Marcadores

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Os verdes mares de onde não há mar – 4ª parada: Borda da Mata e as discussões sobre o erotismo

(O erotismo é uma semvergonhice ou uma inerência humana?)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Depois de um dia mais enfiado no meio do mato, na sequência dessa viagem pelas Serras Verdes do Sul de Minas fomos à ponta de um outro circuito, o das malhas. É um lugar onde se concentram várias especialidades têxteis, sendo que já estive aqui em outros tempos, mais especificamente na terra do tricô, Monte Sião (aqui e aqui). Desta vez, a passagem é por Borda da Mata, que gosta de malhas e lingeries.


A cidade com autonomia não é muito antiga, mas é povoada desde o século XVIII. Está na mesma linha de cidades como Itajubá, Piranguinho e Brazópolis, o que significa que o trem passava por aqui. Sua estação de trem hoje é uma bela casa de artesanato.


No centro da cidade, pontua uma bonita igreja, a Basílica de Nossa Senhora do Carmo. Originalmente uma capela, foi crescendo cada vez mais à medida que o arraial ao qual pertencia foi também se expandindo, especialmente após seu desmembramento da cidade de ouro fino.


À sua frente, a praça que ocupa a área original do arraial, em um tempo onde nem se sonhava na atual ocupação comercial.

É com o Monsenhor Pedro Cintra que a igreja chegou à sua condição atual. Durante os 38 anos de seu vicariato, chega a sua arquitetura definitiva e ganha a condição de basílica.


No campo comercial é que Borda da Mata fez sua fama. Com pequenas confecções espalhada por toda a cidade, podemos dividir os artigos em três áreas principais. Os pijamas…


… as tapeçarias…


… e, em grande número, as lingeries.

São diversas lojas que se propõe a realizar um comércio semelhante ao que se vê no Brás ou na José Paulino: um preço para a venda a retalho, outro para o atacado. De toda forma, ambos são convidativos o suficiente para fazer uma sacolagem.

As lojas desta especialidade já fazem publicidade em cartazes logo ao longo da rodovia, explorando a sensualidade de suas modelos.


Embora haja também cuecas e ceroulas para os moçoilos, o fato é que a maior parte dos produtos e a totalidade da publicidade se faz com as fotos sensuais das meninas. Eu poderia falar sobre objetificação feminina e outras coisas, mas é tema para ser tratado com cuidado, e o farei em outro momento. No mesmo sentido, poderia falar da moralização tão decantada da família tradicional brasileira, com seus amantes e puladas de cerca, mas, nesse caso, não estou com paciência, porque se trata de hipocrisia, mais que qualquer outra coisa. Corpos são belos, e ponto. O paradigma dessa beleza é cultural, mas somos constituídos da capacidade de apreciar a beleza, seja discutível como for o modelo. Isso tudo fica para depois. No momento, quero discutir o erotismo e o papel da sensualidade.

Está fora de dúvidas que a publicidade lança mão de artifícios mais ligados à emoção do que à razão para realizar o seu trabalho. Em tese, caveat emptor*, e que cada um cuide de não se sentir seduzido. Sedução… esse é o material de trabalho dos cartazes e letreiros. Embora palavras e músicas carreguem uma boa dose dela, é com os corpos que ela chega ao seu paroxismo.

Certamente você já se perguntou porque se compram roupas pré-rasgadas nos dias de hoje, pelo mesmo preço que se pagaria em uma peça íntegra. Claro que a moda explica muita coisa, mas não se pode descartar um certo sabor de sedução no seu uso. Uma roupa, primordialmente, serve para esconder. Se a princípio era para esconder do frio, dizem as religiões e a moral que as mesmas impõem que é para "esconder as vergonhas", seja lá o que isso quer dizer (reprimir a sexualidade, é isso o que quer dizer. A grande pergunta é: para quê?). A calça rasgada abre uma pequena janela que permite entrever um pequeno pedaço do que está lá por dentro, e isso já é ferramenta para atiçar a libido.

Já a lingerie esconde o mínimo, deixa ver tudo, menos a quintessência da sexualidade, e esse é, na verdade, o clímax do jogo. É como se fosse a casamata de um rei que se oculta do ataque inimigo que já transpôs todas as barreiras possíveis, com a diferença que esse rei sorri ao ser atacado. Essa contradição só é possível por conta do erotismo.

Eros é o deus grego do amor. Aqui no Brasil, como figura mitológica, é mais conhecido por Cupido, representado por aquele anjo gordinho de arco e flecha, mas que nada tem de angelical. Filho de Ares, o deus da guerra, com Afrodite, deusa do amor, Eros é a representação do amor erótico, das paixões e do desejo. Junta a permanente combatividade de seu pai com a força dos sentidos de sua mãe para reger o amor inconsequente, aquele que tem por principal objetivo a satisfação orgânica dos corpos, mas que nunca se sacia. Deu nome, dessa forma, àquela modalidade de amor mais carnal, de toque e estímulos físicos, que expus com mais detalhe neste texto. No que essa porção atrativa se imiscui em nossa espécie?

Não vou aqui me descuidar e tentar opinar sobre o papel dos hormônios ou das conexões sinápticas no fenômeno erótico, mas me ater ao meu mundo, o da Filosofia, exatamente como fez o controverso literato e filósofo francês Georges Bataille, uma espécie de pensador do corpo de nossa era contemporânea, no sentido filosofal, sem se preocupar com verdades científicas. Sua polêmica gira em torno de seus livros repletos de sexualidade desabrida, um Marquês de Sade do século XX. Mas suas observações intelectuais sobre o tema são interessantes, vez que completamente desvinculadas de uma visão moralizante.

Bataille vai buscar suas ideias na psicanálise freudiana, mais pontualmente nas pulsões de vida e morte, o Eros e o Tânatos. Mais remotamente (até porque, mesmo que sem declarar, Freud também o faz), resgata de Nietzsche os fundamentos da vontade de potência e os aplica nas suas hipóteses do erotismo.

Flertando com o Existencialismo, nosso intelectual coloca a imanência do corpo como princípio do Ser. Embora possamos pensar coletivamente na humanidade, é no indivíduo que a mesma se realiza, se concretiza, se transforma em existência. Sendo assim, entre um ser humano e outro existe um abismo que o torna eternamente solitário. A própria existência do outro já é a marca de uma individualidade, e de uma separação, e de um abismo, e de uma solidão.

A solidão é oriunda do próprio surgimento da vida, que se propagou por meio das divisões celulares. Quando ela provém de um ser assexuado, a sua reprodução resulta na morte do organismo originário, que se autodestrói para que a vida se eternize em novos seres. No humano, sexuado, também a destruição se dá, só que agora na fusão das células que dão origem ao zigoto. A morte está lá em profusão: milhões de espermatozoides rumam para o fim em busca de um único óvulo que os vá acolher. O único que se safa também não se mantém - doa sua substância para o surgimento da nova vida, o que também ocorre com o óvulo. Para o surgimento de um, dois se sacrificam. A vida é banhada de mortes, e é sua própria natureza.

Daí, o que temos é uma contínua descontinuidade, o que caracteriza a eterna solidão. Um Ser nunca é completo por si só. Acontece que o ser humano tem o impulso da totalidade, uma espécie de nostalgia pela continuidade que tinha em sua unicidade celular, e esse impulso é materializado e constituído pela mesma unificação que se dá na cadeia reprodutiva, ou seja, no sexo. E eis que nós vamos em busca de reintegração, ainda que provisória. Ela vai acontecer no ato sexual, que reconstrói a fusão originária do óvulo e do espermatozoide, agora na forma de amantes, e é exatamente aí que nós nos diferenciamos dos demais animais. Estes são seres que exercem sua sexualidade de maneira orgânica, puramente carnal. Ou seja, satisfazem uma necessidade como outra qualquer. Já nós possuímos o tal do erotismo.

O que difere o erotismo da pura sexualidade é que o primeiro não é meramente carnal como o segundo, mas está relacionado a processos mentais. Todo o circuito erótico faz girar a roda da fabulação, representando todo um contexto do qual o ato em si é só um dos componentes, a sua apoteose. No erotismo, a sexualidade é toda uma história contada, que inclui um pré-ato, um ato imaginário, um ato que é disparado por sutilezas, como um olhar, um gesto, uma cruzada de pernas, um movimento suave, uma palavra lubrica, uma peça de roupa que deixa entrever a pele, que deixa delinear o corpo, que oculta apenas o essencial, uma lingerie.

Sendo assim, podemos reconhecer em nós mesmos a imaginação agindo, quando temos ativados nossos dispositivos eróticos. A fantasia leva a libido para antes da necessidade carnal, e não depois. Sim, é perfeitamente possível que a libido venha pela visão do corpo nu, já preparado para o ato, mas o erotismo torna possível que tudo isso aconteça mesmo na ausência de um parceiro.

O erotismo é fundamentalmente transgressivo, porque o retorno à totalidade que ele almeja foge daquilo que nos é natural: a pré-mencionada solidão. Isso explica porque ele é excessivo, por vezes violento, por vezes exótico, permanentemente em luta com o que a razão conduz. Ele se choca com tabus e vetos, e se alimenta deles, sacralizando o objeto do desejo ao qual se interpõem tantos obstáculos. Por conta disso, o erotismo chega a transcender o mero ato sexual (até mesmo porque o precede). Dentro da religião, existe uma condição chamada de êxtase místico, e que foi descrita por vários religiosos, sendo provavelmente a mais famosa de todas Santa Teresa de Ávila. Segundo suas descrições, Gianlorenzo Bernini esculpiu uma estátua magistral, cujo semblante faz entrever toda a carga erótica contida na experiência extática:


É preciso lembrar que tal escultura foi aprovada pela Igreja Católica. Ela exprime toda a corporeidade do êxtase místico, que é absolutamente semelhante à expressão do clímax sexual, uma espécie de desfalecimento posterior ao orgasmo, a pequena morte mencionada pelos poetas. Mesmo o êxtase místico é uma expressão corpórea. Bataille tenta demonstrar que o erotismo vem de qualquer experiência de integração, e não somente da relação sexual. A religião é um dos mecanismos em que uma pessoa busca se unificar a um todo, no caso, à totalidade divina. Poderia acontecer com o uso de drogas, ou com as catarses gregas. O importante é perceber que é uma experiência transgressora porque, como já dito, a continuidade representa destruição - dois seres unidos já não são mais dois, mas um só. Parece coisa de casamento. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Bataille é um autor muito polêmico, porque escreveu desabridamente sobre sexo e sexualidade, e tem gente que não gosta disso. Como o princípio básico da Filosofia é tratar de qualquer assunto, não tenho essas amarras. Segue a indicação de seu principal livro sobre o tema:

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: autêntica, 2020.

* Caveat emptor, traduzido por “cuidado, comprador”, significa que a prerrogativa do cuidado na atividade comercial está em quem compra, não em quem vende. Legislações como o Código de Defesa do Consumidor vem dar proteção à esta lei meio desigual do mercado.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Os verdes mares de onde não há mar – 3ª parada: Congonhal e as duas realidades das duas cachoeiras

(Duas cachoeiras, duas realidades)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Se a esperança urbana se esvaiu em Santa Rita do Sapucaí (leia aqui para entender), o jeito é pensar em coisas mais óbvias. É bem verdade que o capitalismo permite coisas do tipo meter uma cerca ao redor de uma cachoeira, para gáudio e proveito de poucos, mas também é verdade que há gente de boa vontade e espaços públicos, então o negócio é se enfiar no meio do mato, porque sempre haverá a chance de encontrar coisas legais. Daí que eu fui para Congonhal, pequena cidade do circuito ao qual me propus a palmilhar nesta viagem.


Esta cidade era originalmente composta por sesmarias de posse do comendador José Ferreira de Mattos, que as doou para o poder público. Até então, as povoações eram compostas de pequenos grupamentos remanescentes da procura por ouro na região.

Como costuma acontecer nessas cidades do interior, há uma marca profunda da religiosidade, com a tradicional igrejona da praça, cujo padroeiro é São José Operário.

Esta praça é uma das passagens de uma das principais manifestações religiosas da região, o Caminho da Obediência.


Essa romaria tem origem nas relatadas aparições de Nossa Senhora da Obediência em uma capela na área rural, mais especificamente na Serra das Tronqueiras, onde há um bairro de nome São Domingos. Consta que um fiel teve a visão de Nossa Senhora em meio ao acende-e-apaga de uma lâmpada na tal capela, o que foi reputado por milagre entre os frequentadores, o que fez com que a pequena ermida começasse a receber grande número de visitantes.

O que tem de mais legal na cidade são as suas cachoeiras, cuja diferença entre elas dará o mote filosófico deste texto. Na mesma serra citada anteriormente, fica a Cachoeira das Quinze Quedas, formada majoritariamente por um conjunto de nascentes que desce para a planície na forma de cascatas.


São quinze quedas de fato. A cada degrau, a formação de poções e remansos dá boa balneabilidade ao local, que tem água mui limpa e fresca.


O acesso aos pontos mais altos se dá por trilhas e escadas que os proprietários, seo Simão e filhos, foram montando nas laterais da cachoeira. Embora facilite muito a vida, alguns pontos são bastante íngremes e escorregadios.


A subida completa traz como brinde uma visão de mirante, a 1600 metros de altitude, e os efeitos da rarefação do ar, aliados ao esforço da subida, de fato fazem com que precisemos puxar mais fôlego do que o normal.

Já nas margens do Rio Cervo, na outra ponta da cidade, fica uma cachoeira bem mais simples, do estilo escorregador, chamada de Cachoeira das Almas.


É um lugar bem mais próximo do núcleo urbano, onde há uma ducha que aproveita a água do rio e uma série de pedras para tomar sol.


Há mais diferenças entre as duas cachoeiras que a mera variedade geográfica pode fazer supor. O começo está no acesso. A Quinze Quedas custa 25 genocidas-de-saída a entrada, o que, convenhamos, não é pouco. Já a das Almas tem entrada franca. Quando estávamos na primeira, cruzamos com um casal e nós, latinissimamente, começamos a conversar como se vizinhos fôssemos. Pelo meio do papo, falei da minha intenção de ir às Almas, que foi contraindicada pelo par. Diziam ser bem mais feiosinha e, principalmente, mal frequentada. Acontece que eu, macaco velho da Sé e imediações, não iria me assustar com uma cidade que ficou mais de dez anos sem homicídios. Portanto, vamos até lá também, como não?

Bom, "feiosa'' é uma qualificação relativa. Para mim, é só uma questão de saber aproveitar o que cada uma tem de bom. Se por um lado a Quinze Quedas é mais deslumbrante aos olhos, a das Almas é mais divertida e segura, o que é ótimo para concentrações maiores e crianças. Mas a parte problemática está na segunda afirmação. Vamos por partes.

Quando eu fui à Cachoeira das Quinze Quedas, encontrei uma estrutura verdadeiramente melhor que nas Almas. Um bom vestiário, bons banheiros e áreas próprias para refeições, incluindo churrasqueiras de alvenaria. Na outra, dois banheiros e ça tout. As churrasqueiras vêm no porta-malas do Corsinha, bem como a farofa, a galinha e a vitrolinha, esta última substituída por malditas bazucas que valem mais que o combalido veículo. Notem como já vou forçando a mão nas tintas para chegar onde quero.

Hoje em dia eu tenho condições de ir à cachoeira de 25 moedas, mas juntar a patroa e os dois filhos já faria o orçamento saltar para cem pilas. Ainda é pagável no "de vez em quando", mas vai se tornando um programa para menos pessoas, já que o custo do ingresso concorre com o do piquenique.

Aí eu vou buscar algumas experiências do passado. Meu tio Salvador tinha uma Kombi, daquelas com cara de coruja, bem desgastada por sinal. De quando em quando, ele forrava a kombosa de gente e pegava a Estrada Velha de Santos, eu incluso no chiqueirinho que atendia por porta-malas. Uma Kombi comporta nove pessoas e, sem exagero, fazíamos com alguma frequência essa farofa com o dobro de pessoas: só lá de casa, já encheríamos o balouçante veículo. Escolhida a praia, meu tio enfiava o utilitário na areia que, tal qual um motorhome, servia de vestiário, de refeitório, de lavabo, de dormitório e de ambulatório, para quando houvesse algum enjoo a resolver. Isso era o máximo que se dava para fazer, algo impensável para os dias de hoje.

E agora eu me ponho a pensar em como as pessoas que moravam na baixada ou podiam alugar casas viam aquela turba na areia. É muito pouco provável que pensassem: "é só uma família tentando se divertir um pouco". Pelo contrário, deveriam se incomodar um bocado, querer que fôssemos para longe, sem sujar sua praia, sem fazer barulho.

Há um muro que nos divide, e ele é alto e sólido. Há uma barreira mais larga que faz entrever a divisão política que pousou entre nós e ameaça assentar perenidade. Mas esse é o aspecto mais recente e, até certo ponto, mais fácil de contornar. Muito mais complexo é o que está arraigado, e muito menos perceptível. O muro passa pelo abismo financeiro, segue pelo racial e étnico, anda pelo psicológico e desemboca até mesmo na linguagem, na maneira como os lados percebem o mundo. Nessas horas, vou pensar em um autor que tenho lido ultimamente, o norte-americano Willard Quine, e servirá de base para o que eu quero dizer.

Em um primeiro momento, pode parecer que falar outra língua se resume a trocar as palavras. Isso é alguma coisa semelhante a colocar etiquetas debaixo dos objetos a que queremos traduzir, e assim andaremos. O importante é intercambiar a referência, ou seja, o que eu chamo de alhos e bugalhos, um inglês chama de garlics and nut-galls, e um italiano de agli e ghiande, qualquer coisa assim.

"Tradutore, traditore", diziam nessa mesma Itália já há um bom tempo. O efeito dessa teoria do rótulo é a tremenda dificuldade de obter fidelidade nas traduções, mesmo quando feita por linguistas gabaritados. Não é preciso ir longe: a tradução de O Morro dos Ventos Uivantes feita por nada menos que Rachel de Queiroz é até hoje objeto de críticas, não porque lhe falte talento ou capacidade, mas pela dificuldade inerente. E por que isso acontece?

Para além da ausência de certas correspondências linguísticas, é preciso entender que existe uma intersubjetividade que subjaz no funcionamento de qualquer linguagem. Ninguém fala somente para si mesmo, e, mesmo que tente fazê-lo, estará fadado ao fracasso. Primeiro, porque ainda que eu queira falar sozinho, minha linguagem é fruto da comunicação que eu faço com meus circunstantes. Depois, a linguagem não tem serventia outra do que estabelecer contatos. Se a utilizamos na estruturação de nosso pensamento, é por derivação. A linguagem é a minha subjetividade se comunicando com a subjetividade do outro, e, por isso, Quine a classifica como arte social.

O problema da etiquetagem é que ele é uma passagem meramente fonética. De fato, é um aspecto importante, mas que não dá conta de resolver a questão semântica, central em uma relação intersubjetiva. Mais importante do que correlacionar palavras e objetos é encaixar a linguagem no seu contexto, porque há uma mobilidade de significado conforme a relação que se dá entre duas ou mais pessoas. E as chaves de leitura entre uma cultura e outra precisam estar tão claras quanto a vivência de cada um é para si mesmo… o que é praticamente impossível. Por isso, traduzir é um problema. É o que Quine chama de inescrutabilidade da referência.

Ele monta um exercício mental para fornecer um exemplo. Estando em uma terra com estranhos que não falam sua língua, surge um coelho e um dos nativos exclama "gavagai". A reação imediata é compreender que esse termo corresponde a coelho, mas temos aqui uma incerteza: qual é a função semântica de um coelho naquela cultura local? Pode ser apenas o bicho, mas pode corresponder a um alimento, a uma espécie de companhia, a uma raridade, a uma divindade, a um exemplo de ternura ou até mesmo a uma praga que dizima as lavouras. Mais ainda, o nativo pode estar se referindo não ao coelho como um todo, mas a uma parte dele, e, nesse caso, gavagai corresponderia a orelhudo ou dentuço. Percebam, portanto, que uma associação entre a palavra gavagai e o objeto coelho não dá conta do total de significados que essa relação pode ter. Imagine você indo à noite na casa de um desses nativos e perguntando se teremos fofura para o jantar. Ou que queira enaltecer um devastador bichinho peludo, dizendo como ele é lindinho, para alguém que tenha perdido sua horta para um desses.

Eis que a linguagem depende de um meio social para existir, e o mero referencialismo não é suficiente para produzir traduções. Se não possuirmos as chaves contextuais de uma linguagem, podemos ser um dicionário ambulante dela, mas, mesmo assim, não traduziremos nada.

Quine está se referindo, naturalmente, a aspectos muito mais profundos das diferenças das linguagens, mas eu notei uma coisa aqui. É bastante possível perceber como há diferenças referenciais dentro de um próprio idioma. Notem a diferença de significação que entre a cachoeira para a elite e para o proletário.

Quando se troca a língua, troca-se a visão de mundo, porque todo o seu pensamento é estruturado a partir da linguagem que você vive, mesmo que seja exatamente a mesma de outros estratos populacionais. Por exemplo: quando alguém de nível social mais elevado (não gosto dessa expressão) diz que vai à cachoeira, você pergunta: "qual?". Isso acontece porque está no espectro dessa pessoa uma variedade de destinos em função de seus ganhos. Então é possível que seja a cachoeira de 25 reais, ou alguma que eu pegue o carro para ir a outro estado, ou ir às Niagara Falls ou, até mesmo, ir à Cachoeira das Almas. Se não vai até esta última, é porque há um incômodo, e não uma impossibilidade. Já para os que estão além do muro, a possibilidade é única. Dizer que se vai até à cachoeira já faz subentender que o rumo é o possível, a Cachoeira das Almas. Neste círculo, falar em “ir à cachoeira”, já significa ir à cachoeira pobre.

Você que é paulistano como eu pode notar como nos orgulhamos do sotaque fortemente puxado do italiano, como acontece na Mooca, bairro em que nasci e do qual me orgulho, mas onde perceptivelmente se força a barra para ter uma fala mais cantada do que já se tem naturalmente, e esquecemos que há outro sotaque na própria cidade, um sotaque da periferia, duro, até mesmo soturno, a quem damos caráter pejorativo, e que é retratado nos raps do Racionais, do Emicida, do Xis. Esse é um sotaque autêntico e legítimo que só colocamos a claro quando queremos representar o banditismo, a favela, a pobreza. É duro, mas é isso: nosso salto social é tão grande que pode ser percebido até no modo como falamos, ou nas cachoeiras que frequentamos, especialmente quando não conseguimos nos comunicar com quem está em classe distinta.

Voltamos à noite para o hotel, já plenamente molhados e sem toalha, o que deu uma bela zoada no carro, matando um pouco de saudades daquele tempo da Kombi que subia a serra forrada de areia e sal em todos os bancos. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse é só o comecinho de Quine. Tenho lido e gostado bastante.

QUINE, Willard. Palavra e Objeto. São Paulo: Vozes, 2010.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Os verdes mares de onde não há mar – 2ª parada: Santa Rita do Sapucaí e o debate sobre o melhor regime para o país

(Às vezes as coisas dão tão errado no país que dá vontade de virar tudo de cabeça para baixo. Não sei se daria certo)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

No segundo dia deste curto périplo, eu estava em pleno feriado de 15 de novembro. Há algumas maneiras de encarar datas cívicas sem nenhum civismo, de acordo com a localidade onde nos encontramos. Nas cidades turísticas, é momento de bombar: fazer o comércio encher seus cofres, as atrações virarem formigueiros e disputar as vaguinhas possíveis em praias, cachoeiras, o que for. Nas maiores, como é a Terra da Garoa, sem vocação turística, o negócio é pegar um parque ou uma das inúmeras atrações culturais, que redobram seu movimento nesses dias. Em São Paulo, verdadeiramente há equipamentos culturais suficientes para preencher semanas de visitação, e, por menos que se goste da Capital da Solidão, é de uma felicidade incomparável pegar um dia morto e poder ir aos inúmeros museus e centros culturais da cidade, o que é sua maior virtude (ao lado da gastronomia).

Foi neste espírito que reservei esse dia para conhecer Santa Rita do Sapucaí, cidade desta região que possui o simpático título de Vale do Silício Brasileiro. Mas algo não funcionou.

É que os museus e áreas culturais da cidade não abrem fora de dias da semana, e eu dei com a cara na porta delas. Para não perder a viagem, fomos dar uma volta por aqui e ali, para conhecer a pequena urbe e comer alguma coisa.

Santa Rita é banhada pelo Rio Sapucaí -Mirim, o que explica tantos nomes que o tem na composição, como São Gonçalo do Sapucaí, São Bento do Sapucaí, Sapucaí-Mirim e outras. Apesar das águas barrentas, tem muita gente que fica pescando nas suas margens.

O restante do nome é explicado pela padroeira do município, Santa Rita de Cássia, uma freira do século XVII popularizada por ser considerada a santa das causas impossíveis.

A igreja tem a condição de santuário, dado o número de peregrinos que aqui acorrem por conta dos milagres atribuídos à santa, pelo motivo óbvio de haver muitos desesperados que buscam seus favores.

Como se trata de uma cidade meio antiguinha, há distribuição de uma certa quantidade de construções históricas espalhadas pela mancha urbana.

A fama de cidade tecnológica vem das entidades de ensino lá localizadas, dedicadas à área de eletrônica fina e telefonia. A principal delas é a Inatel, cujo campus, à moda do que ocorre com a Cidade Universitária de SP, é área de visitação pública. Ao contrário dessa, porém, não abre em dias que não sejam úteis. Lá, há vários espaços de visitação, como o Museu da Eletrônica e o Espaço Memória. Há também o campus da ETE, também fechado.

Igualmente fechado estava o Museu Delfim Moreira, que tem seu nome em homenagem ao oitavo presidente da história do Florão da América.

Apesar de haver nascido em Cristina, é reverenciado aqui por ter sido seu local de falecimento, além de ter sido também governador do estado de Minas Gerais.

Como a família era bastante influente no sul mineiro, também seu irmão Francisco Moreira da Costa tem sua recordação na cidade. Foi prefeito de Santa Rita por mais de 20 anos, e sua filha, Sinhá Moreira, foi a grande incentivadora da instalação do polo tecnológico nestas terras.

Além disso, foi o fundador do Banco Santarritense, que financiou todo esse processo de modernização, ao lado do Coronel Joaquim Ignácio, outro político local.


Toda essa região do sul de Minas, como já pudemos ver neste texto, esteve no centro do comando político brasileiro nos tempos da política do café com leite, e esse é um bom motivo para tantas homenagens. Afonso Penna, Wenceslau Braz e Delfim Moreira são apenas três exemplos extremos, daqueles que chegaram à presidência, o posto máximo do exercício do poder no Brasil até os dias de hoje. Bom… não preciso dizer que volta e meia temos problemas políticos em Terra Brasilis que nos fazem questionar o que estamos fazendo de errado, e não é de agora. No começo do século XX, uma boa quota de discussão se dava na então novel forma de governo, recém saída da monarquia para a república. Hoje em dia, tirando alguns eméritos malucos, ninguém mais cogita reis e suas cortes, mas o regime governamental é posto muitas vezes em discussão. Falo do confronto presidencialismo versus parlamentarismo.

Primeiro precisamos formar a boa e velha contextualização. Tanto um quanto o outro só fazem sentido quando colocados sob o foco do Iluminismo. Com honorabilíssimas exceções, os governos nacionais sempre se pautaram em uma figura central, chamada de rei ou imperador, dentre outras variantes menos votadas. A grande característica de um reinado é a acumulação de poderes decisórios em um estrato muito pequeno de uma sociedade, quando não de uma só pessoa. Problemas essenciais: a formação de uma elite improdutiva e imutável, a submissão às idiossincrasias de um soberano que pode não governar no interesse público, o envelhecimento das cabeças governamentais, que nem sempre trazem soluções boas, a falta de vocação administrativa de alguns herdeiros e por aí vai. Esses problemas não eram ocasionais, especialmente no que diz respeito à discricionariedade do exercício do poder.

Os ares do Iluminismo vieram tornar claro que o Absolutismo era eivado de injustiça social e imutabilidade na gestão, tendendo a eternizar a questão. Pensadores do período, com destaque para Montesquieu, detectaram o excesso de poder concentrado nas mãos de uma só pessoa como principal objeto a ser desmantelado para uma sociedade mais estruturada. Isso acontece porque a sociedade não nasceu para ser fruto de uma vontade única, que legisle de acordo com seu arbítrio para a população inteira, e sim para que reflita as necessidades de seus diferentes estratos. A população, ao menos em tese, deve ser representada como um todo, e o Absolutismo vai na mão oposta. Por mais que um monarca procure governar no interesse da população, a longa duração de seu reinado obrigatoriamente o carrega para uma marca pessoal, e sabemos que a sociedade não é unívoca e não pode ser conduzida por paradigmas únicos.

É por isso que a nova forma republicana pressupõe uma divisão entre a responsabilidade do exercício do poder. Desde a antiga Grécia já se tinha sedimentação da função do governo: executar as ações do Estado, criar e aperfeiçoar a legislação e distribuir justiça. A grande sacada de Montesquieu e demais iluministas é que exatamente aí deveria se dar a separação entre os poderes, que trabalhariam independente e harmonicamente entre si, sem uma hierarquia e sem distinção entre a relevância de suas funções, um limitando o outro, de modo a, mesmo separados, constituírem uma unidade governamental. E aí temos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Vamos para o futebol. O técnico estabelece a forma como o time vai jogar, os jogadores a executa e o analista de desempenho vai verificar se tudo foi colocado em prática. Legislativo, executivo e judiciário. Misturar funções faria com que o técnico tentasse chutar a gol, jogadores cuidassem da performance uns dos outros e o analista desse pitacos na formação das linhas. Não, não pode ser assim. O time é feito de todos eles, cada um em sua função e com sua importância. Os jogadores limitam o técnico pela própria característica de cada um e o analista pela demonstração de que certa tática não funcionou, e assim por diante.

O problema seguinte é como compor cada um dos poderes. Nas democracias representativas modernas, o mais comum é que a população seja representada por membros eleitos pelo voto, de forma a reproduzir, em ponto menor, a composição social. Pode ser feito em uma única instituição (o congresso) ou duas (câmara e senado). A estrutura bicameral do Brasil visa dar representativa popular (deputados) e estadual (senadores), e, também entre si, há divisão de poderes e tarefas. Já o judiciário é exercido por especialistas reconhecidos em Direito, que, em tese, exercem seu mister com o máximo de isenção, havendo vários dispositivos legais que buscam assegurá-la, como a competência territorial, as suspeições e impedimentos, a ampla defesa, e, principalmente, o duplo grau de jurisdição: sempre será assegurado o direito ao recurso para aqueles que não se sentirem conformados com uma decisão do juízo singular, e sua causa será reapreciada pelos órgãos colegiados de segunda instância.

Bem balizados os poderes legislativo e judiciário, resta o executivo. Basicamente, o mundo se divide entre monarquias e repúblicas e, nestas, há dois regimes de exercício: o presidencialismo e o parlamentarismo. Este último teve uma curtíssima experiência no país, e, por isso, quase não dá para avaliar o quanto funcionou ou não, até porque já vai longe. Por isso, podemos considerar que, desde a proclamação da República, sempre estivemos sob regime presidencialista, e este acaba por receber bastantes críticas em momentos de crise. Mas vamos dissecar melhor.

O chefe do poder executivo é encarregado de colocar em prática as políticas públicas e executar o orçamento e as disposições legais que são elaboradas pelo poder legislativo. Se, por exemplo, o legislativo elaborar uma lei que obrigue a concessão de ingressos gratuitos em jogos do campeonato nacional, caberá ao chefe do executivo providenciar seu cumprimento. Lembrem-se: o legislativo legisla, o executivo executa. Sedimentado isso, resta saber a quem cabe escolher o comandante do governo.

A diferença primordial entre um e outro está na relação existente com o poder legislativo na escolha do chefe do executivo. Quando temos uma monarquia constitucional, que não possui presidente, a escolha sempre será do legislativo, mas o mesmo não acontece nas repúblicas. Em um sistema parlamentarista, considera-se que, ao serem escolhidos os representantes populares, já está compreendida sua incumbência de selecionar a chefia do governo, exercida por um primeiro-ministro ou chanceler, conforme se queira denominá-lo. Já no presidencialismo, é sabido que essa é uma atribuição popular direta. O presidente é titular e chefe de outro poder, exercendo as chefias de Estado e de governo, e não é responsável perante o Congresso, na medida em que não está vinculado ao mesmo poder. Cuidado para não confundir isso com os crimes de responsabilidade: o Parlamento pode e deve fiscalizar a conduta presidencial, mas não pode cometer ingerência em sua gestão, como ocorre nos regimes parlamentaristas (na prática, o mundo é outro, bem menos cor-de-rosa).

Uma das pedras de toque do sistema parlamentarista reside na maior facilidade em se trocar o gabinete, contornando crises com maior facilidade do que quando a escolha do chefe do governo é de atribuição popular.

Minhas opiniões. Como um todo, o sistema parlamentarista me parece mais moderno e com atributos que o torna mais impessoal que o presidencialismo, e isso é uma virtude que, por si só, já o coloca irremediavelmente à frente deste outro regime. Mas há fatores que o tornam inadequado ao país que ainda temos.

Percebam que, quando alguém contrário ao parlamentarismo diz que teríamos governantes como Arthur Lira, Severino Cavalcanti, Eduardo Cunha, David Alcolumbre e outros nomes polêmicos, comete um erro considerável em sua crítica. Estes são líderes que se valeram de sua capacidade de articular com o governo, e não SER o governo. Não há nenhuma indicação que essas figuras seriam escolhidas para governar, caso fosse outro o regime por estas bandas. Portanto, não caiamos na fácil tentação de colocar isso como um demérito do regime. Então, vamos por partes.

Em primeiro lugar, o parlamentarismo pressupõe uma divisão ideológica que nosso congresso não tem. Em um país com mais de vinte partidos políticos, com três quartos deles apostando no fisiologismo e na conveniência, é impossível desenharem-se nomes com perfil administrativo que consigam carregar, por si mesmos, uma direção governamental. Em um regime destes, é preciso que os partidos possuam uma personalidade forte e bem marcada, com ideologias identificáveis já em sua denominação.

Outro caso é a falta de estabilidade política que grassa o impávido colosso. Se tivéssemos bem delineadas as correntes políticas que dividem espaço no congresso, teríamos como prever o tipo de governo que teríamos. Novamente. Com mais de vinte partidos no espectro, essa tarefa se torna impossível. Além disso, a instabilidade faz com que decisões rápidas tenham de ser tomadas. Embora o chanceler ou primeiro-ministro tenham um raio de ação bastante amplo, há situações em que longas negociações se tornam necessárias, e é preciso uma oposição muito consciente para não empacar atitudes urgentes. Se mesmo em democracias maduras esse atravancamento não é impossível, que fará no Brasil e seus hábitos cartorários?

Por fim, e principalmente. O brasileiro costuma escolher muito mal seus representantes no Parlamento. O que ocasiona isso é objeto para longas discussões, e não farei isso aqui, mas o fato é que ter um Tiririca eleito por três mandatos consecutivos é algo inexplicável, embora seja apenas a ponta de um iceberg imensurável. Há coisas ainda mais graves, como a absoluta impermanência dos parlamentares em seus partidos. Isso faz com que a composição do congresso mude do dia para a noite, e a representatividade obtida das eleições seja completamente subvertida. Em uma situação assim, ao menos o presidente é uma representação que traduz melhor a vontade popular, e, em um mundo ideal, teria a legitimidade para ser um interlocutor válido. Vai demorar muito tempo, mas o Parlamentarismo depende de uma transformação na consciência política do brasileiro. Vejam como, na última eleição, a presidência foi para uma mão, e a maioria do congresso foi para outra. Em um sistema parlamentarista, o rumo iria para o lado oposto da vontade popular. E, embora adotemos um presidencialismo de coalisão, onde o governo central depende de muito toma-lá-dá-cá nas negociações com os partidos fisiológicos, o fato é que ainda há como sintetizar uma espécie de vontade popular nessa figura. Em um Parlamento, o governo ficaria ainda mais distante do povo.

Enfim, é uma questão de maturidade política do país. Ela deverá chegar algum dia, mas ainda não está no nosso espectro visível, e a primeira coisa a fazer é ter mais consciência no voto legislativo. A partir daí, podemos começar a pensar em migrar de regime. Por enquanto, já será um bom começo se lembrarmos do nome do candidato em que votamos na última eleição. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o escrito iluminista por excelência, que definiu a maior parte das democracias representativas até hoje em dia.

MONTESQUIEU, Barão de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Os verdes mares de onde não há mar – 1ª parada: Ouro Fino e a fama inesperada vinda da cultura popular

(Uma simples música consegue virar a realidade de uma região? Consegue. Ouro Fino é um exemplo)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Os mandachuvas daqui do serviço disseram que este ano não tinha conversa: ninguém ia poder vender as férias e tinha que ter escala. Estranho o tom mandatório, porque eu nunca me recusei a tirar férias, ocorrendo o caminho contrário. Para mim, portanto, perfeito. Como não tenho filhos pequenos, deixei os meses de férias escolares para os colegas neopaternos e marquei as minhas para setembro, mês inteirinho, fora de temporada e conseguintemente com custos mais baixos.

Chegou agosto e o de sempre aconteceu. “Não vamos poder te liberar de férias”, disse o superior. “Tem isso, tem aquilo e tem o outro… a venda das férias foi liberada”. Quase que ergui a placa do “eu já sabia”, e até por isso não tinha feito nenhum grande plano, como, de resto, já costumo não fazer.

Mas o fato é que, depois de tanto tempo respeitando a pandemia e suas recidivas, estava realmente com vontade de passear um pouco. Queria ir para o norte fluminense, que é perto, mas tudo o que consegui foi emendar o feriado da República com o final de semana seguinte. Para garantir um mínimo de vagas disponíveis, fui me enfiar em cidades menos turísticas. Mas, mesmo assim, será que eu iria conseguir achar hotéis em pleno feriado prolongado? Usei o mesmo macete que tinha lançado mão quando fui na região de Itajubá. Cidades dadas a negócios ficam vazias em feriados, e, por isso, elegi Pouso Alegre como a sede de onde eu partiria para as serras, trilhas, cachoeiras. E deu certo.

Pois no domingo eu comecei minha rota. Passei em Taubaté, para dar um beijo na filha e um abraço no inefável Homem-Cueca, ainda em recuperação, e subir a Serra da Mantiqueira pela vertente de Campos do Jordão, por onde entramos em Minas. Dali, mais duas horas de viagem nos levaram ao destino final, no miolo de uma região conhecida por Serras Verdes do Sul de Minas, uma região de bastante altitude para os padrões do Patropi, e que se caracteriza por intenso sobe e desce e muita água escondida pelas matas. A região é uma imensidão de vales, colinas e morros que dão a sensação de um mar agitado, só que recoberto de verde, seja das plantações, seja do que resta de mata original. O simples fato de trafegar por entre essas paisagens já paga o preço. Comecei tudo por Ouro Fino, a terra do famoso Menino da Porteira.

Para começar a conversa, é preciso registrar que, embora sua fama maciça date de menos de cinquenta anos, Ouro Fino não é uma cidade nova, o que pode ser percebido pela quantidade razoável de construções antigas espalhadas pela cidade, como o Grupo Escolar Coronel Paiva…


… ou desta belíssima construção, cuja mera estética não transparece sua importância histórica. Foi aqui, no começo do século passado, que foi celebrado o Pacto de Ouro Fino, mais conhecido como “Tratado do Café com Leite”, um acordo entre os governadores Cincinato Braga (SP) e Julio Bueno Brandão (MG) para o revezamento de mandatários de ambos os estados na presidência da neófita república. A quebra desse acordo acabou redundando, algum tempo depois, na Revolução Constitucionalista, a quem troquei em miúdos nesta postagem.


A praça principal da cidade é ornada pela belíssima igreja matriz, que contém, em seus vitrais, as quatorze invocações da ladainha de Nossa Senhora.


Ela é dedicada a São Francisco de Paula, um eremita do século XVI que fundou a Ordem dos Mínimos, e tem o status de santuário, por receber romarias de peregrinos.


Esse santuário foi feito e refeito várias vezes, sempre aumentando de tamanho e ganhando sofisticação, até chegar na forma atual pelas mãos do Monsenhor Teófilo Guimarães, que nomeia a praça e onde possui uma herma em sua homenagem.


Entretanto, mesmo com tanta história por trás da cidade, ela foi celebrizada em tempos bem recentes, por conta de uma rápida remissão em uma música, que possuiu um efeito multiplicador em sua fama sem precedentes. Evidentemente, trata-se da música “Menino da Porteira”, composta por Teddy Vieira e Luís Raimundo, mas que só estourou em âmbito nacional a partir da gravação de Sérgio Reis, em 1973. É… eu já era nascido. Segue a letra:

Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino

De longe eu avistava a figura de um menino

Que corria, abria a porteira e depois vinha me pedindo

Toque o berrante seu moço, que é pra eu ficar ouvindo

 

Quando a boiada passava e a poeira ia baixando

Eu jogava uma moeda e ele saía pulando

Obrigado boiadeiro, que Deus vá lhe acompanhando

Pra aquele sertão à fora, meu berrante ia tocando

 

Nos caminhos desta vida muito espinho eu encontrei

Mas nenhum calou mais fundo do que isso que eu passei

Na minha viagem de volta qualquer coisa eu cismei

Vendo a porteira fechada o menino eu não avistei

 

Apeei do meu cavalo num ranchinho a beira chão

Vi uma mulher chorando, quis saber qual a razão

Boiadeiro, veio tarde, veja a cruz no estradão

Quem matou o meu filhinho foi um boi sem coração

 

Lá pras bandas de Ouro Fino levando gado selvagem

Quando eu passo na porteira até vejo a sua imagem

O seu rangido tão triste mais parece uma mensagem

Daquele rosto trigueiro desejando-me boa viagem

 

A cruzinha do estradão do pensamento não sai

Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais

Nem que o meu gado estoure, que eu precise ir atrás

Neste pedaço de chão, berrante eu não toco mais

Como se pode ver, é o relato plangente de um boiadeiro, eu-lírico que recorda de um menino que fazia o pequeno favor de abrir uma porteira específica para a passagem das tropas de gado, e, que ao saber de sua morte pelo ataque de um boi, se propõe a não mais acionar seu instrumento de trabalho naquela localidade. Segundo um dos autores, essa era uma tarefa comum pelas estradas de terra do interior. A função não se restringia unicamente a abrir porteiras, mas também a identificar a propriedade e correr à frente da comitiva, para comunicar ao patrão a chegada do gado. A inspiração para a música veio unicamente pela observação desta tarefa, e a narrativa do incidente e da morte ficou por conta da criatividade dos compositores.

Ocorre que o sucesso foi tamanho que transformou tanto a carreira de Sergio Reis, quanto da mencionada Ouro Fino. O cantor vinha de bom sucesso na Jovem Guarda, movimento musical que se inspirou na primeira fase dos Beatles, calcada em canções românticas. Com a decadência do cenário, Reis migrou para a música sertaneja, onde se eternizou.

(Rápidos parênteses nestes tempos difíceis. Sérgio Reis ficou marcado pela sua recente posição política, e certamente alguém me cobrará por isso. Declaro, entretanto, que, apesar de discordar radicalmente de suas opiniões, as mesmas são irrelevantes para o que pretendo produzir neste texto e, portanto, não serão objeto de opiniões e análises. Parêntese do parêntese - embora já o esteja fazendo com esta declaração).

Mas o que a canção tem de especial? Nada além de ser um daqueles fenômenos em que a roda gira e dá encaixe, como aconteceu com tantas outras músicas que viraram sinônimos, como a Sampa de Caetano ou a do rio de Piracicaba, que vai jogar água para fora. Ouro Fino capitalizou essa circunstância e distribuiu diversos monumentos pela cidade, fazendo alusão à música. O mais conhecido é o que fica na entrada da cidade, representando o tal menino.

Logo após a saída do acesso, na Avenida Guarda-mor Lustosa, fica o monumento “Boi sem Coração”, do artista Ceará, que retrata o momento do desfecho narrado na música.


Deste mesmo artista é o monumento “Berrante”, na praça de mesmo nome, onde costumam se realizar alguns eventos e onde a galera se junta para curtir os food trucks.

Como curiosidade, uma iguaria típica da localidade: figo recheado com massa de milho.

Pois muito bem. O ponto que eu quero discutir aqui deriva de um texto recente no blog, mais especificamente este aqui. O ideal seria lê-lo, mas dou uma apertada sinopse: coloco como a atual música sertaneja, dita universitária, é absolutamente pobre em forma e conteúdo. Quem escutar a música que deu origem a todos estes monumentos perceberá que, apesar de sua simplicidade, não tem essa mesma característica. É uma boa canção, que tem razão de ser na escala que atingiu. Pode não ser um grande tratado filosófico-sociológico, mas retrata coisas como memória, resignação e carência social. Nos dias de hoje, provavelmente não atingiria os mesmos patamares que outrora, e isso me obriga a refletir. Para tanto, vou resgatar o primeiro texto que escrevi neste blog, do tempo em que ainda falava com uma classe e lhe propunha problemas. Hoje o escopo mudou por completo e o que farei será revê-lo, de modo a lhe dar maior profundidade.

Na ocasião, falei da Indústria Cultural, uma teoria da Escola de Frankfurt que dizia ser toda a produção cultural de uma sociedade reduzida a elementos de venda. Essa escola é a maneira como ficou conhecida a linhagem marxista do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, nascida no entreguerras para fundir as diferentes visões sociais de investigação sobre os movimentos sociais. Seus estudos vinham na esteira da proliferação do capitalismo, em especial na maneira como este atua psicologicamente nas massas.

A criação da ideia de Industria Cultural veio da observação de como as manifestações artísticas, com mídias cada vez mais tentaculares, possuíam conteúdos mais e mais parecidos entre si. Mudavam-se títulos, personagens e locações, mas a estrutura narrativa dos filmes, para dar um exemplo, eram sempre semelhantes. Quando há variação, os filmes ganham qualificações que os isolam, como “alternativo”, “de vanguarda”, “com nova linguagem” e assim sucessivamente, de forma a mantê-los em um nicho, onde poderiam ser vistos como exóticos, anormais.

A lógica que fundeia a Industria Cultural está na formação dirigida de opiniões, de modo a produzir uma uniformização de preferências, sempre de modo a reduzir o potencial crítico e dirigir consumo. O mecanismo é óbvio: a massificação de certos estilos musicais com teor lírico abaixo da crítica é um exemplo disso. Uma música sertaneja atual não tem o teor que tinha no momento em que foi lançada “Menino da Porteira”, mesmo que se considere que mesmo esta já era um fenômeno de massa.

Mas aqui já cabe algumas pontas para explicar o fenômeno. É comum que antropólogos dividam as manifestações culturais em cultura de elite e cultura popular. Houve tempos em que havia uma óbvia hierarquia entre ambas, mas os acadêmicos tendem cada vez mais a desconsiderar valores de primazia. Quando eu era criança, a música sertaneja era considerada coisa menor, de camadas populares mesmo. Tanto é verdade que havia programas específicos para essa área. Até que, um belo dia, Fausto Silva, que tinha um nicho específico de música jovem em seu Perdidos na Noite, traz uma dupla sertaneja, que, na farra, foi bem sucedida. Foi a chave para a absorção desta até então cultura popular para a cultura de massa, exponencializada quando o mesmo apresentador migrou para a maior emissora do país.

A pergunta simples é: como as grandes massas populacionais caem nessa? Burrice pura e simples? Não é o caso, e veremos o porquê. O exemplo que vou dar vem deste próprio blog.

Explanando de forma bem rápida, eu fiz este espaço nascer para interagir com alunos. Passado o tempo, ele perdeu esse propósito e virou um lugar para minhas observações ao mundo. Sempre teve uma determinada média de pesquisas, o que subiu bem por ocasião da pandemia de coronavírus, que verifiquei neste texto. Entretanto, de uns tempos para cá, a audiência despencou para níveis ainda menores que o anterior à gripezinha presidencial. Isso tem um motivo: apesar de o Blogger pertencer ao grupo Google, o mesmo simplesmente parou de recomendar, em suas pesquisas, o material que disponibilizo nesta plataforma. Alguns dos meus principais itens eram fornecidos em pesquisas simples, como descrevi neste post. Agora, nada. Era comum ter um pequeno boom inespecífico de visualizações tão logo se desse uma publicação, o que significava que os robozinhos estavam coletando dados para acrescentá-los aos diretórios de resultados. Nada mais agora. Um dos termômetros está nas pesquisas de imagens. Quando se digitava o simples termo Aporias Plurais na aba de imagens, praticamente todo o conteúdo de todos esses anos poderia ser visto como resultado. Hoje, o mesmo resultado é famélico. O que significa isso? É possível deduzir que o Google está deixando a plataforma Blogger morrer. Provavelmente, quer que os seus usuários migrem para produtos com anúncios mais bem pagos, como é o caso do YouTube, ou que simplesmente libere espaço em seus storages. Ou seja, mesmo que o blogueiro aqui não se autoenquadre como quadrúpede, ele se vê entre a cruz e a caldeirinha de mudar completamente sua maneira de se relacionar com a porta ao mundo que ainda tem à disposição ou simplesmente parar de produzir. O mundo não quer mais textos; quer vídeos, quer tweets, quer imagens. E não há alternativa de caminho.

Da mesma forma, sutilmente, a Indústria Cultural trabalha para moldar convicções. Mas ainda é preciso que se justifique que tipo de mente é essa que permite fazer a lógica do acriticismo funcionar. E é aqui que começamos a falar do conceito de razão instrumental, tema específico de Max Horkheimer.

Quando os antigos gregos começaram a remover a primazia dos mitos e passaram a transferi-la para encadeamentos de raciocínios lógicos, foi-se estabelecendo um primado da razão. A busca não era por aquilo que os olhos viam, mas justamente por tudo o que se desenrolava por trás das aparências. O pensamento geral, no entanto, permaneceu banhado pela mitologia e pela religião, porque o descortinamento do universo carecia de ferramentas que dessem respostas exatas às dúvidas humanas, mas essas precisavam ser resolvidas, por uma questão mesmo de sobrevivência. A visão metafísica dava respostas baseando o pensamento em algo que estava “lá fora”, que viria a ser substituída pela tecnologia e pelas descobertas científicas após a modernidade, mas o fato é que houve a substituição de um mito por outro. Estruturalmente, a razão permaneceu a mesma, com o emergente capitalismo fazendo brotar um forte sentido prático, pragmático, instrumental, que vê a realidade como algo que é assim e não teria como ser diferente, preciso, monolítico, racional, no modo de pensamento consagrado pelo cartesianismo. O caminho natural da racionalidade passa agora pela via da utilidade, ainda que não devesse.

Um exemplo bem simples do que é o pragmatismo. Todos nós sabemos que o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta. Só que essa reta é uma picada por onde não passa nem uma moto. Portanto, ela é retirada da relação, mui simplesmente. Passaríamos a pensar o caminho norte, mais rápido, ou no caminho sul, mais belo, mas não adianta especular pelo caminho mais curto.

O pensar pragmático, sempre voltado para a utilidade, dá encontrões no senso crítico e faz com que emerja uma univocidade no caminho, e psicologicamente já se tem um gabarito por onde a racionalidade caminha, entendendo ser menos importante e naturalmente lógico desprezar-se qualquer rumo que não seja o pré-traçado. Por isso temos a instrumentalização da razão, tão cara nestes tempos em que o capitalismo cumpre sua necessidade de mover os convencimentos, e vender, vender, vender...

E qual é a maneira de se sair deste paradigma racional? Theodor Adorno, parceiro de Horkheimer na Escola de Frankfurt, usa a dialética hegeliana, tão cara ao próprio marxismo, para demonstrar qual seria o caminho, mas não em sua rota habitual, e sim em seu braço opositivo. Sabemos que a dialética é composta por três “pedaços”: a tese, a antítese e a síntese (leia mais aqui). Pois bem. Sempre temos a propensão racional que, para a resolução do conflito natural do espírito dialético, é necessário sair do outro lado, ou seja, sintetizar uma nova proposição. Mas o mais importante na Teoria Crítica, da lavra de Adorno, é manter-se no estágio negativo da dialética, a antítese. Todas as vezes em que procuramos olhar com visão totalizante à realidade, vemos um estatuto atual que derivou de um anterior. Só que a parte antitética acaba por ficar invisível nesse processo, porque foi por sua oposição que a realidade de outrora se transformou, mas ela mesma só permaneceu como fusão, não está aparente fora do raciocínio. Mas é exatamente nesse terreno que surge a oposição aos estados atuais de coisas. As concatenações lógicas cartesianas e pragmáticas desconsideram especialmente o fator humano, que interage com a natureza de maneira poderosa, com grande intervenção e modificadora das respostas automatizadas. Desta forma, a razão, como sempre foi apresentada, dá estatuto de eternidade ao presente da realidade, o que limita ações transformadoras.

A dialética negativa, ou seja, a antítese, retira a ilusão eternalista e conformista da razão tradicional. Ser crítico, neste sentido, não significa ser chato, mas colocar em questão o que se apresenta a nós como eternamente bom, valoroso, justo ou seja lá o que for. Colocada em oposição a uma tese, uma antítese pode resultar em um síntese igual à tese original, ou seja, que passou pelo crivo da crítica. Colocar o Menino da Porteira em uma relação crítica faz com que ela passe na prova e saia lá na frente com ainda mais valor, principalmente quando defrontada com suas congêneres modernas.

Ufa! Chega que está suficiente. Bons ventos a todos.

Recomendações de leitura:

Vou fazer duas citações aqui: a primeira é do livro de Horkheimer onde ele aprofunda a temática da razão instrumental:

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002.

Já a ideia de crítica pela via da dialética negativa é explorada no livro abaixo:

ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

Como a temática tem a ver com cultura popular e música regional, não tenho como deixar de lamentar profundamente a morte de Rolando Boldrin, um dos menos cansados pesquisadores de nossa arte. É o tipo de gente que faz uma falta danada, provando que não é só do meio acadêmico que brota a sabedoria.