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terça-feira, 19 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (12 – Filosofia da História)

Olá!


Gostamos de histórias. Gostamos de contá-las e de ouvi-las, principalmente quando o narrador coloca toda a sua vivacidade a serviço do colorido na exposição dos fatos, sejam eles verídicos ou nem tanto, como os “causos” do pessoal do interior ou as pantomimas de avós e de madrinhas. Eu tinha uma tia que era especialmente hábil neste mister, a tia Antônia, espanhola de nascimento, e que contava coisas de além-mar com tal destreza que a audiência mal piscava durante as sessões. É evidente que, ainda que a base seja real, muitos dos detalhes mais barrocos vinham do âmbito do legendário e do mítico. Como diria Camus, “a verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo que valoriza cada objeto”. É claro que se trata de um rigor excessivo para quem deseja apenas apreciar um bom conto nos dias frios em que falta energia elétrica, mas é necessário crer que o existencialista franco-argelino (de quem já falei neste espaço) estivesse se referindo unicamente à verdade como correspondência ao mundo que nos cerca, e não com vieses artísticos da oratória de bons velhinhos. E é nessa toada que precisamos olhar para a Filosofia da História, o estudo crítico de como é construída a rememoração de nossos tempos.


Uma das perguntas iniciais que fazemos quando olhamos filosoficamente para a História fatalmente se dirige aos seus propósitos. Para que serve estudar a História? É uma pergunta que pode obter resposta um tanto pragmática, já que poderíamos ter o condão de dar uma resposta tão sentimental quanto inútil: muita gente acha relevante que saibamos de onde viemos e como fomos formados, mas também tem muita gente que pensa que isso não quer dizer muita coisa. O que passou, passou. Não é verdade.

Vamos aproveitar a Tia Antônia. Ela nos dizia que, quando chegou ao Brasil, era costume dos trabalhadores da indústria têxtil, na sua maioria estrangeiros, passear pela cidade nas horas livres, a fim de conhecê-la um pouco melhor. Um dos lugares mais bonitos era o bairro dos Campos Elíseos, nome chupado do Champs-Élysées francês, que, por sua vez, já tinha sido importado da mitologia grega, o lugar de honra para onde os homens virtuosos eram encaminhados após sua morte, uma espécie de paraíso. Região absolutamente central*, era um bairro tomado pelos casarões dos antigos barões do café, com destaque para a sede do governo do Estado (hoje abrigando o SEBRAE) e para o Liceu Coração de Jesus. De lá, a vetusta parenta nos contava que, pelos largos passeios, era possível observar a elite com sua criadagem, os poucos automotores disponíveis, o cheiro das azaleias nos jardins, os guardas civis que ladeavam os prédios oficiais. Contava também das moçoilas de vestidos rendados e ancas de arame, que soltavam seus lenços para chamar a atenção de afetados príncipes encantados, mas aqui já começa o blá-blá-blá. Era, enfim, um local de enlevo, propício aos sonhos de gente que vinha de tão longe e que tinha tão pouco.

Transpondo a mesma região para os nossos dias, quem passa desavisadamente pela sua via principal, a avenida Rio Branco, provavelmente terá uma sensação de que ainda temos um bairro ao menos razoável, mas é nas travessas que a coisa acontece. E tudo se deu por conta da vizinha Luz. Acompanhem o raciocínio.

A Luz era um bairro quase tão bom quanto os Campos Elíseos. Menos luxuoso, mas bem equipado com a famosa estação, o jardim, a pinacoteca, não havia muito do que reclamar. Um belo dia, aparece o colosso do mau planejamento público: a Rodoviária. A princípio, a ideia não parecia de todo ruim. Construída entre as estações de trem da Luz e Júlio Prestes, teria por objetivo ser um ponto focal para a interligação entre os meios de transportes. Acontece que colocar a única rodoviária do maior aglomerado urbano da América Latina bem no centro da cidade foi uma enorme estupidez. O trânsito se tornou insuportável já no começo de seu funcionamento, e as antigas residências foram substituídas por rede hoteleira miúda, destinada principalmente para pernoites. Além disso, expandiu-se a quantidade de bares, restaurantes e pequeno comércio principalmente para dar suporte aos passageiros que faziam uso do terminal, mudando completamente o perfil ocupacional da região.

Toda ideia de jerico acaba mal, como bem sabemos. A Rodoviária da Luz durou joviais 21 anos, por motivos que deveriam ser óbvios, mas que só foram sentidos na prática após o bairro e seu entorno serem desfigurados. E aí temos a emenda pior do que o soneto. A sua desativação foi feita de maneira atabalhoada e com ainda menos planejamento que sua construção. O terminal simplesmente foi transferido para a Marginal Tietê, e toda a estrutura comercial que lá se estabeleceu foi abandonada à própria sorte, sem que houvesse a substituição por outro modelo urbano. O resultado foi a falência de inúmeros estabelecimentos, a transformação de outros em puteiros, com o abandono dos imóveis e sua ocupação pelo tráfico de drogas. Com o advento do crack, a partir da primeira década do século XXI a região teve um aumento absurdo de usuários, no que ficou conhecido como Cracolândia, uma verdadeira 25 de Março do narcotráfico. Sua “capital” é a rua Helvétia, ligação direta entre a estação Júlio Prestes e o antigo Palácio dos Campos Elíseos. A Tia Antônia certamente não reconheceria mais sua região de passeio, que hoje nos dá a mais clara ideia do que seria um apocalipse zumbi. Talvez, se fosse muito atenta, perceberia aqui e ali uns vestígios das antigas residências, e ficaria estupefata. Mesmo que suas histórias não fossem de príncipes, mas de demônios, dificilmente conseguiria chegar ao nível do que a realidade se transformou.

É para isso que serve a História: para que entendamos o que deu certo e o que deu errado. Este é seu objetivo prático. Mas a Filosofia a olha mais profundamente do que isso. Seria possível existir alguma forma de lógica nos rumos dos acontecimentos? A História tem um fio condutor? Estamos fadados a nunca termos uma antevisão do futuro ou condenados a repetições eternas?

Há algumas concepções de História que a veem como uma longa sequência de fatos sucessivos, inéditos e irrepetíveis, que apontam linearmente para o futuro, como se fosse um vetor. O Positivismo, por exemplo, vê o rumo da humanidade como um caminho que parte da visão supersticiosa da Religião, baseada quase que exclusivamente em mitos e lendas, para a noção positiva, que coloca no lugar dos altares a primazia da Ciência, desprovida de misticismo e de visões fugidias ao metódico e ao sistemático.

Outras concepções enxergam a História como a repetição indefinida de ciclos, como estabelece a alegoria do eterno retorno de Nietszche, muito embora os ciclos sejam entendidos não em seu sentido estrito, mas em sua estrutura. Para tanto, basta que se pense na sucessão dos dias e dos anos. Em si, eles são ciclos infinitos – eternamente o Sol nasce e se põe, a lua e as estrelas surgem no céu e lá ficam até um novo despontar; o tempo esfria, as noites ficam mais longas, até que lentamente os dias comecem a aquecer progressivamente, quando chegará o ápice do verão, e volta a temperatura a se amainar, as folhas a cair e novamente, e novamente, e novamente... Essa estrutura cíclica dá a intuição de que tudo é circular, ainda que os fatos em si, vistos isoladamente, sejam inéditos. Ciclos de guerra e paz, de miséria e prosperidade, de avanço e estabilidade parecem pavimentar a rota por onde a História caminha.

Temos ainda um terceiro ponto de vista de desenvolvimento histórico, que é o vai-e-vem do movimento dialético. Cada fato na realidade carrega consigo sua própria contradição e ruma para ela, até chegar ao ponto de síntese, que elabora um novo fato na realidade, com uma nova contradição e assim sucessivamente. Se a História é a narrativa da realidade, também nela se plasma essa mesma estrutura. Desta forma, a mecânica dialética, tanto hegeliana quanto marxista, é linear e cíclica ao mesmo tempo, porque trabalha com acontecimentos irrecitáveis que se guiam sempre no mesmo delineamento sucessivo.

Pensamos até agora no desenho que a História percorre, mas, para que isso aconteça, já é preciso que ela não seja algo estanque. O que faz com que a História se mova? No final das contas, há algum propósito em estarmos aqui, deixando nossos passos nas areias das ampulhetas? Somos seres teleológicos?

Há um confronto mais ou menos moderno na própria concepção de História a partir do momento em que marcos como o Renascimento e o Iluminismo reforçam a posição humanista de independência com relação às divindades. Até então, a noção de “motor da História” sequer existia, porque ela não fazia sentido. Os fatos se sucediam através da concreção da vontade divina, que era interpretada por filósofos e teólogos, mas extremamente simples: um plano divino, que caberia desvendar, sem grandes possibilidades de contestação. Mas a coisa muda de figura com o advento do novo humanismo. Como já vimos, Hegel percebe a linha histórica como um movimento dialético, ainda transcendental, mas já não propriamente divino, o que não é mais o bastante para explicar como ela se desloca. A percepção dialética é a posteriori; o que vem antes? Aprioristicamente, o mestre alemão entende que a humanidade possui um “espírito”, que, diferentemente da ideia de uma deidade, não é algo físico ou transcendental, mas uma espécie de predisposição em se ser o que se é, com variações de acordo com o espaço (volksgeist) e com o tempo (zeitgeist). O exemplo que eu mais uso é o seguinte: o Geist é como se fosse um ethos, ainda que não seja exatamente a mesma coisa. O brasileiro é o rei do jeitinho: dadas suas limitações patrimoniais, improvisa com gatos e gambiarras, tem uma língua de veludo de dar inveja e toda agenda já embute quinze minutos de atraso. Esse é o “jeitão” do brasileiro, uma espécie de espírito coletivo, é seu volksgeist. Também temos aquilo que chamamos de “tempos bicudos”: contingências climáticas, estados de tensão bélica e outras coisas conduzem a uma condição generalizada de prevenção, de restrição e de pessimismo, que vão se espelhar nas artes, na religião, na filosofia, nas vontades e nas atitudes das pessoas. Esse é o zeitgeist, o espírito do tempo, dinâmico, influenciador do e influenciado pelo volksgeist. Essa variação no tempo e no espaço tende a procurar uma estabilidade, onde os espíritos nacionais se unifiquem. É o que Hegel chama de Espírito Absoluto, a razão concreta, uma espécie de estágio final das transformações históricas, onde não haverá motivos para a busca de uma nova síntese. Esse Geist é que “puxa” a História.

Como eu já falei anteriormente, Karl Marx vê o movimento dialético hegeliano como correto no sentido de processo histórico, mas discorda frontalmente com seu motor. Nada de espírito disso ou daquilo, o que temos é o cosmos em que vivemos e que podemos experienciar. O que toca as transições entre tese e antítese está nas condições materiais com as quais a humanidade convive, e é a guerra pelo poder, sintetizada na luta de classes, que faz a roda da História girar. Vejamos.

Marx não acredita em transcendências, Geist incluso. Para ele, todo o espectro de uma sociedade pode ser dividido em classes, que são definidas de acordo com o seu acesso a meios materiais. Esse alcance definiria todas as características dessas classes: como se alimentam, como se educam, como pensam, como vivem. Enquanto permeados por uma ideologia dominante, as classes de uma sociedade se mantêm mais ou menos estáveis, até que a consciência coletiva de um determinado estrato se vê incomodada com a disparidade de acesso com a qual se vive, e passa a lutar contra a classe dominante. Notem como já aí é possível enxergar a estrutura dialética da realidade. Segundo Marx, toda a História pode ser explicada a partir da perspectiva da luta de classes. A insatisfação gera o conflito, que descamba para o confronto, que pode ou não gerar uma nova classe dominante, com novas classes oprimidas, que novamente gerarão conflitos, e via discorrendo. Ainda que do conflito não brote uma nova classe, a situação mantida também preserva a realidade e a sua contradição: continua havendo quem domine e quem é submetido. Diferentemente do Espírito Absoluto, para Marx a estabilização histórica viria com a implantação do Comunismo, que teria por objetivo a extinção das classes sociais e o consequente “desligamento” do motor de transformações históricas.

Tudo isso dá uma certa impressão de “destino”, que os pensadores contemporâneos costumam rejeitar. Por outro lado, há linhas de pensamento que afirmam existir um propósito para que a História seja como ela é. A Filosofia Medieval, por exemplo, afirma aos quatro ventos que a teleologia humana se explica em Deus, unidade de força universal, inclusive histórica. Também na metafísica aristotélica é possível visionar teleologia, ao compor na descrição das essências a causa final, inerente a todos os seres. O problema está em uma visão mecanicista, que obriga a causa e desvia a observação. Pensadores hodiernos entendem que a História deve ser estudada sob o prisma científico, com metodologia própria, ou seja, o fato deve ser analisado pelo que dele pode ser observado, sem que se tente buscar um objetivo para além deles. Evidentemente, há coisas que são criadas para determinados propósitos, mas, ao imputar finalidade ao próprio processo histórico, faz-se um exercício mais de adivinhação do que propriamente de previsão. Este se desenrola empiricamente: quando se juntar A com B, ter-se-á C, e pronto.

Por fim, há a questão do recorte dos tempos históricos, que se inicia pelo registro, que não é determinado somente, mas principalmente pela escrita. As eras são estabelecidas por marcos, o que é bom didaticamente, mas que costuma distorcer a visão que temos dos processos de transformação. Além disso, as divisões históricas são absolutamente eurocêntricas, mas fazer o quê? É a cultura dominante até hoje, e não cabe discuti-la neste momento (ainda que seja discutível e que possamos fazê-lo em alguma hora adequada).

A tradição dos marcos históricos, apesar das críticas, tem sua razão de ser. De fato, são compostos por situações onde tanto os acontecimentos anteriores se desenrolaram para construí-las quanto os posteriores foram moldados decisivamente por eles. Por exemplo: a tomada de Constantinopla pelos turcos, marco inaugural da Idade Moderna, não aconteceu como um meteoro que cai durante a noite. Há vários fatores concorrentes, como o enfraquecimento do Império Bizantino, os desencontros causados pelo cisma da Igreja Católica e as progressivas conquistas das invasões otomanas. Mas a importância do marco se dá pelas suas consequências. Visto isoladamente, seria uma tomada de um território entre outras, mas é a partir dela que se iniciam as Grandes Navegações, que, a princípio, objetivavam dar acesso à Ásia por vias marítimas, contornando o bloqueio da passagem terrestre. Caso não ocorresse esse evento, é impossível saber quanto tempo levaria para se saber da existência da América.

A essa tendência de viés positivista, a principal oposição se deu através da École des Annales, movimento de historiadores franceses do século XX que se propôs a rever essa concepção compartimentada, unida por sucessão de fatos como uma fieira e as contas de um rosário, onde a única diferença está no tamanho de algumas delas, e passam a encarar o tempo histórico como a urdidura de um tecido. Para tanto, desenvolvem a ideia de extensão dos tempos. Um fato participa tanto do breve tempo de um momento específico, quanto do tempo médio que forma um contexto, quanto do tempo longo que impulsiona o mundo a uma determinada direção, o que lhe dá uma certa tridimensionalidade. Além disso, os Annales cuidam de aproximar a visão histórica de um momento específico à sua devida conjuntura. Como vimos neste texto, é um descuido frequente levar valores atuais para a visualização de acontecimentos pretéritos, o que faz com que a sua descrição se distorça e a historiografia deixe de cumprir seu papel.

No fundo, no fundo, a Filosofia da História, assim como a Filosofia da Ciência, é uma derivação da Epistemologia, a área da Filosofia que estuda a possibilidade de conhecermos com segurança (se isso possível for). Ficamos por aqui porque já andamos muito. Bons ventos a todos.

Recomendação:

A História como narrativa é algo sensacional, tanto que eu tinha grandes dúvidas sobre cursar Filosofia ou História, mas o que vem pelo pano de fundo é algo realmente meio árido. Para tirar algumas dúvidas, sugiro o canal e o blog do Icles Rodrigues, o Leitura ObrigaHistória.

https://leituraobrigahistoria.wordpress.com/

https://www.youtube.com/channel/UCtMjnvODdK1Gwy8psW3dzrg

* Eu moro a 100 metros do marco zero de São Paulo. Se eu for a pé até os Campos Elíseos, demoro algo em torno de 20 minutos.

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