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segunda-feira, 4 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (10 - Metafilosofia)

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Quando falamos em Filosofia, temos em mente um termo um tanto genérico. Podemos pensar em coisas como "filosofia de vida", que indicam objetivos a serem perseguidos por uma pessoa qualquer, podemos achar que são os sistemas de relacionamentos que fazem com que as diferentes partes das corporações trabalhem em sincronia ou podemos fazer a grave confusão com a auto-ajuda. Todos esses usos são feitos de maneira permissiva, ainda que impropriamente, porque passam uma impressão inicial de "parar para pensar", que, no final das contas, está mesmo no substrato do pensamento filosófico. Portanto, passons, o negócio é tolerar para o bem do convívio. No entanto, Filosofia com "F" maiúsculo, feita a sério, não se faz a esmo, sem um mínimo de critério. Não se trata de praticar uma falácia do escocês de verdade, mas de defender uma diferença entre o uso próprio e o uso comum da palavra.

Isso porque não há uma prática da Filosofia que não olhe a si mesma como uma busca autêntica de conhecimento. Quando nossos petizes criam galos na cabeça, não estamos praticando medicina quando damos beijinhos sobre tais intumescências. Pelo contrário, fá-lo-emos se aplicarmos uma compressa sobre a lesão. Quando plantamos um vasinho de uma planta aleatória, não praticamos ecologia, mas fá-lo-emos se não comprarmos espécies em extinção. Da mesma forma, quando dizemos que pensar positivo é o segredo do sucesso não estamos praticando filosofia, mas fá-lo-emos se nos questionarmos o que é o sucesso e se ele pode ser considerado essencial à existência humana. Deu para perceber a diferença?

É justamente para que se defina o que é uma pergunta filosófica, quais são os critérios de pesquisa necessários para se estabelecerem hipóteses dignas de análise, para que se investigue o funcionamento da própria Filosofia é que nasceu a Metafilosofia, ou, em termos mais coloquiais, a Filosofia da Filosofia.



A coisa é mais ou menos assim: um mecânico hábil tem a capacidade de juntar adequadamente as peças e fazer um motor funcionar, para o gáudio do motorista inconsolável. Pode até mesmo compreender o funcionamento de tudo, sabendo com exatidão a necessidade de cada componente no conjunto. Mas é só compreendendo a totalidade de forças que atuam no ato motor, entendendo a dureza e a tenacidade dos materiais empregados, calculando giros, torques e pressões e analisando erros de projetos, fadiga dos materiais e excessos de atritos que o profissional poderá dar o salto de qualidade, melhorando a máquina. Discernir sobre isso e produzir motores melhores transformam o mecânico em engenheiro. Com a Filosofia é por aí. É preciso entender o funcionamento do conhecimento e da lógica para tratar do tema.

No fundo, é a velha questão de separar o que é conhecimento de achismo. É certo que a Filosofia possui uma ação mais livre do que a Ciência, que precisa de experimentos e provas para cumprir seu método, mas isso não significa que basta especular para filosofar. Isso é opinião, e não conhecimento. Para que a doxa se torne logos, é preciso que passe pelo crivo da lógica, sua exigência mínima. Sistemas filosóficos complexos e completos, como os de Aristóteles, Kant e Hegel foram consolidados sem provas, mas com muita coerência interna, mesmo que tenham sido várias e várias vezes refutados, já que, em Filosofia, não existem conclusões cabais.

Quando eu estava na faculdade, tinha uma disciplina que eu considerava brochante: Metodologia de Pesquisa Científica. Formatações, margens, parágrafos, bibliografia, abstracts, NBR, ABNT, isso, aquilo e o outro. Uma cagação de regras insuportável, com a necessidade de fontes a cada centímetro. Eu, louco para pôr minhas ideias e ideais no papel e o mestre perguntando: De onde você tirou essa concepção? Qual autor? Por que esse, e não aquele? Você não acha que o escopo está muito aberto? Qual obra? Qual página? Qual edição? Qual coleção? Qual tradução? Ao final das contas, não sei se convencido ou doutrinado, comecei a ser mais criterioso com essa questão de fontes. Como, modéstia à parte, comecei a ter alguns artiguinhos publicados, dois colegas de serviço me pediram para apreciar seus TCC's de especialização na área de Informática. Meu Deus, que merda completa (com todo respeito)... Um festival de informações colhidas ao léu, sem um plano diretivo, na sua maioria de buscas na internet, sem qualquer critério e lá colocadas apenas porque pareciam boas (parece aquela música do Língua de Trapo, que dizia que "esse coral não era prá ter, a gente pôs porque ficou legal"). Após um diálogo razoavelmente agressivo, forma meio torta de amizade que inclui mães e sexualidade, aceitei o desafio de fazer uma orientação informal, e a conclusão acabou sendo minimamente satisfatória, com a aprovação dos trabalhos. Mas a verdadeira satisfação foi concluir que eu peguei o espírito da coisa. Não dá para sair escrevendo com a pena solta e chamar aquilo de produção de conhecimento. É isso o que os seguidores de certos pretensos filósofos não entendem ao defender seu guru: ainda que uma ideia seja boa e inovadora, ela precisa ter um mínimo de base.

Mas, até aí, o método de pesquisa é comum a todas as disciplinas, já que qualquer trabalho digno de publicação precisa segui-lo. O diabo é que, em Filosofia, há uma segunda metodologia a ser seguida e declarada, que não se reduz aos ditames burocráticos da norma ou à profusa descrição das fontes. Foi o que nos foi ensinado em uma disciplina a parte, chamada de Metodologia da Pesquisa Filosófica, que cuida da abordagem com a qual tomamos o objeto da investigação. A pergunta guia para determinar qual método deveremos utilizar (além da evidente preferência pessoal) é a seguinte: "o que eu quero extrair desse objeto?". A resposta determinará o melhor caminho a seguir. Quero estudá-lo em si mesmo? Quero encaixá-lo no mundo que o rodeia? Quero entender o seu contexto histórico e social? Quero abordá-lo o mais cientificamente possível? Vamos dar um rápido passeio nas diferentes escolas metodológicas.

Poderíamos começar a falar em métodos filosóficos já a partir do velho Tales, que trocou a confabulação legendária por uma concepção racional dos elementos constituintes do cosmos, mas é preciso localizar os rudimentos mais formais para não nos perder em prolongadas caceteações. E que rudimentos!

Francis Bacon lança o método experimental, que vai dar base a toda filosofia de raiz empírica, e René Descartes fornece a dúvida hiperbólica, matriz de todo o seu método de verificação em quatro passos, que já esmiucei em minha teoria do gomo da mexerica, mas o fato é que, hodiernamente, os critérios e procedimentos de ambos já estão sobejamente abarcados pelas metodologias científicas consagradas. Dessa forma, é preciso dar uma olhadinha no que se aplica na pesquisa atual na academia.

Comecemos pela Fenomenologia, de quem já falei neste texto. Husserl, seu codificador, dava ênfase na posição do observador, que, através da intencionalidade de sua consciência, já voltava seu olhar para um objeto com a contaminação de uma carga de cultura. Quando analiso um pavão, por exemplo, tenho uma série de componentes simbólicos que são associados a ele, começando pelo próprio substantivo que o designa. A palavra "pavão" é desenvolvida em uma linguagem, um ato puramente cultural, e, no meu caso, em língua portuguesa. Além disso, há outras cargas que lhe são associadas, como a sua beleza natural, a utilização de suas penas em ornatos e adereços, seu rito reprodutivo, o fato de ser um dos grupos do jogo do bicho e etc. E há mais: pensamos na cultura como um todo, mas há, além disso, preferências e convicções pessoais de quem realiza a pesquisa, além de um arcabouço intelectual que varia de pesquisador para pesquisador. Dessa forma, dificilmente não há algum grau de atravessamento no modo como se observa o objeto. Na abordagem fenomenológica, tudo isso representa "cascas" que impedem a análise em profundidade do objeto pavão. A tarefa de pesquisa é fazer com que essas cascas culturais sejam removidas, na medida do possível, para que o pavãozinho seja apresentado puro à consciência. É um método interessante quando o objetivo de pesquisa for ontológico.

Outro método trilha o caminho oposto. É a Hermenêutica de Gadamer, sobre a qual também já me pronunciei. Nesta sistemática, as interveniências culturais que procuramos descartar na Fenomenologia são amplamente aproveitadas, porque o objetivo da Hermenêutica, mais do que explicar, é interpretar. Aqui, não se busca mais o isolamento do objeto. Tudo o que estiver colocado ao seu redor e que, de uma forma ou de outra ajuda a contextualizá-lo, deverá ser levado em conta pelo pesquisador. Um dos grandes cuidados da Hermenêutica está no campo da significação, ou seja, aquele pavão do exemplo precisa ser visto mais pelo seu aspecto simbólico do que concreto - interpretá-lo abstratamente e em articulação com os demais signos sociais: o que significa um pavão solto em um parque, o que representa suas penas no traje da passista, o que indica certas adaptações como o verbo "pavonear". Deve ser utilizado quando o aspecto linguístico for muito relevante na pesquisa, ou quando se queira discutir um contexto mais holístico e menos dirigido.

Temos também o método do Positivismo de Comte, também já campeado por estas plagas. O Positivismo é uma doutrina filosófica que floresceu na medida em que o pensamento empírico foi ganhando mais e mais primazia com relação ao racionalismo, principalmente por conta da visibilidade de seus resultados. Os avanços científicos obtidos a partir do século XVIII começaram a dar um estatuto de panaceia universal às ideias científicas, o que fez com que todo o conhecimento válido viesse revestido desse aspecto. No esteio dessa tendência, surgiram novas ciências, que antes ficavam adstritas à seara filosófica, como a Sociologia e a Antropologia. Dessa forma, o método positivista procura transformar todas as disciplinas filosóficas em Ciências, trazendo, tanto quanto possível, toda a especulação para o campo experimental, retirando seus aspectos metafísicos. É um método mais adequado no nascedouro de novas hipóteses científicas, onde poderão ser previstos meios empíricos para mensuração e investigação, mais ou menos como descrevi neste post.

Outra metodologia de pesquisa filosófica é a Dialética, antiquíssima, já utilizada por Sócrates e Platão, mas que, delineada como sistema, surge com Hegel, e também dela já deixei meus pitacos. Para nosso caro e complexo alemão, toda a realidade se encontra em permanente movimento, e há uma lógica que lhe dá rumo: um fenômeno qualquer já carrega em si mesmo sua própria contradição, e é na rota dela que o histórico do fenômeno se movimenta. No entanto, no meio do caminho entre essas posições antitéticas se encontra a síntese, que não tem aqui o significado de resumo mas, na verdade, uma espécie de meio-termo que dá origem a um novo fenômeno, e a outro, e outro, e outro, em um ciclo de repetições estruturais infinito, com cada ciclo enriquecendo o anterior. No que consiste esse método? Em analisar onde está cada um dos polos e detectar onde eles se sintetizam. Dessa forma, é possível descrever os processos de transformação de realidade.

Uma derivação bastante famosa da Dialética hegeliana é o Materialismo Histórico Dialético de Marx (tá aqui). O mais recente demônio que aterroriza almas e patrimônios deve ter percebido que a dinâmica por trás do movimento dialético era efetivamente um espelho da realidade, incluindo as oposições tese-antítese. O problema estava no motor dessas mudanças. Para Hegel, havia um tal de zeitgeist, o Espírito do Tempo, que fazia um polo se deslocar para o outro como um impulso de mudança, algo como as modas entre um verão e outro, ou seja, nada muito concreto. Para Marx, esta concepção estava equivocada. Havia um motor, sim, mas sob a égide de uma concepção materialista. Marx não acredita em ideias metafísicas, e, menos ainda, na existência de um Espírito Absoluto. O motor da realidade, que disparava o processo dialético, eram as condições materiais que levavam à luta de classes. Portanto, no método marxista, é preciso aferir de que maneira estão dispostos os meios materiais e perceber como isso influencia na inter-relação entre as classes sociais. O pavão que está no parque precisa ser analisado sob essa perspectiva - nos parques mais periféricos há bichos menos atraentes, ou ele está aqui porque as classes menos favorecidas não têm como vê-lo em habitat natural, para dar dois exemplos. Hegel avalia que a Dialética é a dinâmica da natureza, e a isso Marx acrescenta a mecânica da História sob a lente social. Por conta disso, os métodos dialéticos são mais apropriados quando se quer levar em consideração o tempo histórico na análise.

Já o método do Estruturalismo, consagrado por Lévi-Strauss (sim, também já falei sobre isso), procura, como o próprio nome diz, pelas estruturas fundantes de cada um dos menores atos cometidos pelos seres humanos, que, realizados em cadeia, possuem uma lógica subjacente originada justamente destas estruturas maiores, que, no seu entender, são presentes e semelhantes em todas as culturas humanas, que se aproximam entre si, ainda que revestidas de características próprias. Isso porque os estruturalistas acreditam que todas as culturas são diferentes na forma com as quais são construídas, mas, uma vez detectada sua estrutura, seu esqueleto, se verá que são todas muito semelhantes. Por exemplo: temos descrições de dilúvios universais em vários povos do Oriente Médio, incluindo a famosa narrativa bíblica, aquela do Noé e da arca. A proximidade geográfica é um bom fator aglutinante dos diferentes mitos da região mesopotâmica, mas acontece que também nas Américas há relatos de tal catástrofe, como pode ser lido no Popol Vuh dos maias. No entanto, longe de representar um efetivo cataclisma, essas narrativas denotam uma maneira universal com a qual o componente mítico explica a divindade: um ato que demonstra o poderio da deidade, sua ira e sua piedade. Esse esqueleto é praticamente igual em muitos dos mitos, e pretende estabelecer a ferramenta de poder ligada à religião - a fúria divina é devida à insubordinação humana, o que explica muito melhor a existência do mito do que um efetivo evento mundial que não consegue corroboração. A temática do dilúvio não se repete porque tenha ocorrido de fato, mas porque a estrutura por trás das sociedades faz com que esse mito seja escrito de maneira parecida e por motivos afins. E é isso o que busca este método: descascar as paredes das culturas para descobrir os pilares de sua edificação, o que o torna ótimo para pesquisas sociais e antropológicas.

Isso tudo é suficiente para demonstrar como a discussão sobre a Filosofia em si mesma é aberta e cheia de nuances. O método científico é muito mais bem delineado e dirigido: grosso modo, monta-se a hipótese e consegue-se provas. Todas as abordagens filosóficas que listei aqui, que podem inclusive ser utilizadas concomitantemente e de modo entrelaçado, e há outras ainda, são de uso corrente, o que demonstra o quanto o aprofundamento intelectual que se debruça sobre ela é intrincado e ramificado. Atentem que mesmo esta pequena série é toda metafilosófica, porque busco dar um pouco de luz às dúvidas que a galera me pede para dirimir, e vejam, no global da obra, quantas áreas são afeitas. Ponto para os filósofos, que sempre são acusados de serem viajandões a cuidarem de inutilidades. Chamem-nos assim, mas jamais de preguiçosos. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Um bom livro para compreender a Metafilosofia e diferenciar a metodologia filosófica da científica é a obra do francês Granger:

GRANGER, Giles-Gaston. Por um Conhecimento Filosófico. Campinas: Papirus, 1989.

Já que mencionei a música do Língua de Trapo, segue abaixo sua referência completa:

LÍNGUA DE TRAPO. Régui Espiritual. In Língua de Trapo. São Paulo: Lira Paulistana, 1982.

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