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sábado, 30 de maio de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 12º tomo - A afirmação do consequente

Olá!

Nasci na Mooca, acho que já falei aqui mais de uma vez. Tenho um papel chamado Certidão de Nascimento a provar, registrado no cartório que fica de frente com a igreja do Bom Conselho, em plena Rua da Mooca.

Para quem não é de São Paulo, é bom saber que a Mooca é um dos bairros mais tradicionais da capital paulista, possuidora de grande extensão e composta por uma série de bairros menores, como a Mooca Baixa e seus cortiços, o requintado Parque da Mooca, o Alto da Mooca da música do Adoniran, a Água Rasa do cemitério da Quarta Parada, a montanhosa Vila Bertioga, as limítrofes Vilas Libanesa e Regente Feijó, dentre outras. É um bairro tão importante para a memória paulistana quanto o Brás, a Barra Funda, o Bom Retiro e a Bela Vista, mas nada se compara ao bairrismo do mooquense.

Não sei bem por quê. Talvez seja pelo fato de que a Mooca tem uma boa preservação de sua arquitetura fundadora e não ter se degradado tanto, ou pela razão de que, apesar da prevalência italiana, há inúmeras outras etnias que ajudaram a amalgamar o bairro como uma pequena aldeia global. De fato, a região recebeu muitos espanhóis, muitos alemães, muitos eslavos (conhecidos como bichos d’água, dada sua brancura) e outras galeras. Havia, inclusive, uma gigantesca construção conhecida como Navio Parado, que ficava do lado de cá do rio Tamanduateí em relação ao Cambuci, e que tinha esse nome porque era erguido com altas paredes de pequenas janelas, à moda de escotilhas, em posição de “bico” para quem observava a paisagem além do rio. Este colossal cortiço era um abrigo especializado em famílias nordestinas. Uma de minhas tias, inclusive, saiu de lá. Pode ser esse um fator de identidade com a região, que também congregava muitas e muitas fábricas, inicialmente têxteis, para depois inaugurá-las de todo tipo.

Em uma de suas ruas mais industriais, a Barão de Monte Santo, estava pichada no muro de uma fábrica a inscrição emblemática: “A Mooca não é um bairro, nem uma cidade, nem um estado. É uma república”. De fato, a Mooca tem bandeira, tem hino e só não tem uma constituição própria porque faltam os tanques de guerra.

Mas a Mooca tem um time. Um time próprio e tradicionalíssimo, que mistura nome e cor dos dois mais clássicos times de Turim, na Itália: o grená Juventus, filhote das preferências clubísticas dos fundadores do Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube. De um, a Juve, pegaram o nome; do outro, a Torino, trouxeram o belíssimo uniforme cor de vinho – união provavelmente impensável na própria bota.

Juveeeeentus, Juveeeeeentus! Eu estou aqui!
Vamos torcer juntos, Juventus, e daqui nunca mais sair

O Clube Atlético Juventus é conhecido como Moleque Travesso, por causa das aprontações que fazia contra os clubes maiores, arrancando resultados inesperados de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e da outrora clássica Portuguesa. Lembro sem saudades de um tremendo golaço do jogador Silva, feito único na carreira deste pouco conhecido atleta. Um gol de bicicleta clássico – não daqueles em que o jogador dá uma puxeta meia-boca e é festejado nos fantásticos da vida, mas um giro perfeito no ar, com chute retilíneo morrendo nas redes bem guardadas do lendário goleiro Ronaldo, hoje comentarista esportivo.

Mesmo assim, o Juventus angariou tal simpatia que é o segundo time de praticamente todo paulistano. E, se não se apegasse tão ferozmente ao futebol romântico (Seu slogan é “Ódio eterno ao futebol moderno”), que o mantém alijado da disputa por conquistas maiores, provavelmente seria o primeiro de todo o mooquense.

Sou da Mooca, já o disse, e tenho duas camisas do Juventus; a completamente grená, linda, e uma listrada, menos tradicional. Mas sou corintiano, de pai e mãe. E aqui nasce a falácia da vez: a afirmação do consequente.

Este é o clássico exemplo de falácia formal, ou seja, o erro não está na verdade das premissas utilizadas para compor a conclusão, mas na maneira com que são concatenadas na proposição. Imaginemos o seguinte silogismo:

Todo torcedor do Juventus possui uma camisa do time;
Décio possui uma camisa do Juventus;
Portanto, Décio é juventino.

Para compreender bem o erro desta proposição, é preciso conceituar o que é implicação material, condição necessária e condição suficiente. Vamos lá.

Conforme falei no primeiro tomo desta série, todo silogismo (construção lógica de um argumento) é composto de antecedentes e consequentes, ou seja, acontecendo tal e tal coisa, será acarretada tal consequência. Quando essa amarração é feita certinho, o argumento será válido, e poderá receber um valor de verdadeiro ou falso. Mais ainda: se o antecedente for verdadeiro, o consequente também será; se for falso, ocorre o inverso.

Pois bem. Percebam que o silogismo é uma condição implícita. Ele afirma que, SE tais condições forem verdadeiras, ENTÃO a conclusão também é. Ou seja, a afirmação do antecedente IMPLICA no consequente. Essa é a implicação material. Tá explicado? Vou facilitar.

Imagine o silogismo clássico, aquele do Sócrates:

Todos os homens são mortais
Sócrates é homem
Portanto, Sócrates é mortal

Aqui, temos o seguinte: SE todos os homens são mortais e Sócrates é homem, ENTÃO Sócrates é mortal. Parece que isso está correto. Vamos verificar?

Para que seja verdadeira a afirmação de que Sócrates é homem, é necessário que ele cumpra alguns requisitos: que tenha duas pernas, dois braços, mão com cinco dedos e polegar opositor, blá, blá, blá, que seja racional e que seja mortal. É obrigatório a Sócrates ser mortal se ele quiser ser um homem, porque é característica inerente à espécie. Dessa forma, ser mortal é condição necessária para Sócrates ser um homem.

Por outro lado, para que Sócrates seja mortal, BASTA que ele seja homem. Ele poderia ser qualquer outra coisa: um macaco, uma barata, um morcego, um tenro pé de alface, um cogumelo ou uma bactéria – tudo isso é mortal, assim como a espécie humana. Assim, é condição suficiente que Sócrates seja homem para ser mortal.

Voltemos para Décio e Juventus. Ter uma camisa do clube é condição necessária para ser juventino? Não, é perfeitamente possível torcer para o Juventus e não ter camisa, boné, bandeira, adesivo e nem qualquer outra referência. A única condição necessária é gostar do clube mais que de outros.

Ter a camisa é condição suficiente? Não também. Posso ter camisas do Juventus, do Corinthians, do arquirrival Palmeiras, da Sampdoria, do Raja Casablanca, da seleção da Argentina... Isso quer dizer que eu torço por todos esses times? De forma nenhuma. Posso tê-las por achá-las belas, e essa sim é uma condição suficiente para eu ter a camisa.

Por isso, há problemas na construção desta última implicação material, que não existem no argumento do Sócrates – não há preenchimento de condições necessárias e suficientes para dar validade ao argumento.

O que está se praticando aqui é um deslocamento do ponto que deve receber a afirmação. Em um encadeamento lógico, a afirmação deve estar no antecedente, ou seja, nas premissas. A conclusão é o mero resultado da articulação delas. No caso do Décio juventino, há uma afirmação divorciada das premissas na conclusão, ou seja, há uma afirmação do consequente, que é o nome desta falácia.

Apenas para concluir, este é um tipo de falácia formal de um grupo conhecido como non sequitur, termo latino que quer dizer “não segue que”, mas vou deixar essa explicação para outro capítulo deste pequeno guia. Não há que se falar em afirmação do consequente não falaciosa, porque não se trata de um erro informal ou dispersivo, mas na construção da lógica do argumento.

Recomendações:

Tenho um livro do Mino Carta, tradicional filho da Mooca, que versa sobre o bairro alguns de seus personagens, recheados de fotos antigas. É muito bom.

CARTA, Mino. Histórias da Mooca (com a benção de San Gennaro). Rio de Janeiro: Berlendis & Vertecchia, 1982.

Este é um videozinho com o tal do gol do Silva. É, de fato, muito lindo.


E, finalmente, recomendo um curta-metragem que entrevista alguns moradores da república, que demonstram sua ligação afetiva com o bairro, além de trazer algumas informações históricas interessantes.

MULLER, Jurandir. Partido Mooca. Filme. Colorido. 28 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PwmRoKeqfng. Acesso em 13.06.2014.

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