Marcadores

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Eclesiastes e sua Filosofia do Tempo - outras observações sobre o livro mais filosófico da Bíblia

Pensamento!
Mesmo o fundamento
Singular do ser humano
De um momento, para o outro
Poderá não mais fundar
Nem gregos, nem baianos...

Gilberto Gil - Tempo Rei

Olá!

Tempos atrás, em uma dessas turnês etílicas que fiz a Monte Alegre do Sul, aproveitei uma promoção de lichias que ocorria em uma pequena chácara na beira da estradinha que leva ao distrito de Mostardas, quase na saída da cidade. O preço estava muito bom, dada à safra generosa daquele ano, e o dono permitia que se chupassem frutas à vontade, enquanto se deslindava a aquisição da sapindácea de origem chinesa, tão bem adaptada ao clima tropical da Ilha de Vera Cruz. Enquanto a patroa usava toda a sua verve otomana para negociar vantagens, fiquei de namoro com um pé de manga gigantesco que havia na entrada da pequena herdade. Todo cheio de frutas ainda verdes, estava tão carregado que era fácil de pegar várias mangas só esticando a mão. Imaginei se não haveria nenhum problema em aviar uma delas à minha algibeira, mas não o fiz sem expressa autorização do chacareiro. Chega de falar difícil. Eu queria era mesmo pegar uma manga. Perguntei-lhe:

“O senhor me autorizaria a tungar uma dessas, mesmo verde?”

Sua resposta foi simples o suficiente para me ensinar algumas coisas: “Essa manga ainda não é de tempo. Se você levar, não vai ter proveito. Ela vai apodrecer antes de ficar madura. Espera um pouquinho”.

Foi até o fundo da roça, de onde era possível ver outras mangueiras. Trouxe-me outras mangas, iguais-que-nem para olhos urbanos. E disse:

“Essas sim. Pode esperar uma semana que elas vão ficar boinhas. Se estiver com pressa, embrulha no jornal que em três dias já dá para comer, mas não vão ficar tão gostosas”.

Atrevi-me a perguntar qual seria a diferença entre o produto de ambas as árvores, e o homem me explicou que há um tempo exato para que uma manga possa ser colhida com proveito. Demonstrou algo sobre a textura da casca, mas eu não consegui perceber a diferença, falando que sim apenas para parecer educado. Mas foi dito e feito: uma semana depois as mangas estavam realmente boinhas para consumo. Há, realmente, um tempo para plantar e um tempo para colher. E isso me remete ao Eclesiastes.


Ora (direis),
justo você vai falar de religião? Não, vou falar de Filosofia. Quando falamos deste livro, temos diante de nós o escrito mais filosófico de toda a Bíblia, que se aproxima muito de pensamentos que trafegam entre o ético e o lógico, e se afastam do metafísico, como acontece com o Budismo, para citar um exemplo. Eclesiastes, ou Qohelet, não se propõe a contar uma história, a desfiar moral, a fazer elegias e louvores... Eclesiastes se propõe a filosofar, e essa é nossa matéria-prima. E sua filosofia é tão rica que há muito que extrair dele. Comecei há tempos atrás, em uma postagem que me rendeu muitas visualizações, e da qual recomendo muito a leitura antes de prosseguir aqui. Fica a seu critério, incomum leitor.

No texto mencionado, depuro como Qohelet assume a posição parmenidiana de mudança como ilusão, baseada em uma de suas frases fundamentais: não há nada de novo debaixo do sol. Mas é no terceiro capítulo do escrito que encontramos o elemento que permeia e dá substância a todo o sentido desta conclusão: o tempo.

Vamos ver. A assertiva sobre a manga do meu caro sitiante encontra-se perfeitamente gravada nos dizeres do filósofo que redigiu Eclesiastes, com toda a carga poética que lhe é peculiar:

“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar e tempo de curar; tempo de demolir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de rir; tempo de gemer e tempo de dançar. Tempo de atirar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de abraçar e tempo de apartar-se. Tempo de procurar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de jogar fora. Tempo de rasgar e tempo de costurar; tempo de calar e tempo de falar. Tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz" – Ecl 3, 1-8.

Tudo tem seu tempo, seu momento correto de acontecer, e a nós resta aguardar. Como eu disse, há um fundo lírico muito intenso na maneira como Eclesiastes cuida da questão do tempo, especialmente no navegar chiaroscuro das suas dicotomias, mas num primeiro olhar temos uma afirmação que pouco passa do intuitivo. Afinal de contas, é quase que uma característica universal humana pensar em oposições. Mas notem que, por trás desse véu de poesia que fica entre o simples e o ingênuo, há um significado mais profundo.

Vamos falar rapidamente sobre a dialética como ferramenta filosófica. Grosso modo, seria a arte do diálogo na busca de respostas às questões que mais nos afligem. Entretanto, quando pensamos no jargão, a dialética não é uma mera troca de ideias, e sim uma espécie de polarização entre conceitos, onde as ideias colocadas em pontos opostos vão se “combatendo” para extrair uma conclusão nova. Já nos tempos de Zenon de Eleia, talvez contemporâneo ao autor de Eclesiastes, o uso de contradições que caminham de um lado para o outro eram construídas para se tentar espelhar a realidade. Este foi um filósofo que se alinhou muito a Parmênides e, como tal, apostava na permanência perpétua do Ser. E usava muitos paradoxos para justificar suas teses*. Entretanto, a percepção da mecânica dialética, desse trafegar entre opostos, foi, ao longo do tempo, transbordando de uma mera ferramenta filosófica (como ocorre com a Lógica) para constituir uma verdadeira Filosofia da História: a estrutura com a qual a História (ou seja, nosso tempo realizado) se movimenta, lembra em muito a dialética que nasceu com os pré-socráticos e desembocou com toda sua majestade no Geist hegeliano e em sua derivação mais famosa, o materialismo histórico-dialético de Marx (leiam mais aqui). Para resumir, estes filósofos entendiam que a História não se deslinda linearmente, como se o tempo fosse um grande vetor movido pelo acaso ou por uma divindade, mas ao sabor de suas contradições, em uma espécie de zigue-zague.

A Filosofia do Tempo de Qohelet já dizia isso, com todas as letras, embora seu tom pessimista pareça lhe tirar um bom tanto de objetividade. É preciso lembrar que as terras judaicas viviam de mão em mão no período em que esta obra foi escrita, sob domínio de assírios, babilônios, persas e romanos, sucessivamente.  Mas isso não oculta outra característica que vem embutida nesse modelo dialético. Poderíamos achar estranho que tanto apoio na dialética esteja situado em um texto que, apesar de filosófico, não deixa de ser religioso. A volatilidade do tempo percebido, que migra de lá para cá dá uma sensação de impermanência que não coaduna com um deus. Mas é nisso que Eclesiastes é diferente dos demais textos bíblicos em geral, na sua adaptabilidade a circunstâncias que escapam do teológico.

Ao se pensar em estados extremos, obrigatoriamente somos levados a pensar em tudo o que está entre ambos. Em uma régua de trinta centímetros, temos o ponto zero e o ponto trinta, o começo e o final. Tudo o que é possível de medir com essa régua está entre esses dois pontos. A dicotomia entre esses limites carrega consigo uma outra constatação que fica mais em seu substrato: o tempo é uma totalidade. Essa ideia é tão poderosa que vai ser retomada, das mais diferentes maneiras, por outros filósofos ligados à Religião, como Santo Agostinho e Boécio, e até mesmo na moderna ciência de Einstein. Como é isso? O semear e o colher são os limites que perfazem a vida de um vegetal. Representam o ato gerador de seu nascimento e sua morte, princípio e fim - alfa e ômega, em um linguajar mais místico. Entre alfa e ômega, tudo o mais na realidade simbólica representada pelo alfabeto está incluído, tudo está lá. Da mesma forma, tudo o que ocorre no tempo está situado entre esses dois extremos: o brotar, o crescer, o dar frutos, o desfolhar, o definhar. Todas as dicotomias expostas por Eclesiastes vão sempre no mesmo sentido: entre o amar e o odiar há todas as nuances destes sentimentos, entre o chorar e o rir existem todos os aspectos dos estados de espírito. Ele corrobora toda essa informação no seu versículo 11, onde diz que...

“As coisas que Deus fez são boas a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração, a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro” (grifo nosso)

... o que indica que não só a dança dos extremos, mas a presença permanente dos tempos. Que tempo? O tempo percebido, porque segundo ele mesmo, não é dado compreender ao homem a dimensão completa do tempo sempre presente.

Já falei sobre a questão da duração (durée) em outro texto, sob o prisma de Henry Bergson. Nela, temos uma discrepância entre o tempo mensurável e o tempo intuído. É aquela sensação de que um bom jogo de futebol passou como um raio e um jogo modorrento se arrastou infinitamente. Não, ambos os jogos duraram noventa minutos em uma medida de relógio, mas a sensação peculiar a cada um de nós se dá pela intuição, e daí a impressão de diferença entre os tempos. Mas a duração à qual Eclesiastes se reporta é outra. Seu sentido é que o tempo é como um imenso tecido onde todos os pontos já estão devidamente alinhavados:

“Reconheci que tudo o que Deus faz dura para sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir (...) Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou”.

Aqui, podemos enxergar uma forma de determinismo, ou, no jargão religioso, de predestinação. Lembremos que estamos diante de um texto que, embora filosófico, é também teológico. Estando o tempo todo presente, e sendo ele uma criação divina, cabe a Deus determinar que acontecimentos estão disponíveis para serem tornados presentes. Mas, nesse caso, como podemos enxergar o futuro?

O futuro é sempre hipótese. De certa forma sabemos o futuro. Não na forma de previsibilidade de que os métodos científicos dizem, mas no reconhecer a dialética dos tempos. Sempre sabemos que qualquer situação não é estanque, mas que ruma para o seu oposto, o que dá até um medinho quando as coisas estão boas. É bem verdade que essa linha invisível tem lugar para parar, mas há sempre um ponto em que a direção chega e se inverte de mão. E sabemos que isso acontecerá, ainda que não saibamos quando ou como… Há uma discrepância entre aquilo que gostaríamos que acontecesse e aquilo que sabemos que vai acontecer. Ao primeiro sentimento, damos o nome de esperança, mas este é um sentimento subjetivo, ligado aos nossos desejos e vontades, sem a necessidade de nenhuma conotação egoísta, mas da nossa própria natureza desejante. Já o segundo sentimento existe como nosso conhecimento dessa natureza dialética dos acontecimentos. Ainda que não queiramos, sabemos do rumo para a morte, enquanto também sabemos que outros seres nascerão, e estes também perecerão. Sabemos que por mais que sejam belas as paisagens naturais e as obras humanas, também estas terão um fim, e no campo devastado haverá quem vislumbre a chance de uma criação ou um novo florescer. Sendo assim, o futuro existe na forma de espera.

Note-se, portanto, que o tempo vivido não é pura predeterminação, mas uma série de eventos inevitáveis que devem ser encarados por cada um de sua maneira própria, e não como uma pura reação mecânica que já estaria escrita em algum livro qualquer. A proposta do autor de Eclesiastes para defrontar a espera representada no futuro é muito próxima à que foi imaginada por seu provável contemporâneo grego, Epicuro. Já delineei a ética do prazer deste filósofo helênico neste texto, mas dou uma rápida repassada na mesma. A humanidade tem um propósito comum: a felicidade. Seja um objetivo terreno ou uma esperança para outro plano, o fato é sempre o mesmo – todos querem ser felizes. As vias para chegar a este intento podem ser muito diferentes entre si, mas os epicureus observavam que a senda do prazer era, de longe, a mais apropriada e menos dolorosa. Era mais fácil buscar o prazer do que resistir à dor, como preconizavam os estoicos. Entretanto, o prazer aqui pensado não é aquele do poder, da fama, do sexo ou da mesa, mas o fato de se tornar prazenteiro qualquer ato que se pratique na vida. Uma caminhada que se faz pela manhã, uma flor que se cheira, o trabalho que dá forma a um objeto, uma água pura que se beba no rio, tudo isso são pequenos atos que, quando se quer a felicidade, são transformados em prazer. Os dizeres de Qohelet são muito próximos a essa mesma ética do prazer simples, como se pode ver no versículo 22:

“E verifiquei que nada há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o volver dos anos?”.

Daqui temos uma contradição à própria ação do homem discutida nos capítulos anteriores: a vaidade (hevel) e a futilidade que retira o sentido da vida. Qohelet nos diz que não nos importa uma preocupação doentia com o futuro, porque ele já está posto, não nos cabe fazer mais do que esperar. Sabemos o que vem, mas não como vem, e angustiar-se com isso é inútil. A vida existe no presente, e é nele que deve ser vivida. Parece meio terreno demais, e é, até mesmo porque boa parte da crítica é favorável à tese de que Eclesiastes nasceu primeiro como um escrito puramente filosófico, para somente depois receber seus elementos teológicos. De qualquer forma, repito o que eu disse no meu primeiro texto sobre este escrito fabuloso: é um texto humano, que pode interessar como conhecimento até mesmo para o mais arraigado ateu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O texto de Eclesiastes é facílimo de encontrar na internet. Para compor este post, utilizei a seguinte versão:

https://www.bibliacatolica.com.br/en/biblia-ave-maria/eclesiastes/3/

* Não vou me alongar muito em Zenon porque já estou preparando um texto bem mais detalhado sobre sua metodologia dos paradoxos.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Maradona e velho problema de esbarrar na loucura a cada instante

Olá!

Vou tentar ser rápido. Há muito tempo eu não faço um texto ao correr da pena. Mas o momento exige.

Quando eu era pouco mais do que um menino, eu tinha sonhos de fazer uma banda e sair pelo mundo tocando minhas mazelas e sandices. A primeira parte eu consegui, pelo exato tempo que levei para concluir que eu precisava ganhar a vida, e fui burocratizar minha história em um escritório de contabilidade. Mas mesmo assim são passagens importantes da minha história, não só no aspecto artístico, como já pincelei aqui, aqui e aqui, mas de experiência mesmo, como se verá mais adiante. Para isso, vou dar detalhes de dois momentos em que a música passou para um plano secundário em minha efêmera carreira.

Tropa de Choque foi o nome de minha segunda banda, uma agremiação do pós-punk alla Camisa de Vênus, mais dedicada a covers do que a composições próprias. Queríamos colocar Boca de Lobo, mas já havia um comboio com esse mesmo nome e mesma proposta circulando por aí, daí acatamos a sugestão de alguém, nem lembro mais quem. O projeto nasceu em uma tarde de sol de um domingo desses, através do contato de um colega de colégio, o Marcos (aka Argentino, numa coincidência temática apenas ocasional). A ideia da banda nem nasceu na hora. Veio um pouco de tempo depois, quando um amigo de lá do bairro queria uma banda de suporte para participar de um festival. A coisa não deu lá muito certo, mas foi o suficiente para tentarmos a sorte.

Fomos juntando repertório e aperfeiçoando a técnica cada vez mais, e ficando famosinhos naquele quarteirão da Vila Santa Clara, até o ponto de começarmos a arriscar uns barzinhos, o que nos exigiu dar uma, digamos, modificada em alguns documentos, pelo fato de sermos menores de idade, todos. Mas cinco moleques que mal faziam a barba conseguiam negociar com pais e donos de bares para tocar a incipiente carreira? Claro que não. É nesse ponto que entra a figura do Calola.

E quem esse cara? Um rapaz bem mais velho que a gente, muito do boa pinta, que vivia em trajes sofisticados, como se fosse um advogado. Era raro vê-lo de jeans e camiseta. É aquele típico cidadão que passa confiança em uma primeira vista, e se tornou uma espécie de empresário da emergente banda, conseguindo uma rede cada vez mais ampla de lugares para desfiarmos nossas cordas.

Se fosse só isso, nada de mais, como diria o peru na porta do forno. Ocorre que o Calola foi uma espécie de catequista para uma nova religião: as famosas substâncias. No começo, uma paranguinha fina, para todo mundo fazer cachimbo da paz no meio dos ensaios sem chances de perdas totais. Depois, uma perigosa habitualidade, que se tornava mais perigosa ainda naqueles tempos de repressão mais pesada. A história chegou ao ponto de não nos reunirmos mais para ensaiar, mas para marolar. A coisa chegou no meu limite quando nosso papa Calola veio com uns papelotes estranhos, cheios de um negócio que não era verde, nem feitos para fumar. Ele dizia que era melhor de usar nas entradas dos shows, para dar uma “liberada nos instintos”, nos dizeres dele.

Eu sempre fui muito cagão para essas coisas, então achei que era o momento exato de pular fora, o que fiz. De fato, já andava meio indisposto com os demais colegas. Queria partir para um estilo mais maduro, e trabalhar com composições próprias, o que foi acontecer mais tarde, com o Exílio e o Mosaico. Fui franco com os motivos e não fui lá tão bem entendido, mas no fim das contas não ficou muito ranço pra trás, apenas o aprendizado de que as coisas não podem ser sempre baseadas em uma solidariedade a um messias que nos promete o paraíso. O tal Calola foi o único que quis um pouco mais de satisfações com relação ao meu pedido de conta, mas nada de cano na cabeça ou dramas de folhetins.

Anos depois, já mais estabelecido e trabalhando com minhas cançõezinhas próprias na retrocitada Exílio, fui dar um socorro para uma galera que tentava iniciar sua vida artística. Novamente eram companheiros de escola, com um nome bem mais thrash: Sentença de Fogo. O dono da bola era bem cheio de grana, filho de empresário que era, e tinha todos os equipamentos necessários para alegrar o coração dos pobres músicos desvalidos, que compravam microfones a prestação. Bons amplificadores, espaço à vontade e um baixo Rickenbacker 4001 que era absolutamente inalcançável para alguém da minha laia. Entretanto, meu papel lá era outro – fazer vocal e bateria enquanto eles não conseguissem nomes ideais para as duas tarefas. Uma delas era para o irmão mais novo, com o bulímico apelido de Porco, que estava tentando dominar seu ímpeto nos tambores, e a outra foi se espalhando por vários candidatos (modéstia a parte, todos piores que eu). Com isso, fui ficando, ficando e ficando. Coelho na guitarra e Tio no baixo eram bons músicos, e estavam em franca evolução, e às vezes eu tinha até um pouco de vontade de permanecer, embora não quisesse ficar tocando covers de bandas de heavy metal a vida inteira. Como eu já contei, meu barato era outro.

Entretanto, um belo dia apareceu aquele pacotinho que eu já tinha visto nas mãos do pregresso Calola. Ali, não havia riscos, a não ser do pai dos meninos descer com uma peia em nossas costas. Só que eu cocei o piolho na hora, relembrando os dias nem tão longínquos de Tropa de Choque e concluí que, para mim, já tinha dado. Desta vez, aleguei que o Porco (o tal irmão mais novo) tinha que começar a tocar junto com a galera, senão nunca pegaria noção de grupo. E quanto aos vocais, não seria difícil de conseguir, bastando sair da acomodação de ter alguém fazendo a dupla função. Eles ficaram entre tristes e putos, mas sério... meu instinto de conservação e bunda volumosa – ainda bem – não deixaram eu prosseguir naquela casa. Melhor voltar para o velho Exílio, onde as drogas mais pesadas eram a cafeína e a nicotina, consumidas aos borbotões*.

Contei essas duas histórias apenas para lembrar como várias vezes tangenciamos a questão da drogadição ao longo de nossas vidas. E eu só mencionei dois exemplos que foram bem marcantes, porque esses momentos ocorreram incontáveis vezes, às vezes até mesmo em uma inocente viagem. Vamos esbarrando no tema em cada esquina, cada bar, cada faculdade, cada show, cada jogo. E há quem consiga se desviar, há quem não.

No dia de ontem, 25/11 do ano da graça de 2020, morreu Diego Armando Maradona, que nasceu pobre e em condições precárias, em uma favela de Buenos Aires, até ser reconhecido como um dos maiores jogadores de todos os tempos. Aliás, essa dúvida só não ocorre no Brasil, onde Pelé é o rei, e na Argentina, onde Maradona é Deus, com “D” maiúsculo. Como sua morte é recentíssima, a internet está apinhada de material sobre o craque. Mesmo assim, senti-me motivado a falar sobre seu passamento por dois motivos.

O primeiro foi logo que recebei a notícia. Estava em meu home office enfadonhamente costumeiro e minha filha mais nova sentada lá perto, vasculhando o mundo através de seu celular. Ela mesma falou: “Ixe, o Maradona morreu”.  Minha reação foi uma esperada surpresa e ligar a televisão – velho tem dessas coisas. Caiu em uma entrevista ao Casagrande, um dos meus jogadores favoritos da juventude. Ele estava verdadeiramente consternado, por um motivo muito humano: menos que o jogador, é o adicto que falou. “A morte de um dependente químico como o Maradona é a morte de todo dependente químico”, ele falou. Esse foi o principal insight que me levou a escrever este texto.

Mas não é só. O segundo motivo é que eu sou apaixonado por futebol, que acho uma das melhores ferramentas para falar sobre Filosofia, como espelho da vida que é. Usei tantas vezes o esporte bretão como referência neste espaço que daria um belo compêndio. Para quem se interessar, fiz uma listinha incompleta lá no fim deste texto.

Eu nunca fui um fã incondicional do Maradona, dado o fato de ser argentino, o que é uma grande bobagem que hoje eu recordo com vergonha. É um dos maiores gênios do futebol que a humanidade já viu, mas, ao contrário de Pelé, Messi, Zico ou Zidane, foi um tremendo vida torta. Sempre se envolveu em rematadas polêmicas e cansou de fazer bobagens. E é exatamente isso que lhe dá todo o encantamento. Enquanto os jogadores que eu citei formam a beleza dentro do campo, Maradona é um cara que ia para além disso. Ele está na mesma prateleira de esportistas como Nelson Piquet e sua relação tempestuosa com a imprensa, ou como Sócrates e seu engajamento político, ou ainda como Mike Tyson e sua perigosa relação com a criminalidade. São mais que atletas, são personagens que moldaram um modo de ver o mundo que suplanta aquela imagem do herói perfeito, apolíneo. São, antes disso, cada um a seu modo, descendentes de Dionísio, com o amor pelo anticonvencional. Eu resumo a coisa da seguinte forma: jamais gostaria de ter Maradona como genro, mas sua biografia é certamente muito mais interessante de ler do que qualquer um dos perfeitos. Sua vida não é só uma história; é um romance, cheio de percalços.

Por conta disso, Maradona era um daqueles anti-heróis tão caros à filosofia nitzscheana do amor fati, alguém que se apegou tanto à própria vida que acabou morto por ela. Uma vítima da tragédia grega que é a vida vivida em intensidade maior do que a mesma pode suportar. É aquilo que chamaríamos de louco, mas o que é um louco? Erasmo de Roterdã já utilizou da ironia para definir a loucura como indefinível, e Nietzsche, em sua obra Aurora, sugere-nos como temos o direito a ser loucos, porque é a moral ditada pelos donos do poder que arbitra o que é sanidade. E, ainda que de forma inconsequente, a felicidade é pessoal:

“Ao indivíduo, à medida que procura sua felicidade, não se deve dar nenhum preceito sobre o caminho que leva à felicidade: pois a felicidade individual brota segundo suas próprias leis, ignoradas por todos, de modo que só pode ser bloqueado e detido por preceitos que vêm de fora - os preceitos a que chamamos 'morais' são na verdade dirigidos contra os indivíduos e não desejam de modo algum sua felicidade”.

É exatamente quando entendemos que os preceitos que nos apontam focam a uma conformidade que vem de cima que podemos entrar em perigo. Eu corri os riscos que Maradona assumiu, e isso ocorreu, como eu disse, a cada instante. Como não sei bem o que é a loucura (e de resto ninguém sabe), poderia hoje estar no seu mesmíssimo papel, no ponto pequeno do meu universo. Quem mais não é assim?

Maradona foi um louco, na medida em que viveu sua vida louca, e não podemos julgar se sua loucura é pior ou melhor que as nossas próprias. Mas podemos guardar a imagem da luz que se apaga sobre uma camisa dez da Argentina que será infinita, porque a arte dele já tinha sido a nós entregue e estão inscritas nos nossos cânones e memórias, ainda que não desejemos sua trajetória para nós mesmos. Sua arte é legado para o futebol; sua história trágica, para a humanidade.


Não consegui evitar a verve sentimentalóide, mas eu já sou um “jovem” senhor, que viveu o auge da carreira de Dom Diego Armando exatamente no auge da minha própria vida. Não chorei, mas fiquei de fato mexido, como fiquei na morte do Raul Seixas, do Lemmy, do Garrincha e de tantos outros. Peço minhas desculpas. Bons ventos a todos e vida eterna à memória do Pibe de Oro.

Recomendações:

A referência para a obra menciona de Nietzsche é a seguinte:

NIETSZCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Escala, 2013.

Coletâneas de jogos e gols de Maradona são encontradas às pilhas na internet. Talvez seja mais interessante entender seu caráter complicado através da carreira errática de treinador. Há uma boa série de documentários disponível na Netflix para ver esse seu lado menos conhecido.

MCQUEEN, Angus. Maradona no México. Documentário. Episódios entre 26 – 39 minutos. Cor. Los Gatos (EUA): Netflix, 2019.

* Voltei a dar minhas voltas com o mundo dos tóxicos em minha passagem pelo Mosaico, mas essa história eu já contei em um dos textos indicados neste post.

Sobre goleadas e a dialética que explica os vexames no futebol

Pequeno guia das grandes falácias - 12º tomo - A afirmação do consequente

País do futebol: o que precisamos avaliar para saber se isso é ou não uma verdade

A Portuguesa e a tragédia grega posta em prática - Até quando há de brilhar a cruz dos teus brasões?

Sobre couraças psicológicas e pênaltis mal batidos

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (18 – Filosofia da Linguagem)

O comportamento de manada explica porque temos tanta dificuldade em pensar por nós mesmos (Pequeno Guia das Grandes Falácias – 44º tomo: o Bandwagon, ou Argumentum ad judicium [Apelo à maioria])

Navegações de cabotagem – Um campinho de futebol em Pedro de Toledo e a pergunta que perturba: nós existimos de fato ou somos frutos de alguma percepção?

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 10ª mirada (2ª parte): o distrito de Luís Carlos evocando os princípios e leis da Gestalt

Inferências diversas como matéria-prima para a metodologia científica, ou tempos de saber melhor como funciona a Ciência

Tentativa simples de explicar a metodologia científica com o uso do futebol

E tantos outros...