Olá!
Nasci na Mooca, acho que já falei aqui mais de uma vez.
Tenho um papel chamado Certidão de Nascimento a provar, registrado no cartório
que fica de frente com a igreja do Bom Conselho, em plena Rua da Mooca.
Para quem não é de São Paulo, é bom saber que a Mooca é um
dos bairros mais tradicionais da capital paulista, possuidora de grande
extensão e composta por uma série de bairros menores, como a Mooca Baixa e seus
cortiços, o requintado Parque da Mooca, o Alto da Mooca da música do Adoniran,
a Água Rasa do cemitério da Quarta Parada, a montanhosa Vila Bertioga, as
limítrofes Vilas Libanesa e Regente Feijó, dentre outras. É um bairro tão
importante para a memória paulistana quanto o Brás, a Barra Funda, o Bom Retiro
e a Bela Vista, mas nada se compara ao bairrismo do mooquense.
Não sei bem por quê. Talvez seja pelo fato de que a Mooca
tem uma boa preservação de sua arquitetura fundadora e não ter se degradado
tanto, ou pela razão de que, apesar da prevalência italiana, há inúmeras outras
etnias que ajudaram a amalgamar o bairro como uma pequena aldeia global. De
fato, a região recebeu muitos espanhóis, muitos alemães, muitos eslavos
(conhecidos como bichos d’água, dada
sua brancura) e outras galeras. Havia, inclusive, uma gigantesca construção
conhecida como Navio Parado, que ficava do lado de cá do rio Tamanduateí em
relação ao Cambuci, e que tinha esse nome porque era erguido com altas paredes
de pequenas janelas, à moda de escotilhas, em posição de “bico” para quem
observava a paisagem além do rio. Este colossal cortiço era um abrigo
especializado em famílias nordestinas. Uma de minhas tias, inclusive, saiu de
lá. Pode ser esse um fator de identidade com a região, que também congregava
muitas e muitas fábricas, inicialmente têxteis, para depois inaugurá-las de
todo tipo.
Em uma de suas ruas mais industriais, a Barão de Monte
Santo, estava pichada no muro de uma fábrica a inscrição emblemática: “A Mooca
não é um bairro, nem uma cidade, nem um estado. É uma república”. De fato, a
Mooca tem bandeira, tem hino e só não tem uma constituição própria porque
faltam os tanques de guerra.
Mas a Mooca tem um time. Um time próprio e
tradicionalíssimo, que mistura nome e cor dos dois mais clássicos times de Turim,
na Itália: o grená Juventus, filhote das preferências clubísticas dos fundadores
do Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube. De um, a Juve, pegaram o nome; do
outro, a Torino, trouxeram o belíssimo uniforme cor de vinho – união
provavelmente impensável na própria bota.
Juveeeeentus, Juveeeeeentus! Eu estou aqui! Vamos torcer juntos, Juventus, e daqui nunca mais sair |
O Clube Atlético Juventus é conhecido como Moleque Travesso,
por causa das aprontações que fazia contra os clubes maiores, arrancando
resultados inesperados de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e da outrora
clássica Portuguesa. Lembro sem saudades de um tremendo golaço do jogador
Silva, feito único na carreira deste pouco conhecido atleta. Um gol de
bicicleta clássico – não daqueles em que o jogador dá uma puxeta meia-boca e é
festejado nos fantásticos da vida, mas um giro perfeito no ar, com chute
retilíneo morrendo nas redes bem guardadas do lendário goleiro Ronaldo, hoje comentarista
esportivo.
Mesmo assim, o Juventus angariou tal simpatia que é o
segundo time de praticamente todo paulistano. E, se não se apegasse tão
ferozmente ao futebol romântico (Seu slogan é “Ódio eterno ao futebol
moderno”), que o mantém alijado da disputa por conquistas maiores, provavelmente
seria o primeiro de todo o mooquense.
Sou da Mooca, já o disse, e tenho duas camisas do Juventus;
a completamente grená, linda, e uma listrada, menos tradicional. Mas sou
corintiano, de pai e mãe. E aqui nasce a falácia da vez: a afirmação do
consequente.
Este é o clássico exemplo de falácia formal, ou seja, o erro
não está na verdade das premissas utilizadas para compor a conclusão, mas na
maneira com que são concatenadas na proposição. Imaginemos o seguinte
silogismo:
Todo torcedor do Juventus possui uma camisa do time;
Décio possui uma camisa do Juventus;
Portanto, Décio é juventino.
Para compreender bem o erro desta proposição, é preciso
conceituar o que é implicação material, condição necessária e condição
suficiente. Vamos lá.
Conforme falei no primeiro tomo desta série, todo
silogismo (construção lógica de um argumento) é composto de antecedentes e
consequentes, ou seja, acontecendo tal e tal coisa, será acarretada tal
consequência. Quando essa amarração é feita certinho, o argumento será válido,
e poderá receber um valor de verdadeiro ou falso. Mais ainda: se o antecedente
for verdadeiro, o consequente também será; se for falso, ocorre o inverso.
Pois bem. Percebam que o silogismo é uma condição implícita.
Ele afirma que, SE tais condições forem verdadeiras, ENTÃO a conclusão também
é. Ou seja, a afirmação do antecedente IMPLICA no consequente. Essa é a
implicação material. Tá explicado? Vou facilitar.
Imagine o silogismo clássico, aquele do Sócrates:
Todos os homens são mortais
Sócrates é homem
Portanto, Sócrates é mortal
Aqui, temos o seguinte: SE todos os homens são mortais e
Sócrates é homem, ENTÃO Sócrates é mortal. Parece que isso está correto. Vamos
verificar?
Para que seja verdadeira a afirmação de que Sócrates é
homem, é necessário que ele cumpra alguns requisitos: que tenha duas pernas,
dois braços, mão com cinco dedos e polegar opositor, blá, blá, blá, que seja
racional e que seja mortal. É obrigatório a Sócrates ser mortal se ele quiser
ser um homem, porque é característica inerente à espécie. Dessa forma, ser
mortal é condição necessária para Sócrates
ser um homem.
Por outro lado, para que Sócrates seja mortal, BASTA que ele
seja homem. Ele poderia ser qualquer outra coisa: um macaco, uma barata, um
morcego, um tenro pé de alface, um cogumelo ou uma bactéria – tudo isso é
mortal, assim como a espécie humana. Assim, é condição suficiente que Sócrates seja homem para ser mortal.
Voltemos para Décio e Juventus. Ter uma camisa do clube é
condição necessária para ser juventino? Não, é perfeitamente possível torcer
para o Juventus e não ter camisa, boné, bandeira, adesivo e nem qualquer outra
referência. A única condição necessária é gostar do clube mais que de outros.
Ter a camisa é condição suficiente? Não também. Posso ter
camisas do Juventus, do Corinthians, do arquirrival Palmeiras, da Sampdoria, do
Raja Casablanca, da seleção da Argentina... Isso quer dizer que eu torço por
todos esses times? De forma nenhuma.
Posso tê-las por achá-las belas, e essa sim é uma condição suficiente para eu
ter a camisa.
Por isso, há problemas na construção desta última implicação
material, que não existem no argumento do Sócrates – não há preenchimento de
condições necessárias e suficientes para dar validade ao argumento.
O que está se praticando aqui é um deslocamento do ponto que
deve receber a afirmação. Em um encadeamento lógico, a afirmação deve estar no
antecedente, ou seja, nas premissas. A conclusão é o mero resultado da
articulação delas. No caso do Décio juventino, há uma afirmação divorciada das
premissas na conclusão, ou seja, há uma afirmação do consequente, que é o nome
desta falácia.
Apenas para concluir, este é um tipo de falácia formal de um
grupo conhecido como non sequitur,
termo latino que quer dizer “não segue que”, mas vou deixar essa explicação
para outro capítulo deste pequeno guia. Não há que se falar em afirmação do consequente não falaciosa, porque não se trata de um erro informal ou dispersivo, mas na construção da lógica do argumento.
Recomendações:
Tenho um livro do Mino Carta, tradicional filho da Mooca,
que versa sobre o bairro alguns de seus personagens, recheados de fotos
antigas. É muito bom.
CARTA, Mino. Histórias
da Mooca (com a benção de San Gennaro). Rio de Janeiro: Berlendis &
Vertecchia, 1982.
Este é um videozinho com o tal do gol do Silva. É, de fato,
muito lindo.
https://www.youtube.com/watch?v=fnV3HTaPv1M.
Acesso em 20.05.2015.
E, finalmente, recomendo um curta-metragem que entrevista
alguns moradores da república, que demonstram sua ligação afetiva com o bairro,
além de trazer algumas informações históricas interessantes.
MULLER, Jurandir. Partido
Mooca. Filme. Colorido. 28 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PwmRoKeqfng.
Acesso em 13.06.2014.
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