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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A dissonância cognitiva e as mentiras que se tornam verdades

Olá!

O que você faria se tivesse em suas mãos um objeto que emitisse luz, e presenciasse, pela primeira vez em sua vida, um artefato idêntico, mas espalhasse sombras ao seu redor? Qual seria a sua reação?


Vamos contar mais uma historinha da minha vida. Comecei a trabalhar bastante jovem, aos 14 anos, acreditando na balela que dizia ser bom começar cedo para aposentar cedo. O tempo passou, a lei mudou e eu vou ter que trabalhar uns doze anos a mais do que estabelecia o projeto original. Passons.

Entre um emprego e outro, meu pai recomendou que eu procurasse a empresa onde ele era torneiro mecânico, uma metalúrgica fabricante de máquinas que vivia tempos de glória. Fi-lo e fui contratado.

Bom... Nessa empresa, foi organizado um grêmio que tinha aquelas coisas de grêmio: um bar, algumas mesas para jogar dominó e baralho, uma mesa de ping-pong, uma de pebolim, uma de sinuca e duas de bilhar, essas coisas para fazer em companhia na hora do almoço ou após o expediente.

Eu costumava almoçar bem correndo para poder chegar à concorridíssima mesa de pebolim, onde eu era mais habilidoso, enquanto meu pai preferia jogar truco. Chamei-o algumas vezes para jogar bilhar, mas ele sempre recusava. Eu sabia que ele era meio grosso, mas, um pelo outro, eu era ruinzinho também, dando plena valia ao ditado “filho de peixe, peixinho é”.

Havia caras que eram bons de verdade no ofício: o Miltão, o Capoeira, o falecido Gervásio. Era estranho, mas todos eles eram insistentes em me pedir para que eu convencesse meu pai a jogar. Alguns deles garantiram (não estou brincando) que fizeram grandes parceiradas com o velho em priscas eras, chegando a cogitar se tornarem federados. Um belo dia, estando a sós, ocorreu-me de apertá-lo, de onde obtive a seguinte confissão:

“Eu vendi essa história e eles acreditaram. Queriam jogar a dinheiro e eu disse que só jogaria valendo o salário inteiro, com cheque assinado na frente. Não ia dar exibição de graça. O primeiro a quem eu propus isso, amarelou na hora, e a coisa acabou virando uma lenda”, concluiu o sacripanta genitor, rindo-se às escâncaras.

Que coisa! Parece mentira, mas não é. Meu pai tem a reputação de ser uma cobra no bilhar, sem nem saber passar giz no taco. Quando eu falei por alto a bazófia, muitos disseram que o mentiroso era eu. Acharam, provavelmente que eu não gosto das “glórias” do meu pai, por que tenho inveja de quem eu deveria me orgulhar e outras frases congêneres. Duvidam? Pois vou contar uma história bem mais famosa, que pode ser conferida em rápida pesquisa na internet.

Corria o ano de 1972, momento grandioso na história do rock mundial. Ano do lançamento de algumas obras vis e desprezíveis, como “Foxtrot” do Genesis, “Machine Head” do Deep Purple, “Ziggy Stardust” do David Bowie, “Volume 4” do Black Sabbath, “Acabou Chorare” dos Novos Baianos, “Caravanserai” do Santana, “Close to the Edge” do Yes, “Storia de um Minuto” do Premiata Forneria Marconi, “Demons & Wizards” do Uriah Heep, “Obscured by Clouds” do Pink Floyd e, por fim, o espetacular álbum “Thick as a Brick”, do Jethro Tull, uma das melhores bandas do rock progressivo de todos os tempos, capitã de um sub-estilo denominado Folk Prog, que busca elementos nas raízes culturais de um país e mescla-as a uma sonoridade elaboradíssima. Era uma obra incomum, composta de uma só música, que se baseia em uma estranha história. Vamos a ela.

Em um concurso de poesia infantil, um pequeno gênio chamado Gerald Bostock, cuja peça, “Thick as a Brick” (espesso como um tijolo), demonstrava um lirismo e uma maturidade rara de encontrar até mesmo em adultos. Sua escrita era tão intrincada e multifacetada que o menino ganhou o epíteto de “Little Milton”, em referência ao poeta setecentista inglês John Milton.

Acontece que o júri, assustado com a prematuridade de um menino que dizia que desceria da “classe superior para consertar os seus caminhos podres”, e que ia “ensinar os homens sábios a enganar o resto dos outros homens”, e por se mostrar rebelde nos programas de TV em que era convidado a comparecer, resolveu desqualificá-lo, premiando uma garota que redigiu uma poesia religiosa, compatível com a mentalidade infantil.

Os membros do Jethro Tull não se conformaram com o resultado do concurso, mais especificamente com a desclassificação arbitrária do menino Gerald, e resolveram encampar sua causa, transformando sua poesia em música e lançando um álbum com o mesmo título. Em sua capa, uma reprodução do jornal que anuncia o resultado do concurso e expressa a mesma indignação que comoveu a banda, que resolveu trazer como encarte todos os detalhes possíveis para divulgar o caso ao maior número alcançável de pessoas.

Final feliz? Sim! E irreal. A história nunca existiu de verdade. Fez parte de todo o contexto criativo que cercou o lançamento do álbum. Tudo é fictício: o garoto, o concurso, a matéria no jornal. A poesia era de verdade, mas composta pelo próprio Ian Anderson, líder da banda, que é mesmo um poeta genial, mas que não tem oito anos!!!

Mas a verdade é que, mesmo com os desmentidos oficiais da banda, há quem acredite na história até hoje! Já li até mesmo uma teoria conspiratória que diz que o desmentido se dá por conta de questões de direito autoral, que a família Bostock se ressentiu de ver o nome do menino espalhado ao vento, e outras parlendas e parlatórios.

Por que será que isso acontece?

Bom... Vamos começar observando que, nos dois casos, temos a refutação de um conhecimento que julgávamos ter. Tem-se pacífica uma determinada condição e, do nada, surge uma contradição que a põe abaixo. Ambos os casos são desmentidos, mas há uma descrença de boa parte dos receptores. Mas há também aqueles que creem. São duas maneiras de reagir a uma característica de nossa mente conhecida como dissonância cognitiva.

A dissonância cognitiva é uma resposta mental que ocorre quando nos confrontamos com algo que desmente nosso conjunto de conhecimentos. Dissonância, traduzindo diretamente, significa um desacordo, uma falta de harmonia entre duas ou mais instâncias. Quando armazenamos em nossa mente uma correlação que podemos chamar de conhecimento, observamos uma correspondência entre um objeto e sua descrição, entre uma causa e sua consequência, ou estabelecemos uma coerência entre as narrativas que exprimem um acontecimento. Essa associação é o que chamamos de cognição. Esse processo contínuo é a argamassa do nosso aprendizado.

Acontece que, mesmo devendo ser céticos e duvidar daquilo que não forma nexos, ou colocar entre parênteses todo conhecimento que não está fortemente respaldado com evidências, precisamos ter alguns dados mais basilares fundeando outros. Para compreendermos uma teoria avançada da física, precisamos de muito conhecimento matemático e necessitamos ter confiança nele. É como se apostássemos que nossa cognição fundamental está correta, e sobre ela podemos erigir coisas mais sólidas e complexas.

Por isso, quando defrontados com uma situação em que há discrepância entre o que sabemos e o que nos é demonstrado, sofremos uma crise. Não, não me refiro a nada que necessite de psicanálise: é um desequilíbrio que precisa ser, de alguma forma, recomposto.

Portanto, uma crise sempre é estabelecida quando há dissonância entre o que vemos e o que julgamos saber. É uma reação psíquica absolutamente natural. O que pode ser problemático é o que nós vamos fazer com o desequilíbrio causado. A reação imediata é tentar reduzir a dissonância, buscando restabelecer algum tipo de coerência. Só que, nesta tentativa, é possível acontecer alguns estranhos tropeções.

A razão e o bom senso indicam para nós que a estranheza deve ser bem apurada. Se algo fere nosso conjunto de conhecimentos, primeiramente enumeramos as variáveis que podem levar à discrepância. Por exemplo: uma televisão permanece ligada quando falta luz na casa. Pela minha cognição, isso é impossível. Neste momento, vou iniciar algumas verificações – se a TV não vem equipada com no-break, se ela não possui um banco de baterias, se há ainda energia na tomada em que ela está conectada, se não há nenhum “gato” trazendo energia do vizinho. O fato de que ela se mantenha ligada causa em mim uma dissonância que preciso resolver. Quando consigo, resolvo a disparidade e durmo em paz. Quando não, a boa prática da humildade nos indica que devemos dizer: “não sei”. Isso é o que deveria acontecer normalmente.

O problema ocorre quando esse ajuste se dá assumindo uma mentira como se fosse uma verdade. Pior ainda: assumir uma mentira sabendo-se que é mentira. Vou descrever o experimento de Leon Festinger, psicólogo estadunidense criador do termo.

Ele juntou em seu laboratório algumas pessoas e as colocou para fazer uma tarefa tediosa qualquer. Em seguida, deveriam passar a tarefa para outras pessoas. Para uma parte deles, foi solicitado que contassem o quanto a tarefa era divertida, mediante o pagamento de 20 dinheiros ianques. Para outros, era oferecido apenas uma única e módica doleta, algo facilmente recusável. Feito isso, seguiram-se as entrevistas com os membros de cada grupo. Os que pegaram mais dólares, ao conversar com os pesquisadores, admitiram que o fizeram pelo dinheiro, dada a chatice da tarefa. Já uma boa parte dos que não auferiram boa quantia se mostraram convencidos de que o experimento era desafiador e enigmático. Percebam que a questão da remuneração impede a dissonância. Eles sabem que a tarefa era tediosa, mas a recompensa financeira justificava mentir. Dessa forma, não há desequilíbrio. Mas quem não tinha essa muleta monetária dizia que o experimento não era tedioso sem recompensa. AQUI nós temos a dissonância. A pessoa se convence de algo contrário à sua convicção para devolver consonância ao seu raciocínio. É algo assim: “se o pesquisador diz que é interessante, então deve ser interessante de fato”.

Mas se você quer exemplos mais simples, vou dar. Quantas e quantas vezes você já ouviu falar de profecias fatalistas, em especial as apocalípticas. No período de 30 segundos, lembrei-me do calendário maia, de Nostradamus, das escatologias de certas religiões e de alinhamentos planetários. Como o mundo não acabou, nenhum desses profetas e quase ninguém que acreditava nessas pantomimas deu o braço a torcer. O mais normal a acontecer nesses casos é adaptar a teoria e descartar o furo, dizendo que “foi obtido mais um tempo de oportunidade”, ou que “houve problemas de tradução”, ou ainda que será necessária uma revisão de cálculos. E, como acreditam de fato, essa conduta resolve a dissonância. Quando não é possível alterar a realidade, altera-se a cognição.

A maior dificuldade, no entanto, ocorre quando a dissonância cognitiva implica, em seu reequilíbrio, na necessidade de mudanças comportamentais. Nosso médico nos diz, por exemplo, que carne demais faz mal. O que fazemos? Reduzimos seu consumo e resolvemos a parada. Podemos até pesquisar o assunto para não acreditar piamente no médico, mas esse é o rumo do bom senso. Ou então desacreditamos do médico, procuramos nutricionistas que prescrevam dietas com amplo consumo de proteínas, diminuímos o consumo de todos os demais alimentos. Também tem a mudança de comportamento político – acreditamos em uma proposta e nosso candidato nos frustra, mostrando-se ineficaz e corrupto. Ou deixamo-lo de lado, para nunca mais votar naquele que, em Filosofia, chamamos de filho da puta; ou procuramos mil e uma chicanas para justificar seu comportamento, dizendo que é mentira da oposição, que é perseguição da imprensa, que é intriga plantada. Qualquer semelhança é mera coincidência.

Recomendação de leitura:

Nada melhor do que ir direto à fonte. Recomendo o livro em que o próprio autor da teoria da dissonância cognitiva desenvolve suas teses. Livro chato de achar.

FESTINGER, Leon. Teoria da Dissonância Cognitiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975.

Agradeço mais uma vez à Jazz por emprestar seu talento em segurar objetos luminosos.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O mundo em compartimentos na mente descontínua

Olá!

Imagine que você tem em suas mãos um metro, daqueles de pedreiro ou de tecelagem. Normalmente, eles são graduados, em um nível de precisão correspondente à sua centésima ou milésima parte, o que representa, respectivamente, um centímetro e um milímetro. Este último é bastante pequeno, menor que uma das letras que compõem este texto. Resumo: um milímetro é um metro dividido por mil. Se pegarmos esse milímetro, pequeno mas ainda confortavelmente visível, e dividi-mo-lo novamente por mil, teremos um micrômetro, algo menor do que a sujeirinha que você pode encontrar no seu monitor. Podemos continuar a brincadeira e dividir o micrômetro por mil mais uma vez, obtendo um nanômetro, sem dúvida invisível a olho nu.


Para chegar à medida atômica, temos que dividir o número uma vez mais e chegar ao Angstrom. Ou seja, para chegar até aqui, dividimos o metro 10.000.000.000 de vezes. Mas aquelas representações atômicas às quais estamos habituados, com umas bolinhas no centro e um monte de traços circulares ao seu redor são meramente didáticas. O núcleo parece grande em relação ao átomo como um todo, mas a órbita que o circula é imensamente maior. O núcleo representa algo que varia em torno de 10.000 a 100.000 vezes menos do que o diâmetro total do átomo. Já os elétrons são tão minúsculos que seu peso é desprezível para apurar o peso total do átomo. Parece inconcebível, mas somos feitos, na maior parte, de... nada!
 
Vamos pensar agora em outra coisa. Vamos supor que estejamos forrados de grana e decidamos conhecer o mundo inteiro. Para isso, vamos passar um dia, e um único dia, em cada cidade do globo. Só para o estado de São Paulo, levaremos 645 dias para fazê-lo, 1 ano e 9 meses. O Brasil inteiro tem 5570 cidades. Portanto, em nossa missão demoraríamos mais de 15 anos para partir ao estrangeiro. Não consegui encontrar estatística confiável sobre o total de cidades do mundo inteiro, por isso acreditarei nas 36.722 do Guia dos Curiosos. Sendo assim,  nossa jornada duraria 100 e poucos anos. Mas agora pensem: estamos conduzindo nossa viagem apenas pelas terras emersas, e não estamos considerando a Antártica, que não tem divisões administrativas. Nossa visita compreenderá apenas 1/3 do planeta Terra, que, se comparado com os gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, é bem pequeno. Imaginem agora que se juntarmos todos os planetas e satélites do sistema solar, não teríamos massa suficiente para fazer mais do que uma mancha na estrela matriz. Grande, não? Só que o Sol é uma estrela relativamente pequena. Não é possível comparar seu tamanho com outras estrelas em escala precisa no espaço de um monitor, a não ser que mostremos apenas parte de sua curvatura. Veja como seria uma tosca comparação do Sol com Aldebaran, Betelgeuse e VV Cephei:


Isso tudo se considerarmos o universo detectável. Há prognósticos de que podem existir objetos cósmicos ainda maiores, em distâncias que ainda não temos instrumentação capaz de detectar, coisas que estão a bilhões e bilhões de anos-luz do planetinha azul.

Anos-luz... Usain Bolt é o homem mais rápido do mundo. Em seu recorde mundial nos 100 m rasos, o jamaicano atingiu uma velocidade de 43,9 Km/h, algo incrível, mas que é superado facilmente por uma prosaica bicicleta. O homem aprendeu a medir a velocidade do som, principalmente ao observar as correlações de tempo entre raios e trovões, e concluiu que esta velocidade era de 300 m/s. Tivemos genialidade suficiente para transpor essa barreira com um engenho feito por mãos humanas. Em 1947, o primeiro avião supersônico alçou voo, e hoje temos foguetes que, para entrar em órbita, atingem velocidades de 27000 Km/h.

O homem utilizou ferramentas simples para descobrir a velocidade do som, e tentou aplica-las para medir a velocidade da luz, mas deu errado. O experimento foi o seguinte: Galileu Galilei lançou mão de duas lanternas e de um auxiliar. Foram ao alto de duas montanhas e descobriram suas lanternas. Sendo conhecida a distância entre o observador e a fonte luminosa, bastaria contar o tempo transcorrido e calcular a velocidade. Mas algo não funcionou: a luz surgia instantaneamente, e era impossível medir qualquer coisa. Só muitos anos mais tarde, observando a propagação da luz em distâncias cósmicas, e que foi possível determinar que a velocidade da luz é de 300.000 Km/s. Isso significa que, em um único segundo, um facho de luz daria sete voltas e meia no humilde planetinha. Também significa que a luz emitida no Sol demora 8 minutos para chegar à Terra. É o tempo que levaremos para saber que o Sol apagou, quando isso acontecer. Vamos dar uma forçada forte de barra agora: a média de idade de um brasileiro é de mais ou menos 70 anos. Sabe a quantas estrelas você chegaria se viajasse a vida inteira na velocidade da luz?  Algo em torno de 300. Pois no universo há BILHÕES de galáxias, contendo BILHÕES de estrelas, a BILHÕES de anos-luz de distância. A radiação cósmica de fundo, algo que os astrônomos reputam como sendo restos do Big Bang, está tão distante de nós que apenas recentemente foi detectada. Se algo de estranho ocorrer com ela agora, tipo mudar de cor, apenas alguma nova civilização sucedânea à nossa saberá (se é que estas haverão), daqui a bilhões de anos.

Fizemos estes exercícios mentais, e espero que não estejamos cansados, apenas para compreender o quanto é difícil para os cérebros humanos lidar com grandezas que vão além de certos limites. Eu poderia acrescentar mais coisas, como, por exemplo, a questão das dimensões perceptíveis, das quais podemos interagir com apenas três, as clássicas altura, largura e profundidade, mas matematicamente é possível lidar com outras. Só que chega, já tá bom.

Essa dificuldade de lidar com extremos não é por acaso. O homem como “ser cientista” é uma invenção recente. Digamos que a anotação de nossas experiências somente se torna possível a partir da criação de um código, a escrita, o que representa bem pouco tempo na história de espécie. Nós adaptamo-nos a fazer correlações diretas de causa e efeito, e com isso chegamos facilmente a uma barreira do observável pelos sentidos e pelos nossos parcos conhecimentos. Daí para frente, tínhamos pura especulação. Algumas apelavam para soluções mágicas, outras procuravam manter algum tipo de lógica, mas sempre esbarrando em nossas próprias limitações.

As correlações de causa e consequência, no florescer da humanidade, eram sempre muito imediatas. Não havia longos encadeamentos de raciocínio porque o homem precisava resolver seus problemas de maneira instantânea, principalmente em situações de iminente perigo. Um índio acuado por uma onça, por exemplo, não vai ficar devaneando sobre os motivos pelos quais ele está prestes a se tornar acepipe, se há falta de alimento na mata, se há mais onças espalhadas no terreno ou se ele simplesmente deu azar. Ele vai tentar fugir e pronto. Se não der, vai enfrentar a fera com o que estiver ao seu alcance, com pedras e paus, ou com suas próprias mãos.

Isso quer dizer que os homens não olhavam para o céu e não se admiravam com as fases da lua, os formatos das constelações ou os traços dos meteoritos? Claro que faziam tudo isso, mas o que os educava o raciocínio estava aqui na Terra. Quem bobeava, dançava. E, sem dúvida, um dos componentes que melhor nos selecionou foi a capacidade de estabelecer nexos rápidos de causa e efeito. Apenas hoje, afastados que estamos das necessidades prementes de decidir, e tendo ao nosso dispor o vasto conhecimento acumulado nos últimos séculos, percebemos um efeito colateral desse fator de seleção. É a mente descontínua.

Do que se trata isso, mais especificamente? É a dificuldade que temos de compreender como se dão encadeamentos de processos de transformação que levam muito tempo para se ocorrer, ou que estejam muito distantes, ou ainda se suas dimensões sejam grandes ou pequenas demais. Quando buscamos uma explicação para fatos intrigantes, como a origem do universo ou da vida, por mais complexa que seja nossa teoria, ela é desenvolvida em um tempo infinitamente mais curto do que o desenrolar do fato em si, e acabamos, mesmo que involuntariamente, tentando medir essas transformações através de nossos parâmetros mentais, o que obviamente não dá certo.

Nosso cérebro adaptado ao imediato tenta, a todo custo, encaixar uma explicação igualmente imediata a todos os questionamentos que não são óbvios. Temos capacidade de abstração, sim, mas buscando tangibilidade a todo custo. Por isso algumas teorias científicas parecem poéticas. E por isso teses criacionistas são mais facilmente aceitas pelo senso comum do que a teoria da evolução, para citar um exemplo. Alguns termos, como design inteligente e complexidade irredutível, procuram calçar teses de que certas características dos seres não se explicam sem um engenheiro que as projete. Acho que o exemplo mais clássico de todos é o olho humano. Um dispositivo tão perfeito, que consegue distinguir cores e perceber tridimensionalidade, que tem mecanismos de regulação de entrada da luz, que se lubrifica automaticamente, que possui capas protetoras naturais, que possuem regulagens de foco semelhantes às câmeras fotográficas, como poderia ter surgido ao acaso?

A resposta mais honesta seria: não sei. Mas a resposta mais científica diz que tudo isso é fruto da seleção natural. E isso se dá porque a evolução dos seres vivos é extremamente lenta e gradual, em um espaço de tempo difícil de observar. E há um erro muito grande em atribuir ao acaso o surgimento de um órgão. Os componentes que evoluem representam uma vantagem para a espécie que a possui. A primeira espécie a possuir um olho rudimentar provavelmente o obteve pela mutação de terminações nervosas especialmente sensíveis à luz, que aos poucos foram se modificando. Cada mudança favorável ajudou a espécie a sobreviver, e cada mudança desfavorável ajudou a condená-la à extinção. Por isso, não há acaso. Mas é exatamente aqui que a mente descontínua se prova um defeito. As relações de causa e efeito estão tão longínquas uma da outra que nossa mente não consegue juntar os compartimentos, e prefere atribuir aos fenômenos uma causa menos provável, mas mais facilmente compreensível. Basta pensar que a estimativa de surgimento do gênero Homo se deu há 2.500.000 anos. Fazendo uma exageradíssima média de 100 anos para a sobrevivência de cada geração (não atingimos essa média nem nos dias de hoje), chegaríamos à conclusão que seu ancestral mais antigo esteve na Terra a 25.000 gerações, em uma conta burríssima e meramente ilustrativa. É pouco? Você se lembra do seu pai, certamente; e provavelmente do seu avô. De bisavós, ainda é comum restar algum tempo de contato. Já dos trisavós, alguns poucos afortunados. Tetravós são extremamente raros. Falamos apenas de 6 gerações, incluindo a nossa. Junte mais 24.994 passos e chegaremos ao homo habilis.

Como a mente humana não consegue ver o todo harmônico das relações complexas, tende a dividir seu conhecimento em compartimentos. Até aí não seria um problema, se soubéssemos concatenar esses compartimentos entre si, através de uma linha mestra. Acontece que estes compartimentos são entendidos como unidades prontas e acabadas, estanques e imutáveis, e, nesse ponto, a mente descontínua mostra sua face mais perniciosa: a binariedade.

Lembram quando falei da falácia da falsa dicotomia? Pois é, aqui nós temos aplicações práticas da descontinuidade a que tende nosso pensamento – um mundo dividido em caixinhas. Todas as dicotomias que apliquei na abertura daquele texto servem para exemplificar amostras da mente descontínua. Não se enxergam transições, apenas pontos e fatos bem marcados. E surgem as brigas entre direita e esquerda – um liberal é proibido de gostar de questões sociais, um socialista não pode concordar com a propriedade privada; entre negros e brancos – o negro tem que ser étnico, o branco tem que ser opressor; uma gota de sangue negro te torna negro; entre homens e mulheres – a mulher tem que ser frágil, o homem tem que ser dominante, e não há sexualidade intermediária. Não há nuances. É um mundo em preto e branco, de zeros e uns.

Recomendação de leitura:

Todo esse ideário nasce do pensamento do biólogo britânico Richard Dawkins, que descreve o funcionamento de uma mente que não consegue conectar fatos, nem interligar ideias, nem enxergar fios condutores.

DAWKINS, Richard. O Capelão do Diabo. Ensaios escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Agradeço à Jazz e ao Lucas por permitir dar uma picotada na foto.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Receitas para forrar a pança e para deixar o mundo melhor (Mostra Internacional de Quiches)

Olá!

Sempre que posso, procuro reunir minha galera (que, aliás, vai retratada logo abaixo) para fazer alguma coisa qualquer, pelo simples prazer de estarmos juntos e darmos risadas de nossas estripulias. Foi assim que se deu alguns dias atrás, quando nos reunimos para um “festival” de quiches, com destaque para um de carne seca, construído como se fosse um escondidinho: em uma base de massa podre, carne seca desfiada e refogada com bastante cebola, coberta por uma grossa camada de batatas e finalizado com queijo mozarela (muzarela? Mozzarella? Muçarela?), devidamente gratinado em forno alto. Acompanhou também um quiche de frango com elemento X (o tal elemento X nasceu da desconfiança do meu filho Danillo, que queria saber do que se tratava o ingrediente que dava liga no galináceo despedaçado – nada demais, apenas creme de leite), um tradicionalíssimo de alho-poró e outro de palmito com batata, para atender os veganos/vegetarianos da casa. Na tela da TV transformada em monitor, um review de nossas filmagens do ano passado. Na verdade, um making off.





Como citei, havia um quiche de palmito manufaturado sem carnes, leites ou ovos, para atender a demanda da filha Deborah, vegetariana, e principalmente da afilhada Renata, aquela mesma, vegana. Daí, foi necessário elaborar uma massa a parte, substituindo os elementos oriundos do reino animal por outros de origem vegetal. Para o leite, usei extrato de soja; para os ovos, dei liga com amido de milho, a boa e velha Maisena. Ficou bom, posso garantir. Mancada: fiz gelatina de sobremesa, mas veganos não a consomem, feitas de colágeno de origem animal que são. Juro que eu pensava que era fruto de alguma mezinha vegetal, como o ágar-ágar. Peço perdão. Ainda bem que tinha umas mexericas à disposição.





A questão do consumo de carne tem se aprofundado nos dias atuais. Há basicamente dois motores para discussão: um fisiológico e um ético, e resolvi tratar do tema, soltando meus pitacos. De bate pronto, vou marcar minha posição informando que seu ABSOLUTAMENTE CONTRÁRIO a todo tipo de diversão que implique em sofrimento para os animais. Abomino rodeios, detesto touradas, não suporto brigas de galo, tenho arrepios de pensar em farras do boi. Também desaprovo qualquer forma de abate que implique em sofrimentos longos e injustificáveis aos animais, como faz a extração do fígado do ganso para o paté de foie-gras ou o caldeirão borbulhante para cozinhar as lagostas ainda vivas. Também quero dizer não reprovo NENHUM modelo alimentar, que tento compreender as restrições que cada grupo se impõe e que não tenho nenhum motivo para brigar por conta disso. Isto posto, podemos começar a discutir.


Começarei tentando pensar onde se delimita o que é necessidade física e o que é prazer. Mas antes de tudo, é preciso pensar porque comer é uma espécie de celebração, como a que fizemos em casa, no “evento” que abriu este post.

Não é preciso ter bola de cristal (eu não tenho) para adivinhar o quanto era difícil a vida nos tempos em que o homo sapiens ainda engatinhava como espécie. Em outras oportunidades, já fiz remissões à famosa assertiva de Blaise Pascal: “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, basta para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso”. Não é só sobre o autoconhecimento que Pascal falou nessa frase; também está explícito que a razão é praticamente a única característica que nos mantem vivos: grandes demais para se esconder, pequenos demais para enfrentar feras, fortes demais para prescindir de farto alimento, fracos demais para suportar intempéries. Não nadamos bem, não corremos bem, não saltamos bem, não escavamos bem, não voamos, praticamente não temos faro, nossa audição é pouca, nosso principal sentido – a visão – não tem a acuidade que tem uma águia; nossa pele é frágil, temos poucos pelos, nossas unhas são pastiches de garras, nossos dentes mal conseguem despedaçar uma maçã. Reproduzimos pouco e nascemos extremamente delicados. Mas pensamos. E, por conta disso, chegamos à conclusão que multiplicaríamos em muito nossa possibilidade de sobreviver se vivêssemos em grupo.

O homem aprendeu a se organizar coletivamente e percebeu o quanto isso era proveitoso para coletar, pescar e, principalmente, caçar. Havia grande vantagem em obter uma quantidade mais significativa de proteínas, tornando a raça mais forte e resistente a doenças. Só que, para caçar, o homem se expunha a riscos. Precisava correr atrás dos bisões e outros bichos carnudos em campo aberto, onde podia ele se tornar a presa da vez. Também não era fácil encara o tal bisão: era um animal forte, de chifres pontiagudos, e que não se entregava de graça. Havia uma batalha diária, portanto. E a cada vez que os membros de uma tribo se recolhiam às suas cavernas com uma boa quantidade de alimento conquistado, não havia motivos para tristeza. Muito pelo contrário. Era um dia que não tinha sido vivido à toa, e, aos poucos, os homens começaram a aprender a fazer agradecimentos às suas divindades. O jantar começava a virar uma espécie de ritual.

E ao redor do pobre bisão agora abatido, a tribo toda se reunia, feliz, certamente enumerando as aventuras e desventuras das caçadas, retratando-as nas paredes das cavernas, uns contando mais vantagens do que os outros, com os jovens ouvindo assombrados as histórias dos mais velhos. A comida também é objeto de celebração e interação, garantia de sobrevivência e de repouso tranquilo, ao menos até o dia seguinte. É por isso que é difícil pensar em festa sem comida.

Ocorre que, muitos séculos depois, apareceu um tal de Thomas Malthus, economista estudioso da demografia, por volta de 1800, dizendo que a população cresceria em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos cresceria em progressão aritmética. Era a teoria populacional malthusiana. Quem tem um pouquinho de conhecimento matemático sabe o que isso significa:


PA: 1+2=3 3+2=5 5+2=7 7+2=9 9+2=11 11+2=13 13+2=15


PG: 1.2=2 2.2=4 4.2=8 8.2=16 16.2=32 32.2=64 64.2=128


Vejam o que isso representa graficamente:





Deu para sentir o caos prognosticado, né? Malthus chegou a essa conclusão analisando o fato de que o crescimento populacional ocorrido em 200 anos havia sido muito incrementado, principalmente motivado pelos avanços científicos e tecnológicos, que proporcionaram um belo aumento na expectativa de vida, aviado pelo combate mais efetivo às doenças e pelo aperfeiçoamento do saneamento básico e da produção de alimentos. Esses fatores ensejaram também o acréscimo da taxa de natalidade. Vidas mais longas, em maior quantidade. Isso representava uma necessidade cada vez maior de produção dos alimentos. Malthus propunha uma diminuição na fertilidade das famílias, mas é óbvio que encontrou a oposição ferrenha de uma série de setores da sociedade, começando pelas igrejas. Como era necessário quebrar esse paradigma, buscou-se o outro lado, ou seja, aumentar mais e mais a produção agropecuária. Só que os meios nem sempre eram os mais saudáveis, seja para as pessoas, seja para o planeta. Devastou-se muito, mudou-se a natureza dos alimentos, desenvolveram-se técnicas químicas de aumento dos rebanhos e de defesa contra as pragas. Desviaram-se os cursos dos rios, aterraram-se áreas pantanosas. Ecossistemas inteiros foram para o vinagre da memória, existindo hoje apenas em livros.

Conclusão: o mundo sobrevive hoje em dia por causa desse monte de tecnologia alimentícia, isso é inegável; podemos até mesmo discutir se era possível outro caminho, só que o fato é que chegamos onde chegamos, e se hoje há deficiências na distribuição dos alimentos, isso se deve mais a questões financeiras do que propriamente pela ausência de comida. Mas isso quer dizer que as coisas devem ser imutáveis, restando a nós apenas nos conformar?

Tem um monte de gente que acha que não, eu inclusive. E uma série de alternativas alimentares tem surgido com o passar do tempo, buscando resgatar um pouco da harmonia ecológica de nosso pobre mundo, muitas delas voluntárias (além das restrições típicas de quem já adoeceu – diabetes e hipertensão à frente).

Comecemos falando dos orgânicos, que, grosso modo, não tem grandes preocupações éticas com o objeto consumido. Sua distinção visa dois objetivos principais: um resguardo à saúde e uma relação menos traumática com o meio ambiente. Isso porque os orgânicos querem reduzir ao mínimo o consumo de alimentos que sofreram algum tipo de intervenção química. Nestes termos, os orgânicos querem consumir alimentos que não passaram por processos de utilização de defensivos agrícolas inorgânicos ou de adubos químicos. Também são descartados os produtos que aceleram artificialmente o crescimento ou a utilização de transgênicos. Em resumo, os orgânicos visam restabelecer o equilíbrio natural do ecossistema, mesmo que isso represente maçãs menores.

Orgânicos não são muito radicais. Consomem carne e derivados de origem animal, que também devem seguir os mesmos princípios das lavouras. Também podem consumir alimentos que não são orgânicos em suas misturas, como é o caso de açúcar e sal. Para garantir a autenticidade do produto que consomem, geralmente contam com associações que somente admitem membros que seguirem à risca as regras de “organicidade” estabelecidas em conjunto, através de inspeções e auditorias, bem como pelo exame laboratorial para captar a presença de produtos inorgânicos.

Em seguida, vamos falar dos vegetarianos. Existe uma gama gigantesca de variações, por isso mesmo vou estabelecer que as menções neste texto dizem respeito ao modelo ovolactovegetariano, ou seja, vegetais mais leite e ovos (com respectivos derivados). Da mesma forma que no caso dos orgânicos, há um componente de busca por mais saúde e cuidados ecológicos, mas o componente ético dá um passo além. O vegetariano não distingue um motivo pelo qual os animais devem ser considerados inferiores aos homens, talvez até mesmo em remissão às conclusões darwinianas de que todas as espécies presentes na natureza humana hoje são igualmente evoluídas – o homem não é uma pérola da criação nem o ponto mais alto da escala natural. Este é um dos motivos pelos quais os vegetarianos se abstêm de comer carne, porque este ato implica (ooooooooooooooooooooooh!!!) na morte do animal. Caso isso não ocorra, o consumo é lícito. Por isso, ovos, leite, mel e geléia real podem fazer parte da sua dieta.

Passemos agora aos vegetarianos estritos, mais conhecidos como veganos. Neste grupo, o componente ético válido para os vegetarianos torna-se mais profundo. Agora, já não basta que o animal não seja morto: ele não pode ser objeto de exploração. Os veganos excluem completamente de suas dietas todo e qualquer alimento de origem animal, e procuram substituí-lo por alternativas vegetais. Procuram ter uma ação mais ideológica, trabalhando ativamente pela causa dos direitos dos animais, e usam reiteradamente novas discussões, como uma modalidade de preconceito humano conhecida por especismo (da qual já falei há tempos). São verdadeiramente engajados, procurando se posicionar a favor da redução de testes com animais de laboratório, sendo contrários à utilização de produtos que se utilizam desses testes. Mas aqui já estou escapando ao tema dieta.

Por fim, vou mencionar os macrobióticos, ainda mais restritivos em sua alimentação. Neste caso, a porção filosófica está ligada a um pretendido equilíbrio com a própria natureza e com o meio ambiente, como preconizam certos elementos do taoísmo, doutrina religiosa fortemente associada a esse modelo alimentar. Para tanto, a ingestão de comida deve ser baseada em alimentos integrais, o que exclui praticamente todos os produtos que passam por algum processo de industrialização. Há inclusive restrições com o consumo de alguns alimentos de origem vegetal, como é o caso da batata, das pimentas marcadas, café e chás cafeinados, porque teoricamente estes alimentos afetam o equilíbrio sódio-potássio exigido em sua dieta. Mesmo o consumo abundante de água é desaconselhado. Por outro lado, é permitido o consumo de peixes, com moderação. Os macrobióticos devem observar alguns itens não significativos para outros regimes alimentares. Devem respeitar, por exemplo, os alimentos nativos do local onde vivem e as épocas do ano em que estão naturalmente disponíveis. Enfim, os macrobióticos, antes de mais nada, precisam conhecer mais a fundo os elementos que compõe a sua dieta do que qualquer outra categoria.

Há ainda muitíssimas outras formas de se dedicar a uma dieta específica, como os peixetarianos, a permacultura, ortomoleculares e muitos mais, mas para este texto é o que basta. Eu estou colocado em um meio termo entre a dieta convencional com a adição de muitos elementos orgânicos, principalmente em legumes e verduras. Dizem que um bom sinal é encontrar uma lagartinha em um pé de salada (ainda em preparo, naturalmente). Isso indica que a hortaliça não está impregnada de pesticidas. Tenho encontrado bastante delas.

De uma forma ou de outra, entendo que, se queremos ajudar a resolver os problemas do mundo, precisamos começar diminuindo drasticamente o desperdício, não importando, a princípio, se vamos ou não aderir a alguma alternativa alimentícia como as mencionadas até aqui. O documento “Os rastros do desperdício de alimentos: Impactos sobre os recursos naturais”, emitido pela FAO, órgão da ONU voltado para a questão em tela, dá indicações preciosas sobre os excessos cometidos no mundo inteiro com a pauta alimentar. Segundo o relatório, há 1,3 BILHÃO (1.300.000.000!!!!) de toneladas de alimentos sendo jogados fora todos os anos no planetinha azul. Isso não produz apenas um prejuízo financeiro imenso (algo em torno de 750 bilhões de dólares), mas causa um impacto ambiental gigantesco, porque há muita água utilizada no processo, há muita terra desmatada para plantar coisas que não servirão para nada e há muita sujeira sendo mandada para o subsolo, onde vai contaminar os lençóis freáticos. E, principalmente, esse volume é mais do que suficiente para mitigar a fome no mundo inteiro. Ah, um detalhe. O documento não inclui informações de desperdícios alimentícios oriundos dos oceanos, o que aumentaria o número ainda mais assustadoramente.

Vivemos hoje uma condição contraditória. Nossos ancestrais usaram a união dos grupos para melhorar os procedimentos de caça e coleta, mas consumiam muita energia para fazê-lo. Temos hoje alimentos a nosso dispor em quantidade muito maior, e não nos esforçamos praticamente nada para queimá-los. Ficamos sedentários e gordos, e a variedade disponibilizada nos induz a consumir mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais. A tecnologia nos permitiu descumprir a profecia de Malthus, mas o desperdício de comida também representa desperdício de recursos naturais. Com um plus pernicioso: a poluição do ambiente e devastação cada vez maior dos biomas originais. Desta forma, qualquer mecanismo que regule as nossas dietas é bom, independentemente das posições éticas e ideológicas.

É claro que eu não sou dado a exageros. Acho que é preciso ter cuidado em não radicalizar tanto uma ideologia (que em si mesmo não tem nada de mais) a ponto de se causar mais prejuízos do que benefícios. Sei, por exemplo, que existem alguns grupos que se colocam contrariamente à fluoretação da água, ou à aplicação de vacinas. Estarão agindo com bom senso? Se há o argumento de que devemos nos privar da presença de insetos porque eles são vetores de doenças, e que há uma legítima defesa que justifica seu extermínio, não deveremos aplicar a mesma lógica para o uso de técnicas de prevenção de doenças? Algumas discussões acabam se transformando em contendas assemelhadas a brigas de torcidas – fundamentalismo não é bom em lugar nenhum, a começar pelas religiões; e princípios éticos ficam abalados quando o debate não é ético – ora bolas! – e as opiniões não são respeitadas. Por exemplo: um lado diz que onívoros são assassinos, que se alimentam com prazer do sofrimento alheio. O outro, são hippies inconsequentes que gostariam que o mundo fosse um grande cigarro de maconha. Nada disso. Todos têm seus argumentos e muitos deles são plenamente válidos, enquanto outros são falaciosos. Mudanças de hábitos implicam em mudanças de culturas, e estas não surgem do nada. São semeadas por séculos a fio. E dessa forma nos constituímos em adversários, quando deveríamos, na verdade, trocar estudos, e não farpas. O mundo está muito dividido em posições antagônicas, e isso é um dos motores para chegar à situação de pré-caos ambiental. Chegou a hora de lançarmos uma agenda realmente eficiente, e isso passa pela conscientização de cada um de nós.

Recomendação de leitura:

Segue abaixo o endereço eletrônico do documento da FAO. Infelizmente está em inglês, mas vale o esforço de traduzir.

FAO. Food wastage footprint: Impacts on Natural Resources. FAO: Roma, 2013. Disponível em http://www.fao.org/docrep/018/i3347e/i3347e.pdf.

O livro que mencionei de Thomas Malthus é um clássico da Economia, que influenciou muita gente, incluindo ninguém menos que Charles Darwin. O insight que detonou seu ideário de seleção natural veio da leitura da teoria populacional. Vejam, portanto, como vale a pena conhecer este autor.

MALTHUS, Thomas. Ensaio sobre o Princípio da População. Lisboa: Relógio d’Água, 2014.

Recomendação de receita:

E hoje a segunda dica vai ser inusitada: vou passar a receita do meu tradicional quiche, tão aprovado por extensa comunidade de umas vinte pessoas. Afinal, culinária, arte e filosofia se confundem. Vamos lá.





Primeiro, a massa base – serve para uma montanha de recheios subordinados à sua imaginação. Os ingredientes entre colchetes são os substitutos para fazer uma massa vegana.

2 xícaras de farinha de trigo

100 gramas de margarina [100 gramas de creme vegetal]

1 ovo batido levemente [200 ml de creme de soja]

300 ml de leite [300 ml de extrato de soja]

1 colher de chá de fermento

Sal a gosto

Em primeiro lugar, lembre-se de deixar todos os ingredientes em temperatura ambiente. Coloque 1 e ½ xícaras de farinha de trigo em um recipiente grande o bastante para trabalhar. Adicione o ovo batido, a margarina e o sal. Comece a mexer com as mãos, acrescentando aos poucos o leite. Vá mexendo o grude pastoso até ficar tudo homogêneo. Neste momento, você vai perceber que a massa ainda estará muito mole. Vá acrescentando o restante da farinha até a massa desgrudar dos seus dedos. Não se incomode se a farinha for insuficiente – acrescente mais, bem aos poucos. Quando o ponto estiver legal, adicione o fermento, misture bem e forme uma bola. Deixe-a descansar por, no mínimo, 15 minutos. É estressante.

Utilize uma forma de fundo removível. Não é preciso untar, porque já tem margarina suficiente na massa. Se você tiver habilidade suficiente, abra a massa com um rolo, senão use os dedos mesmo. Cubra todo o fundo da forma com a massa a partir do centro, e vá espalhar até os cantos. Não deixe a massa muito grossa, senão vira tijolo. Pressione a massa pelos lados da forma, até recobri-los por completo. Não faz mal se sobrar massa. Podemos fazer um miniquiche ou transformá-lo em torta. Fica bom do mesmo jeito.

Substitua o sal por duas colheres de açúcar se a intenção for fazer um quiche doce.

Coloque a forma em forno pré-aquecido a 200 graus. Asse até ficar firme, mas não abuse. A massa deverá voltar ao forno.

Recheios:

Como falei anteriormente, esta é a parte divertida, já que é possível criar quase que livremente. No caso, vou passar os quatro recheios que apresentei no festival.

Quiche de carne seca

700 g de carne seca

1 cebola roxa média

500 g de batatas

Duas colheres de cebola bem picada

Duas colheres de salsinha bem picada

200 ml de leite

300 g de queijo mozarela (muzarela? Mozzarella? Muçarela?) ralado

Sal a gosto (cuidado! A carne seca já é bem salgada)

Um dia antes do preparo, lave a carne e coloque-a de molho em água. Troque a água por umas quatro vezes no período de 12 horas, até baixar bem a salmoura. Se você acabar tirando sal demais, nada impede de repor um pouco na hora de cozinhar.

Parta a carne seca em cubos grandes e coloque-a em uma panela de pressão com água suficiente para cobri-la. Deixe cozinhar por uns 45 minutos. Desfie a carne seca, retirando os excessos de gordura (é melhor do que retirar a gordura antes e desperdiçar metade do produto).

Corte a cebola roxa em fatias finas e junte-a à carne seca em uma panela. Mexa ambos até a cebola murchar. Reserve.

Lave as batatas e descasque-as. Coloque em uma panela de pressão com água previamente fervida e deixe cozinhar por 5 minutos. Passe a batata cozida por um espremedor ou esmague-a com um garfo, sendo que neste caso o risco de ficar “pedaçuda” aumenta consideravelmente.

Em uma panela, derreta uma colher de sopa de manteiga e frite um pouco de cebola bem picada. Despeje a salsinha, coloque a batata amassada, misture até ficar homogêneo e despeje o leite aos poucos. Mexa sem parar até começar a desgrudar da panela.

Para montar, despeje a carne seca sobre a massa e alise. Em seguida, despeje o purê de batatas e alise novamente. Recubra tudo com a mozarela (muzarela? Mozzarella? Muçarela?) ralada e leve ao forno. Deixe assar até o queijo ficar gratinado. Caso a massa comece a ficar meio queimada antes disso, retire do forno e gratine o queijo com um maçarico muito bem regulado, porque quiche com cheiro de isqueiro ninguém merece. Sirva quente.


Frango com elemento X:

1 peito de frango

Sal a gosto

1 gema

200 ml de creme de leite (o elemento X)

1 colher de sopa de farinha de trigo

200 ml de leite

2 tomates

2 colheres de cebola picada

½ colher de alho

1 colher de manteiga ou margarina

1 pitada de pimenta do reino

Cozinhe o peito de frango em uma panela de pressão por cerca de 30 minutos. Após esfriar um pouco, desfie todo o peito, desprezando os ossos e a pele, óbvio. Doure a cebola e o alho em uma colher de manteiga e frite um pouco. Coloque dois tomates picados. Eles vão soltar bastante água e dar um gosto bem legal. Mexa de vez em quando. Faça uma mistura homogênea com o ovo, a pimenta do reino, a farinha de trigo e o leite. Quando o frango estiver quase seco, ajunte essa mistura e mexa sem parar, até ficar pastoso. Junte o creme de leite e reserve.

Coloque essa gororoba toda na massa pré-assada, cubra com alguma das dicas de cobertura posteriores e volte a assar, até ficar pronto.

Alho-poró:

1 pé de alho-poró

Sal a gosto

1 colher de farinha de trigo

1 colher de manteiga ou margarina

1 colher de cebola picada

1 colher de salsinha picada

300 ml de leite

200 ml de creme de leite

1 gema

Compre um alho-poró com folhas. Não caia na armadilha dos mercados que só vendem o talo. Se você gostar do sabor de talo, faça um quiche de cebola que sai mais barato. Lave-o muito bem (costuma vir um pouco de terra nas juntas das folhas com o talo) e pique em fatias finas. Deixe de molho em água com algumas gotas de vinagre por uns 15 minutos (aliás, acostume-se a fazer isso com qualquer verdura que você for consumir). Ferva água em uma panela em que caiba todo o alho-poró e desligue. Preste muita atenção: você vai colocar o alho-poró nessa água, contar até cinco e escorrer imediatamente! Se ficar muito tempo, murcha tudo e vai parecer chiclete. Reserve.

Em uma panela, derreta uma colher de manteiga e doure a cebola. Junte em um recipiente a parte a gema batida, o leite e a farinha. Despeje na panela e mexa insistentemente, até engrossar. Coloque o alho-poró escorrido e o creme de leite, já com a panela desligada, mexendo bem.

Coloque esse creme sobre a massa previamente assada e cubra com alguma das sugestões abaixo. O clássico dos clássicos é as claras em neve.


Palmito e batata vegano

1 vidro de palmito

4 batatas médias

1 colher de cebola

1 colher de salsinha

1 colher de creme vegetal

200 ml de leite de soja

1 pitada de cúrcuma

½ colher de sopa de amido de milho

Pegue um vidro de palmito (não use açaí, que é um engodo – palmeira real de origem legalizada ou pupunha são mais indicados, ainda que mais caros) e escorra. Doure uma colher de cebola no creme vegetal e junte o palmito, deixando até secar. Faça uma mistura do extrato de soja, do amido de milho, da salsicha e da cúrcuma. Despeje essa mistura na panela e mexa bem, até engrossar. Junte o creme de soja e reserve.

Cozinhe as batatas já descascadas em uma panela de pressão por 5 minutos. Amasse-as como explicado anteriormente. Coloque uma colher de creme vegetal numa frigideira, junte as batatas e mexa até ficar homogêneo. Coloque lentamente o leite de soja e cozinhe até ficar bem pastoso.

Pegue a massa já pré-assada e despeje o palmito já preparado, alisando-o ao final. Coloque cuidadosamente a massa de batata e alise. Cubra com massa ou com nada, a seu critério. Queijo e claras não valem para veganos.


Coberturas:

O clássico dos quiches é a clara em neve, mas não estamos aqui para perpetuar tradições. É possível aproveitar um tanto de massa que sobrar. Se for bastante, alise-a com um rolo de macarrão e cubra o quiche por inteiro (transformando-o em torta), podendo ser pincelado com gemas ou shoyu para dar uma corzinha (eu não costumo usar nada). Se a massa não for suficiente, faça rolinhos finos com as mãos, deixando parte do recheio exposto.

Para fazer a cobertura de clara, faça assim:

1 ou 2 claras, dependendo do tamanho do quiche

2 colheres de sopa de queijo parmesão ralado

Bata as claras em neve, até o ponto em que a mesma se sustente sozinha no recipiente. De posse de um fuê (olhe no Google), misture suavemente uma colher de parmesão ralado. Coloque essa mistura IMEDIATAMENTE sobre o recheio do quiche, espalhando-a. Para garantir a firmeza, basta colocar uma ponta de colher de cremor de tártaro, mas eu não uso. Após, salpique a outra colher de parmesão e leve ao forno para dourar.

Bom apetite!



quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Sobre o conflito interior exposto pela quebra de sigilo de um sitezinho de relacionamentos traquinas (ou mais simplesmente: sobre a infidelidade)

Olá!

Estourou a bomba! Não, não encontraram a prova definitiva contra a Dilma, não descobriram que o Neymar é argentino, e também não houve nenhum artefato que explodiu de verdade, como tanto gostam os terroristas de plantão. Ocorreu algo mais grave: um grupo de hackers fez vazar o cadastro do site Ashley Madison, especialista em relacionamentos. Com a garantia de sigilo absoluto, a página em questão montava sua publicidade em cima das traições conjugais, muito embora pudesse ser usado com propósitos mais... digamos... inofensivos, como são outros sites de encontros. Mas o fato é que quem se cadastrasse nele, já de pronto revelava sua predisposição em distribuir madeiradas, sendo casados ou não, os garanhões indomáveis. Como o tal sigilo virou um belo edital, com nomes, sobrenomes, endereços e telefones divulgados a quem quiser conferir, tem um monte de gente que descobriu o porquê dos buracos em seus bonés. Portanto, não se assustem ao verem gente pelada correndo por aí. Não se trata de protestos a la Femen, mas de outras pessoas que resolveram antecipar a saída do serviço.


O momento é propício para tratar do tema proposto no metapost pela Eliana Souza, freguesa habitual deste espaço: por que os homens traem? Vou assumir aqui a palavra “homem” como sinônimo de humanidade, já que ambos os sexos traem, e o farei do ponto de vista matrimonial, porque o conceito de traição é muito mais amplo do que isso.

Eliana e demais amigos, o homem trai por um motivo muito simples: é natural. Infelizmente, é isso.

E por quê? Vamos a Darwin. Lendo a biografia do ilustre cientista, descobrimos se tratar do proponente da teoria da evolução das espécies por seleção natural. Não foi o único que o fez, já que outro naturalista, Alfred Wallace, desenvolveu um trabalho independente que chegou às mesmas conclusões. Também não foi o primeiro a teorizar sobre evolução, já que o francês Jean Baptiste de Lamarck (citado neste post) havia pensado em um mecanismo evolutivo das espécies baseado na lei de uso e desuso. Nesta teoria, vemos que as espécies se originam umas das outras, como também pensava Darwin, só que as modificações entre elas se dão pela atrofia/hipertrofia de órgãos e membros de acordo com o uso que se faz dele – órgãos muito utilizados tendem a se desenvolver, órgãos pouco usados tendem a desaparecer. A girafa é o grande exemplo.

Desta forma, já podemos corrigir um erro bastante usual. Darwin não criou a teoria da evolução. Sua descoberta consiste no mecanismo que faz com que a evolução ocorra, a tal da seleção natural. Para chegar a tal conclusão, foi imprescindível a viagem que realizou ao redor do mundo, principalmente nas ilhas Galápagos, arquipélago localizado na região do Pacífico Sul, mais especificamente na costa do Equador. Lá, ele encontrou um sortimento enorme de espécies desconhecidas pelo corpo naturalista europeu, mas que guardavam a mesma estrutura dos animais existentes em outras localidades. Mais claramente, ele percebeu que, em cada uma das ilhas do arquipélago, as espécies se repetiam, mas com pequenas diferenças entre si. Em alguns pássaros, por exemplo, percebia o bico fino e pontudo, bem adaptado para a caça de insetos e larvas; o mesmo pássaro também estava presente em outras ilhas, com a diferença fundamental de que seu bico era mais rombudo, com a capacidade de quebrar castanhas. Estruturas idênticas, com exceção dos bicos. Darwin percebeu que o isolamento entre as ilhas fazia com que cada uma delas possuísse características próprias; e que o próprio fato de que são acidentes geográficos distintos entre si constituía um obstáculo à miscigenação entre espécimes de ambas, fazendo com que fossem altamente endêmicas.

Isso o ajudou a concluir que todas as espécies tinham uma ancestralidade comum – de uma forma ou de outra, somos todos irmãos, originados de um mesmo ser primordial. Nenhuma espécie nasceu pronta, todas evoluíram a partir de outras, sendo que as diferenciações são estabelecidas pelo meio em que vivem. Imaginem o tamanho da briga que uma afirmativa deste tipo gerou com a Religião (gera até hoje, para dizer a verdade).

Mas é na descrição do modo como essa evolução ocorre que Darwin é absolutamente original, e que vem sendo corroborada através dos tempos com mais e mais evidências, fazendo com que, no campo científico, tenha se tornado praticamente uma unanimidade.

Primeiramente, a seleção natural se dá pela melhor adaptação ao meio. Disso, podemos descartar um segundo erro frequentemente cometido – a seleção natural não é a lei do mais forte, mas da espécie que melhor interage com os elementos constitutivos do ambiente em que vive. Às vezes, é mais proveitoso biologicamente para uma espécie se tornar menor, para que possa usar técnicas de fuga e ocultação com mais eficiência, ou se tornar menos rígida, para se curvar melhor ao vento. Vamos fazer uma comparação tosca para tentar entender melhor como funciona a seleção natural.

Imagine que você é um pai d’égua (ou mãe) e tem dez filhos. Vamos descartar a solidariedade fraternal e pensar em um ambiente o mais próximo possível do estado natural.

Eles não serão todos iguais. Naturalmente, alguns deles serão mais fortes do que os outros. Poderão caçar melhor, consumir alimentos em maior e melhor quantidade. Darão sensação de segurança às mulheres como um todo, e poderão escolher as que melhor lhes convier, dando a você as mais belas noras e mais robustos netos. Os filhos não tão fortes, mas não tão fracos, terão para si o que sobrar; vão comer o que der, e as mulheres que lhe caberão não estarão à sua livre escolha. Os mais fracos não conseguirão muito coisa. Talvez não cheguem a procriar, ou nem atingirão a idade adulta. A tendência destes últimos é se extinguir, enquanto os mais fortes espalharão sua prole com maior eficiência. Os do meio precisarão desenvolver estratégias que lhes permitam disseminar seus genes. Pode ser que alguma circunstância lhes seja favorável, e, neste caso, haverá um caminho de adaptação onde possam manter a espécie. Seria o caso, por exemplo, de uma melhor resistência à escassez de alimentos. Com isso, poderiam viver melhor em regiões semidesérticas, e seus netinhos migrariam para o Saara, onde os irmãos mais velhos não precisariam/poderiam chegar.

É claro que a nossa noção de seleção natural padece de fácil compreensão por causa do nosso problema de mente descontínua, o qual abordarei muito em breve, mas podemos vê-la acontecendo à nossa frente, se descermos ao nível microscópico, porque pequeníssimas alterações no organismo formam grandes diferenciais. Pensemos no caso das bactérias. Muitas delas são patogênicas, como bem sabemos, e a moderna farmacêutica nos coloca um arsenal de antibióticos para combatê-las. Quando temos uma dor de garganta, apelamos para um medicamento como a Amoxicilina, Ampicilina, Ciprofloxacino, Cefalexina ou outra poção mágica moderna. A ação do antibiótico, grosso modo, é matar a maior parte das bactérias instaladas na garganta, deixando um pequeno contingente para que as próprias defesas do organismo completem o serviço. Ocorre que há uma dosagem correta para que o remédio faça seu efeito. Muitas vezes, já não sentimos as agruras da doença, e com isso interrompemos o uso. É um erro, porque caso as bactérias não estejam minimizadas o suficiente para que o próprio organismo as elimine, a porção resistente poderá crescer em quantidade, e o tal antibiótico não faz efeito sobre elas. Daí, teremos as recidivas e suas amargas consequências, necessitando mudar de medicamento para combatê-las.

Outro exemplo são os vírus de gripe. Já perceberam que todo ano temos uma onda de contaminações que provocam diferentes reações em nossos combalidos organismos? É que os vírus da gripe se modificam de um ano para o outro. As vacinas destinadas a determinadas cepas não são eficientes para as novidades. Essas pequenas modificações fazem com que os anticorpos não reconheçam os vírus como agentes patogênicos e deixem-nos passar batidos. Alguns deles são muito letais, como foram os casos da gripe espanhola (início do século XX) e da gripe de Hong Kong (década de 60 do mesmo século). Outros causam sintominhas de fim de feira, pouco afligindo o contribuinte. Mas, de uma forma ou de outra, são os mecanismos de adaptação se demonstrando.

Essas modificações não ocorrem de maneira abrupta em seres superiores. Aliás e falando nisso, pequena pausa para explicar que, na teoria da evolução, não existe uma hierarquia conhecida com scala naturae, que significaria um rumo de um ser menos evoluído para um mais evoluído, de forma a se achar que, por exemplo, todas as espécies de macaco um dia se tornarão homens. Não, nada disso. Esse é outro erro comum quando se pensa em evolução. Todas as espécies tem um mesmo nível de evolução, bastando para prová-lo o fato de que estejam todas vivas no mesmo momento. Nesse sentido, o termo seres superiores não quer dizer seres melhores, ou mais bem adaptados. Quer dizer apenas e tão somente que são seres que tem uma maior complexidade em seus organismos.

De novo. Nos seres superiores, as mudanças não ocorrem de maneira tão repentina, como gostam de especular os opositores da ideia da evolução. Vão se acumulando através de milhares e milhares de anos, pequeníssimas mutações que, por representarem uma vantagem, acabam se perpetuando. São transmitidas geneticamente aos seus descendentes, coisa que Darwin não sabia. Isso quer dizer que estas características vão sendo inscritas em nosso DNA. Quando se dá a reprodução, lá se vão elas se espalharem pelo mundo. E uma das melhores maneiras de garantir a sobrevivência da espécie como um todo é reproduzir-se o máximo possível. Isso é uma ferramenta de um dos instintos mais primordiais de qualquer ser vivo, não é exclusivo dos humanos.

E agora começamos a nos aproximar mais essencialmente do tema. Cada espécie desenvolve, de acordo com o que é possível, melhores estratégias para se reproduzir. Quando os peixes se reproduzem, por exemplo, geram milhares de indivíduos em um só ato. O nível de proteção que os pais oferecem é muito baixo, e, em termos percentuais, os alevinos que chegarão à idade adulta são muito poucos. Mas em condições normais serão em maior número do que o casal que os gerou. Já outras espécies, como é o caso dos humanos, o processo de geração da prole é completamente diferente. É uma gestação longa, com índice de gemelaridade baixíssimo, que, quando ocorre, redunda em gestação de alto risco. Pensando em um estado natural, o número possível de descendentes que uma mulher pode gerar é bastante pequeno, se comparado ao de outras espécies. Portanto, quanto mais se reproduzir, maior a chance de que a espécie humana sobreviva. E isso implica na multiplicação de parceiros, lamento.

É pelo mesmo motivo que existem poucas espécies que adotam o conceito de fidelidade “conjugal”. Águias, coiotes e alguns poucos mais. É romântico, bonitinho, mas pouco eficiente. O fundamento desses bichos parece ser algo como “em time que está ganhando não se mexe”. Ou seja, uma reprodução bem sucedida com um parceiro parece conceder um alvará para que futuras cópulas gerem novamente filhotes saudáveis. Mas essa é uma exceção.

Pois bem. Isso quer dizer que não há nenhuma vantagem biológica na monogamia, e que a fidelidade ao parceiro é uma mera construção social baseada no egoísmo? Não, de forma alguma. A monogamia é uma estratégia de sobrevivência necessária ao ser humano. Vamos deslindar.

Para início, vamos fazer uma comparação. Para quem não sabe, eu tenho uma criação de passarinhos. No dia em que publico este texto, há nos meus viveiros oito canários, dois mandarins, um diamante, duas codornas, dois manons e seus três filhotes, cujos ovos acabam de eclodir. Dos oito canários, seis são parentes. A foto abaixo é de dois dias após a quebra do último dos quatro ovos.

Menos de um mês depois, já os tínhamos praticamente formados, comendo autonomamente e tenteando os voos para lá e para cá, atabalhoados.


Se contarmos o tempo de vida dentro do ovo, em 40 dias esses canários já estavam prontos para viver por conta própria, independentemente dos pais. 

Isso não acontece com os humanos, que nascem MUITO dependentes e ficam assim por bastante tempo. A hipótese mais aceita hoje em dia é que nascemos prematuros. Os mecanismos evolutivos levaram-nos a essa solução provavelmente por causa do tamanho de nossos crânios, que, se aumentasse muito, geraria sérios problemas para passar pelo canal vaginal de nossas mães, com grandes riscos a todos – ao filho, porque a passagem ficaria muito estreita; à mãe, porque teria que parir um ser para o qual sua anatomia não está bem preparada; e ao pai, porque veria seu brinquedinho prejudicado (não resisti à tentação da PÉSSIMA piada). Desta forma, tornou-se mais proveitoso nascer “antes do tempo” e crescer externamente do que se dar ao perigo de “travar” na passagem para o mundo, ou causar lacerações nas parturientes e compressão nos bebês.

Ocorre que, nascendo precipitadamente, o volume de cuidados demandados pelos bebês é muito maior. A mãe, provedora de alimento, tem a necessidade de dedicação praticamente absoluta: a criança não pode ficar sozinha, não pode tomar friagem, não pode isso, não pode aquilo. E quem vai prover a mulher? O homem, é óbvio! Também ele precisará dedicar atenção exclusiva à sua família. Neste contexto, se ele possuir várias mulheres para cuidar ao mesmo tempo, cuidará mal de todas, arriscando toda a sua prole recém-nascida. Neste caso, a monogamia é arma de sobrevivência, e não uma disposição que nasceu do nada.

E é aí que temos o grande busílis. Há uma força natural que pulsa em homens e mulheres, arrastando-os para a necessidade de reprodução. O orgasmo é a principal recompensa que recebemos por nossa disposição em perpetuar a espécie. Isso torna o prazer o componente mais significativo na relação, e não a reprodução. Percebam como a humanidade não tem um período específico de atividade sexual, como é o caso do cio de outros animais. Como tal, há uma predisposição permanente em saciar sentidos e instintos.

Por outro lado, a necessidade inata de se cuidar da família causa uma retenção nesses impulsos, e acaba derivando em uma disposição ética, o compromisso monogâmico do casamento, tão importante que dá base aos modelos sociais hoje vigentes no ocidente, e que está presente na maioria das religiões. Mas ela não é garantia de sucesso de fidelidade, há uma espécie de “diabo na carne” que fica cutucando os seres humanos, instigando-os a quebrar seus laços de confiança. O acordo de fidelidade que ambos chegam é frágil quando outros componentes esmaecem, como a paixão e as necessidades filiais. A monogamia é transitória; explica-se bem enquanto há necessidade de cuidados. Após isso, só uma disposição ética pode tentar mantê-la, e não um componente do pacote instintivo.

A traição é sempre dolorosa porque afeta o amor-próprio da pessoa enganada. Por mais que se tente compreender as causas que levaram a cabo o fato, há sempre a sensação de inferioridade, aquela história de que “não satisfiz aquela vagabunda”, “não tem a menor consideração, esse filho da puta”, e à raiva se soma a frustração. A pessoa traída se reduz, se sente humilhada, o que é sempre o mais dolorido.

A pergunta, para mim e portanto, precisa ser outra: se é verdade que há uma certa predisposição à traição no ser humano, até que ponto vale a pena se arriscar a sair machucado de uma relação? E, caso se conclua que vale a pena, que mecanismos devem ser utilizados por ambos para contornar os riscos de uma infidelidade? Fala-se muito de amor, mas este é um sentimento muito amplo e dúbio para dar lastro sozinho à confiança. Amam-se pessoas, amam-se animais, amam-se coisas. É possível amar ao cônjuge e ao amante ao mesmo tempo, mesmo que os românticos digam que não. O amor, portanto, deve possuir quais ferramentas para garantir uma união duradoura? Paciência, razoabilidade, um cuidado permanente? O que mais?

Só que, para estas perguntas, eu não vou me atrever a tentar dar respostas.

Recomendação de leitura:

Mais do que óbvio: Darwin. É um dos maiores cientistas de todos os tempos, que parece ter matado a charada da origem das espécies definitivamente. Mas, como a Ciência é aberta e refutável, por enquanto é apenas a melhor teoria para explicar o que somos hoje. O nome da obra é comprido bagarai, mas, a quem interessar, é mundialmente abreviado para “A Origem das Espécies”.

DARWIN, Charles. A origem das espécies através da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela sobrevivência. Leça de Palmeira: Planeta Vivo, 2009.