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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 10ª mirada (1ª parte): Guararema e as mimetizações do desejo

Olá!


Não me incomodo com a chuva, mas... chega, né? Depois de dois dias amassando barro com pneus e sapatos, o dia de ir embora amanheceu com bom sol. Seria apenas mais uma ironia do destino, mas o fato é que ainda havia o dia inteirinho para flanar por aí, então não há nada a lamentar, muito pelo contrário. Malas, café, contas e rua. Despedimo-nos de Santa Branca rumo a oeste, por uma estrada secundária que nos levou para Guararema, a terra das orquídeas (embora não tenhamos ido atrás de nenhuma)


Cheia de atrativos naturais e culturais, Guararema é incrivelmente perto da Pauliceia Desvairada, pertencendo mesmo à região metropolitana, embora sua relativa calma não faça transparecer essa condição. Faz parte do cinturão verde metropolitano, e destaca-se o rio Paraíba do Sul, que corta a cidade em seu centro, limpo como não estamos habituados a ver. O Recanto do Américo, mais conhecido como Pau d’Alho, é um dos símbolos da cidade, já que seu nome veio exatamente desta espécie, e há um exemplar de duzentos anos em destaque bem na orla do rio.


Dizem que em dias de intensa umidade é possível sentir o cheiro de alho que esta árvore exala. Não senti nada, talvez pelos anos de tabagismo. A patroa tem um faro mais fino e uma ojeriza proverbial pela amarilidácea, e não deu sinais de náuseas, o que confirma a ausência. É uma praça composta por decks de onde podem ser acessadas algumas das ilhas fluviais que povoam o leito. Uma das pontes é do tipo pênsil, com o tablado sustentado por cabos.


Como eu disse, estamos ao lado de um rio de porte bastante razoável, mas que não se encontra morto, como sói acontecer nas proximidades das grandes urbes. Isso favorece a pesca e o uso do curso como lazer. Como o povo adora jogar comida para os peixes, eles sempre estão lá em profusão.


Outro acesso à margem se dá pelo pátio do Zé da Bala e pela travessa Dona Victória. O primeiro era um farmacêutico habituado a distribuir balas para as crianças, enquanto a mulher era sua esposa. Trata-se de uma plataforma de madeira que ladeia a borda do rio, e que leva ao...


... Centro Artesanal Dona Nenê, que reúne uma série de artesãos da região. As especialidades são artigos de bambu, barbante, tecelagem, madeira e materiais recicláveis.


A principal ilha fluvial, no entanto, é a Ilha Grande, que foi transformada em parque nos idos da década de 2000. Seu acesso se dá por trás da igreja matriz, através de outra obra de arte significativa, uma ponte em arco metálica com tablado de madeira.


Ao lado desta entrada, há um monumento em formato de fonte com a figura de alguns peixes. Imagino que sejam guarus. O homenageado é o próprio rio Paraíba do Sul, central no interesse de Guararema.


O parque é todo bem cuidado, uma espécie de Ibirapuera local, onde há cerca de meio quilômetro de trilhas e uma série de espaços de convivência. É um bom exemplo de frescor nos dias quentes, seja pela arborização, seja pela cercania do rio. Há ainda o NEA – Núcleo de Educação Ambiental, um espaço para palestras que fica bem no meio da ilha.


Recebemos umas boas dicas de almoço. Uma delas, saindo um pouco do centro, fica dentro do Parque da Pedra Montada, que fica em uma região repleta de plantações de eucaliptos, mas que, dada a grande quantidade de pedras, foi reservado um pequeno recorte para a preservação das formações rochosas. É um terreno com um grande desnível, onde há uma estrutura totalmente em madeira para abrigar administração, comes e bebes.


O parque tem esse nome por causa de um conjunto de duas pedras em sobreposição, sem qualquer aparato que as sustente. A pedra de cima parece que vai escorregar a qualquer instante, mas a dupla é estável, embora a cerca que lhe protege denuncie a intenção de alguns visitantes de lhe subirem nas costas.


Indo mais ao alto, há uma outra formação que, esta sim, dá para subir. É a Pedra do Tubarão, que realmente lembra o peixe. O pessoal da foto, simpaticamente, não se importou com a reprodução, e até brincou um bocado com a gente.


Foi aí que buscamos nosso almoço, um prato de traíra com arroz e legumes, guarnecidos com batata e creme verde. É caro, mas o ambiente é muito legal e a comida é verdadeiramente boa. Estando ainda em clima de bodas, valeu a pena.


Depois de fazer o quilo, fomos até o bairro da Lagoa Nova para conhecer o estabelecimento do meu xará, o Alambique do Décio. Na verdade, o homônimo já morreu, e o negócio é conduzido pelo filho Degmar. É uma longa linhagem de alambiqueiros, que produz sua aguardente desde 1905.


Meu pai, também Décio, já conhecia o lugar e me trouxe uma canequinha de lá. Como eu me apresentei e comprovei o nome, ganhei uma garrafinha da amarelinha de graça! Hoje, o estabelecimento cresceu bastante, e inclui pesqueiro e restaurante.


De lá fomos para o distrito de Luís Carlos, mas é tema para o próximo texto, sob pena de ficar longo demais o atual. Chegamos no centro novamente bem no finzinho da tarde, a tempo de ir ao Mirante do Gerbásio, que foi um prefeito de Guararema.


É o ponto mais alto da cidade, e tem uma bela vista para todo o núcleo urbano e para as montanhas, além de dar oportunidade ao pôr do sol.


Ficamos lá até a natureza acabar de se exibir. Depois disso, fomos ao bar que fica próximo ao parapeito norte para tomar uns líquidos...


... que, aliás, é esse aí da foto. Logo após o ocaso, o local fica substancialmente mais vazio.


No topo, uma coleção dos principais símbolos da cidade: as pontes, as igrejas, a pedra montada, o trem e sua fumaça no formato tortuoso do rio Paraíba do Sul.


Como vou tratar de um tema específico, dei uma quebrada no aspecto temporal e vou falar agora das igrejas históricas existentes na cidade, que fui pontuando durante todo o transcorrer do dia. A primeira delas é a matriz, dedicada a São Benedito, a mais central e próxima do rio de todas elas.


Outra delas é bem mais antiga, e fica na Freguesia da Escada. A informação no frontão é que foi construída em 1652. No entanto, este é o ano da primeira capela. A que tem formato atual é de 1732 e se chama Nossa Senhora da Escada. Fica em uma praça típica dos arraiais da época do desbravamento. Pelo fato de estar afastada da via pública, é muito silenciosa e tranquila, associada a uma arquitetura bem representativa da época imperial...


… em um viés diferente daquele que nos acostumamos a ver nos centros das cidades. Ao contrário do rebuscamento do estilo barroco, temos aqui uma igreja espartana, com pouca decoração e muita solidez nas paredes de taipa de pilão. Tudo lá prima pelo simples e rústico.


Talvez a coisa mais insólita dessa igreja seja a imagem de São Longuinho, uma espécie de padroeiro dos objetos perdidos, para quem se prometem três pulinhos no encontro da peça. Sua discrepância entre popularidade e frequência nos nichos de santos se dá pela extrema imprecisão de suas fontes históricas. Conta-se que era o soldado que furou o lado do corpo de Jesus na crucificação (Jo 19, 34), e que se converteu ao ser molhado pelo sangue e pela água. Sua melhor fonte é a Legenda Áurea, coletânea da vida de mártires já há muito considerada apócrifa pela Igreja Católica. Daí, o fato de ser melhor reconhecido pela crença popular do que pelos cânones oficiais, como acontece com São Jorge.


Na outra ponta da cidade, no alto de um outeiro, fica a capela de Nossa Senhora d'Ajuda, em estilo bastante semelhante à anterior e ainda mais antiga, de 1682. É daquelas igrejas que possuíam um cemitério aos fundos, que era utilizado para enterrar escravos.


Para chegar à capela, é preciso vencer uma escadaria de 80 degraus. Em seu interior, há uma imagem de Nossa Senhora d'Ajuda que, segundo se conta, veio de Portugal em uma das caravelas da frota do descobrimento. O fato é que a data de sua confecção é incerta, sendo cediço ser muito antiga.


É uma igreja que encontrou muitos problemas até a dona Cidinha, sua zeladora, se propor a construir uma casinha nas proximidades, para não só lhe dar manutenção, mas principalmente para vigiá-la. É que, até o começo dos anos 2000, era um patrimônio histórico em ruínas, completamente abandonado, sendo utilizado principalmente como ponto de venda de drogas, com tudo o que isso traz junto: prostituição, violência física, escambo de objetos roubados, pichação das paredes, quebra das portas e janelas e così via. A própria imagem histórica foi recolhida antes que fosse extraviada.


Por mais que compreendamos o drama da drogadição, por mais que saibamos que o sentimento religioso não é um impeditivo para o cometimento de crimes, e por mais que tenhamos consciência do menosprezo governamental à questão do patrimônio histórico, o fato é que o desencontro que existe entre um lugar de culto e a prática de violência é chocante, até mesmo para quem não é vinculado à religião. Ainda que não seja uma regra absoluta, as diferentes religiões não costumam dar manifestos que fujam do pacifismo*. Então, mais do que um misticismo, a reverência à coisa sagrada é algo a ser esperado de qualquer um. A um religioso da própria fé, por motivos óbvios; de outras, pela mutualidade esperada no respeito; e de um ateu, pelo simples fato de que as consciências deveriam ser livres, e que se alguém pensa diferente, isso não é um motivo para que seu espaço não seja mantido incólume. Isso tudo sem pensar no aspecto histórico.

É evidente que nosso modelo social permite esse tipo de fenômeno, porque está em seu substrato uma lógica de exclusão que favorece o vilipêndio às coisas caras a quem mora na parte de cima do sobrado, mas, quando se pensa na religião como um lenitivo e um refúgio, também ao rés-do-chão deveria interessar o cuidado com o templo. E isso tudo torna as respostas difíceis. Mas podemos sempre tentar.

Começando pelo começo, vou relembrar de mais um episódio da vida deste escriba. Eu já falei outrora que comecei minha então incipiente vida acadêmica numa escolinha de paróquia. De lá, eu trago uma das lembranças mais remotas que tenho com clareza na memória, e que coincide com a de muitas outras crianças: o primeiro dia de aula. Eu, na verdade, nutria grande expectativa em ir para a escola, porque eu aprendi a ler muito novinho. Então era com orgulho que, vestido com o fardamento quadriculado em azul e branco, encaminhei-me à sala designada, ladeado pela minha mãe até a porta. Tudo estava tranquilo, e eu nem pensei no fato de que ficaria sozinho, quando o primeiro petiz mais agarrado à genitora iniciou o coral das lamentações, que se espraiou unanimemente por todo o recinto como aqueles caminhos de rato que fazemos desmanchando bombinhas, incluindo este que vos narra. A Pedagogia mais moderna recomenda cuidado nestes momentos, com uma transição leve e menos traumática, mas a coisa era mais cascuda naqueles tempos inóspitos, e a solução era a espera da professora Amélia por uma redução no tamanho da onda, amparando os mais exaltados. Lembro que ainda por mais uns três dias eu e outros ainda chorávamos no portão de entrada, até que, belo dia, resolvi por mim mesmo: “Chega de choro”. Se eu queria de fato ir para a escola, como a maioria de meus pequenos colegas, por qual motivo aquela tristeza toda se desdobrava?

A resposta está na palavrinha mimese. É um tema muito vasto na Psicologia, na Sociologia e, óbvio, na Filosofia, tanto que já tratei várias vezes do tema aqui no blog (sobre selvageria, sobre memes, sobre lixeiras e sobre rapport), e que vamos utilizar novamente. É assim: eu dou uma coçadinha, você dá uma coçadinha. Eu dou uma tossidinha, você dá uma tossidinha. Eu dou uma bocejada, você dá uma bocejada, e logo todo mundo ao nosso redor boceja também. Esse é o princípio geral que as risadas mecânicas das comédias tentam despertar: por imitação, induzem o público a rir no momento “certo”. Mais ainda: se eu digo que estou com dor nas costas, meio que automaticamente você dá uma conferida se está tudo em ordem em sua espinha, ou se eu olho assustado para determinada direção, você fará a mesma coisa, tudo isso inconscientemente. O homem aprendeu a imitar, porque isso lhe ajudou a evoluir, pelo simples fato de sermos seres sociais. Aquele choro das crianças nada mais é do que isso. A quebra da normalidade puxa a fila das reações, mesmo que não haja motivo algum para isso.

Pois muito bem. O filósofo francês René Girard entende que o processo de mimese é intrínseco ao ser humano e é tão poderoso que funciona inclusive em pontos mais escamoteados da realidade. Fundamentalmente, ela atua na lógica do desejo.

Quando pensamos no desejo, sempre imaginamos uma relação dual: há um ser que deseja e um objeto que é desejado. Assim, de uma forma ou de outra, uma entidade externa, o objeto, provoca em um sujeito um afeto de expectativa na obtenção ou alcance, e ça tout. No entanto, aparentemente procurarmos um referencial para os nossos desejos, porque estamos permanentemente inseguros com relação ao que queremos. Sendo assim, a relação com o desejo não é dupla, mas triangular. Entre o sujeito e o objeto do desejo, há um tertius que serve de paradigma para a relação. Nosso desejo é, portanto, terceirizado e dominado pelo Outro. Isso demonstra uma ausência de autonomia com relação aos nossos objetos de desejo – há sempre um terceiro intermediando a formatação daquilo que queremos. Isso tudo é muito fácil de enxergar. Artistas de TV e influenciadores digitais ditam moda. Jogadores de futebol e funkeiros ostentam riquezas em cada simples ato. Tornam-se ideais porque são o modelo máximo de nosso meio social. É o que Girard chama de desejo mimético.

Uma relação destas não pode deixar de ser conflituosa. É evidente que nem sempre esse Outro vai se tornar um peso. Cito como exemplo este meu texto, onde reconheço uma série de influências na minha escrita. É perfeitamente possível afirmar que, ao reproduzir um modelo reconhecível de escrita, eu tenha concretizado o desejo de escrever pela régua de meus influenciadores. Se eu queria aplicar a fluidez de Flavio Gomes ou a imbricação formal/coloquial de Sérgio Porto, não é aceitável admitir que eu desejei algo do estilo deles? Entretanto, essa é uma exceção. Em geral, o modelo não é visto como um referencial isento, mas como um rival, e todo o contato que se tem com ele é marcado pelo ressentimento. Isso tudo porque temos apenas um objeto que é disputado pelo sujeito e pelo modelo, com primazia do segundo. Confuso? Vamos lá. Torço para um time qualquer e há um objetivo nisso: projetar as vitórias que a vida me nega. Só que os títulos não vêm – as taças se encaminham para outra sala de troféus. O meu desejo é alimentado pelas conquistas do meu adversário. À merda com futebol bonito, com tradição, com revelações, com categorias menores. O que eu quero é exatamente o que o Outro tem, e vou me debater com ele pelo butim do desejo mútuo. Só que o dono dos títulos, hoje, é ele, e a inveja parte de mim para ele, e não o contrário. É isso.

Agora pensemos por analogia em nossa sociedade de consumo, movida a desejo. Já se viu onde vamos parar, né? Publicidade massiva, grande penetração dos meios de comunicação e uma certa democratização no acesso à informação são os temperos que fazem com que o motor do impulso consumista gire a altas rotações, em espiral progressiva. O órgão cutucado é exatamente o do desejo e, por mais que não se faça transparecer, muito daquilo que se é posto é inatingível. As agências de viagens mostram fotos da velha Europa ou do Caribe. Quantos de nós podemos adquiri-las? As concessionárias exibem carrões movidos a pensamento. Quem pode comprar? Celulares são renovados nas vitrines a cada dia. Quem aguenta o ritmo? O pior é que tem quem. Poucos, mas têm. Esses são os Outros de camadas inteiras da população. Enquanto a coisa está só no âmbito da inveja, vida que segue, apesar do desconforto. O problema é quando o imperativo suplanta os limitadores sociais e o Outro vira inimigo, e o objeto de desejo se converte em objeto de disputa, e nos becos escuros explode a violência. O carro inatingível, o celular incomparável e o tênis de malaco é conseguido pelo roubo, pela ameaça, pela morte. Dessa forma, temos que a mimetização dos desejos sai da chave da admiração para cair na infinitamente mais perigosa perspectiva da posse a qualquer custo, porque carrega consigo uma boa dose de vingança.

Mas o Outro não fica parado. Ao se estabelecer o ciclo da violência, inverte-se o giro da roda. É preciso encontrar o agora inimigo que está no outro polo para se desejar ardentemente a sua aniquilação. Claro que, quando pensamos em duas pessoas envolvidas, é mais fácil de se saber contra quem voltar o foco. No entanto, quando pensamos em um organismo social, o ódio pode se voltar contra um segmento inteiro. De qualquer forma, o ato da vingança é uma inadequação a uma resolução racional e pacífica, de forma a se constituírem bodes expiatórios. O mais clássico deles é o povo judeu vítima do holocausto. Quando a Alemanha se viu destruída pela Primeira Guerra e assolada pelas duras cláusulas do Tratado de Versalhes, tratou de buscar alternativas onde elas eram as piores possíveis. Os nazistas apresentavam os judeus como bode expiatório perfeito: um povo de fora, possuidor de bens e dinheiro, recluso em seus costumes. Seu aniquilamento representaria a redenção dos alemães castiços. Sabemos bem onde tudo isso foi parar.

Quando o imperativo do consumo atinge nossas classes mais pobres, encontra-a fragilizada. É claro – o desejo se torna inatingível, mas visto pela ótica do Outro, ou seja, da classe privilegiada, ganha um rival objetivo. Seu caminho é pela via do crime, algo que, no final das contas, foi imposto por essa mesma classe, que domina as ações políticas. No entanto, quando essa mesma classe reage, olha para os pobres como um todo criminalizado, e o bode expiatório é justamente aquele pobre que não tem sua defesa. O crime se organiza e se encastela, mas o pobre é eleito, como um todo, como o bode expiatório de toda essa relação. Para o criminoso, o pobre é um refém; para a elite financeira, uma usina produtora de bandidos.

No fim, Girard apresenta o bode expiatório como uma solução para o conflito dos desejos, mas vamos tratar disso com mais cuidado em outro momento, porque vai envolver muita coisa, inclusive religião. Por ora, basta entendermos que o vilipêndio da Capela d’Ajuda se deu, nesta perspectiva, não só pelos fatores técnicos (construção abandonada em local escondido), mas por uma questão de métrica dos valores de duas classes colocadas em oposição – o sagrado abandonado por uma tem proveito pragmático por outra, ainda mais porque há uma lógica mimética nisso. É um espaço que ambas querem, mas que lhes é inconciliável o compartilhamento. E que se dane a história, porque não é em todo lugar que haverá uma dona Cidinha para quebrar a corrente do conflito.

De resto, meus caros conterrâneos paulistanos, já tornando menos amarga minha fala, Guararema é daqueles lugares onde é possível passar um domingão inteiro de boa, sem a pressa do retorno dos lugares distantes. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Girard não é simples, mas faz uma coisa saudável: fala sobre Psicologia fora do âmbito científico, mas no filosófico, porque justamente não pretende tratados científicos, e sim com escopo aberto, que inclua especulação e religião.

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
  
* Marchas para Jesus com dedinhos simulando arminhas contradizem o que estou dizendo? Sem dúvida, mas em Filosofia tentamos aplicar a lógica a todo o custo, o que nem sempre é conseguido em sociedades exóticas como a nossa.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 9ª mirada: Salesópolis e a metafísica no delicado nascimento do Rio Tietê

Olá!


Nunca ouvi dizer que uma dança da chuva tenha tido efeito reverso. Então não adiantou nada sair se sacudindo com a patroa nas ladeiras de Santa Branca. A sexta-feira amanheceu tão chuvosa quanto tinha sido a noite anterior. Sim, eu sei. Danças são para produzir aguaceiro, e não para estiar. Como eu não acredito em nada disso, deve ser o motivo universal da falta de fé e, sendo assim, o negócio é pegar barro mesmo. Faz parte e não há de perturbar. Há outro calçado na mala.

Este dia estava pleno e absoluto, porque, apesar de perto da Terra da Garoa, sempre há descarga de mala, desembaraço de hotelaria e um certo balouçar indeciso até pegar o rebolado da viagem, o que come importantes horas no cômputo líquido. Com isso, logo após o café bem cedo, apontei meu nariz um pouco mais ao sul, para conhecer a pequena cidade de Salesópolis, o berço do Tietê.


O antigo nome da cidade era São José do Paraitinga, e foi modificado para homenagear o presidente Campos Sales, uma honraria da qual sou comumente contrário. Seu padroeiro é São José, e sua matriz tem o habitual estilo do colonial tardio, com traços neoclássicos.


Toda a igreja é cercada de referências ao santo em questão. Pode parecer estranho hoje em dia, mas São José não era um dos santos mais cultuados no começo da igreja, talvez por seu papel pouco destacado nas páginas bíblicas. Hoje em dia, é muito recordado como padroeiro dos trabalhadores, e do lado de fora podemos ver uma representação da sagrada família com nosso caro em plena labuta.


Não ficamos muito tempo na área urbana, no entanto. No caminho para as nascentes do Tietê, há um restaurante conhecido como Senzala, que vai muito além da propositura gastronômica. Diz-se que é uma área onde uma antiga senzala se quedou abandonada após a abolição da escravatura.


Estando recoberta de mato, foi localizada por um comerciante que tinha uma filha adotiva. Tomou posse do lugar, que não possuía proprietário formalizado, e lá a transformou em sua habitação. 


Atualmente, a família da menina adotiva já está em sua quarta geração, procurando preservar a casa em seus aspectos essenciais, como as paredes de pau a pique e o chão de terra ou de tijolos.


Quem nos narra a história é o atual proprietário do lugar, o João, que mostra com orgulho os diversos móveis, objetos e utensílios ali existentes, como o maquinário manual para produzir farinha de mandioca.


Seguindo adiante na estrada, já bem embrenhado na parte rural, fica localizado o Parque Nascentes do Tietê. O nome não é um romanceamento como se gosta de fazer com os condomínios fechados das beiras de estrada, mas um espelho da realidade: é aqui que nasce o tão judiado rio.


Já quero agradecer ao administrador Daniel, que nos deu valiosas orientações sobre o parque. Para chegar à nascente propriamente dita, há quatro alternativas de caminho, sendo um direto, dois por trilhas curtas e um por trilha mais longa, de cerca de dois quilômetros. Foi por essa que eu fui.


Estava tudo bastante molhado e cheio de formigas, mas foi bom notar como a vegetação, apesar de espessa, é jovem. Não há grandes árvores com grossos troncos, porque a redondeza era destinada a pasto até não muito tempo atrás. Por aqui, o Tietê ainda é um pequeno regato.


O ponto exato de onde surge o rio faz compreender como o equilíbrio natural é delicado. Não fosse a placa demarcatória, dificilmente se saberia que ali nasce um rio que corta o estado de São Paulo praticamente inteiro, com sua inconsueta direção que se afasta do mar.


Há três pontos de onde a água brota. O primeiro é uma rocha fendida por onde escorre um fino filete d'água...


... o segundo é de uma fenda mais rasa, onde foi colocada uma calha de taquara para que a água fique mais visível...


... e o terceiro é um olho d'água, onde o líquido sobe pela areia do fundo do pequeno leito, formando um minúsculo torvelinho.


Como chovia, tudo isso ficava um pouco mais complicado de fotografar. Prova da boa qualidade da água que lá surge é a presença de muitas aranhas d'água e dos pequenos guarus, peixinhos bem pequenos e muito comuns na região. Coloquei uma sinalização na foto para ficar mais visível (aranha em vermelho, guarus em preto). Também tinha bastantes girinos no local.


Daí por diante o curso do rio vai se avolumando aos poucos, ganhando consistência na medida em que outras pequenas minas vão afluindo para ele. A água nesta região é perfeitamente limpa e plenamente potável.


No próprio parque há um memorial que dá informações da cidade de Salesópolis e da criação do parque, com um bom número de painéis explicativos e uma maquete que demonstra o perfil hidrográfico da região.


O mais interessante e chocante são os comparativos entre a coloração das águas do rio Tietê durante seu curso. Na foto, água colhida da nascente e na cidade de São Paulo. Chega a ser desesperador. Menos mal que, de lá para frente, a imundície se disperse, até voltar a ficar limpa pela região central do estado.


Uma pausa para se secar e almoçar, partindo para nova empreita. Desta vez, pegamos a Estrada dos Freires para ir até o Museu da Energia de Salesópolis. Gerenciado pela coordenadora Simone Villegas, e, no dia, auxiliada pela guia Carol, é um espaço muito bonito, todo florido, cheio de bananeiras e goiabeiras, além da tropa de cinco cachorros que elegeram o local como moradia.


É surpreendente, mas a poucos quilômetros daquela pequena nascentezinha de três pontos, o rio Tietê já pega porte suficiente para permitir a construção de uma usina hidrelétrica, ainda que não muito grande.


A usina em si tinha capacidade para abastecer de energia elétrica pequenas cidades da região. É preciso considerar que em 1913, ano de sua fundação, a redondeza era naturalmente muito menos habitada que hoje.


O maquinário é o mesmo desde a inauguração. A usina parou de produzir energia na década de 80, mas está em fase de testes para voltar a operar em tempo constante. Tivemos a sorte de pegar a usina em pleno funcionamento.


Esta tubulação é destinada a trazer a água da represa que fica lá no alto. Para quem não sabe, uma usina hidrelétrica funciona utilizando o efeito da gravidade, com a força da água movendo as pás das turbinas, que, por sua vez, é transformada em energia elétrica pelos geradores vistos na foto anterior.


No passado, a operação da usina demandava um bocado de operários, que, dado o isolamento do empreendimento, habitava por lá mesmo. Algumas das antigas casas ainda estão lá, com o seu estilo bem típico.


Seu uso hoje é outro. Em seu interior e em seu entorno, há uma série de artefatos que demonstram o funcionamento da eletricidade, com a possibilidade de interação dos visitantes, como os geradores a pedal e as limalhas magnetizadas.


Em outra das casinhas, há o assim chamado Espaço Água, que conta o histórico da usina e da cidade de Salesópolis, incluindo informações sobre a mata e a fauna nativa.


Um dos operadores atuais, chamado Elvis, é um entusiasta da observação de aves, e promove, por iniciativa própria, algumas atividades neste sentido. É uma zona onde se encontram quase trezentas espécies, inclusive uma ave em sério risco de extinção, o bicudinho-do-brejo paulista, que virou uma espécie de símbolo do lugar.


Para subir até a represa, é preciso encarar uma escada de 250 degraus. Já encarei até maiores, mas esta foi, de longe, onde eu mais me cansei, pela extrema irregularidade nas dimensões dos degraus.


O topo da escadaria, entretanto, permite uma vista muito bonita do vale, e dá uma grande visão geral do complexo do parque, que tem, como se pode esperar, um grande desnível com relação à base.


Esta é a represa formada pela barragem, em contrastante mansidão com o fluxo frenético da queda d’água.


E este é o escoadouro que faz vazar a água acumulada. É controlada por um sistema de comportas que ora retém água, ora a faz descambar morro abaixo.


Vejam como as coisas se dão em um equilíbrio delicado, que nasce como um filete, mas que toma uma dimensão enorme, que atravessa grandes porções de território, se torna imundo, mas depois se revigora, em um ciclo de renovação e recriação que tenta, a força, se manter. A vida resiste, mesmo nas coisas brutas.

Em mais de um texto (aqui e aqui) me reportei a uma espécie de espiritualidade que escapa da religião, algo como uma integração ao universo que sentimos ao nos defrontar com a imensidão ou a nos perceber como parte da engrenagem cósmica. Há quem perceba nisso uma espécie de equilíbrio natural que tende a trazer as coisas aos seus lugares, há quem veja isso como a obra de um deus criador, que rege todas as coisas com tal poder que nos diminui a condição de moscas. E há quem conjugue as duas coisas. Esse quem é Baruch de Espinoza, de quem falaremos a partir de agora.

Já espanei de leve o assunto aqui, mas entendi que fazia sentido aproveitar o ensejo e aprofundar o estudo. Forçando o trocadilho, Espinoza teve a vida muito espinhosa. Sendo judeu, foi expulso da sinagoga (chérem). Estando em país cristão, a Holanda, foi excomungado. Tudo isso por sua concepção sui generis com relação a Deus. E o começo é a ideia de substância que nosso holandês de pais portugueses tinha. Desde os tempos aristotélicos, a Metafísica olhava para a forma e a matéria que compunham os seres e as chamava de ousía, a base de todos os seres e que ancora cada uma das coisas a uma realidade que lhe é subjacente, que lhes tornam o que elas são. Aristóteles entendia que cada objeto no cosmos tinha sua própria substância, mas Espinoza entendia que essa substância era única e comum a todos os seres, sendo que as diferenças entre os objetos estão apenas no plano do aspecto.

Mas o que seria essa substância que permeia todo o universo e está presente em todas as coisas? Para Espinoza tanto pode ser chamada de Deus ou de natureza. Deus é natureza, e natureza é Deus. É o conceito de causa sui, a substância que é causa de si mesmo e que está em tudo, absolutamente tudo no universo.

Como podemos reconhecer a natureza como causa de si mesma? De uma maneira extremamente simplificada, podemos pensar no seguinte: a cada vez vemos brotar uma planta, surgir um bicho, desaguar um rio. É da natureza que provém a natureza. Mesmo quando chupamos a mais artificial de todas as balas, é de algum elemento natural que lhe foram extraídos os componentes. Equivalendo natureza e Deus, como em Espinoza, podemos afirmar que é a natureza que dá existência à própria natureza, que é a natureza que dá a essência à própria natureza e é a natureza que dá potência à própria natureza. Substitua o nome natureza por Deus e teremos a mesma lógica.

A concepção de Deus em Espinoza, portanto, é muito distinta daquela imaginada por teístas. Deus, ainda que colocado em um trono, é movido pelas mesmas paixões que o homem. Mesmo que os monoteísmos representem, de certa forma, uma evolução da visão quase animista do politeísmo pagão, permanece a visão de Deus como um homem acima dos demais, destacado do mundo assim como um rei se destaca da sociedade. Apenas utilizando como exemplo, é possível ver como o Deus cristão é ciumento (Ex 20, 5), vingativo (Dt 32,35), enternecido (Os 11,8), paciente (1Cor 13, 4), muitas vezes tendo atitudes opostas entre si quando tratando de um mesmo assunto. Enfim, uma divindade humanizada, porém colocada à parte, transcendentemente. Não é difícil de entender isso quando se olha a própria Bíblia. Mas Espinoza também vê Deus nos seres desprovidos de alma, já que ele é um monista de substância. Essa tal de alma não há, enquanto corpo e pensamento são também da mesma substância e parte da mesma natureza e do mesmo Deus.

Eu sou corpo, assim como minha mente é corpo, e as mentes e corpos dos outros fazem parte da mesma natureza que nos une e da qual somos copartícipes. Eu não sou uma substância particular, mas uma individualização que ocorre por conta dos movimentos e do repouso que me são peculiares. Dessa forma, temos o afeto no pensar de Espinoza, que nos modifica e renova, e isso também ocorre quando sou tocado, no corpo e na mente, por toda a delicadeza da vida que se origina e renova. O afeto é movido pela potência de agir, que Espinoza dava o nome de conatus, e que cresce ou diminui na medida em que um corpo consegue ou não manter suas proporções de movimento e repouso. Sim, é como se fosse uma vontade de viver. E essa vontade se espelha também nas coisas, no Rio Tietê que resiste à sua morte ao passar pela metrópole e que deságua na divisa com o Mato Grosso do Sul já totalmente renascido.

Deus não está apartado do mundo. Ele é o próprio mundo, expresso na natureza. Ele não vive na transcendência, como se estivesse nos céus, mas é imanente, está aqui conosco porque nós mesmos somos parte dele. Não somos como Deus, somos Deus. E assim também é tudo o que é de bom e de ruim, tudo o que é de leve e de pesado, tudo o que é de claro e de escuro, sem tirar nem pôr. Daqui, temos o seguinte: quando se refere a Deus, Espinoza é um panteísta; quando o equivale à natureza, torna-se um ateu. É mais ou menos essa uma dupla designação que se atribui a ele.

É claro que uma visão dessas não iria agradar nenhum dos próceres religiosos, ainda mais em uma época que eles gozavam de tanto poder. Um Deus sem personalidade, sem vontade própria, sem intelecto, e, principalmente, sem o bastão do castigo aos que erram, sem um livro de regras na mão, e cujos atributos são simplesmente a eterna necessidade absoluta e a impessoalidade, que tanto se aplica ao bem quanto ao mal... É, não podia dar certo. Espinoza viveu no início do século XVII, momento em que os judeus eram expulsos a torto e a direito dos países cristãos, e apresentar um deus com esse formato fazia com que nem pela origem, nem pelo ideário, Espinoza tivesse vida confortável, terminando seus dias como polidor de lentes.

Essa concepção metafísica de Espinoza, no entanto, representa uma novidade importante para nós, nestes tempos em que a vida da natureza se encontra em uma encruzilhada, onde não sabemos onde a necessidade de desenvolvimento nos levará. Se pensarmos na natureza como um todo que nos doa nossa própria existência, e ainda que a chamemos de Deus, teremos a oportunidade de rever algumas condutas. Será que é justo afrontar com toneladas de lixo e de egoísmo nossa própria divindade?

Bons ventos a todos...

Recomendação de leitura:

É um livro complexo, como complexo é todo o pensamento espinozano. É um daqueles caras que nos coloca em apuros na faculdade, mas, com um pouco de boa vontade, vale a pena conhecer.

ESPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.