma historinha da minha vida, um tanto fútil, mas perfeitamente significativa para exemplificar.

Na segunda metade da década de oitenta, eu trabalhava com custos e contabilidade (vida emocionante...) em uma empresa de metalurgia, mais especificamente uma fabricante de máquinas-ferramenta para deformação de metais, mais especificamente ainda uma fábrica de prensas. Era uma época em que a indústria nacional ainda era pujante, dados os caríssimos impostos de importação, que faziam com que valesse a pena produzir no país. Acontece que, tão logo se deu a virada para a década de noventa, o então presidente Fernando Collor, julgando os carros produzidos no Brasil autênticas carroças, resolveu mudar a política econômica, barateando a importação de quase tudo. Por outro lado, o crédito industrial foi limitado e os investimentos em aplicações financeiras, até mesmo inocentes cadernetas de poupança, foram confiscados por um bom tempo. O efeito foi devastador para a indústria nacional, e foi particularmente cruel para a indústria pesada, como a que eu trabalhava em particular. Muitas portas baixaram e os empregos foram se tornando raridade. Bom, não vou entrar em grandes discussões do gênero neste momento. Para a compreensão geral, isso basta.
As empresas em geral começaram a partir para cortes de gastos, e, além do cafezinho, as primeiras afetadas eram as cabeças dos empregados. É evidente que aqueles funcionários que mais incomodavam eram os primeiros a ser desbastados, mas, para tentar amenizar os impactos dos cortes, eram realizadas semanalmente reuniões entre gerência e funcionários para tentar obter alguns consensos. Alguns eram bastante impactantes, como a redução temporária da jornada e de salários, com a garantia de que não haveria dispensas durante o período. Outras eram um pouco menores, como a diminuição de benefícios. Tínhamos até então um refeitório farto, com prato principal, saladas, guarnições, sobremesas e máquina de refrigerantes, além do direito de opção para quem não pudesse/gostasse de consumir determinada iguaria. Para reduzir esse custo, foi estabelecido que o contrato com a empresa fornecedora de comida seria rescindido, e seria oferecida uma refeição bem mais simples: arroz, feijão, uma mistura qualquer e salada, sem direito a opção, guarnição ou refrigerante. No lugar deste último, foi colocada uma daquelas maquininhas de suco, tão presentes nos botecos que servem churrasquinho grego nos arredores da Praça da Sé. Resignados, porém conformados, aceitamos de bom grado o declínio alimentar. Na reunião seguinte à primeira semana das medidas culinárias, um dos funcionários fez um pedido sucinto porém justo, e silenciosamente apoiado por toda a galera: o suco das maquininhas era horrível – açúcar pintado com algum corante, cheio de resíduos. Este funcionário pediu apenas e tão somente que fosse trocada a marca do suco, ou algo semelhante. Estava melhor beber água ou nada. Pois muito bem. Na reunião, a gerência falou iria rever o produto que estava sendo utilizado, se o problema não estava no preparo ou coisa congênere. No dia seguinte, nosso desventurado amigo foi colocado em aviso prévio... Ficou conhecido como “o mártir do suco”, aquele que entregou o emprego pela nobre causa de um acompanhamento digno para a gororoba diária. Perceberam que é um mártir simbólico? Pois é, deste tipo de mártir não vou tratar, nem do termo ainda mais genérico, que indica qualquer sofrimento intenso. Tipo: “Ai, essa dor nas costas é um martírio”, “Meu chefe é um martírio”, “Subir essa ladeira é um martírio” e outras metáforas do estilo.

Vou por em discussão dois outros tipos de martírio, desta vez reais, que implicam na morte do pobre coitado. E a base que os separa é simples: se se trata ou não de um ato de livre vontade. Temos mártires voluntários e mártires involuntários. Mas antes, vou conceituar a palavra.
Sua origem data do advento do Cristianismo, que, em seus primeiros séculos, tinha o duplo dissabor de ser uma dissidência do Judaísmo e uma oposição ao Paganismo imperial romano. Era um termo aplicado às pessoas que, por não abdicar de sua fé, preferiam serem mortos, dando assim seu testemunho. Este testemunho (martys) tinha origem nos primeiros discípulos de Jesus, que o conheceram pessoalmente, presenciando seu julgamento e condenação, e praticamente todos eles tiveram algum tipo de fim triste similar: crucificação, esfolamento, apedrejamento, decapitação, essas coisas. Faziam isso por um ideal – manter sua fé diante da opressão de um sistema que lhes tolhia a liberdade de escolha.

Com o passar do tempo, o termo foi se aplicando a qualquer pessoa que colocava sua causa acima de sua própria vida. Mas, no caso dos mártires involuntários, isto é, aqueles que tiveram sua vida ceifada sem sua própria asserção, não podemos equipará-los a suicidas. Caso mais clássico que posso fazer remissão agora é o de Tiradentes, o alferes Joaquim José da Silva Xavier. Rapidíssima revisão: Tiradentes fez parte de um movimento chamado Inconfidência Mineira, que pretendia se libertar da dominação portuguesa, que se apropriava das riquezas produzidas pela extração de ouro em Minas Gerais. Pela delação de um dos partícipes, o movimento foi desmantelado e seus membros punidos, com penas que passavam por prisão, desterro e enforcamento, esse último aplicado apenas para o infeliz dentista/militar. Sua execução foi explorada à exaustão por artistas e patriotas vários, muitas vezes baseados em uma visão mítica (em momento oportuno, posso tentar falar algo sobre a “barba de Tiradentes”), mas o fato é que seu martírio foi imposto, o que não tira sua aura de heroísmo, mas reduz significativamente sua dramaticidade, pelo menos no que diz respeito ao ato em si como sinônimo de entrega extrema a uma causa.
Partamos, portanto, para a análise do martírio como suicídio. E, para tanto, vamos abordar dois filósofos, este que é um espaço destinado à Filosofia. Um é megaconhecido, até por leigos; outro, nem tanto. Mas quem estudou Filosofia ou História o conhece, sim.

Sócrates é, provavelmente, o mais célebre dos filósofos. Não deixou escritos, principalmente pela força da oralidade de seus métodos, e sua vida é conhecida, principalmente, pelos relatos deixados por Platão e Xenofonte, que têm inspiração mais doutrinária do que histórica. No entanto, alguns pontos de sua biografia são consensuais, o que permite deduzir que, ao menos na essência, estes relatos são dignos de fé. Sócrates renovou decididamente a maneira de pensar dos antigos gregos e, por extensão, de todo o ocidente. O princípio básico de suas ideias aponta para a identificação da essência do homem com a sua alma, mas em um sentido diverso do religioso. Alma, para Sócrates, é o logos, a razão, o eu consciente. O corpo já não é o mais importante, ele é apenas um instrumento para por em prática as ações deste logos. Desta forma, a busca do homem não deve ser calcada no poder ou no prazer, mas na areté, a virtude. E, para tanto, é fundamental o autoconhecimento (nada de auto-ajuda, por favor). Se o homem não se conhece, não saberá buscar essa virtude.
Dessas assertivas derivam todas as demais doutrinas socráticas. Para que a virtude seja atingida, é preciso exercitar um domínio sobre si mesmo: o homem-razão deve preponderar sobre o homem-animal, a racionalidade tem que saber dominar os instintos, e é preciso cada vez menos tornar imperativas as necessidades do corpo. A sabedoria consiste, assim, em fazer com que esse domínio sobre as paixões aproxime o homem das divindades. Os deuses bastam a si mesmos; o homem deve buscar o mesmo.

Esse desligamento do homem com as noções de poder trazia suas consequências. O homem sábio procura se afastar do embate, da guerra e da disputa. Calcando sua vida na busca dos valores racionais, chegaria sempre em uma solução pacífica, bem acordada. Isso ia de encontro à classe dirigente de Atenas, sempre necessitada de soldados preparados para o combate. Dessa forma, pesou sobre Sócrates a acusação de que estava pervertendo a juventude, os braços preferenciais dos exércitos. Além disso, havia a acusação secundária de que Sócrates ofendia os deuses do panteão grego, ao ensinar doutrinas diversas daquelas do entendimento geral, especialmente ao se utilizar o espírito crítico contra verdades prontas para consumo. Em seu julgamento, foram-lhe dadas as opções do exílio, da extirpação da língua ou da morte. Dizendo ser ambas as primeiras um castigo insuportável, opta pela última, que ao menos lhe é desconhecida. Sócrates não só não se retratou das acusações que lhe fizeram como ainda recusou a ajuda de seus companheiros, que queriam planejar sua fuga. Argumentava que, em primeiro lugar, sua condenação era um prêmio por sua vida justa. Mas, principalmente, morria em obediência às leis da polis. Se ele defendeu a virtude como principal objetivo a ser perseguido pelo homem, como poderia ele mesmo se voltar contra suas convicções, tomando uma atitude antiética, ainda que sua condenação tenha sido injusta? Preferiu tomar ele mesmo seu cálice de cicuta, diante do desespero de seus discípulos, como podemos ver na interpretação de Jacques-Louis David, a famosa tela “A morte de Sócrates”.


O martírio de Giordano Bruno tem contornos ainda mais dramáticos. Tinha um espírito difícil de amestrar, sendo a insubordinação uma de suas maiores características. Para falar mais claramente, era um encrenqueiro de mão cheia. Para que se tenha ideia do que estou falando, nosso corajoso porém imprudente filósofo foi beber nas fontes da mitologia egípcia para elaborar suas teses sobre o universo, em um tempo de intensa preponderância do pensamento cristão, que, como bem se sabe, não era muito dado a tolerâncias nos idos do século XVI. Suas ideias constituíam uma retomada, com influência neoplatônica, da tradição de Hermes Trismegisto, Deus da magia e da escrita. Segundo esta doutrina, a mente tem dentro de si um conjunto de imagens que totalizam todo o conhecimento do universo. As sombras das ideias não são, como imaginava Platão, obtidas através das coisas sensíveis, mas de uma impressão mágica que nada mais é do que reflexo das ideias divinas. Como tal, essas ideias estão eternamente residentes nos cérebros humanos, o que faz com que seja possível desenvolver técnicas de memorização que seriam praticamente infalíveis, assim como potencializa o alcance do conhecimento a praticamente qualquer lugar onde ele possa ser obtido, já que este seria nada mais do que a ativação da ideia. A partir destes princípios, Giordano Bruno desenvolve um sistema de mnemotécnica que o torna famoso, e que, no final das contas, foi a causa final de seu martírio.
Há dois pontos de divergência mais significativos do pensamento bruniano com relação ao Cristianismo: o universo infinito e eterno e o deus in rebus, o Deus nas próprias coisas. Bruno imagina que existe uma entidade suprema da qual emana tudo do universo, mas essa própria entidade não pode ser conhecida plenamente. Giordano Bruno concebe a emanação divina como uma distribuição dela própria, ou seja, Deus está em tudo. Mais do que isso: se tudo procede de Deus, se tudo é composto de Deus, se tudo é plasmado pela substância de Deus, então tudo contém o Deus completo, o que inclui não só a matéria, mas o intelecto de Deus. Tudo tem alma: os homens, os animais, as plantas e os minerais. A filosofia de Bruno não é só panteísta; é também panpsiquista.

Tem mais: partindo do princípio de que o universo é infinito, cada ponto de onde parte uma perspectiva é o centro deste universo. Essa característica, por exemplo, remove qualquer centrismo: nem a Terra, nem o Sol (embora Bruno entenda o Sol como o centro do nosso universo “local”), nem nada – tudo e ninguém são centrais. Bruno, inclusive, não exclui a possibilidade da existência de outros mundos com vida – um proto-ufólogo.
Está mais do que na cara que este tipo de posicionamento confrontaria diretamente o pensamento cristão da época, que era, como sabemos, tremendamente autoritário e pouco propenso a oposições. O universo infinito e eterno dava uma noção de incompletude, e, portanto, de imperfeição, o que era inadmissível para os teólogos de então. O mesmo se dá no panteísmo e no pampsiquismo: as coisas são imperfeitas e possuem muitos vícios. Não é possível conceber, na filosofia cristã, um Deus que não se destaque de sua própria criação, que não se situe em uma posição de paradigma de perfeição, a ser perseguido por suas criaturas.

Bruno foi se virando do jeito que dava – fugia daqui para lá e dali para cá, na exata medida em que arrumava suas altercações. Já era problemático desde adolescente: foi expulso da escola que estudava em Nápoles. Fugiu para Roma, passou por Turim, Nola, Veneza, Savona e Gênova – todas no norte da Itália. Se mandou para a Suíça, onde foi encontrar barulho com os calvinistas de Genebra. De lá foi para a França, onde passou por Toulouse e Paris, onde finalmente conseguiu proteção do embaixador francês. Acompanhou-o até a Inglaterra, sobretudo em Londres, mas também foi à Oxford para se indispor com os acadêmicos da universidade local. Voltando a Paris, percebeu que o antigo clima amistoso havia se esvaído, e migrou para a Alemanha, onde elogiou publicamente os luteranos, que o acolheram em Helmstädt. Adivinhem o que aconteceu em menos de um ano? Sim, ele foi expulso. Foi para Frankfurt, onde parou de tergiversar um pouco para se dedicar à poesia, quando foi convidado pelo nobre veneziano Giovanni Mocenigo para ministrar aulas de mnemotécnica, da qual era mestre. Deu um tiro n’água: retornou à Itália e, claro, foi angariar discórdia com seu contratante, que não pensou cinco minutos em levá-lo preso ao Santo Ofício. Condenado à fogueira, Bruno tinha a opção de abjurar, mas não quis se contrapor às suas próprias ideias, entregando-se à morte, que se deu em 1600.
Temos aí, portanto, duas histórias em que poderíamos fazer uma equivalência real entre martírio e suicídio, já que existia a opção de não morrer. Mas é uma opção meio que falsa: haveria uma perda ainda assim. No caso de nossos caros filósofos mencionados, que não são conhecidos por obras artísticas, ou por realizações políticas, ou por sutilezas físicas, ou por práticas de guerra, mas apenas e tão somente por suas ideias, renegá-las significa manter a vida, mas tirar-lhe totalmente o sentido. Olhando por este ângulo, manter a sobrevivência significaria atirá-la no vazio. É um ato de coragem escolher pela morte, mas a coisa vai mais além: a obra de ambos era, concordemos com eles ou não, maior que a sua própria existência, e, no final das contas, era a melhor coisa a fazer para se manter vivos, permanentes, eternos. Vejam vocês: seria muito menos provável eu estar falando sobre Giordano Bruno neste espaço unicamente por sua Filosofia hoje superada – tanto Religião quanto Ciência concordam que o universo não é infinito e que teve um ponto inicial: a criação para os religiosos, o big bang para os cientistas – do que pelo fato de sua entrega em nome de suas convicções.

E nessa medida o martírio se equivale em dramaticidade ao suicídio, de quem se destaca sem se descolar, porque o suicida “comum” encerra uma tragédia pessoal, enquanto o mártir deixa um legado para a humanidade: morre muito mais aquele que renega o que crê do que aquele que efetivamente se deixa matar. Concordar ou não, é com vocês.
Recomendações de leitura:
Menciono aqui as duas obras que melhor fazem referência à morte de Sócrates, e que citei neste texto. Claro que a linguagem não é das mais fáceis, mas são bem importantes de serem lidas para compreender os motivos pelos quais Sócrates se entrega em martírio.

PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Col. Os Pensadores.
XENOFONTE. Banquete e Apologia de Sócrates. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2008.

O livro principal de Giordano Bruno é o que menciono abaixo. Saibam que ainda hoje é muito utilizado por esotéricos.
Bruno, Giordano. Sobre o infinito, o universo e os mundos. São Paulo: Abril Cultural, 1992.


A imagem da tela de Jacques-Louis David foi extraída do seguinte site:
http://galeriadefotos.universia.com.br/