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sábado, 9 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (11 – Filosofia da Ciência)

Olá!


Encerrada a primeira etapa desta série, onde tratei daqueles campos mais básicos da Filosofia, vou começar agora a falar de áreas derivadas, ou seja, que pressupõe a existência de alguma base anterior e que esteja mais próxima de sua aplicação no dia-a-dia, mostrando o que há por trás de uma série de conhecimentos humanos. Vamos principiar falando sobre a Filosofia da Ciência, filhote direta da Teoria do Conhecimento, e, mais especificamente, da Epistemologia.



Bem, qual seria a diferença entre a própria Ciência e uma filosofia dedicada a ela? Ao cabo do presente texto, seremos capazes de dar essa resposta, mas, sempre recordando o que é a própria Filosofia, é a pergunta que nós lançamos sobre os fundamentos últimos das próprias coisas. Portanto, a Filosofia da Ciência tem o escopo de determinar quais os tipos de conhecimentos podem ser enquadrados como científicos. E, para isso, precisamos fazer a pergunta basilar: o que é a Ciência?

Sempre que pensamos em um cientista, temos na mente profissionais de jalecos brancos, com instrumentos sofisticados, enfiados em laboratórios e observatórios, rodeados de anotações. Essa é uma visão estereotipada, é bem verdade, mas serve para notar o quanto a experimentação é importante nesse meio. Isso não ocorre porque os cientistas são malucões, mas porque a investigação empírica é premissa fundamental da Ciência, e explico por que.

Quando falei sobre a Lógica como ferramenta do conhecimento, dei o exemplo da construção de inferências através da articulação de proposições, conhecidas como silogismos. É um processo de aquisição cognitiva conhecido como dedução, que parece excelente, mas que não nos fornece grande coisa. Querem ver?

A dedução parte de uma proposição universal para apontar para uma proposição particular, de forma que sua conclusão será verdadeira se as premissas forem verdadeiras. Ora, conhecimento seguro é uma coisa muito boa, mas o problema é que essa dinâmica não nos traz novidades. Vamos no clássico dos clássicos do silogismo:

Todo homem é mortal
Sócrates é homem
Logo, Sócrates é mortal

Vejam bem. Sem grandes interpretações, podemos perceber a plena validade dos argumentos acima. Só que ele tem um defeitinho. A premissa maior já contém a premissa menor, ou seja, o universal já contém o particular. Quando falamos que todo homem é mortal, já incluímos automaticamente Sócrates nessa assertiva, já que ele é homem. Deduzimos algo que já está implicitamente no universal, e isso não é acréscimo de conhecimento, mas uma simples evidenciação.

Ciência é uma palavra latina que significa algo como “aquilo que se sabe”, ou, em um neologismo que pensei aqui, é uma “sabência”. Ora, para eu saber o que são as coisas e os fenômenos, preciso entender suas essências e funcionamentos mais profundos, e, para isso, preciso obter conhecimentos novos, e como a concretização do objeto está no plano particular, é para essa instância que preciso observar. Uma vez conseguindo dados novos, busco extrair deles uma regularidade e, subsequentemente, uma proposição que se aplique a todos os casos semelhantes. Em suma, eu parto do particular rumo ao universal, um processo inverso ao da dedução, e tenho a indução, a grande ferramenta da Ciência.

Ao contrário da dedução, a indução nunca parte do raciocínio puro, mas da observação, em especial de fenômenos que se repetem com alguma habitualidade. Não é a estrutura do argumento que garante a sua validade, mas a quantidade de indícios que dão consistência ao que se afirma. Aliás, as proposições asseveradas por induções têm uma característica importante: elas nunca são 100% fiáveis, porque um só indício que contradiga uma série de argumentos é suficiente para desmontá-los por completo. É clássica a construção de Hume: sabemos que o Sol vai nascer no dia seguinte porque desde os inícios dos tempos ele vem nascendo; no entanto, basta um único dia que o sol não desponte para invalidar toda a lógica deste argumento. Portanto, a indução nos fala de probabilidade, e não de certeza.

Até mesmo por conta desta insegurança, a indução não pode se calcar em um mero exercício mental, mas em rigorosas anotações, onde todas as variáveis possíveis são relacionadas e testadas, formando uma metodologia própria. Além disso, filosoficamente a Ciência é aberta, com cada experimento sendo devidamente divulgado e disponibilizado à crítica de quem discordar de seus resultados, ou para ser utilizado como base para novas hipóteses e experimentos (já descrevi um pouco como funciona esse processo). É dessa forma que o pensamento científico se torna patrimônio da espécie humana, embora nem sempre seja possível ser neutro e altruísta como seria desejável.

Vou fazer uma narrativa que mistura ficção factual e realidade geográfica para deixar as coisas mais claras. Conforme já andei contando por aqui e por ali, sou nascido na Mooca, um dos bairros mais tradicionais da Pauliceia. Diferentemente dos bairros mais modernos, compostos por meia dúzia de ruas, a Mooca tinha uma extensão territorial formidável, com o agravante de ser dividida ao meio pela linha de trem, que funciona até hoje. Isso significa, neste caso, que morar no mesmo bairro não equivale a morar perto. Tanto minha parte da família quanto o Zio Chico e primas éramos mooquenses, só que eu era mais dos confins, próximo à Vila Prudente, e eles moravam al di là da linha de ferro, na Mooca Baixa, três casas para lá do campo do Juventus. Isso é um bocado longe, uns 40 minutos a pé, mas tinha uma gambiarra para o caminho ficar mais rápido: atravessar o muro da ferrovia, cheio de buracos, passar pelos trilhos e ladeá-los pela avenida das fábricas até a antiga porteira, perto da Antarctica, o que constituía uma reta só. Hoje em dia é absolutamente contraindicado cumprir esse roteiro, mas a quase quarenta anos atrás não havia grandes sustos, mesmo sendo eu um pouco mais que uma criança.

Essa transposição dos trilhos era algo habitual, e eu nada teria percebido se não fosse um costume esculachado: ficar girando a chave de casa nos dedos, pelo aro do chaveiro. Uma vez, fazendo isso enquanto saía do matagal para saltar os trilhos, a chave voa do meu dedo e se aloja em um vão entre dois deles. Abaixo para pegá-la e continuo minha caminhada normalmente. Algum tempo depois, temos a exata repetição da cena, com uma diferença primordial: a chave ficou encalacrada na junta dos trilhos, muito mais estreita do que outrora, e deu trabalho de tirá-la de lá antes que o trem a esmigalhasse. Desse dia em diante, passei a notar a fenda entre os trilhos todas as vezes que os cruzava, e percebi que elas variavam de tamanho. Ora mais largas, ora mais estreitas, ainda que no mesmo ponto; percebi também que essa variação acompanhava a dança das temperaturas, aumentando em dias frios, diminuindo em dias quentes.

Para aumentar minha intriga, observei também que o linhão elétrico ficava mais esticado em dias frios e mais bambo em dias quentes. Pus os piolhos para pensar: não se trata dos trilhos que ficam mais próximos, mas maiores; nem dos postes que se ajuntam, mas dos cabos que ficam mais longos. Sendo que ambos os fenômenos ocorrem nos dias mais quentes, chego à brilhante conclusão de que o calor dilata os corpos!!!

A empolgação perante a descoberta me faz contá-la para Deus e para o Diabo na terra do sol. Alguns fingiam surpresa, indulgentes; outros nem ligavam, dizendo “uhum”; mais alguns faziam cara de desdém, como se perguntassem se minha próxima descoberta seria o odor das fezes; havia até quem duvidasse e perguntasse como eu havia chegado a tal conclusão.

No dia seguinte, de muito sol, acordei cedo e fui procurar porcarias por aí, para corroborar melhor minha teoria, não sem antes encher uma garrafa daquelas de água mineral e colocá-la no congelador, para fazer os resfriamentos necessários. Peguei um parafuso que entrava justinho em uma porca e o aqueci, para em seguida não conseguir rosqueá-lo mais. Ponto para a ideia. Consegui um pino que saía facilmente de sua dobradiça; aqueci-o e ele não saía mais. Mais um gol. Cada pequeno experimento confirmava tudo aquilo que eu havia previsto: que todo corpo se dilataria com o calor. Faltava fazer os testes inversos – esfriar os corpos para detectar seu encolhimento e, para isso, fui buscar minha garrafa d’água gelada. Acontece que eu me distraí tanto com os meus afazeres científicos que acabou passando um tempão. Quando fui retirar a garrafa, ela estava trucidada pela água que congelou em seu interior.

Cocei a cabeça. Se a água que estava na garrafa congelou, deveria ter condensado. Caso a garrafa fosse de vidro, poderia pensar que havia quebrado justamente pela sua variação de tamanho, fragilizada por uma eventual e impercebida rachadura. Mas não. A garrafa era de plástico, fininha, e é visível que arrebentou por que o volume em seu interior se expandiu, já que não há blocos de gelo externos que denunciem vazamentos. Conclusão: apesar de submetida a congelamento, a água AUMENTOU de tamanho, contrariando tudo o que eu havia até então observado e deixando minha tese mais destruída que a própria garrafinha*.

O que podemos extrair dessa fábula onde não há bicho que fale? Que, de maneira quase infantil, está exposto todo o método científico. Vamos conferir.

Quando eu tive o acidente com a chave, fiz uma constatação direta do mundo que me cerca e a problematizei. Todo o processo científico (e mesmo filosófico) começa com uma pergunta, e é sobre ela que vamos nos debruçar. E aqui começam as observações, como os trilhos afastados e os fios arqueados, a coleção de dados que vai fazer parte do arcabouço informacional que levará à construção da hipótese. A hipótese nasce, portanto, do processo indutivo, ou melhor dizendo, a indução gera a hipótese. Um fenômeno qualquer acontece uma vez, duas vezes, três vezes, várias vezes, até se perceber que ele se repetirá todas as vezes em que o fenômeno se der. No meu caso, a hipótese é de que todas as vezes em que eu aquecer um material qualquer, ele se expandirá em alguma medida. Por que montei essa hipótese? Porque o fato se repetiu sempre que o observei e me induziu a uma suposta regra geral.

A indução permite que se façam previsões. Não só os objetos constatados se dilataram mediante o calor, mas qualquer outro sofrerá o mesmo processo se submetido às mesmas condições. Por isso mesmo, é preciso que todos os passos que utilizei na minha experiência sejam bem descritos, já que o conhecimento da técnica não pode ficar adstrito à minha pessoa: é preciso que os desconfiados possam fazer o mesmo e obter seus próprios resultados. É o que fiz quando tagarelei o meu achado pelos quatro cantos, dando a oportunidade de que alguém jogasse água no meu chopp.

Por fim, é imprescindível que as minhas conclusões tenham algum ponto em que elas sejam provadas falsas. É um aperfeiçoamento do processo de repetibilidade, já que este só busca o que é igual. A falseabilidade caça o que é diferente. Portanto, se eu afirmo que os corpos se dilatam com o calor, há duas maneiras de falsear minha hipótese: pesquisar algum corpo que não se expanda, ou encontrar um material que se expanda com a refrigeração, o exato oposto da minha declaração hipotética. Foi exatamente o que aconteceu.

Um problema, uma indução, uma hipótese, uma experimentação, uma conclusão com sua divulgação e repetibilidade, uma previsibilidade e um falseamento. Esse é o método científico aceito pela academia a nível mundial nos dias de hoje. Se eu suprimir qualquer um desses passos, NÃO TEMOS CIÊNCIA. É algo muito simples de entender, mas que gera muita resistência.

De fato, como já falei neste texto, a Ciência parece arrogante, mas não é o caso. Muita gente pensa que o processo científico dá um estatuto de verdade irrefutável às conclusões científicas, mas o que acontece é exatamente o oposto. A obrigatoriedade do princípio de falseabilidade existe justamente para remover a possibilidade de um saber absoluto, tão afeito às religiões, mas um conhecimento em permanente atualização. As pseudociências brotam no exato momento em que uma explicação esotérica retira a falseabilidade, conforme já discuti aqui e aqui. Se eu acrescentasse uma chicana, do tipo “há uma radiação indetectável que muda o sinal da expansão ou da condensação”, tirarei a verificabilidade e consequente falseabilidade da hipótese, tirando-a do campo científico.

Lamento frustrar a todos, mas a Ciência é conhecimento seguro, forte, consolidado, embasado; mas, no que tange à sua essência, e dentro do que permite seu pia-máter (a indução), é sempre e somente provável, nunca definitivo. Por isso mesmo precisa fazer o reconhecimento filosófico de sua transitoriedade. Se não for assim, não é Ciência, é dogmatismo.

É só isso. Uma Ciência é um conjunto de procedimentos que passa pelo crivo do método científico. Se não atende a todos os critérios, não há porque dizer não se tratar de conhecimento, mas sem a segurança que a Ciência propõe. Há até mesmo dificuldades em se enquadrar confortavelmente as Ciências Humanas no método científico, porque as hipóteses nascem de induções menos tangíveis e mais sujeitas a variações imprevisíveis, mas isso somente aumenta o número de refutações, e não a sua cientificidade. Obviamente, as Ciências Naturais, embora altamente complexas, fogem do fator humano, o que lhe dá um pouco mais de estabilidade.

E isso é a base da Filosofia da Ciência: dar compreensão do que é essa atividade humana, explicar porque seu método funciona da maneira como funciona e qual seu papel e limites. E, nos dias de hoje, deixar claro o que é e o que não é propriamente científico, sem as confusões que costumam ser feitas. Às vezes de propósito.

Recomendações:

Vou fazer duas remissões hoje. A primeira é ao ótimo livro de Rubem Alves, cujo objeto é exatamente o tema deste texto:

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e as suas regras. São Paulo: Loyola, 1999.

A outra é o bom canal do Pedro Loos, chamado “Ciência Todo Dia”, que tem uma pegada semelhante à do meu blog, de achar no quotidiano onde estão as grandes questões da Ciência e acabamos nem percebendo. Recomendo fortemente.

https://www.youtube.com/CienciaTodoDia

* A água se expande quando congelada por conta do arranjo sui generis de suas moléculas, que tem a forma de cristais. Normalmente, o estado sólido faz com que o perímetro de vibração dos átomos seja menor, porque eles estão mais “juntinhos”. O formato dos cristais do gelo impede essa aproximação. Pior ainda: faz com que o espaço intermolecular se amplie.

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