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sábado, 10 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 7º porto: Lavrinhas e a crise de identidade

Olá!

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Digamos que esta é uma espécie de faixa-bônus. Passamos em Queluz, passamos em Silveiras, passamos em Areias, passamos em Arapeí, em Bananal e finalizamos nossa turnê em São José de Barreiro. Finalizamos? Bem, quase. Pegando o rumo de casa, fazendo praticamente o exato retorno do caminho de ida, passamos ao lado da placa do município de Lavrinhas, já na Via Dutra. Parafraseando o Renato Russo, eu dizia: ainda é cedo. Legal, vamos passar em Lavrinhas, quem sabe tomar um sorvete.

Devo confessar que fiquei um pouco, digamos, decepcionado. Ao contrário de todas as cidades que visitamos, não encontrei em Lavrinhas o mesmo potencial histórico nem o mesmo cuidado com o patrimônio. Tudo bem, foi uma passagem rápida, período de poucas horas mesmo, e preciso dar o devido desconto, mas a primeira impressão não foi tão interessante. Fiquei sabendo da existência de alguns riachos e de algumas fazendas onde é possível passar uns momentos bacanas, mas achei que as pessoas da cidade não são muito engajadas com sua pequena territorialidade.

Vou dar um exemplo: vejam a imagem de São Benedito, que se encontra em uma pequena praça da cidade.

Pois bem. Achei curiosa a capelinha onde repousa o santo e resolvi fotografá-la. Tinha lá alguns rapazes, e me dirigi a um deles para perguntar se São Benedito é o padroeiro de Lavrinhas (não é: pesquisei na internet e fiquei sabendo que São Sebastião é o cara). Não soube me dizer.
O patrimônio histórico – pouco – não é nada bem cuidado, como já disse. Um exemplo gritante é a antiga estação de trem, hoje ocupada pela Prefeitura e por outros órgãos.  

Está bem estragadinha, inclusive com muitas pichações e garatujas várias:

Não consegui encontrar, pelo menos pelo centro, uma sequência de casinhas que desenhassem os antigos projetos arquitetônicos da cidade, o feitio de suas ruas, ou alguma glória antiga. Vi, isso sim, algumas edificações em destroços:

E também não vi aqui a consagrada e costumeira igrejona com sua praça e seu coreto. A igreja que encontrei foi essa abaixo, discreta como a rua em que se localiza:

O que nos diz um pouco mais são duas coisas: o rio e a estrada de ferro. Lavrinhas, da mesma maneira que Queluz, tem contato direto com o Rio Paraíba do Sul. Só que, ao contrário desta, temos aqui muitas pessoas que procuram tirar algum sustento de suas águas precárias. Vimos vários pescadores em suas margens.

A cidade tem uma interessante ponte feira em arco de concreto, de vão bem estreito, mas que me parece suficiente para o seu movimento, já que aqui não temos o intenso vai e vem de caminhões de sua vizinha.

Outro fator marcante da cidade é a presença da linha férrea, que nos propicia, além da estação já mencionada, algumas outras obras de arte de engenharia, como é o caso da ponte que cruza o rio...

... e do túnel em arco que passa por baixo dela...
... muito embora possamos aqui também ver alguns destroços, como esses estranhos pedaços de concreto enfiados no rio, ao lado da ponte férrea.

O que eu vi de mais curioso e belo é uma imagem de Nossa Senhora inserida no meio do rio, posta em pé em um pilar que emerge das águas.

Algumas pessoas podem achar a imagem e sua inusitada inserção meio kitsch, mas extraio outro significado: é a população dando ao rio que lhe dá sustento um aspecto sagrado, além de uma proteção para a continuidade no fornecimento de seus essenciais.

O modo como a cidade se organizou é um rolo só. O nome Lavrinhas vem do fato de terem sido encontrados alguns veios de ouro na região. A esperança de que as lavras fossem abundantes eram grandes, mas não chegou a produzir como em Minas Gerais. De início, a povoação formada ao redor dessa mineração pertencia ao município de Queluz. Foi emancipada para a condição de Distrito, mas dessa vez passou a ser administrada pelo município de Pinheiros. Mais um tempo se passou e nossa querida Lavrinhas ganhou o estatuto de município, englobando sua antiga administração, a cidade de Pinheiros, agora distrito. Não me perguntem o porquê dessas idas e vindas, mas há uma certa animosidade entre o centro e o bairro rebaixado, tipo Brasil X Argentina.
Temos um município dividido em quatro porções: a Lavrinhas original que constitui o atual centro, o mencionado Pinheiros, o bairro chamado de Capela do Jacu e, ao norte, o maciço constituído pela Serra da Mantiqueira. Este pedaço é praticamente formado apenas por mata virgem, e é objeto de uma interessante proposta de tombamento! Seria excelente, para garantir a manutenção e a preservação do Parque Nacional da Mantiqueira, mas, por outro lado, dificultaria o desenvolvimento da cidade. E, da mesma forma que o município é dividido em núcleos multiformes, também temos aqui alguma dificuldade em estabelecer uma chave comum que unifique a cidade, que lhe dê um registro único. Todos os motivos históricos, aliados às condições geográficas já citadas, fazem, aos meus olhos, com que Lavrinhas viva uma crise de identidade.

Mas isso tudo é uma questão de opinião, pois é essa a forma com a qual absorvi, através da minha consciência, esse novo conhecimento, que é a cidade de Lavrinhas. Para distinguir o que é logos e doxa (conhecimento e opinião, crianças), é preciso sentar sob uma árvore, acompanhado de um copo de café e fazer epoché.
Epo... quê!?!?!?!?!?!?!?!?! Que p... é essa?

Epoché é mais um termo grego do jargão filosófico, nascido com os antigos céticos e retomado no século XX pelo filósofo tcheco Edmund Husserl, pai da Fenomenologia como método de investigação filosófica. A palavra epoché significa a suspensão do juízo que fazemos diante da impossibilidade de conhecer, ou seja, se não podemos apreender uma qualquer coisa, devemos parar de dar “chutes” a respeito dela. Essa era a visão dos céticos, como é o caso do filósofo Pirro, para quem era absolutamente impossível chegar a qualquer verdade.
Só que Husserl tinha um uso alternativo para a epoché. Tudo começa com a concordância dele com a assertiva kantiana de que é impossível conhecer a coisa-em-si – a essência das coisas – mas apenas as suas manifestações concretas, sua existência efetiva, denominadas fenômenos. Exemplo: enquanto redijo este texto, sorvo um café. Como sei que é um café? Ora, ele contém todas as características essenciais do que definimos como tal – preto, sabor bem marcado, estado líquido, aroma típico, etc. Mas, se eu tenho a percepção de todas estas características, é porque eu tenho um café existente diante de mim, concreto, real, palpável, que se encaixa no gabarito de café que reside em minha mente, e que foi formado pelo que me contaram sobre ele e sobre as inúmeras experiências de engoli-lo que tive em toda a minha vida. É o café que se manifesta à minha consciência, um café como fenômeno, que pode ter características próprias – mais quente ou mais frio, mais forte ou mais fraco, mais ralo ou mais encorpado, frutado, com notas de chocolate e banana, essas frescuras todas – mas que tem algo em comum com todos os outros cafés do mundo, e que me fazem reconhecê-lo como tal.

Tá. O que aconteceria se me fosse servido o seguinte produto: uma água aquecida, com flavorizante saber café, um pouquinho de espessante para dar consistência, um edulcorante para adoçar, um corante para pretejar, colocado em uma xícara com estampa quadriculada em vermelho e branco, tudo isso em cima de um pires para evitar desastres? Terei um café?
Certamente não. Trata-se de uma mezinha química embusteira que procura me iludir. Quando muito, pode ser denominada de “bebida artificial com sabor imitação de café”. Mas o que é essa bebida para mim, sem saber da presepada que me arrumaram? Ora, é café!!! Pode parecer meio Matrix, mas esse líquido que bebi manifesta-se à minha consciência como café, minha experiência prévia faz com que eu creia que é café. Para que eu possa me precaver do engano, para assegurar essa manifestação como uma certeza, é preciso colocá-la em dúvida, é preciso fazer epoché.

É um exemplo claramente esdrúxulo, ninguém precisa olhar com desconfiança para o próprio cafezinho que fumega à sua frente. O que Husserl preconiza é a tentativa de transformação da Filosofia em Ciência, através de uma aplicação metodológica. Isso porque apreendemos os objetos do mundo em uma consciência crivada de uma massa de experiências que influem na maneira que os enxergamos. Tudo influencia nossa percepção: nossos sonhos, fantasias, frustrações, convicções, preferências, lembranças, cultura. E é preciso isolar todas essas variáveis se quisermos conhecimento seguro.
A grande sacada da Fenomenologia é que ela não é um sistema filosófico fechado, mas um método aplicável a qualquer área do conhecimento. A colocação de teses entre parênteses (figura criada pelo próprio Husserl) dá uma total liberdade ao pesquisador (aí entendido até mesmo quem queira duvidar que seu café seja café) de duvidar de absolutamente tudo, sem a necessidade destrutiva do cogito cartesiano de duvidar do mundo que nos rodeia, como se fosse possível sua inexistência, porque esse ceticismo exacerbado acaba por impossibilitar a própria Ciência. O mundo não nos desaparece quando pensamos nele, ou quando queremos entender algo de seu funcionamento. Um besouro não deixa de voar se não entendemos como uma aerodinâmica tão improvável possa permiti-lo fazer (tem um besouro voando perto do meu café). É por isso que a Fenomenologia de Husserl não é negativa como o gênio do mal de Descartes. A dúvida não é e não deve ser universal, mas limitada àquilo que coloco entre parênteses.

Então é preciso pensar Lavrinhas fenomenologicamente, para que eu não tire conclusões tão ruins apressadamente. Havemos sempre de compreender um objeto não somente pelo que é apresentado aos nossos sentidos, mas também tudo o que há por trás dele. Prometo voltar a Lavrinhas, para ser justo com ela.
Recomendação de leitura:
Cuidado, compradores. Como a fenomenologia tem alcance amplo, há um belo bando de picaretas que a utiliza com propósitos esotéricos. Nada contra, mas não é esse o método husserliano. É melhor beber direto da fonte:

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica. Aparecida: Ideias e Letras, 2006.

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